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UNIVERSIDADE TUIUTI DO PARANÁ Crisbelli D. Domingos Brunet A TRADUÇÃO DO HUMOR SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DA RELEVÂNCIA CURITIBA 2011 CRISBELLI D. DOMINGOS BRUNET A TRADUÇÃO DO HUMOR SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DA RELEVÂNCIA Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Curso de Especialização em Língua Espanhola e suas Literaturas da Faculdade de Ciências Humanas, Letras e Artes, da Universidade Tuiuti do Paraná, como quesito parcial para a obtenção do título de Especialista em Língua e Literatura Espanhola. Orientador: Prof. Dr. Sebastião Lourenço dos Santos CURITIBA 2011 AGRADECIMENTOS Ao meu querido Deus, que prova sua existência em cada momento de minha vida, sejam eles de dificuldades, desafios, alegrias, curiosidades, aprendizados... Sua magnitude me faz entender que, assim como as oportunidades, pessoas especiais também não surgem ao acaso. Ao meu marido Orlando, companheiro coerente e íntegro, que demonstra incondicional apoio, paciência e compreensão às minhas escolhas e planos. Também pelas preciosas sugestões ao ler esse trabalho. Ao estimado mestre Sebastião Santos, pelo contínuo incentivo, por dividir comigo seus conhecimentos, depositar confiança em meus projetos e, principalmente, por ser o maior responsável por esta vontade que tenho de investigar o instigante mundo da linguagem. Disposto a qualquer desafio e sempre com um universo de novidades, dispôs-se a também me ensinar o caminho dos estudos da tradução. À querida professora Teresita Avella, que acompanhou toda minha trajetória acadêmica, destacando-se pela dedicação que tem com seus alunos e pelo desejo de vê-los crescer. Companheira de todas as horas, marca sua presença com o brilho da sua coragem, competência e saber. A estas admirables personas, dedico este trabajo, mi respeto y agradecimientos. EPÍGRAFE Quino RESUMO O objetivo deste trabalho é analisar a tradução do humor de Mafalda, personagem do cartunista argentino Quino, a partir de uma perspectiva cognitiva de linguagem. Para tal proposta, discute-se às propostas teóricas sobre tradução, demonstrada nos estudos de Frota (2007), Barbosa (1990), Santos (2011), Arrojo (1992), Gonçalves (2003) e Alves & Carvalho Neto (2006). Após a fundamentação conceitual de tradução, a pesquisa enfatiza a concepção da pragmática cognitiva, recorrendo aos atributos da Teoria da Relevância de Sperber & Wilson (2001), e em continuidade, aos estudos de Gutt (2000) que recebe destaque por tratar diretamente de tradução e cognição. Fundamentadas estas dimensões, busca-se compreender a tradução do humor a partir das investigações de Rosas (2002), Brezolin (1997), Queiroz (2007), Lessa (2008), Silva (2010), e também a interpretação de enunciados humorísticos, considerando a proposta de Santos (2009). Com base neste arcabouço teórico, são brevemente debatidos oito modelos de tradução das referidas tiras, e em seguida, analisa-se mais detalhadamente outras duas delas. Dessa maneira, as observações analíticas pretendem mostrar que a tradução eficaz desse tipo de humor, dá-se, não somente através da mera aplicação de enunciados compatíveis, mas origina-se, sobretudo, de um processo cognitivo de semelhança interpretativa, que derivado do desempenho interpretativo do tradutor, deve atuar de forma a prever, incondicionalmente, os elementos constituintes da realidade cognitiva, social e cultural da audiência do texto alvo, em busca de tornar manifesto um efeito contextual equivalente. PALAVRAS-CHAVE: tradução, humor, quadrinhos, pragmática, teoria da relevância. SUMÁRIO 1. INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 8 2. ESTUDOS DA TRADUÇÃO: DOS PROCEDIMENTOS TÉCNICOS À ABORDAGEM COGNITIVA .................................................................................. 10 2.1. OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO NO BRASIL ..................................................... 13 2.2. TRADUÇÃO LITERAL VS. TRADUÇÃO LIVRE ................................................. 18 2.3. DESENVOLVIMENTOS DA PRAGMÁTICA COGNITIVA NO PROCESSO TRADUTÓRIO ............................................................................... 27 2.3.1 A Teoria da Releväncia: uma proposta cognitiva para os estudos da linguagem........................................................................................... 29 2.3.2 Ernest Gutt: a semelhança interpretativa e o contexto artificial ........................ 33 3. HUMOR, TRADUÇÃO E RELEVÄNCIA. .............................................................. 40 3.1. TRADUÇÃO DO HUMOR: TRADUZIR, TRANSCREVER OU RECRIAR PIADAS? ............................................................................................ 42 3.2. HUMOR: SIM. É POSSÍVEL TRADUZÍ-LO E ENSINAR A TRADUZÍ-LO .......... 46 3.3. A TRADUÇÃO DE TIRAS EM QUADRINHOS ................................................... 50 3.4. INTERPRETAÇÃO E RELEVÄNCIA: UMA ANÁLISE PRAGMÁTICA DAS TIRAS DE MAFALDA ............................................................... 60 4. TRADUÇÃO DO HUMOR E TEORIA DA RELEVÂNCIA: UM ENLACE POSSÍVEL?............................................................................................... 73 4.1 AS TIRAS DE MAFALDA: ABORDAGENS TRADUTÓRIAS .............................. 74 4.2 ANÁLISE DO CORPUS ....................................................................................... 89 4.2.1 As peculiaridades da semelhança interpretativa na tradução de textos de humor: adaptações obrigatórias............................................................ 90 4.2.2 Unidade de tradução e contextos artificiais no processo tradutório de tiras em quadrinhos .............................................................................. 99 4.2.3 A recriação de textos humorísticos em uma perspectiva cognitivista ............. 111 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ....................................................................... 119 ANEXO.................................................................................................................... 122 8 1 INTRODUÇÃO O desenvolvimento deste trabalho é realizado com base em três questionamentos fundamentais: O que acontece com o texto e com sua interpretação quando o traduzimos? Como realizar a tradução de textos humorísticos, uma vez que são revestidos, predominantemente, de estereótipos e outros domínios discursivos controversos, construídos e adquiridos por meio de valores inerentes a cada cultura? Se não há como acessar o universo mental do indivíduo, é possível, então, identificar quais ou “que tipo” de processos mentais ele realiza em busca de interpretar e traduzir um enunciado humorístico? Este estudo tem, então, por objetivo, mostrar como as teorias de tradução, em consonância com as teorias cognitivas de interpretação do humor, subsidiam a compreensão dos processos inferenciais envolvidos no ato tradutório desse gênero de texto. Para isso, serão inicialmente debatidos oito modelos de tradução das tiras em quadrinhos da obra Toda Mafalda, do cartunista Quino, e em seguida, será analisado, mais detalhadamente, outras duas tiras, cujas mensagens humorísticas são ainda mais complexas, devido suas particularidades linguísticas ou culturais. Para a realização do estudo proposto, ordenamos a presente pesquisa em três capítulos. No primeiro capítulo busca-se desenvolver, por meio do balanço histórico de Frota (2007), uma síntese sobre os estudos da tradução realizados no Brasil. Em seguida, desenvolve-se uma discussão sobre os paradigmas teóricos entre tradução literal e não literal, suas estratégias e aplicações. Para tanto, toma-se como base as investigações de Barbosa (1990), Santos (2011) e a abordagem do desconstrutivismo, exposta por Arrojo (1992) em suas investigações. 9 Compreendido os conceitos sobre tradução, realiza-se uma breve introdução dos desenvolvimentos da pragmática cognitiva no processo tradutório, e em continuação, apresenta-se a Teoria da Relevância de Sperber & Wilson (2001), que embasa o leitor para a compreensão dos estudos de Gutt (1991/2000), sobre cognição e tradução. No capítulo dois, o enfoque é dado para as teorias de tradução do humor. Neste âmbito, são atribuídos os estudos de Rosas (2002), Brezolin (1997), Queiroz (2007), Lessa (2008) e Silva (2010). As três últimas referências embasam a tradução específica de tiras em quadrinhos. A partir desse aporte teórico, recorre-se aos estudos de Santos (2009) e as análises de Brunet (2010), para compreender a interpretação de textos humorísticos em uma perspectiva cognitivista. No último capítulo, com todos os estudos e informações estruturais construídas, realiza-se o trabalho analítico do corpus escolhido, propondo-se o desafio de enlaçar todas as teorias, em busca de compreender “como” o mecanismo cognitivo humano processa a tradução de tiras em quadrinhos, já que tal prática atribui ao tradutor também a dispendiosa função de mediador cultural. 10 2 ESTUDOS DA TRADUÇÃO: DOS PROCEDIMENTOS TÉCNICOS À ABORDAGEM COGNITIVA. Fonte: Quino. Toda Mafalda (2008, p. 171) Ao procurar saber o que as pessoas pensam sobre tradução, não seria difícil perceber que há uma forte tendência à crença de que traduzir resume-se a um simples ato de troca ou substituição de códigos linguísticos. É senso comum que traduzir é apenas compor um texto de uma para outra língua, ou no máximo fazer com que algo escrito em outro idioma seja compreendido conforme o nosso. Mas o fazer tradutório seria mesmo algo assim tão ingênuo e objetivo? Buscando elencar algumas informações, encontra-se na literatura específica que a palavra tradução é originária do latim traductione, que significa conduzir, levar, transferir (SILVA, 2002, p. 442). Quanto a sua definição, o dicionário Aulete (2004, p.449) atribui à tradução “a versão de um texto oral ou escrito de uma língua para a outra”. De forma pouco menos modesta, o Larousse (2004, p. 748) define que a tradução é o ato de “transpor a significação de um termo ou de um discurso de uma língua para o seu correspondente em outra língua”. Parece fácil encontrar respostas 11 possíveis para o que é tradução, mas afinal, “o que acontece” com o texto e com sua interpretação quando o traduzimos? Em uma das entrevistas da coletânea Conversa com tradutores (BENEDETTI & SOBRAL, 2003) Claudia Berliner1, ao expor a sua opinião sobre a tradução como ofício, afirma que “traduzir não é um bico – e não é bico” (p. 75). Eis um enunciado bastante sugestivo, pois se fosse para traduzi-lo ao espanhol, por exemplo, como se deveria proceder? Será que se encontraria, com facilidade, uma expressão equivalente ou correspondente nessa ou em outra língua? A própria entrevistada, ao dar-se conta do que disse, afirmou que “imaginem só o que seria traduzir esta última frase” (p.75). Pois segundo sua experiência no ramo, “não bastaria tentar encontrar um jogo de palavras equivalente, haveria também que procurar transmitir o efeito que ela possa produzir nos mais variados leitores - a começar pelo tradutor (...)” (p. 75). O enunciado proferido por Berliner é um típico exemplo que coloca, inevitavelmente, outra ideia generalizada que é a da tradução literal, em xeque. Assim, torna-se possível notar que não há problemas em definir “o que é” tradução, mas em “como” traduzir, uma vez que as línguas estão em constante transformação e mantêm uma infinidade de significados a serem analisados dentro dos mais diversos contextos, sejam eles quais forem. Considerando a realidade contextual da linguagem e compreendendo que cada língua possui suas particularidades, como fica a “fidelidade” na tradução? Como traduzir expressões típicas que fazem sentido somente no contexto de determinada Psicanalista e tradutora que concentra seus trabalhos em textos de ciências humanas. Entre os autores que traduziu para o português inclui-se Lacan, Vygotsky, Todorov, Confúcio e outros. 1 12 língua? Se a tradução é antes de tudo, uma atividade mental, quais os processos cognitivos que o tradutor precisa realizar a fim de obter uma semelhança interpretativa entre duas línguas distintas? São dessas e de outras indagações que alguns teóricos se ocuparam nos últimos anos, e também os questionamentos que serão abordados nesse capítulo com o propósito de buscar, por meio de investigações contemporâneas, respostas relevantes sobre os principais problemas teóricos que envolvem o ato tradutório. Para tal proposta, se apresentará um breve panorama dos estudos da tradução atualmente desenvolvidos no Brasil. Em seguida, se dará enfoque a alguns vieses acadêmicos que atualmente vêm se destacando, enfatizando naqueles que correspondem ao desenvolvimento desta pesquisa. 2.1 OS ESTUDOS DA TRADUÇÃO NO BRASIL Com o objetivo de realizar um levantamento sobre o campo de investigação do tradutor, as perspectivas teóricas mais recentes e a contextualização histórica do ofício no país, Maria Paula Frota (2007) publica nos Cadernos de Tradução2 o artigo Um balanço dos Estudos da Tradução no Brasil. Frota (2007) demonstra que a trajetória das pesquisas sobre tradução no país é inicialmente marcada por um grande hiato entre os estudos de Paulo Ronái (1952), autor de Escola de Tradutores - primeiro livro nacional sobre tradução - e Paulo Paes, Cadernos de Tradução é a revista eletrônica do setor de pós-graduação da Universidade Federal de Santa Catarina. Possui periodicidade semestral e pode ser conferida com mais detalhes em www.cadernosdetraducao.com.br. 2 13 autor de A tradução literária no Brasil (1990). Isso se deve ao fato de que o intervalo entre essas duas obras foi preenchido apenas por outros 13 livros e uma quantidade muito pequena de coletâneas e periódicos. Porém, a incipiência de publicações no período não acarretou a isenção de obras significativas. A Oficina de Tradução de Rosemary Arrojo (1985), por exemplo, reconhecida como leitura obrigatória para os pesquisadores em tradução, é fruto desta época. No entanto, Frota classifica estes 38 anos como o “período embrionário” dos estudos tradutológicos, inclusive porque foi neste momento histórico que a Lei das Diretrizes e Bases de 1968 incluiu a tradução como disciplina em área específica nas universidades brasileiras. O surgimento deste novo aporte federal e a tomada de iniciativa dos professores acadêmicos, com a criação de fóruns de reflexão sobre tradutologia, foi o marco inicial da consolidação do campo de pesquisa. O lançamento do Encontro Nacional de Tradutores (1975) e do Grupo de Trabalho de Tradução da ANPOLL (1986), feita por estes docentes, não somente originou como fortaleceu a expansão da produção brasileira no ramo. Desde então cursos, palestras e boletins passaram a ser promovidos e divulgados em parceria com a Associação Brasileira de Tradutores (ABRATES), e pelo Sindicato Nacional dos Tradutores (SINTRA). A formalização destas instituições, o reconhecimento do ofício e a divulgação dos trabalhos científicos, acresceram interesse e maior busca por novos desenvolvimentos teóricos, desencadeando consequentemente um “boom” na década de 90. Além da obra de Paes, em 1990, foi também publicado Procedimentos Técnicos da Tradução, de Heloísa Barbosa. Trabalho que elenca e confronta – como se verá mais adiante - as teorias de tradução postuladas por pesquisadores nacionais e internacionais de destaque. A partir desse ano, todos os outros subsequentes tiveram 14 publicações de livros, artigos e coletâneas resultantes de trabalhos realizados nas Universidades Federais da Bahia, Rio de Janeiro, São Paulo, Santa Catarina, Rio Grande do Sul e outras de nível estadual. Os estudos multiplicaram-se também como linhas de pesquisa em programas de pós-graduação. Pagano & Vasconcelos (2003, apud FROTA, 2007, p. 145) mencionam um aumento gradual entre as décadas de 1980 e 1990 dos trabalhos acadêmicos elaborados por pesquisadores brasileiros, tanto em nível de mestrado como de doutorado. Nota-se que da virada do ano 2000 em diante, o ritmo de publicações permaneceu crescente. Registram-se, de 1999 a 2003, onze publicações de livros e entre 1996 e 2004 a organização de 15 coletâneas, em que se percebe uma considerável abertura do leque aos mais variados temas, pois além da concepção clássica de teoria e prática, os estudos passaram a abordar os fatores interligados à tradução, tais como a contextualização, multidisciplinaridade, discursividade, autonomia, metodologia de pesquisa, análise de discurso e - dentre outras - a Teoria da Relevância, que corresponde ao objetivo deste trabalho. Para Frota (2007, p.150), a atividade tradutora acompanha a produção humana “em praticamente todas as suas esferas – científica, tecnológica, midiática, política, etc.”. Desse modo, as pesquisas atingiram um nível de diversidade 3 abrangente o suficiente para que os objetos de estudo e perspectivas fossem divididas em áreas e subáreas que correspondessem aos interesses dos vários campos do saber envolvidos, dentre eles filosofia, literatura, psicologia, antropologia, etnografia e linguística. Frota (2007) desenvolve suas argumentações com base em uma premissa básica de que não há “teorias” da tradução, mas sim “estudos” da tradução. Esse olhar da autora para a relação entre os conceitos de teoria e estudo permite compreender a tradução como uma prática interdisciplinar, e por isso, uma disciplina autônoma, que em seu “universo”, abrange categorias e subcategorias variadas. 3 15 No que compreende a esta última 4, Frota demonstra um notável interesse ao surgimento de uma nova subárea para as relações da tradução com a cognição originária de professores do setor de pós-graduação de Estudos da Tradução da UFMG - que tomou uma iniciativa de estudos que, segundo a autora, “merecessem [também] ser adotadas por outras universidades (...)” (p. 159). A proposta central dos pesquisadores de Minas Gerais - que é a de propor uma solução consensual que aplique as diferentes abordagens teóricas de maneira conjunta – corrobora com a concepção de Frota de que “não há como tratar da tradução, em qualquer de suas esferas, sem que se esteja informado por algum paradigma ou mesmo por uma série deles” (p. 153). Assim, na tentativa de promover um diálogo entre as investigações contemporâneas, e, acompanhar as tendências científicas internacionais, tais docentes voltaram suas atenções para os processos cognitivos atrelados ao ato tradutório. Tal interesse demandou que a UFMG formasse uma linha de pesquisa específica que, fomentada pelo pesquisador Fábio Alves, gerou frutos e resultou na publicação de Teoria da Relevância e tradução: conceituações e aplicações (2001), um compêndio dos trabalhos de alunos e professores, cujo objetivo principal é a busca de desvendar “quais” os elementos mentais (ou computacionais5) envolvidos no processo tradutório, e “como” os tradutores acionam esses elementos e cumprem dada trajetória cognitiva frente a enunciados mais complexos ou subjetivos. 4 Como a proposta de Frota (2007) é bastante ampla por ter como objetivo a realização de um balanço histórico, decidimos seguir mais detidamente nas relações da tradução com a cognição, a fim de apresentar neste tópico introdutório o início desta “subárea” originária da linguística. 5 O autor considera também os processos de inteligência artificial do programa Translog. 16 Além dos estudos de Alves - que se verão em detalhes mais adiante - Frota menciona outro referencial teórico desta pesquisa que é a investigação de Marta Rosas na obra Tradução de Humor: transcriando piadas (2002), juntamente a uma relação de teses e dissertações que foram publicadas em livro. Diferentemente do efeito acadêmico desenvolvido por Alves, os estudos da tradução do humor permanecem bastante escassos, pois se observa no balanço histórico realizado pela autora, que somente esta obra havia sido publicada6 em relação ao tema e este, nem sequer foi categorizado como uma subárea da disciplina. No entanto, um assunto que não só foi discutido no desfecho do artigo de Frota, mas que ocupa posição de destaque no âmbito dos desenvolvimentos da linguística aplicada à tradução é o reconhecimento do fator pragmático em seus processos. A perspectiva que vem ganhando espaço7 é a de que não há como pensar em linguagem sem considerar o contexto, o momento histórico, os indivíduos envolvidos, a cognição, as crenças, convenções e valores sociais. Quando se pensa em tradução, tem de se entender que a língua é indissociável a estes fatores e por isso, cada uma detém uma infinidade de particularidades que correm grande risco de não serem interpretadas e compreendidas por um indivíduo de outra língua qualquer. Esta é uma questão que vem sendo o “calcanhar de Aquiles” da Tradução, justamente por esta ser “talvez a única atividade da linguagem que opera na diferença entre as línguas, culturas, momentos históricos, subjetividades etc.” (FROTA, 2007, p. 149 – grifos do autor). Por isso, antes de adentrar as teorias pragmático-cognitivas e as 6 Até o ano de 2007. Segundo as propostas de Arrojo (1992), Martins (1999), Alves & Magalhães (2000), Gohn (2001); Rosas (2002) e demais citados no artigo de Frota (2007). 7 17 teorias da compreensão do humor, julga-se relevante ao desenvolvimento desta pesquisa à apresentação de alguns pontos de vista sobre a “tradução literal” e a “tradução livre”, a fim de antes identificar a importância do elemento pragmático na compreensão dos enunciados, já que os vieses cognitivistas e humorísticos partem, logo em primeira instância, dos estudos da pragmática. 2.2 TRADUÇÃO LITERAL VS. TRADUÇÃO LIVRE. Com o propósito de realizar uma comparação entre os modelos teóricos disponíveis, Eloisa Gonçalves Barbosa propõe uma nova recaracterização dos métodos tradutórios em sua obra Procedimentos Técnicos da Tradução (1990). Suas argumentações propõem que a questão central entre as teorias é a oposição da tradução livre em relação à literal, visto que o que entra em jogo neste tipo de investigação é “como” a tradução deve ser feita e os “modos de traduzir”. A autora observa que a relação divergente entre os dois extremos é decorrente de um senso comum de que fidelidade na tradução é sinônimo de literalidade, pois “todos – leigos, clientes, consumidores, críticos e tradutores – têm uma noção instintiva, uma expectativa, daquilo que uma tradução é ou deve ser: fiel ao original” (AUBERT, 1987, apud BARBOSA, 1990, p. 12). Assim, as relações com a fidelidade tendem a gerar, consequentemente, uma certa tensão entre conteúdo e forma, e o desafio do tradutor passa a ser a tomada de decisão entre tradução literal, aquela palavra por palavra e fiel estritamente à forma, ou se ele não deverá preocupar-se com a forma mantendo fidelidade somente ao conteúdo. Aderindo a concepção de Bordenave (1987), Barbosa considera que a tradução é “um fazer intelectual que requer um domínio de operações mentais” (p.13). Em outras 18 palavras, é uma prática humana realizada por meio de estratégias lógicas dispensadas no exercício de transferir significados de um código linguístico a outro. Tendo essa definição como base, a autora entende que a aplicação de procedimentos técnicos na tradução serviria como uma solução possível para lidar com a oposição entre as práticas livre e literal. Para tal proposta, a pesquisadora utilizou os estudos de Vinay e Dalbernet (1977) em conjunto com as produções teóricas de Nida (1964/66), Catford (1965), Vásquez-Ayora (1977) e Newmark (1981), a fim de realizar um comparativo entre as investigações disponíveis até dado momento, acrescentando, reagrupando e eliminando alguns procedimentos em busca de desenvolver uma nova proposta técnica. Na reorganização dessas estratégias, Barbosa considerou os procedimentos de tradução palavra por palavra, tradução literal, transposição, modulação, equivalência, omissão vs. explicitação, compensação, reconstrução de períodos, melhorias, transferência, explicação, decalque e adaptação, conforme se verá nos parágrafos subsequentes. A tradução palavra por palavra seria aquela que corresponde à expectativa consensual da coincidência formal, estrutural e estilística. Segundo Albert (1987, apud BARBOSA, 1990, p. 64) esta acontece quando se mantém o mesmo número de palavras e ordem sintática idêntica na sentença. Ex8: Voy al cine/ Vou ao cinema. Porém o uso é restrito, pois nem sempre há esta convergência entre as línguas. O segundo procedimento é a tradução literal, que de acordo com Barbosa é entendido de igual forma por Catford (1965), Albert (1987:15) e Newmark (1988). Para 8 Os exemplos foram adaptados para a língua espanhola por ter como objetivo a contextualização dos procedimentos de Barbosa com a proposta desta pesquisa. 19 eles, este tipo de tradução seria aquela que mantém, estritamente, a fidelidade semântica adaptando-se somente as regras morfossintáticas. Ex: Siempre he confiado en ti/ Sempre confiei em você. Esta é uma prática que pode ser obrigatória na tradução de certos documentos e também em edições bilíngues. Para Newmark (1988 apud BARBOSA 1990, p. 66) “é o procedimento recomendável sempre que for possível”. O terceiro procedimento é a transposição, que incide na mudança de categoria gramatical sem que se altere o conteúdo original. Um exemplo desta estratégia pode ser observado nas seguintes frases utilizadas por Santos9 (2011): “La situación está complicada”, “A situação complicou-se” (p. 04). Dessa forma, nota-se que houve uma transposição do advérbio em espanhol para verbo em português. O quarto procedimento é reconhecido por Catford (1965), Vinay e Dalbernet (1977), Vásquez-Ayora (1977) e Newmark (1988) como modulação. Esta técnica incide em mudar o ponto de vista, categoria de pensamento ou enfoque, levando-se em conta a diferença no modo como determinada língua interpreta. Um exemplo em espanhol seria “Pedro ha llegado a las cinco de la mañana” com relação a “Pedro chegou altas horas da madrugada” em português (SANTOS, 2011, p. 04). A quinta estratégia é a equivalência. Defendida por Vinay e Dalbernet (1977), Vásquez-Ayora (1977) e Newmark (1988), é entendida como a substituição de um termo por outro, que não o traduz de forma literal, porém equivale a funcionalidade em questão. Tal técnica é comumente aplicada a provérbios, expressões idiomáticas, ditos populares ou outras do gênero. Um exemplo do espanhol ao português seria: “Buscar 9 São exemplos que o professor Sebastião Santos utilizou em seus ensaios sobre teorias da tradução, que - também embasados nos autores elencados por Barbosa - foram apresentados na disciplina de Novos Modelos de Tradução, do curso de especialização em Língua Espanhola da UTP. Foram adaptados tais exemplos devido ao fato de Barbosa utilizar a língua inglesa como referência. 20 cinco pies al gado” e “Procurar chifre em cabeça de cavalo” (idem, p. 05). Neste procedimento, o tradutor necessita conhecer de forma mais próxima a cultura da língua a ser traduzida, para que seu trabalho seja realizado com sucesso. O sexto procedimento é o da omissão vs. a explicitação. Para Barbosa, a estratégia da omissão consiste em desconsiderar os elementos que possam parecer repetitivos na língua de chegada. Um caso tipicamente comum do espanhol ao português é a aplicação dos pronomes pessoais. Por exemplo: “Me he cortado la mano” e “cortei a mão” ou “a mí me gusta naranja” e “eu gosto de laranja” (ibidem, p. 05). A sétima estratégia, a compensação, pratica-se ao deslocar certo recurso estilístico de uma língua para outra. Isso é decorrente da inexistência de algum elemento ou expressão da língua de origem em relação à língua de chegada. Dessa forma, para que a tradução não pareça “empobrecida”, o efeito perdido em dado enunciado é compensado de outra maneira em outro momento do texto, com o objetivo de equilibrá-lo estilisticamente. Como oitava estratégia, Barbosa apresenta a reconstrução de períodos. Assim como a compensação, esta é uma estratégia aplicada ao longo de um texto. Sua prática ocorre quando é necessário reorganizar os enunciados em busca de alcançar a maior coerência textual possível, inclusive em relação a períodos mais complexos, subjetivos, ou aqueles que possam ser considerados insuficientes. Elencadas como nona estratégia, as melhorias são as correções de erros gramaticais presentes no texto original que o tradutor inclui no texto traduzido. A décima estratégia, a transferência, consiste em introduzir o mesmo material do texto de origem (texto de partida) para o texto traduzido (texto de chegada), assim como uma cópia. Essa é uma prática que pode ocorrer na inserção de estrangeirismos 21 capazes de serem interpretados de maneira comum às duas línguas; ou na aclimatação, que seria o uso de denominações ou expressões cristalizadas compartilháveis universalmente; e também na prática da transferência com explicação, que é aquela que, devido à falta elementos linguísticos compatíveis, mantêm-se a expressão original não traduzida e então se coloca uma nota de rodapé com a definição em questão. A décima primeira estratégia é a explicação. Aplica-se esta técnica quando certas expressões contextuais de determinada língua correm o risco de não serem interpretadas em outra. Por este motivo, são substituídas no próprio corpo do texto pela sua definição. Semelhante ao fenômeno da explicação, e inserido como décima segunda estratégia, o decalque refere-se especificamente aos enunciados transformados em siglas ou outras abreviações, que na maioria das vezes são aplicadas a instituições nacionais de destaque. Por exemplo: “La RAE rechaza las críticas del PSOE” traduzido para “A Real Academia Espanhola, órgão responsável pelo controle da língua espanhola em todo o mundo, rebate as críticas do Partido Socialista espanhol” (SANTOS, p. 05) 10. A última técnica, a adaptação, é considerada o limite máximo (ou a ausência deste) no traduzir. Este procedimento acontece quando determinada realidade extralinguística é incompatível entre os falantes da língua de chegada. Isso faz com que, obrigatoriamente, o tradutor use de seus conhecimentos e realize uma 10 Seguindo os procedimentos técnicos de Vásquez-Ayora (1977), Santos (2011) utiliza este exemplo para ilustrar a “amplificación”, que para a proposta de Barbosa, é equivalente ao decalque. 22 reformulação ou recriação de tal enunciado. Um caso típico da aplicação dessa técnica possivelmente seria: (…) imagina que alguien te llama para una charla en su despacho y, tras la convenciones de saludos, la persona te dice: “Pon tu culo ahí”, apuntado para la silla que está delante de ti. Esta variante de la lengua española sería adaptada para el portugués, según las estrategias de cortesía lingüística de Brown & Levinson (1986), para algo como “puxe a cadeira” o “senta” o en otro extremo para “senta, por favor” (SANTOS, 2011, p. 04). Para Barbosa, a aplicação destas treze estratégias dissolveria a divergência entre a tradução literal e livre, pois a prática tradutória teria como diretriz a aplicação de procedimentos técnicos específicos a cada caso em detrimento às teorias que defendem pontos de vista acerca da aplicação de uma ou de outra estratégia ou procedimento. Assim, “todos os procedimentos são igualmente válidos, independentemente de serem literais ou não” (p. 101). Além disso, a autora ressalta que o tradutor deve se curvar às necessidades do leitor e isso elimina, de certa maneira, a ideia de tradução irredutivelmente fiel ao original. O fato de Barbosa ter realizado um levantamento entre as teorias existentes, se debruçado em busca de uma nova proposta de classificação destes estudos e, desta maneira, ter encontrado soluções para esse “emaranhado teórico”, não a isentou de ter deixado lacunas. Ela observa que nenhum dos autores investigados foi capaz de construir uma chave para a compreensão das operações mentais envolvidas no processo tradutório, admitindo que “até hoje, não foi desvendado o mistério sobre o que se passa na cabeça do tradutor no ato da tradução” (p. 106). Observa-se que a concepção teórica de traçar procedimentos técnicos na tentativa de fusionar tradução literal e não literal, ganhou, desde os pioneiros estudos 23 de Vinay e Dalbernet em 1958, posição de importância para a compreensão da prática tradutória. Porém, há quem pense de outra maneira. Rosemary Arrojo em seu livro Oficina de Tradução (1992) 11 declara que se o ato de traduzir dependesse somente da memorização de algumas regras, e do simples conhecimento de uma língua estrangeira, as máquinas de traduzir, há muito tempo, já teriam conseguido substituir o homem. Dessa maneira, “ao invés de prescrever fórmulas infalíveis ou de revelar macetes secretos que garantam uma boa tradução” (ARROJO, 1992, p. 78) sua obra tenta mostrar que traduzir é uma atividade estritamente complexa. Arrojo observa alguns fatores para chegar a tais conclusões. A primeira questão levantada por ela é o fato da tradução incidir na capacidade humana de produção de significados, pois o significado de uma palavra ou texto, na língua de partida, só poderá ser determinado através de uma leitura. Que, por sua vez, é “própria” daquele que leu e interpretou. Nesta perspectiva, o texto original torna-se obrigatoriamente redefinido, pois: (...) ainda que um tradutor conseguisse chegar a uma repetição total de um determinado texto, sua tradução não recuperaria nunca a totalidade do “original”; revelaria, inevitavelmente, uma leitura, uma interpretação desse texto que, por sua vez, será, sempre, apenas lido e interpretado, e nunca totalmente decifrado ou controlado (ARROJO, 1992, p. 22). Assim, percebe-se que não há possibilidade de se alcançar uma verdade única e absoluta, que expressada na (e pela) linguagem, neutralize igualitariamente as ambiguidades, variações de interpretação e as mudanças de sentido e significado decorrentes do tempo ou contexto. Logo, as relações de fidelidade, ou aquilo que consideramos verdadeiro em relação ao texto original, são determinadas pela gama de 11 Segunda edição. A primeira foi lançada em 1986. 24 fatores que constituem nossa história pessoal, social e coletiva como tradutores. Portanto, mesmo que se pretenda buscar uma literalidade, seria “impossível resgatar integralmente as intenções e o universo do autor, exatamente porque estas intenções e esse universo serão sempre, inevitavelmente, nossa visão daquilo que possam ter sido” (p. 40). Esse resgate do “eu” como tradutor e autor na proposta de Arrojo considera, de maneira fundamental, o fator tempo e o fator aceitabilidade. Tanto a escrita como a leitura e a tradução desta leitura são produtos de um determinado tempo, que possui suas necessidades, e estas, moldam as relações de interesse e aceitação. Jaques Derrida (1978, apud ARROJO, 1992, p. 42) afirma que traduzir é “uma transformação: uma transformação de uma língua em outra, de um texto em outro”. Portanto, o ato de traduzir seria um processo de recriação de um texto que, traduzido, seria reinserido em outro contexto histórico, social e interpretativo. Mesmo que Arrojo tenha como diretriz esta visão que rompe os paradigmas da literalidade, originalidade e todos os outros termos que remetem a ideia de tradução como prática rígida, imutável e controlada por regras, ela deixa claro que é dever do tradutor o cumprimento de três tarefas fundamentais: (1) reproduzir o texto em sua totalidade; (2) manter o mesmo estilo e (3) manter a fluência e a naturalidade do texto original (p. 13). Além disso, para obter sucesso na tradução um texto literário 12, por exemplo, é essencial ter sensibilidade e talento semelhantes àqueles que se exigem dos poetas. 12 Que é o objeto de estudo de Arrojo na proposta desta obra. 25 Dando continuidade as suas concepções teóricas, Arrojo lançou em 1992 a obra O Signo Desconstruído, uma coletânea de artigos que versam sobre a reflexão desconstrutivista da linguagem, leitura, tradução e ensino. O objetivo central das investigações é argumentar a favor do abandono do logocentrismo, que assim como fazem as teorias tradicionalistas de linguagem, é caracterizado pela obsessão ao racional, ao lógico, e pela necessidade de rejeição daquilo que seja subjetivo e dependente do contexto. Para Arrojo, o pensamento pós-moderno não comporta mais esta tendência histórica ultrapassada, e os “inocentes”, que ainda se apoiam nestes modelos, precisam buscar novas perspectivas. No que se refere especificamente à tradução, as convergências logocentristas podem ser identificadas naqueles estudos que (1) ainda creem na noção de uma tradução literal que não sofra interferência ou julgamentos do tradutor; (2) entendem a recuperação dos significados do autor pelo tradutor como um processo neutro, capaz de reproduzir uma “cópia” estável e imutável do original, e (3) atribuem ao significado a condição de “acondicionado”, praticado como objeto independente do sujeito e da história. Sendo assim, o que deve ser compreendido é que: Qualquer tradução, por mais simples e despretensiosa que seja, traz consigo as marcas de sua realização: o tempo, a história, as circunstâncias, os objetivos a e perspectiva de seu realizador. Qualquer tradução denuncia sua origem numa interpretação, ainda que seu realizador não a assuma como tal. Nenhuma tradução será, portanto, “neutra” ou “literal”; será, sempre e inescapavelmente, uma leitura (ARROJO, 1992 p. 78). Nesta perspectiva, chega-se a conclusão que os moldes logocêntricos só seriam possíveis e aceitáveis na linguagem se “um leitor, no exato momento da leitura, 26 pudesse se esquecer de tudo que o constitui como sujeito: seu inconsciente, sua história, sua cultura, sua ideologia” (ARROJO & RAJAGOPALAN, 1992, p. 88). Entendendo, portanto, o desconstrutivismo como uma proposta que rompe os paradigmas da visão tradicionalista da linguagem como uma prática “engessada”, Arrojo defende que se leve em conta o autor, tradutor e leitor como indivíduos, que inseridos em um contexto, são possuidores de uma cultura e interagem com seus pares segundo suas necessidades, interesses e valores sociais pertencentes a um dado momento histórico. Além disso, tal vertente teórica reconhece os indivíduos como detentores de uma “realidade mental” formada por sentimentos, emoções e ideologias próprias. Assim, esta nova reflexão propõe o resgate do humano, do individual e do contextual na prática tradutória que, entendidos como elementos pragmáticos, serão vistos com mais detalhes a seguir. 2.3 DESENVOLVIMENTOS DA PRAGMÁTICA COGNITIVA NO PROCESSO TRADUTÓRIO Mesmo que se entenda como óbvia a importância do contexto ao trabalho do tradutor, a relação deste com a tradução nem sempre é tão estreita quanto parece. Não somente pelo fato de que, incrivelmente, alguns profissionais ainda adotem paradigmas tradicionalistas arcaicos - como se discute anteriormente - mas porque nem sempre o contexto está, em tempo real, à disposição do tradutor. Isso pode ocorrer de várias formas, sejam elas por razões históricas, geográficas, temporais, culturais etc. O que o tradutor tem como garantia é o seu próprio contexto, aquele para o qual a tradução será produzida, segundo as necessidades do leitor alvo. 27 Mas e o contexto em que foi escrito o texto original? O que acontece, em termos de competência e processamento textual, quando o tradutor tem de lidar com uma situação comunicativa do texto de partida que lhe seja estranha, distanciada histórica, temporal, geográfica e culturalmente da situação de comunicação em que se encontra inserido? Pesquisadores como Alves & Carvalho Neto (2006) e Gonçalves (2003) se incumbem da tarefa de buscar respostas para estes (e outros) questionamentos. Para esses autores, o contexto, segundo a perspectiva pragmático-funcionalista, é compreendido como a soma das informações de natureza enciclopédica, que abrangem os mais diversos domínios do conhecimento humano, que juntos, configuram os traços socioculturais de uma determinada situação comunicativa da língua de partida, na qual estão inseridas língua e cultura de partida. (REISS & VERMEER, 1984 apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006, p. 13-14). Segundo esse viés teórico, o contexto funcionaria como elemento central na produção de uma tradução, tendo em vista que, naturalmente, esta é dirigida a uma outra situação de chegada. Assim, se o caráter enciclopédico de tal contexto não for de domínio do tradutor, certamente surgiriam problemas de adequação na tarefa tradutória. No entanto, segundo os pesquisadores, o desenvolvimento teórico acerca deste caráter contextual, de natureza “enciclopédico-mental” assumida pela pragmática funcionalista, é insatisfatório, porque não explica suficientemente as questões do processamento inferencial relacionado às situações comunicativas, que muito interessam quando se toma um rumo cognitivista em busca de entender o indivíduo em seu contexto. 28 Movidos por esta insatisfação, Sperber e Wilson (2001) passaram a argumentar, por meio da Teoria da Relevância13 (de aqui em diante TR), que a comunicação não se resume ao ato de codificar e decodificar mensagens, ou somente pelo modelo inferencial de Grice (1975) que postula que as relações comunicativas são regidas por uma cooperação mútua entre emissores e receptores que geram implicaturas conversacionais entre si e estas, por sua vez, são resolvidas via inferência. Para eles, este é somente um dos fatores envolvidos, pois a comunicação inferencial vai além, de forma que demanda aos seres humanos uma série de desdobramentos mentais a serem desenvolvidos na compreensão de enunciados. Além disso, o arcabouço teórico da TR apresenta o contexto como: (...) uma instância mental, definida por meio do conceito que denominam ambiente cognitivo, isto é, o conjunto de informações disponíveis e potencialmente disponíveis a um determinado indivíduo no âmbito de uma dada situação de comunicação. (...) emerge a partir das informações conscientes de um indivíduo, mas pode ser enriquecido por informações das quais esse mesmo indivíduo venha a se conscientizar (ALVES & CARVALHO NETO, 2006, p. 14). Para Alves (2001 apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006) a perspectiva mental de contexto, levantada por Sperber e Wilson (1986), não somente redireciona o leme dos estudos dos processos inferenciais humanos, como serve de aporte para solucionar alguns problemas relacionados à tomada de decisão em contextos de tradução. Nesse sentido, foi que se surgiu o interesse de recorrer aos conceitos da Teoria da Relevância em busca de desvendar o “mistério sobre o que se passa na 13 Teoria apresentada pelos autores na obra Relevance: communication and cognition. Oxford: Blackwell, 1986/1995. 29 cabeça do tradutor no ato da tradução14”, desafio este inicialmente aceito por Gutt (1991) e que apresentaremos logo após da síntese da teoria, já que os estudos deste autor fazem, de forma correlata, analogia aos procedimentos da TR. 2.3.1 A Teoria da Relevância15: uma proposta cognitiva para os estudos da linguagem. Segundo Sperber e Wilson (2001) a relevância é uma propriedade que se atém, de maneira potencial, não somente aos enunciados, mas inclusive aos pensamentos, recordações e conclusões de outras inferências já realizadas. Dessa maneira, qualquer estímulo ou representação que sirva como input, pode ser considerado relevante. Para Rauen (2005, p. 35), “a relevância é uma propriedade dos inputs (enunciados, pensamentos, memórias, percepções sensoriais, etc.) direcionados aos processos cognitivos”. Assim, um input torna-se relevante para um indivíduo quando pode aprimorar o conhecimento sobre aquilo que lhe interessa, ou seja, quando seu processamento, no contexto prévio de supostos da mente, produz um efeito cognitivo. Mas o fato é que nem sempre os inputs somam ou fortalecem o contexto cognitivo produzindo tal efeito. Um input pode enfraquecer ou entrar em contradição com suposições já existentes, podendo acarretar revisão, ou até mesmo, abandono dessas suposições. Dessa maneira, são estabelecidas a um input relações de grau: um estímulo pode ser de maior ou menor importância, os supostos contextuais (suposições levantadas pelo contexto cognitivo) podem ser de maior ou menor acessibilidade e os efeitos cognitivos mais fáceis ou mais difíceis de derivar. 14 Questionamento já levantado por Barbosa (1990), apresentado na página 17 desta pesquisa. Como, de aqui em diante, abordaremos a TR em conjunto com cada perspectiva teórica, realizaremos uma breve apresentação dos conceitos centrais da teoria e aprofundaremos conforme necessidade de cada tema no decorrer do texto, com o objetivo de que não ocorra redundância ou desgaste na leitura. 15 30 Considerando estes elementos, a TR segue a um procedimento “econômicoprodutivo” de que quanto maiores os efeitos cognitivos (ou efeitos contextuais mentais) ao processar um input, com o menor esforço de processamento possível, maior será a relevância, e quanto maior for o esforço de processamento (esforço de acessibilidade), menor será a relevância do input para o indivíduo. Logo, para que uma suposição seja tida como relevante, é preciso que haja vários efeitos contextuais, com o mínimo de esforço em processá-los. Nesta perspectiva, considera-se a existência de um princípio cognitivo em que a tendência cognitiva universal é maximizar a relevância e, se temos consciência dos estímulos que maximizam a relevância do outro, somos capazes de produzir estímulos que atraiam a atenção e incitem a ativação de determinados supostos contextuais, que conduzirá o outro à conclusão que pretendíamos que chegasse. A este percurso intencionado e intuitivo, Sperber e Wilson denominaram comunicação ostensivoinferencial. Sobre tal relação de reconhecimento de estímulos entre os interlocutores é o que trata o “Princípio Comunicativo de Relevância”, que nomeia o estímulo ostensivo como responsável por criar uma expectativa de relevância ótima. Segundo a TR, um enunciado é otimamente relevante quando é atrativo o suficiente para que valha a pena ser processado. Assim, o emissor/falante/autor (aqui autor), com o interesse tornar seu significado manifesto ao receptor, vai fazer do seu estímulo o mais ostensivo possível para que seja compreendido (inferido), proporcionando ao receptor/ouvinte/leitor (aqui leitor) evidências que possibilitem atingir o objetivo da comunicação. Por outro lado, num jogo interativo, a meta do leitor é a de alcançar uma interpretação que atinja a expectativa de relevância ótima realizada pelo autor. 31 Para que isso ocorra, demanda-se do leitor, embasado na codificação linguística e seguindo um percurso de esforço mínimo, que enriqueça esses inputs, de forma a obter o significado explícito e preenchê-lo em nível implícito, até que a interpretação se dê por cumprida, conforme a expectativa de relevância (SPERBER e WILSON, 2001, p. 12-13). Tendo em vista esta relação entre explícito e implícito na produção dos enunciados, o procedimento de interpretação é defendido na TR sob a premissa de que o objetivo do leitor é elaborar hipóteses mediante a decodificação, desambiguação e outros processos pragmáticos de enriquecimento através dos mecanismos inferenciais em busca de se obter a explicatura. Como todo conteúdo proposicional, segundo a TR, é entendido como uma forma lógica, a “forma lógica não proposicional” é aquela cuja explicatura ainda não foi realizada, estando restrita ao código, ou forma puramente linguística. A “forma lógica proposicional”, ou forma proposicional, respectivamente, é a forma linguística enriquecida ao nível de explicatura, que por sua vez compõe uma premissa implicada, que gerando uma conclusão implicada, acarreta em uma implicatura. Diferentemente da concepção griceriana, a TR apresenta que a interpretação do implícito não se dá, necessariamente, de forma ordenada (forma lógica, explicatura e implicatura), mas, simultaneamente, por ordem de acessibilidade mental. Desse modo, para Sperber e Wilson “as explicaturas e as implicaturas (que são premissas implícitas e conclusões) acontecem mediante um processo de ajuste paralelo mútuo, com hipóteses sobre ambas, consideradas por ordem de acessibilidade” (2004, p. 254). Frente aos conceitos postulados pela TR, podemos dizer, em síntese, que o percurso cognitivo-interpretativo entre autor e leitor ocorre da seguinte maneira: o leitor 32 identifica o conceito codificado linguisticamente através de uma pista (hipótese) do significado do autor. Guiado por suas expectativas de relevância, e diante do uso dos supostos contextuais, acessados pela entrada enciclopédica do conceito que fora linguisticamente codificado, começa então a derivar efeitos cognitivos. Estes efeitos dissolvem as explicaturas e implicaturas. Quando o ouvinte obtém os efeitos suficientes para satisfazer sua expectativa de relevância, detém o processo. Assim sendo, o grau de relevância (maior ou menor) do indivíduo determina a compreensão dos enunciados. Sob a égide destas bases e buscando aplicar os conceitos de uma nova perspectiva teórica, a fim de compreender de forma mais satisfatória os processos mentais envolvidos no processo tradutório, Gutt desenvolve suas considerações à tradução partir da abordagem cognitiva da TR, como veremos a seguir. 2.3.2 Ernest Gutt: A semelhança interpretativa e o contexto artificial Ernest-August Gutt, membro do Summer Institute of Linguistics (SIL) e reconhecido tradutor de textos bíblicos, inaugura em 1991, uma nova abordagem científica para os estudos de tradução em sua obra Translation and Relevance: Cognition and Context. Supervisionado por Deirdre Wilson16, Gutt aplica pela primeira vez a Teoria da Relevância nos desenvolvimentos tradutórios, superando limitações de várias teorias fundamentadas nos conceitos de fidelidade, equivalência ou funcionalidade17. 16 Em sua tese de doutorado, que resultou a publicação mencionada. Mais detalhes sobre esta informação, ver Alves & Carvalho Neto, 2006. 17 Por ser de vertente cognitivista, as aplicações teóricas de Gutt (1991) oferecem explicações para os processos inferenciais envolvidos no ato tradutório, cujas teorias mencionadas, por mais que tentem, não possuem arcabouço teórico suficiente para explicar. Devido ao enfoque desta pesquisa, não nos 33 Segundo o princípio da Relevância de Sperber e Wilson (1995 18, apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006, p. 15), a mente humana processa a comunicação (manipulando ou operando com representações mentais) por meio de dois tipos de uso linguístico: o uso descritivo e o uso interpretativo. O uso descritivo é a relação entre uma configuração mental (que é uma representação mental ou um conjunto delas) e seu valor de verdade num estado de coisas do mundo físico ou fictício. Já o uso interpretativo é a relação entre duas representações mentais que compartilham de alguma maneira, propriedades lógicas e efeitos contextuais entre si. A partir destes termos originários da TR, Gutt (2000, apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006) traça um paralelo entre o conceito de uso interpretativo e tradução direta que para ele seria a que “supõe se assemelhar interpretativamente ao original e completamente no contexto imaginado para o original” (p. 24) – de modo que esta, de igual maneira, gera formas proposicionais distintas que compartilham propriedades lógicas entre si. Tendo em vista a concatenação entre o processo cognitivo e o fazer tradutório, Gutt desenvolve o conceito de semelhança interpretativa, pois segundo ele: Uma característica essencial das formas proposicionais é que elas têm propriedades lógicas: e é uma virtude dessas propriedades lógicas que podem se contradizer, implicar uma na outra e apresentarem outras relações lógicas entre si. Uma vez que todas as formas proposicionais têm propriedades lógicas, duas formas proposicionais podem ter algumas dessas propriedades em comum. Da mesma forma, podemos dizer que as representações mentais cujas formas proposicionais compartilham propriedades assemelham-se em virtude dessas propriedades lógicas compartilhadas. Esta semelhança entre formas aprofundaremos em comparar do trabalho de Gutt em relação a elas. Para contemplar com mais detalhes, consultar os estudos de Gonçalves, 2003, cujos dados se encontram nas referências bibliográficas. 18 Importante ressaltar que os estudos de Sperber e Wilson foram publicados em primeira edição em 1986. 34 proposicionais é chamada de semelhança interpretativa (GUTT, 1991, apud GONÇALVES, 2003, p. 40). Como vimos no tópico anterior, quando realizamos o processamento de um enunciado qualquer, este passa a configurar em nossa mente uma determinada representação mental. Esta representação mental de propriedades lógicas é entendida pela TR como forma proposicional. Porém, até que se atinja esta forma (lógica) proposicional, nossa mente, em resposta a um estímulo ostensivo inferencial, realiza uma trajetória cognitiva com o objetivo de enriquecer os inputs de forma a obter o significado explícito, e preenchê-lo a nível implícito, até que a interpretação se dê por cumprida. Atendendo, portanto, a necessidade de satisfação interpretativa desencadeada pelo estímulo ostensivo, o objetivo do leitor é elaborar suposições que sustentem, explicita e implicitamente, a presunção de relevância ótima transmitida no enunciado. Logo, são sub-tarefas do processo global de interpretação, elaborar hipóteses mediante a decodificação, desambiguação e outros processos a nível pragmático de enriquecimento, até que os níveis de forma lógica, explicatura e implicatura sejam alcançados 19. Com base nessas informações, Gutt amplia o conceito de semelhança interpretativa, pois: Considerando, mais além, que a função principal de um enunciado é expressar um conjunto de suposições que o emissor pretende transmitir, parece razoável definir semelhança interpretativa entre enunciados em termos de suposições compartilhadas pelas interpretações pretendidas desses enunciados. Uma vez 19 Não necessariamente nessa sequência, pois Segundo Sperber e Wilson (2004, p. 254) estas etapas interpretativas ocorrem mediante a um ajuste paralelo mútuo por ordem de acessibilidade. 35 que o conjunto de suposições que se espera que um enunciado expresse consiste em explicaturas/e ou implicaturas, podemos dizer que dois enunciados ou, ainda mais genericamente, que dois estímulos ostensivos assemelham-se interpretativamente à medida que compartilhem suas explicaturas e/ou implicaturas. Esta noção de semelhança interpretativa é independente de os enunciados em questão terem ou não uma forma proposicional, mas, ao mesmo tempo, é dependente do contexto, uma vez que as explicaturas e implicaturas de enunciados o são (GUTT, 1991, apud GONÇALVES, 2003, p. 40). Em termos de tradução, os conceitos da TR em conjunto com a noção de semelhança interpretativa, direcionam tanto a configuração do contexto quanto a produção de implicaturas. Assim, para Gutt, se substituirmos o conceito de enunciado pelo de “unidade de tradução (UT)”, o ato tradutório seria um processo de comunicação interlinguistica (ou uso interpretativo interlingual), cujo fundamento é a semelhança interpretativa entre enunciados convergentes nas duas línguas de tradução. Em outras palavras, o processo tradutório se fundamenta na “busca e atribuição de semelhança interpretativa entre duas unidades de tradução derivadas de dois sistemas linguísticos distintos” (ALVES & CARVALHO NETO, 2006, p. 16). Amparado neste ponto de vista cognitivo, Gonçalves (2003/2005) ilustra os conceitos de Gutt no seguinte diagrama: Processos Inferenciais (Princípio da Relevância) Texto-Fonte Unidade de Tradução na Língua-Fonte Fonte: Gonçalves (2005 p. 144) Unidade de Tradução na Língua-Alvo Atribuição e avaliação de semelhança interpretativa entre efeitos contextuais Texto-Alvo 36 A pretensão de Gonçalves (2003/2005) com este esquema foi demonstrar que o processo tradutório é caracterizado pela atribuição, e avaliação, da semelhança interpretativa ótima, entre pares de efeitos contextuais originários do processamento inferencial de unidades de tradução mutuas uma na língua-fonte (LF) outra na línguaalvo (LA). Outro conceito postulado por Gutt (apud Alves & Carvalho Neto, 2006) e fundamental para o empenho do tradutor na busca de semelhança interpretativa entre um texto de partida (TP) e um texto de chegada (TC), é o de contexto artificial. Para o autor, são contextos artificiais aqueles que estão distanciados espacial, temporal e culturalmente de um determinado TP em relação a um TC. Isso ocorre quando o público-alvo do TC não possui, devido a estes afastamentos, acesso ao contexto de produção do TP. Essa dificuldade contextual pode ser observada, por exemplo, em textos informativos atuais que abordam questões culturais, políticas, religiosas (e outras) pelas quais desconhecemos. Um outro desafio mencionado por Alves & Carvalho Neto (p. 16) são os textos bíblicos, em que seu contexto de produção possui uma grande distância dos leitores atuais e a falta de um “cuidado especial” com tal contexto pode comprometer, significativamente, o grau de semelhança interpretativa requerido em sua tradução. Nesse sentido, caracteriza-se como um tipo de tradução que demanda do tradutor um esforço de processamento que expanda seu ambiente cognitivo, e incorpore uma gama de sutilezas pertencentes ao gênero do texto. 37 Frente a estas possíveis dificuldades acarretadas pelos contextos artificiais do TP, o tradutor é propenso à realização de dois tipos de trabalho, o intuitivo e o analítico. Porém, para Gutt a aplicação destas práticas incita os seguintes questionamentos: Supondo-se que tenhamos, normalmente, intuições “naturais” com respeito à relevância, o que acontece em nossas mentes quando estamos lidando, não com nosso contexto existente “naturalmente”, mas com um artificial? Podemos de alguma maneira imergir nós mesmos naquele contexto e ainda assim proceder intuitivamente? Ou temos que trabalhar “refletidamente” ou “analiticamente” mais do que “intuitivamente”? Há uma diferença? E se houver qual? (GUTT, 2000 apud ALVES & GONÇALVES, 2006, p. 17). Conforme mostraram os conceitos da Teoria da Relevância em relação à tradução, é percurso cognitivo do tradutor buscar pela semelhança interpretativa de forma a preencher os níveis explícitos e implícitos do texto de partida. No que se refere a contextos artificiais, esta tarefa torna-se ainda mais delicada, pois ao contrário do que aconteceria normalmente, o tradutor (que também é leitor) não está inferindo a partir de um ambiente cognitivo que seja, de forma mútua, manifesto ao seu. Neste caso, a falta de congruência com o ambiente cognitivo compartilhado com o público do TP, fará, naturalmente, com que o tradutor tenha que desprender esforços extras para suprir esta demanda, em outras palavras, terá que, de alguma maneira “reconstruir20 o ambiente cognitivo mutuamente manifesto entre o comunicador original e sua audiência” (GUTT, 2000, apud ALVES & GONÇALVES, 2006, p. 17). A tomada de consciência do tradutor em relação ao estreito vínculo entre semelhança interpretativa e contexto artificial, é fundamental para compreender a prática tradutória e antecipar as necessidades de adequação que os contextos 20 Nota-se aqui uma compatibilidade com as reflexões de Arrojo (1992). Isso se dá pelo fato de que ambas as perspectivas adotam o contexto como fator determinante a tradução. 38 distantes exigem da tradução, uma vez que não fazem parte da realidade do tradutor e de sua audiência. Assim, o trabalho do tradutor demanda três etapas indispensáveis: (1) o tradutor, munido de ferramentas apropriadas, deverá disponibilizar-se a interpretar o contexto de produção do texto de partida; (2) deverá verificar a acessibilidade de tal interpretação em relação ao público (audiência) do texto de partida levando-se em conta os efeitos contextuais produzidos, e (3) utilizando-se da semelhança interpretativa, prover condições, por meio das explicaturas e implicaturas do texto de chegada, para que seu público-alvo alcance uma interpretação semelhante e de igual maneira acessível aquela imaginada (e planejada) para o texto de partida. Desta forma, Gutt lança as bases para uma nova compreensão do processo tradutório e também abre precedentes para que as diversas teorias sobre tradução sejam repensadas. Assim, tendo como arcabouço teórico a abordagem cognitiva de Gutt, tentaremos seguir um outro caminho, ainda não percorrido, em busca de entender “como” é processada a tradução humorística e quais os elementos cognitivos e a trajetória inferencial que temos que percorrer para que ela ocorra com sucesso. Para possibilitar tal proposta, apresentaremos no próximo capítulo algumas abordagens teóricas sobre tradução, humor e teoria da relevância. 39 3 HUMOR, TRADUÇÃO E RELEVÂNCIA. Fonte: Quino, Toda Mafalda (2008, p. 383) Refletir sobre o fenômeno do riso demanda uma série de questionamentos, sobretudo se for analisado sob a ótica linguística. O fato é que o humor e a tradução humorística são áreas carentes de investigações científicas no meio acadêmico brasileiro, mesmo sabendo-se que ambas oferecem um objeto de estudo promissor para a compreensão das relações entre linguagem, significação, contexto e cultura. Marta Rosas (2002), cujos trabalhos fundamentam-se na relação entre esses temas, afirma que: Infelizmente, tratam-se ambos os campos de uma espécie de “patinhos feios” da Academia. No caso da tradução a investigação linguística até hoje não prosseguiu senão de forma que deixa muito a desejar (...) Assim, tendo a principio relegado a último plano aquilo que representava a chave para uma melhor compreensão do seu objeto de estudo, a ciência da linguagem se fez por muitos anos a despeito de um ponto cego: a hesitação em abordar o tema da significação – crucial para uma teoria tanto da tradução quanto do humor verbal – dentro da própria linguagem (ROSAS, 2002 p. 16) Embora seja esta a realidade coexistente em tais estudos, além de Rosas, outros pesquisadores como Brezolin (1997), Queiroz (2007), Lessa (2008), Silva (2010), 40 Santos (2009)21 e Brunet (2010) não hesitaram em “aceitar o desafio” e provar que o humor é um gênero sério e promissor para os desenvolvimentos e aplicações das teorias linguísticas modernas, e estas, úteis para se compreender o fenômeno da tradução. Como afirma Santos (2009), o texto humorístico - especificamente piadas – pode oferecer uma infinidade de elementos para análise, justamente por ser: (...) relativamente breve – mas nem por isso menos complexo que os textos longos -, um gênero de caráter anônimo, de domínio público, por abordar temas politicamente não-corretos, por não reivindicar nenhuma autoria, por fazer parte do imaginário coletivo, do folclore brasileiro, por pertencer à cultura popular, a piada pode e deve ser analisada não só textualmente e psicologicamente, mas filosoficamente, sociologicamente, literariamente, estilisticamente e, é claro, linguística e pragmaticamente, pois se revela como rico e abundante material de pesquisa, porque já vem com uma certa garantia de humor (SANTOS, 2009, p. 5). Santos (2009) chama a atenção para que o humor seja percebido como uma área interdisciplinar, pois abrange em sua produção os mais diversos desenvolvimentos comunicativos, que são, por sua vez, atrelados a elementos linguísticos, comportamentais, sociais e, principalmente, cognitivos e culturais. Este é o principal momento em que as duas áreas, tradução e humor, assemelham-se em seu conteúdo. Ambas dependem, indissociavelmente, do contexto individual, social e cultural daqueles que estão envolvidos na produção ou recepção de seus processos comunicativos. Tendo em vista essa semelhança, envolvimento - ou cumplicidade por assim dizer - entre os campos e reconhecendo que eles podem formar uma unidade, a questão que inevitavelmente se coloca é como se dá, portanto, a tradução de textos Aporte teórico desta pesquisa em relação à linguagem humorística sob a ótica cognitivista. Os anteriores tratam, especificamente, da tradução do humor. Existem outras publicações e investigações acadêmicas nacionais disponíveis, como Schmitz (1996), Possenti (1998), Tagnin (2005) e outros, porém, para a proposta deste trabalho, nos concentraremos naqueles que foram mencionados. 21 41 humorísticos que são revestidos predominantemente de estereótipos e outros domínios discursivos “polêmicos” construídos e adquiridos por meio de valores inerentes a cada cultura? Em outras palavras, como fazer o humor “funcionar” em outra língua? Traduzir humor é traduzir cultura? Isso é possível? Para apresentar abordagens sobre a tradução do humor, adotaremos as perspectivas teóricas de Rosas (2002), Brezolin (1997), Queiroz (2007), Lessa (2008) e Silva (2010). Sobre a interpretação humorística do ponto de vista cognitivo, utilizaremos como referencial teórico os estudos de Santos (2009) aplicados no artigo de Brunet (2010). 3.1 TRADUÇÃO DO HUMOR: TRADUZIR, TRANSCREVER OU RECRIAR PIADAS? Em seu livro Tradução de humor: transcriando piadas, Rosas (2002) parte do princípio que a valorização das relações entre as palavras é intrínseca a valorização do contexto em que elas são empregadas, de forma que o elemento linguístico torna-se inseparável ao cultural. Valendo-se desse constructo de “língua-cultura”, a autora estabelece que os estudos da tradução e do humor são inerentemente centrados na linguagem e que esta “não possui um valor em si, mas “em mim” (...) e na relação que “eu” estabeleço com o “outro”” (ROSAS, 2002, p. 20), de maneira que texto e contexto formam uma unidade interpretativa no plano das significações individuais, sociais e culturais. Com esta concepção, Rosas corrobora com as ideias de Niedzielski (1989) quando este afirma que: 42 O senso de humor depende de vários fatores sociais e mesmo individuais. Vez que cada comunidade cultural organiza seu próprio sistema de valores, costumes, comportamentos de modo distinto do de qualquer outra comunidade, as normas e incongruências variam de cultura para cultura. Na verdade, a percepção e a expressão do humor são determinadas pela lógica coletiva de uma dada comunidade e pela lógica particular, dela derivada, que possui cada membro dessa comunidade (NIEDZIELSKI, 1989, apud ROSAS, 2002, p. 23). A partir deste ponto de vista, é possível notar que, de igual maneira, o fenômeno tradutório é também dependente desses fatores, especialmente quando se trata da tradução humorística, uma vez que é um processo que demanda o “desafio” de transferir um discurso próprio, de um contexto particular, para um ambiente diferente e até discrepante em termos linguísticos e culturais. Além disso, torna-se um processo bem sucedido se, e somente se, a reformulação do enunciado manifestar um efeito semelhante ao da mensagem humorística original, proporcionando ao leitor uma sensação de prazer equivalente. Reconhecendo a complexidade da tarefa, Rosas (2002) opta por abordar a tradução de humor sob a ótica funcionalista22 desenvolvida por Reiss e Vermeer (1996), em que seus estudos apresentam a “teoria do escopo” cuja ideia central é que “o princípio dominante de toda translação é sua finalidade” (REISS e VERMEER, 1996, apud ROSAS, 2002, p. 46). Assim, para tal abordagem, o “como” traduzir torna-se subordinado a “função” (escopo) do texto. Em outras palavras, a finalidade da tradução determina “o que” e “como” fazer tal tradução. Para se compreender melhor esta relação, os autores explicam exemplificando que: Rosas (2002) considera a abordagem funcionalista como uma concepção pragmática. “(...) é uma abordagem funcionalista – e, portanto, - pragmática (...)” (p. 45). 22 43 (...) suponhamos que se queira traduzir o Gênese (sic) com a função de texto ritual (...). É importante reproduzir o texto o mais literalmente possível; seu sentido é secundário. Suponhamos que se queira traduzir a Bíblia com uma função estética. Será mais importante alcançar um valor estético, de acordo com as expectativas da cultura final (!), que reproduzir o texto literalmente. Suponhamos que se queira traduzir a Bíblia com a função de texto informativo. O importante será que fique claro o sentido do texto (na medida do possível); nesse caso, existem objetivos subordinados: para os teólogos, para os leigos na matéria etc. (...). Portanto, não existe a (única forma de realizar uma) tradução de um texto; os textos-meta variam dependendo do escopo que se pretende alcançar (REISS E VERMEER, 1996, apud ROSAS, 2002, p. 47). Dessa maneira percebe-se que esta é uma teoria que, em síntese, propõe que a ação tradutória torna-se regida por sua finalidade e o “escopo” seria um objetivo comunicativo variável, contudo, dependente dos interlocutores em relação ao textometa. Tendo como pontual a importância dos receptores à tradução, sejam eles desde o cliente editor ao público final, outro elemento indispensável à Teoria do Escopo são as relações culturais. Para os autores, um dos motivos que fazem com que o escopo do texto final se diferencie do texto de partida é o fato de a translação requerer uma transferência cultural e linguística, de forma que a transposição de uma estrutura para outra implica, necessariamente, na mudança dos valores dos elementos uma vez que estes passarão a fazer parte de um novo contexto de inter-relações. Assim sendo, a tradução será sempre uma operação transvalorativa, em que seus diferentes valores serão, inevitavelmente, substituídos e alocados no texto traduzido. Partindo dessas relações de escopo, transferência cultural e linguística, e ainda, do estabelecimento de um novo contexto para o texto traduzido, Rosas afirma em sua investigação que a aplicação da abordagem funcionalista na tradução do humor organiza-se no cumprimento de três etapas. 44 Segundo ela, primeiramente determina-se (1) o escopo, ou seja, identifica-se o público alvo, seu possível conhecimento linguístico, o saber enciclopédico e a abertura ideológica a domínios discursivos “politicamente incorretos”. Feito isso, define-se como escopo principal a finalidade da translação, que neste caso, é o riso. Após o estabelecimento do escopo, (2) são atribuídos os “novos valores”, procurando-se analisar os elementos linguísticos e culturais que serão modificados (substituídos) e aplicados no texto de chegada. Definidos o escopo e imputados (se necessário) estes novos valores, (3) busca-se, então, estratégias para obter um efeito análogo àquele que foi manifesto na língua-cultura de partida, privilegiando as que mais se assemelham a oferta informativa do texto original. A partir da perspectiva23 funcionalista e a descrição e observação dessas etapas essenciais, Rosas realiza - na segunda parte de sua obra - análises tradutórias de piadas (do inglês para o português), com o objetivo de fazê-las “funcionar” em outra língua, e com isso, conseguindo concluir (e provar) que a abordagem pragmática multiplica as possibilidades da tradução do humor. Sírio Possenti 24 (2003) ao opinar sobre o trabalho de Rosas (2002), afirma que: O exemplo é excelente (...). Quando se obtém uma boa solução do ponto de vista das alusões da piada, pode-se ver que ela não decorre da homofonia de duas expressões, mas da polissemia – digamos assim (...). A meu ver, trata-se de boas soluções, certamente criativas. A pergunta é: qual o limite que a teoria pode impor, que não pode ser ultrapassado, para distinguir uma tradução criativa da substituição de uma piada por outra, que tem o mesmo efeito porque é engraçada e incide sobre o mesmo tema? Em outras palavras: se é verdade que traduzir não é transportar um sentido intocado de uma língua para a outra, qual é o critério que garante que outra versão ainda é tradução? (POSSENTI, 2003, p. 233). 23 Rosas também utiliza como aporte teórico a Teoria Geral do Humor Verbal de Victor Raskin (1985), porém não a contemplaremos aqui devido ao recorte desta pesquisa. 24 Autor de Humores da Língua: análises linguísticas de piadas. Campinas: SP. Mercado das Letras, 1998. 45 O primeiro questionamento de Possenti parece bastante plausível, embora o segundo já tenha sido respondido ao longo do capítulo um desta pesquisa 25. Adauri Brezolin (1997) oferece uma explicação bastante clara em relação à “tradução criativa” e como os mecanismos linguísticos, pragmáticos e culturais articulam-se na recriação do humor e como recuperar (ou substituir) o efeito humorístico no texto traduzido, como veremos a seguir. 3.2 HUMOR: SIM. É POSSIVEL TRADUZI-LO E ENSINAR A TRADUZI-LO. Reconhecendo a tradução do humor como uma discussão complexa, e até mesmo controvertida, Adauri Brezolin (1997) expõe em seu artigo Humor: sim. É possível traduzi-lo e ensinar a traduzi-lo, importantes considerações sobre a tarefa do tradutor e do professor de tradução frente ao “grande desafio” que é, inescapavelmente, proposto pela linguagem humorística. O que motivou o autor a construir argumentos sobre o assunto não foi somente a demanda de um tema pouco abordado, mas também, e inclusive, a concepção teórica postulada anteriormente por Schmitz26 (1996) quando este afirma que: A resposta para a pergunta se é possível traduzir o humor é: em termos. Quando o humor depende do contexto ou da situação, não existe problema na tradução de piadas ou chistes. Todavia, quando se trata de humor que envolva ambiguidade fonológica, semântica ou sintática, é mais difícil traduzir, devido às diferenças estruturais entre a língua de partida e a língua de chegada (...). Cumpre observar que o critério para a tradução de piadas de uma determinada língua para a outra não deve ser baseado na reconstrução de um determinado texto humorístico original (SCHMITZ, 1996, p. 87-88 apud BREZOLIN, 1997, p. 16). 25 26 Ver os argumentos de Rosemary Arrojo a partir da página 23. Autor do artigo Humor: é possível traduzi-lo e ensinar a traduzi-lo? Tradterm, vol. 03, 1996. 46 Com base nestas (e outras) declarações de Schmitz, que até então, havia sido um dos poucos no Brasil a se manifestar sobre o tema, Brezolin apresenta uma nova concepção sobre tradução humorística buscando oferecer, em seu trabalho, respostas “menos resistentes” para questões como: (i) são mesmo intraduzíveis as piadas cujo humor opera, estritamente, com mecanismos linguísticos? (ii) Existe, de fato, humor que não dependa do contexto? (iii) A tradução do humor é, em alguma circunstância, impraticável? Para Brezolin, mais do que qualquer outro tipo de tradução, a que envolve textos humorísticos será sempre uma tarefa difícil, independentemente de o humor estar ou não atrelado a uma função específica de algum elemento fonológico, sintático ou semântico. Contudo, isso não quer dizer que tal dificuldade requeira, obrigatoriamente, a impraticabilidade tradutória, principalmente porque a tradução é, segundo as vertentes teóricas atuais27, um processo que não deve limitar-se a “compreender o original somente por intermédio dos significantes que nossos olhos perscrutam na hora da leitura” (BREZOLIN, 1997, p. 17). Brezolin afirma que a viabilidade da tradução depende estritamente da perspectiva adotada por cada tradutor. Neste sentido, o autor segue a abordagem de Arrojo (1992) entendendo que é fundamental que o “fazer tradutório” sobreponha aos paradigmas tradicionalistas de forma a prever as interpretações daquele que lê, aceitando o recurso de recriação como única solução para algumas situações. No 27 Ver a partir de Arrojo (1992). 47 entanto, para que esta concepção seja colocada em prática, faz-se necessário – e indispensável - que sejam considerados e salientados os elementos responsáveis pela construção de dado humor e analisados os diversos aspectos culturais e linguísticos envolvidos na língua de partida, e que devem ser, de alguma maneira, explicitados na língua de chegada. Na condição de professor de tradução, Brezolin ressalta que a tarefa primeira de um tradutor é construir o leitor da sua produção. Pois segundo ele, para que um texto faça sentido em uma outra língua, é necessário que seja produzido de forma que corresponda com a realidade do receptor. Em outras palavras, é um processo que enfoca o “perfil” do leitor em busca de satisfazer as necessidades oriundas do contexto a que este está inserido. Assim, é de suma importância que a estratégia do tradutor considere componentes como (1) o cliente difusor, portanto, a editora; (2) a nacionalidade e a faixa etária prevista do público alvo; (3) o prazo requerido para a realização da tradução; (4) o registro: situações cotidianas, como a cultura, os costumes, crenças, valores sociais; (5) o gênero, que neste caso, é o humorístico; e o (6) estilo, que nas piadas é o coloquial. Sob o domínio dessas diretrizes, na segunda parte de seu artigo Brezolin analisa um corpus formado por piadas, traduzindo-as do inglês para o português a fim de provar que “não existem interpretações únicas e, consequentemente, não existe uma única tradução válida” (p. 24). Além disso, ele destaca que: A tradução de texto humorístico ou não humorístico é, assim, vista como uma atividade intelectual interligada à compreensão, conhecimento geral, língua e re-expressão. Uma atividade que não apenas admita as várias interpretações de seus leitores, mas que também aceite que o texto traduzido exista em 48 função dos objetivos a que se propõe, considerando o texto original apenas um ponto de partida (BREZOLIN, 1997, p. 28). As observações deste autor acabam, coincidentemente, proporcionando um ambiente propício não só para oferecer respostas a Schmitz, mas como também a Possenti (2003) quando este pergunta, em nota ao trabalho de Rosas 28, “qual o limite que a teoria pode impor?” em relação à tradução do humor. Acreditando na importância desta pergunta e valendo-se da concepção de Brezolin que reconhece o texto original como ponto de partida, poder-se-ia afirmar, portanto, que não existem limites pré-estabelecidos na tradução do humor, ou ainda fórmulas “mágicas” que sustentem a realização da tarefa. Isso se deve ao fato de a tradução humorística não se basear em teorias que tentam, a todo custo, recuperar o significado do original, mas sob um ponto de vista que reconhece e valoriza os significantes do tradutor, que é, antes de tudo, um leitor do texto a ser traduzido. Além dessa indagação, na sequência do mesmo enunciado, Possenti (2003) pergunta ainda “Como distinguir uma tradução criativa da substituição de uma piada por outra, que tem o mesmo efeito porque é engraçada e incide sobre o mesmo tema?” Entendendo-se, portanto, que o ato tradutório é realizado em função dos objetivos a que este se propõe, seria uma “tradução criativa” aquela que corresponde aos padrões da língua de chegada e supre as necessidades do público alvo. Logo, não há distinção efetiva entre uma tradução “criativa”, “bem sucedida” de uma “substituição”, nem sequer a necessidade desta distinção, uma vez que o texto 28 Ver página 48. 49 original assume, irremediavelmente, a posição de texto de partida, tendo em vista que cada língua possui seus próprios elementos/mecanismos linguísticos, pragmáticos e culturais. É inegável que a proposta de Brezolin responda a uma série de questionamentos. Isso porque seus estudos concluem que é possível traduzir o humor e ensinar a traduzi-lo, partindo da premissa de que a visão do tradutor deva ir além das teorias tradicionais de tradução. Tal pensamento confere ao autor uma espécie de “desmistificação” do processo, que segundo ele, deve-se somente a observação de três princípios básicos: (i) conhecer as línguas de maneira suficiente para que se tenha a percepção da regra que está sendo rompida na criação do humor (reconhecimento da incongruência); (ii) interpretar e compreender a piada fazendo uso do seu conteúdo com inteligência e bom senso e (iii) se expressar de forma a atender aos padrões da língua de chegada e necessidades do público-alvo (BREZOLIN, 1997, p. 29). Em síntese, para Brezolin, entendendo-se o objetivo da tradução e seguindo a estes três critérios essenciais, os “problemas” da tradução humorística serão, naturalmente, dissolvidos. Basta uni-los com certa dose de esforço, imaginação e criatividade, assim como pode ser observado nas análises de Lessa (2008) e Silva (2010), que veremos a seguir. 3.3 A TRADUÇÃO DE TIRAS EM QUADRINHOS Tendo como ponto de partida a indissociabilidade entre língua e cultura, Lessa (2008) em seu artigo Notas para um estudo da tradução do humor, entende que a tradução é uma espécie de negociação entre duas línguas e o tradutor assume um 50 papel de mediador cultural. Observa a autora que a comicidade possui a ambiguidade como fator determinante de forma que as “enunciações humorísticas carregam boa carga de significação” (p. 2686). Neste sentido, a tarefa do tradutor, segundo ela, tornase eficaz quando este consegue manter no texto de chegada o mesmo “nível” de ambiguidade que foi relacionado ao contexto cultural de partida, ou seja, a contingência da produção do humor. Com a proposta de analisar a tradução de algumas tiras em quadrinhos de Mulheres Alteradas 5, da autora argentina Maitena, Lessa ressalta que “a tradução entre línguas próximas como o espanhol e o português engana quanto à suposta facilidade e esconde muitas armadilhas” (CASTILLO [s.d], p. 01, apud LESSA, 2008, p. 2687), o que acentua ainda mais o desafio que tal autora se impôs. Portanto, para discorrer sobre as relações entre tradução, humor, crítica, cultura e ironia envolvidas no gênero quadrinhos, Lessa lança os seguintes questionamentos: (i) como os elementos culturais influenciam – ou interferem – na tradução do humor e ironia? (ii) Que tipo de conhecimento o tradutor precisar ter para suprir esta tarefa? (iii) Que estratégias o tradutor deve utilizar na língua de chegada para produzir o objetivo humorístico do texto de partida? Antes buscar por estas respostas, assim como faz Brezolin (1997), Lessa traça o perfil dos leitores de Maitena observando que o público alvo é composto, basicamente, por mulheres heterossexuais de classe média dos grandes centros urbanos; que se identificam com temas como relacionamentos, moda, maternidade, falta de tempo e outros conflitos notáveis nas falas femininas contemporâneas; cuja 51 linguagem coloquial é repleta de expressões e gírias típicas de Buenos Aires dos anos 2000. A partir dessas informações, Lessa afirma que a tarefa que o tradutor de Maitena deve assumir não é somente a de reconhecer, interpretar e transcrever as expressões porteñas empregadas nas tiras, mas também a de buscar outras que sejam equivalentes em relação à linguagem coloquial dos centros urbanos do Brasil, a fim de compreender que esta é uma complexa operação comunicativa cujo índice de sucesso é medido pela adequação dos seus objetivos: produzir o riso. Lessa assinala dois tipos de humor: um de caráter “mais” universal e, portanto, mais fácil de traduzir, e outro de cunho mais específico, qual exige uma maior adaptação ao contexto cultural da língua de chegada. Para ela, os aspectos que desencadeiam o riso (sejam universais ou específicos) devem se equiparar em cumplicidade e no compartilhamento dos códigos e significados comuns entre o grupo em que são produzidos. Corroborando ainda com as ideias de Brezolin (1997) 29, no momento da aplicação do corpus Lessa lembra que a escolha das tiras do seu artigo partiu de um sujeito que é condicionado a sua sócio história e que por isso tal escolha não pode ser neutra. Por este motivo, justifica que a análise que fez “não é e nem pode ser a única possível” (p. 2690). A partir destes princípios, foram investigados os seguintes quadrinhos: 29 Mesmo sem mencioná-lo. 52 Fonte: BURUNDARENA, Maitena. 2002. Citada em Lessa 2008, p. 2693. Segundo Lessa, na tradução do quadro acima houve duas adaptações: “fumé como un murciélago” por “fumei como uma chaminé” e “bebí como un cosaco” por “bebi como uma esponja”. A primeira adaptação, para a autora, é um exemplo de acerto uma vez que a expressão adaptada corresponde com a realidade contextual e comunicativa dos falantes brasileiros. Já a segunda é uma metáfora existente, porém pouco utilizada. Do ponto de vista pragmático, “bebi como uma esponja” seria uma expressão que para dar conta do significado manifesto pelo personagem, poderia, facilmente, ser substituída por “enchi a cara” ou “bebi pra cacete”. Assim, além de proporcionar mais fluidez ao texto, não causaria ruptura na produção do riso. 53 Fonte: BURUNDARENA, Maitena. 2002. Citada em Lessa 2008, p. 2694. Para traduzir este quadrinho é indispensável conhecer que Mecha Finoli Decuna é um jogo de palavras típico de Buenos Aires para se referir as mulheres da alta sociedade, ironizando sobrenomes tradicionais. Na tradução para o português, este nome foi adaptado para “Fernandinha” o que subtraiu certa carga de significado, ironia e humor. Para Lessa, uma estratégia possível seria a de aderir a um outro nome que se equiparasse melhor, como “Carmen Finíssima do Berço d’ouro Veiga” fazendo alusão a socialite Carmen Mairink Veiga, por exemplo. Entre outras análises, Lessa conclui que é tênue a linha que separa o texto humorístico de outro que não tenha este efeito. A ironia e o inesperado - elementos fundamentais do humor de Maitena - podem ser facilmente rompidos se o tradutor como sujeito sociohistórico tentar compreender o texto a partir dos seus próprios significantes culturais. É essencial que aquele que traduz Maitena tenha conhecimento das expressões porteñas em detrimento as expressões dos centros urbanos brasileiros. Se essas expressões são desconhecidas, ou se a adaptação for feita por metáforas fora de 54 uso, ocorrerá, certamente, a ruptura do humor e o descumprimento do objetivo que é o riso. Para Lessa, o diálogo da tradução: nem sempre se dá harmonicamente e ocorre na tensão entre culturas, épocas, lugares e entre muitos significados possíveis. A tradução ora nos afasta e ora nos aproxima daquilo que nos é comum, das nossas referências culturais, do nosso imaginário. A boa tradução será aquela disposta a negociar significados, e a conjugar estruturas linguísticas e signos não verbais, produzindo o riso (LESSA, 2008, p. 2693). No âmbito dessas considerações é possível notar que Lessa deixa evidente a importância da adaptação do humor nas tiras em quadrinhos. Isso porque a produção da ambiguidade e ironia é moldada nas relações culturais que cada língua dissemina e compartilha entre os seus próprios falantes. Portanto, sem conhecimento linguístico e cultural, capacidade de adaptação e liberdade de recriação, não há estratégia que “dê conta” da meta principal do humor que é o riso. Outro modelo que se toma como base para o desenvolvimento desta pesquisa é a análise da tradução das tiras de Mafalda realizada por Silva (2010). Além de se tratar de uma investigação bastante atual - e também do personagem que integrará a proposta de análise desta pesquisa no capítulo três - os quadrinhos da personagem argentina escolhida pela autora possuem um humor interessante – e, diga-se de passagem, inteligente - pelo seu caráter crítico, irônico, sarcástico (e há quem descreva “ácido”) que se identifica com realidades de várias épocas e ainda corresponde com o contexto sócio-político-econômico atual de diversos países, mesmo a obra tendo sido publicada entre os anos de 60 e 70. Para Silva, a obra de Joaquin Salvado Lavado conhecido como Quino - é caracterizada fundamentalmente “por seu caráter atemporal, por temáticas atuais com as quais o leitor se identifica” (p. 4). 55 Além de Silva, outros pesquisadores que utilizaram Mafalda como corpus em suas investigações30, reconhecem que o humor de Quino põe em xeque até mesmo um cidadão argentino se este não souber (ou conseguir) estabelecer conexão da mensagem humorística ao contexto de sua produção, já que a obra mantém a crítica político-social como pano de fundo. Assim, ler Mafalda não requer somente o conhecimento da língua, mas também que o leitor possua os elementos (cognitivos 31) necessários a interpretação pretendida e esperada pelo autor. Neste sentido é que Silva propõe investigar como esse tipo de humor é reproduzido na tradução de forma que “signifique” e provoque o riso em indivíduos de outras sociedades constituídas por características culturais diferentes. Para a proposta, a pesquisadora utilizou como embasamento teórico as perspectivas pragmáticas de Reiss & Wemeer (1996) e o estudo de Rosas (2002), com a finalidade principal de observar “como foram feitas as traduções, os resultados finais e se existem mecanismos especiais para a tradução do humor crítico-social32” (p.20). Desse modo, foram analisadas e contrastadas algumas tiras, dentre elas as seguintes: 30 Oliveira 2008, Brunet 2010 e outros. Conforme destaca Brunet 2010, como se verá no tópico seguinte. 32 O conceito de humor “crítico-social” utilizado por Silva é relativo para o nosso estudo, uma vez que entendemos que todo humor é crítico de alguma maneira. 31 56 Fonte: Quino, 10 Años con Mafalda. Ediciones de La Flor, 2004, p. 73 apud Silva, 2010, p. 20. Fonte: Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 170 apud Silva, 2010, p. 20. Nota-se que a tradução desta tira é um exemplo eficaz de “como” manter o humor. E isso se deve ao fato de o tradutor ter conseguido estabelecer uma relação de compatibilidade entre o sobrenome argentino Pérez em relação ao sobrenome brasileiro Silva, ambos excessivamente comuns em suas respectivas línguas. Outra adaptação que se nesse caso se destaca é a expressão ¡Y hay más! ¡Dios mío! que foi ajustada para E ainda tem mais! Minha nossa!... A ênfase dada pela palavra “ainda” e a aplicação de “Minha nossa!...” ao invés de “Meu Deus” agregou mais sentido ao penúltimo quadrinho estreitando a linguagem da tradução a realidade linguística do leitor. 57 Fonte: Quino, 10 Años con Mafalda: Ediciones de La Flor, 2004, p. 139 apud Silva, 2010, p. 21. Fonte: Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009, p. 37 apud Silva, 2010, p. 21. Nesta tira o humor é decorrente da mudança de emoção inesperada de Felipe, um amigo especial de Mafalda, que inicialmente apresenta-se tímido e feliz, e em seguida, influenciado pela quebra de suas expectativas, torna-se indignado e frustrado. Segundo Silva, a imagem das flores é o primeiro indício de frustração do personagem, que logo se confirma com a frase “Foi como dar um torrão de açúcar ao Fidel Castro”. Porém, para que o humor desta tira funcione, é necessário que o leitor tenha conhecimento que Fidel Castro foi líder do governo cubano durante muito tempo e que Cuba na época era uma grande produtora de açúcar. 58 Percebe-se que a estratégia que o tradutor utilizou foi a da tradução literal, que por ter sido aplicada a este caso, o humor da tira corre o risco de não obter a audiência esperada. Ao se pensar nas condições atuais de Fidel Castro e da produção açucareira de Cuba, esta frase poderia ser facilmente adaptada para “Foi como dar petróleo a Hugo Chávez” (p. 23), por exemplo, uma vez que este é um dos assuntos mundiais da atualidade e corresponderia, com maior força, as expectativas de humor do leitor brasileiro - na condição de sul americano - maximizando, consequentemente, seu efeito contextual político e cultural. Fonte: Quino, 10 años con Mafalda. Ediciones de La Flor, 2004 p. 58 apud Silva, 2010, p. 25. Fonte: Quino, Toda Mafalda: Martins Fontes, 2009 p. 146 apud Silva, 2010, p. 25. 59 Esta tira está repleta de adaptações em que se destacam – de modo especial as onomatopeias e a adequação de uma marca de carros mais antiga por uma mais nova, com o objetivo de tornar o texto humorístico mais próximo ao contexto cultural atual. Uma outra particularidade desta produção é que o humor assume uma constante cômica, conferida pela quebra de expectativas proporcionada ao leitor, que a todo momento é levado a crer em uma situação que é imediatamente alterada. Portanto, a “essência” do humor de Quino conseguiu ser mantida do início ao fim, mesmo tendo-se certa quantidade de modificações, a começar por ¡Pues me rio! ¿Ves? e Eu não estou nem aí!; da ofensiva papanatas por boboca; da descrição dos sons das onomatopéias como ¡Mchuiiik! por Smaaaac! para emitir o beijo, e principalmente, a conversão do automóvel Ford Lotus, carro famoso também utilizado nas corridas da década de 60, pela marca McLaren da atualidade. Segundo Silva, esses são todos fatores que se assemelham de forma eficaz ao humor manifesto pelo autor no texto original, sem ser uma reprodução literal, assumindo o caráter de uma recriação bem sucedida. A partir dessas e outras análises, Silva reconhece que existem quadrinhos que podem ser traduzidos do espanhol ao português sem maiores dificuldades, utilizandose de uma simples tradução linguística concentrada na mensagem original. Entretanto, na maioria das vezes não há essa possibilidade e por isso, o caráter linguístico torna-se secundário no processo tradutório, já que a interpretação, compreensão e sensibilidade das histórias por parte do tradutor são os componentes fundamentais para o desfecho desejado: o riso (p. 28). Com essa concepção, a pesquisadora conclui ao fim de suas investigações que: 60 (...) mais do que mecanismos ideais para uma perfeita tradução humorística, o tradutor deve criar a consciência global e multidisciplinar de que para provocar o riso no leitor do texto final ele próprio deve compreender amplamente o que leva o leitor do original a rir, podendo assim, como dito por Reiss e Vermeer, ser o autor de um novo texto (SILVA, 2010, p. 29). Que existem inúmeras possibilidades a partir do momento que se leva em conta os fenômenos da adaptação e recriação é verdade. Tanto que ao analisar as críticas de Silva é possível imaginar ainda outras sugestões de tradução que dão conta de expressar o significado do humor de Mafalda. Portanto, levando-se em conta as diversas possibilidades interpretativas que cada leitor/tradutor pode realizar em relação a este gênero de texto, faz-se sugestivo levantar ainda algumas indagações: Como se organiza e seleciona-se mentalmente o processo de adequação tradutória? Como duas pessoas que partilham da mesma língua, possuem formação/experiência profissional e/ou acadêmica semelhantes, e, além disso, compartilham alguns elementos culturais devido à mesma nacionalidade, até onde vai à importância do papel do indivíduo na interpretação das tiras em quadrinhos? Ou melhor, como se dá, em uma perspectiva cognitivista, à interpretação desse tipo de humor para que ocorra a demonstração (individual) de manifestação do significado mediante a prova do riso? Sobre essas relações de interpretação e cognição envolvidas na linguagem humorística, destacaremos a seguir uma proposta de interpretação de tiras em quadrinhos sob a perspectiva da Teoria da Relevância. 61 3.4 INTERPRETAÇÃO E RELEVÄNCIA: UMA ANÁLISE PRAGMÁTICA DAS TIRAS DE MAFALDA Com base na proposta teórica de Santos (2009) - que tem como objetivo analisar piadas sob a ótica da TR - partimos33 do princípio que os processos cognitivos relacionados à interpretação das tiras em quadrinhos (assim como outros textos do gênero) devem alcançar um nível interpretativo superior em comparação ao padrão comum de compreensão, pois se trata de uma tarefa mental incumbida de dissolver não somente a mensagem explicita promovida pelo significado aparente ou literal, mas também outra, ou outras, de caráter implícito que atuam na intenção comunicativa do autor. Nesse sentido, a linguagem humorística deve ser entendida como uma prática que vai além da mera codificação e decodificação de enunciados, sendo também intrínseca à sua interpretação os valores, o juízo, a ideologia, os desejos, as crenças, convenções sociais e vários outros elementos que constituem o contexto mental do interlocutor, que envolvido num jogo interativo de comunicação, busca constantemente construir sentido e significado acerca de suas percepções. Buscar compreender os processos da linguagem humorística não é uma tarefa simples. Contudo, o humor e sua relação com a (e na) adversidade das culturas e sociedades despertou (e ainda tem despertado) o interesse de alguns teóricos das 33 Este tópico é uma síntese do artigo Interpretação e Relevância: uma análise pragmática das tiras de Mafalda (2010) que desenvolvi a partir da investigação O humor de Mafalda sob a perspectiva da Relevância (2010), ambos sob orientação do prof. Dr. Sebastião Lourenço dos Santos, mencionado nesta pesquisa por Santos (2009/10). 62 ciências humanas. O filósofo francês Henri Bergson (200434), por exemplo, defende a tese de que faz parte do instinto humano rir daquilo que foge aos padrões da sociedade. Segundo ele, o humor é uma prática social em que é inerente ao homem rir de situações que parecem ridículas, pitorescas, deformáveis. Um dos processos humorísticos destacados pelo autor é o “mundo às avessas”, em que se percebe na construção do humor, certa necessidade coletiva de inverter, perverter, denegrir os relacionamentos sociais que são organizados hierarquicamente. Em contrapartida, Freud (1977) descentraliza o plano social e apresenta um modelo que enfatiza o papel do indivíduo na compreensão da causa e efeito do humor. Para ele, o homem ao interagir com a sociedade é algumas vezes levado a reprimir determinados impulsos que acabam sendo externados através de lapsos de linguagem. O psicanalista vienense define esses lapsos como “chistes”, que são uma espécie de juízo lúdico em que seu efeito humorístico é derivado de um desconcerto seguido de seu esclarecimento obedecendo, geralmente, a um princípio econômico e a um jogo de palavras de duplo sentido. Assim, os chistes podem conter traços de impulsos reprimidos, pensamentos ou desejos coibidos pelas práticas sociais, que podem ser manifestadas pelo indivíduo em forma de humor. A partir desses (e outros) conceitos e afinidades do humor com a “inversão de papéis”, “mundo às avessas”, “desconcerto seguido de esclarecimento”, “palavras de duplo sentido”, o linguista Victor Raskin (1985 apud Santos 2009) concentrou suas investigações no fator da incongruência. Para este teórico, um enunciado incongruente 34 A primeira edição desta obra foi publicada no ano de 1900. 63 é aquele que oferece uma expectativa consistente no desenvolvimento do texto ou narrativa e no desfecho se revela em desacordo com o esperado. Portanto, a maneira que ele encontrou para entender essa relação substitutiva de “esperado” por “inesperado”, ou seja, “relação incongruente” é atribuir a causa do humor a uma sobreposição de scripts, que acontece quando uma porção organizada de conhecimento (script) sobrepõe-se a uma outra diferente ou oposta, e esta será a responsável por provocar uma nova interpretação que desencadeará o riso. Além disso, Raskin prevê que a maneira com que o humor vai se construindo, o ouvinte aciona automaticamente uma espécie de “gatilho”, que introduz esse novo script e realiza a transferência de uma interpretação literal (bona fide) para uma não literal (non bona fide). Sob a esfera destas mesmas relações do humor com o inesperado, Sírio Possenti (1998) ressalta que estudar piadas significa lidar com domínios discursivos “quentes” em que se manifestam os mais diversos temas que se caracterizam por serem proibidos, reprimidos e não convencionais. Uma das técnicas destacadas por este autor - e relevante a esta pesquisa que realizamos - é o “humor de criança”, em que num discurso infantil é vinculada uma mensagem “politicamente incorreta” e esta se torna facilmente perdoada devido ao pressuposto de que crianças são inocentes, e por este motivo, sinceras demais. Para Possenti, esta é uma estratégia humorística em que se pode considerar a relação do esperado com o inesperado mais importante para tal tipo de humor do que a própria ambigüidade a que este naturalmente se dispõe. Percebe-se que estes teóricos realizam diferentes olhares para a incongruência no desenvolvimento do humor. Considerando-a como peça fundamental, porém não 64 como única explicação para o fenômeno da interpretação humorística, Santos (2009/10) defende que são os atributos cognitivos previstos pela Teoria da Relevância que permitem analisar, de maneira mais ampla, a resolução da incongruência comunicada na piada. No desenvolvimento de sua proposta, o autor apresenta uma abordagem explanatório-cognitiva de interpretação humorística explicando, em síntese, que: (...) primeiramente há, por parte do interlocutor, uma especulação mental sobre o desenvolvimento psicológico e informativo na narrativa, ou seja, a mente do interlocutor vai construindo expectativas e fazendo previsões lógicas à medida que a piada vai sendo narrada. Essas expectativas são, em princípio, naturalmente direcionadas a um final lógico, um final possível dentro do mundo conhecido. Porém, o suposto final lógico é, repentinamente, substituído por um desfecho inesperado, aparentemente absurdo, ilógico, que parece não se encaixar nas expectativas (...). Sua mente, numa espécie de viagem explanatória e criativa, tenta então encontrar uma solução ao problema: abandona o ponto de vista inicial que tendia a um final lógico e busca uma adequação plausível, na qual o final desconexo se encaixe ao restante da história inicial. Em efeito, a mente salta para uma nova perspectiva e descobre que uma outra representação de mundo também é possível. O significado (...) pode não ser tão óbvio, mas o interlocutor o interpreta como sendo plausível e lógico. A descoberta e aceite pelo interlocutor do novo significado são convertidos em recompensa psicológica – uma espécie de alívio das tensões geradas na interpretação da piada – que a mente converte em entretenimento humorístico (SANTOS, 2010, p.06). Nota-se que o percurso cognitivo de resolução da incongruência desenvolvido por Santos em relação à interpretação humorística compreende os conceitos de expectativa de relevância, inferências lógico-dedutivas, memória enciclopédica, acessibilidade mental em busca da forma lógica proposicional e outros aspectos que pertencem à proposta da TR. Para mostrar “como” a mente humana interpreta enunciados humorísticos, o autor dimensiona o seguinte esquema: 65 Fonte: Proposta de representação da piada na perspectiva da TR. Santos (2009, p. 303) Santos (2009) propõe neste diagrama que os processos inferenciais na interpretação da piada atuam de forma que: (1) os sistemas mentais de entrada captam o estímulo verbal e o remetem aos mecanismos de percepção de mundo (ver, ouvir, sentir etc.) que convertem o conteúdo do estímulo em uma representação conceitual; (2) a representação conceitual do estímulo que fora realizado alcança o módulo de decodificação linguística para o surgimento da forma lógica (que é a linguagem mental); (3) a forma lógica remete-se a memória conceitual e combina-se com as suposições armazenadas como conhecimento enciclopédico; (4) o resultado da combinação se transforma em forma lógica proposicional. De maneira simultânea, Santos reconhece e insere a influência de um módulo psicológico que orientado pelo princípio de relevância: (1) origina expectativas sobre as hipóteses levantadas; (2) se a expectativa for relevantemente favorável é submetida às regras dedutivo-inferenciais; (3) essas regras combinam-se com o conhecimento enciclopédico somado às crenças, convenções e valores sociais; que (4) derivam a implicação contextual; (5) a implicação origina a forma lógica proposicional (que atribui 66 valor de verdade); (6) a forma lógica é então avaliada pelo módulo psicológico que, pelas crenças, valores e interesses do interlocutor (ouvinte), cria expectativas de força à proposição. Além desta atuação, o módulo psicológico (de aqui em diante MP) avalia também a força da forma proposicional em termos de efeito cognitivo. (1) Se o efeito for nulo, de estímulo avaliado como não relevante, o MP instantaneamente interrompe o processo; (2) se o efeito for pequeno, porém o estímulo relevante, a proposição poderá ser enriquecida de maneira que as informações novas possam aumentar ou reduzir o efeito cognitivo; (3) se o efeito for grande, o MP confirma a hipótese inicial e então é atingida a forma proposicional (atitudinal plena). Dando sequência ao processo, a forma proposicional promove a contextualização mental do estímulo, interpreta o significado, e como informação nova, integra-se à memória conceitual sendo armazenada como conhecimento enciclopédico. Ao mesmo tempo em que a forma proposicional completa estes segmentos, o MP desacelera, sinalizando um alívio à excitação que fora promovida pela computação das regras dedutivo-inferenciais e converte, por sua vez, o efeito cognitivo em entretenimento humorístico, cujo prazer o ouvinte explicita por meio do riso. Dessa maneira, observa-se que a contextualização reflete o ajuste cognitivo, linguístico e psicológico que o ouvinte realiza em relação à representação da piada quanto aos seus domínios de conhecimento. Portanto, “o humor associado ao riso na piada, se dá, além da resolução da incongruência, em função da interpretação 67 semântico-pragmática cujo efeito é sentido pelo ouvinte como entretenimento humorístico que ele externa no riso” (SANTOS, 2009, p. 305). A partir da proposta de Santos (2009), realizamos, portanto, a análise do humor de Mafalda sob a perspectiva da TR. Ressaltamos que a escolha por este tipo de texto humorístico se deve ao fato de os quadrinhos serem caracterizados por um modo próprio de linguagem em que códigos linguísticos e visuais se entrelaçam e se complementam ampliando, portanto, o nível de significação do leitor (Lins 2008 p. 39). Já do ponto de vista cognitivo, corroboramos com Silveira e Feltes (2002) quando estas afirmam – em relação a charges - que é um tipo de texto em que se atribui um caráter opinativo, o que o torna intrinsecamente interpretativo devido à intenção comunicativa do autor. Intenção esta que, atrelada a uma imagem atrativa possibilita um estímulo ostensivo que é, inevitavelmente, convertido em uma expectativa de relevância. Assim, “constitui uma excelente peça a ser analisada pela teoria de Sperber e Wilson” (SILVEIRA & FELTES, 2002, p. 90). Dadas estas justificativas e tendo como base a proposta teórica de Santos (2009), pode-se estabelecer que quando o leitor entra em contato com uma tira em quadrinhos e aceita lê-la, ele desenvolve expectativas de interpretação. Essas expectativas constituem um “jogo humorístico” em que autor e leitor criam uma espécie de “contrato de humor” que irá comandar tal jogo até o desfecho da tira. Cognitivamente, esse acordo comunicativo prevê a espera de um efeito surpresa, em que o leitor é então inesperadamente surpreendido por um desfecho inusitado. Este final da história revelará sempre uma informação absurda, que violará completamente a 68 harmonia de suas expectativas sobre o real estado de coisas do mundo (SANTOS, 2009, p. 213). A partir deste contexto teórico, analisamos a seguinte tira: Fonte: Quino. Toda Mafalda (1993, p. 233). O pequeno garoto chama-se Guille, é irmão de Mafalda, e como se pode perceber ele está na fase infantil de “descobrir as coisas do mundo”. No período de produção desta tira, a Argentina, segundo Ravoni (1992), estava em um momento de crise política e financeira e a situação mundial na década de 60 contemplava guerras, disputa por soberania atômica, divisão partidária entre movimentos de direita e esquerda e uma infinidade de outros fatores que marcaram tal época histórica. A partir deste contexto, no decorrer da interpretação dos quadrinhos os inputs visuais nos mostram que: (1) Ambos estão em casa (possivelmente); (2) Guille aponta aos objetos na expectativa de que sua irmã responda-o com a nomenclatura de cada um; (3) Mafalda corresponde às suas expectativas com uma expressão feliz e satisfeita até o momento de ser indagada sobre o globo terrestre; e (4) a personagem, 69 desapontada, utiliza-se de artifícios gestuais para comunicar ao irmão que o mundo é o mesmo que (ou como) aquilo com que ele preenche as fraldas. Ao ponto que essas informações vão sendo captadas, em consonância com os inputs visuais, os inputs linguísticos revelam que: (1) Guille pergunta o nome dos objetos que encontra pronunciando a interrogativa “Ete?”; (2) Mafalda responde e ensina ao irmão o nome dos objetos requisitados; (3) A personagem não responde verbalmente ao irmão quando este aponta para o globo terrestre. Alcançadas as informações geradas pela relação consonante entre os inputs linguísticos e visuais, obtém-se a forma lógica decorrente do processo de decodificação. Neste momento, a mente abre precedentes a fim de resgatar, na memória enciclopédica, informações do contexto cognitivo que possibilitam premissas, as quais: (i) Guille é uma criança que está aprendendo a falar porque pronuncia “ete” ao invés de “este”; (ii) Tal tipo de pronúncia é comum às crianças em processo de aquisição de linguagem; (iii) Mafalda ensina coisas ao irmão pequeno assim como fazem a maioria dos irmãos mais velhos; (iv) A personagem acredita que o mundo não é bom e procura meios de tornar sua opinião manifesta ao irmão. 70 Estas informações implicadas no processo interpretativo possibilitam alcançar o nível pragmático da comunicação, ou seja, computar informações que não foram ditas, mas que foram consideradas na compreensão da tira. Este enriquecimento a nível pragmático serve de base para que, a partir destas informações, outras novas possam ser derivadas. Assim, os processos dedutivo-inferenciais proporcionam suposições contextuais, que nesse caso, sugerem que: S1 Guille é curioso; S2 Guille confia na irmã a ponto de acreditar que ela “sabe tudo”; S3 Mafalda tenta contribuir de maneira voluntária e sincera ao desenvolvimento do irmão; S4 A personagem é desapontada com o mundo; S5 Mafalda considera que o mundo é assim como o conteúdo fecal encontrado na fralda do irmão, aludindo a uma coisa ruim, suja, nojenta, que ninguém gosta, nem admira ou ama. Implicatura: O mundo não presta. Acessados pela entrada lexical, lógica e enciclopédica, as derivações dos processos cognitivos resultam suposições que fazem com que se alcance o nível de explicatura, ou seja, a forma lógica foi desenvolvida através de raciocínios lógicodedutivos e processos de natureza pragmática que fizeram com que fosse dissolvido o conteúdo da tira. A conclusão que Mafalda permite que o leitor chegue (a de que o mundo não presta) torna-se a implicatura contextual. Neste nível, obtém-se, portanto, a 71 forma lógica proposicional que permite atribuir valor de verdade a mensagem não-dita mas que foi implicada e comunicada pelo autor. Para Santos (2009), o valor de verdade é conferido ao módulo psicológico de forma que as premissas, suposições e implicatura foram simultaneamente avaliadas psicologicamente segundo as crenças, convenções e valores sociais do indivíduo que leu. Portanto, é na inversão entre os conceitos e referentes que o leitor forma em relação às coisas do mundo é que reside à incongruência, afinal, nesse caso, não é comum que uma simples criança já tenha tal opinião formada - ou até esse intenso (porém objetivo) juízo de valor - em relação ao mundo. Menos ainda, que seria capaz de pensar no jargão vulgar inferido (por meio do interdito) no desfecho da tira. Deve-se considerar que no jogo humorístico há dois mundos: um real e um possível. No mundo real não existem crianças como Mafalda. Geralmente as crianças não possuem opiniões tão assertivas em relação a situações políticas, econômicas e mundiais. Além disso, também não possuem “memória enciclopédica” o suficiente para que seu contexto mental reflita a perspicácia necessária para manifestar tal opinião assim como fez a personagem. Porém, num mundo possível, lúdico, humorístico, conhecido até por “mundo de Mafalda” segundo alguns autores, tudo pode acontecer. Afinal, Mafalda criticava a ditadura sem sofrer repressão, intimida e desafia os pais sem parecer insolente ou mal educada, enfrenta soldados de guerra, formula aos seis anos ensaios sobre a independência nacional, contesta o papel da mulher, enfim, como sugere Possenti, o humor de criança opera com domínios discursivos “quentes” sendo facilmente perdoados justamente por Mafalda ser quem é. Neste ponto é que se acaba inferindo (e aderindo) como verdadeira a mensagem da personagem, e esta 72 relação de verdade (força de verdade), torna-se relevante e proporciona a interpretação da crítica e do humor. Sobre isso, explicamos neste artigo que: Desse modo, o conceito que temos sobre uma criança normal em relação ao que encontramos em Mafalda entra em choque. A personagem, com idade infantil, conhece aquilo que acreditamos que não conheça e faz aquilo que acreditamos que não faria. A ocorrência do inesperado, do irreal, do absurdo em relação à suposta ordenação harmoniosa que temos do mundo real, rompe repentinamente as expectativas dos referentes. Nesse momento, surge o humor (BRUNET, 2010, p. 68). É importante observar que a interpretação humorística não se detém a resolução da incongruência ou apenas ao módulo psicológico que se tenta explicitar na análise da tira. No ínterim do alcance da forma proposicional ou da interpretação completa do conteúdo explicito e implícito, existem regras dedutivo-inferenciais que conduzem o leitor ao significado (próximo) daquele que o autor teve a intenção de comunicar. Assim, o trajeto cognitivo que o autor - através do seu estímulo ostensivo - permite que o leitor cumpra é, portanto, realizado em quatro passos: (1) a forma lógica é remetida ao “armazém” de conhecimento enciclopédico sendo enriquecida pragmaticamente; (2) é então submetida às regras de dedução que formam a implicação contextual; (3) em seguida opera a interpretação da forma proposicional em entretenimento humorístico; (4) que por sua vez, é externado através do riso. Portanto, valendo-se de Santos (2009/10) e aplicando os conceitos da TR na interpretação de tiras em quadrinhos, concluímos que além dos processos cognitivoinferenciais o processo de interpretação humorística sofre, diretamente, a influência do módulo psicológico dos interlocutores, que como indivíduos, possuem seus próprios estados mentais, emoções, crenças, interesses, convenções e valores sociais, desejos, memória, cultura e outros fatores que são, além de relevantes, determinantes na 73 formação da concepção de mundo. Além disso, que a incongruência - se for considerado o “mundo às avessas” de Bergson, o desconcerto seguido de esclarecimento de Freud, a sobreposição dos scripts e o modo de comunicação bonafide e non-bona-fide de Raskin – é somente parte do processo da interpretação do humor. Por trás da quebra conceito-objeto, há a realização de todo um processo inferencial lógico-dedutivo de ordem pragmático-cognitiva que não só constitui como rege o princípio da interpretação humorística. Tendo-se, portanto, o arcabouço teórico de ordem pragmático-cognitiva sobre o processo tradutório do humor apresentado no capítulo um, e também definidas as dimensões da interpretação humorística nesta mesma perspectiva, a pergunta que se faz é: O que se passa na mente do tradutor ao interpretar e traduzir textos de humor? Se não há como acessar o universo mental do indivíduo, é possível, então, identificar quais ou “que tipo” de processos mentais ele realiza em busca de interpretar e traduzir um enunciado humorístico? Simplificando, “como” a mente humana se comporta ao realizar a interpretação do humor em uma segunda língua e ainda traduzi-lo para a sua? São destas e outras questões que compõem o grande desafio desenvolvido neste próximo e último capítulo. 74 4 TRADUÇÃO DO HUMOR E TEORIA DA RELEVÂNCIA: UM ENLACE POSSÍVEL? Fonte: Quino.Toda Mafalda (2008, p.444) Os estudos da tradução e as investigações sobre interpretação de tiras em quadrinhos assemelham-se em vários aspectos. O primeiro deles é que ambos os temas já foram, pelo menos em parte, atribuídos a proposta da pragmática cognitiva apresentada na Teoria da Relevância de Sperber & Wilson (1995/2001). Além disso, as investigações sobre tradução, tradução do humor e interpretação de textos humorísticos partem de um princípio comum que é o de valorizar o contexto e o homem em sua condição de indivíduo, de forma a compreender que este interage com o mundo a partir de sua cognição, cultura, crenças, interesses, convicções, valores sociais e outros elementos que constituem seu universo de significação. Outro fator pontual é que os olhares teóricos apresentados sobre os temas rompem a ideia de linguagem como uma prática inerte, imutável, inflexível, posicionando-se a favor de paradigmas mais contemporâneos. Em razão dos pontos de encontro entre essas abordagens, a proposta a ser desenvolvida neste capítulo inaugura uma nova perspectiva: analisar a tradução do humor de tiras em quadrinhos à luz da Teoria da Relevância. O corpus selecionado é 75 composto por três quadrinhos da personagem Mafalda, do cartunista argentino Quino. Entretanto, antes de realizar o trabalho analítico, julga-se importante destacar algumas informações sobre a obra, tradução, público e outros fatores relevantes, que contemplaremos a seguir. 4.1 AS TIRAS DE MAFALDA: ABORDAGENS TRADUTÓRIAS. As histórias em quadrinhos caracterizam-se por possuir duas esferas interpretativas: a da linguagem verbal e a não verbal. A consonância entre texto e imagem permite que o leitor interaja com as mensagens comunicadas em cada quadrinho, inferindo por meio dos balões, formato das letras, onomatopéias, expressões faciais e corporais, metáforas visuais, e outros vários elementos. Por seu estilo crítico e irreverente, as tiras em quadrinhos possuem maior adesão em publicação de jornais. Na Argentina, por exemplo, as historietas são inseridas no jornal La Nación desde 1920. Logo, tornou-se parte do contexto jornalístico do país publicar e apreciar esse tipo de humor. As histórias de Mafalda, do cartunista Joaquín Salvador Lavado Tejón - conhecido como Quino - foram criadas em 1963 e em 1965 passaram a fazer parte do jornal El Mundo. Desde então, a personagem alcançou um sucesso implacável, sendo considerada como um ícone da cultura Argentina (SILVA, 2010). As tiras de Mafalda já foram traduzidas para 26 idiomas e ainda possuem audiência mesmo após o término de suas publicações em 1973 (SILVA, 2010, p. 12). Isso acontece porque são histórias que versam sobre política, burocracia, economia, guerras e conflitos mundiais, movimentos pacifistas, questões ambientais, pobreza, 76 educação e vários outros temas que até hoje compõem as capas e manchetes de jornais. O fato é que assim como as charges, as tiras em quadrinhos - por mais genéricas que pareçam - comumente ilustram uma situação momentânea. Por este motivo, é que se passa a indagar “como” o humor de Quino - que fora então criado para aquela realidade específica, sob um dado período histórico, e ainda, para uma cultura bastante peculiar que é a porteña - permanece vivo provocando reflexão e riso para as pessoas que o leem? Ao perpassar pelas tiras do compêndio Toda Mafalda (2008) publicado em língua espanhola, e ao realizar um comparativo com a obra traduzida para o português (2009), consegue-se elencar algumas situações tradutórias dignas de alguns breves comentários. Devido à extensão do livro, a tradução foi realizada por sete tradutores, e entre os resultados, notam-se diferentes perspectivas. Vejamos alguns modelos: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 143. 77 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 84. O contador da piada chama-se Manolito, e na obra Mafalda, assume a caricatura do amigo dinheirista. Filho de comerciantes, o personagem não perde uma chance sequer de fazer merchandising do Armazén Don Manolo, que é o estabelecimento da família, no qual também trabalha. Partindo desse conhecimento e realizando a interpretação da tira, porque não substituir a figura do japonês pela do português? Levando-se em conta os referentes culturais do Brasileiro, o estereótipo que se têm do japonês não é assim tão comum quanto ao do português. Até porque, o estereótipo que naturalmente é inferido sobre japoneses (do sexo masculino), não corresponderia com a essência do humor de Mafalda. Para rir desta tira é necessário que antes se tenham expectativas de relevância, e como se sabe, “o português funciona, nas piadas de brasileiros, como protótipo do ignorante” (POSSENTI, 1998, p. 73). Portanto, se esta substituição for feita, as possibilidades de resposta ao estimulo ostensivo do autor, sem dúvida, aumentariam. Além disso, a troca do japonês pelo português seria mais satisfatória para o cumprimento da semelhança interpretativa. 78 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 94 . Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 43. Entre as décadas de 60 e 70 - época de produção dos quadrinhos de Mafalda - a Argentina compreendeu um período histórico marcado por uma série de conflitos, golpes e ditaduras militares (RAVONI, 1992). Era muito comum, devido a opressão militar, que estudantes, contestadores e outros protestantes se organizassem para discutir ou promover manifestações contra o regime econômico da época. Por isso, a atribuição, o valor, e até mesmo a abrangência dos grêmios (não somente os estudantis) era outra. Ao analisar a tradução da tira, nota-se que o tradutor realizou uma tentativa ao considerar o contexto atual, substituindo grêmios por “categorias profissionais”. Aparentemente, percebe-se na interpretação da tira traduzida a decorrência da ironia, e 79 o comentário inesperado, que são características fundamentais da personagem e do seu tipo de humor. Porém, é inegável que o efeito global tornou-se menos incisivo. Ao imaginar o contexto de produção da tira original (contexto artificial) e transpôlo via semelhança interpretativa, uma das saídas possíveis seria conferir a este último enunciado de Mafalda, uma carga de significação mais próxima, e talvez mais assertiva, ao leitor brasileiro atual. Se a expressão fosse adaptada para “Puxa! Devem ter alguns políticos morrendo de dor de dente por aí!” ou de maneira ainda mais específica “Coitados! Os deputados devem estar mesmo morrendo de dor de dente...” seria ainda mais condizente. Entretanto, esta última sugestão, promoveria força a mensagem implicita tornando-se um input relevante, pois é um assunto que gera, certamente, efeito no contexto cognitivo, uma vez que os deputados têm “o estereótipo de alguém que não tem compromisso com atividades ou eventos que exijam responsabilidade ao cumprimento de hora marcada, sujeição às normas das instituições (...)” (SANTOS, 2009, p. 143). Aliás, é do conhecimento público que, muitos deles, comparecem com mais frequencia à câmara somente em época de eleições. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 157. 80 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 96. A personagem que aparece junto à Mafalda e Manolito chama-se Susanita. Na obra de Quino, ela representa a caricatura da mulher que é criada e educada para se ater, exclusivamente, às atividades do lar. Sendo reclusa à ambição familiar, seu maior sonho é casar com um homem rico e ter filhos bem sucedidos (BRUNET, 2010a, p. 76). Devido à esse traço de caráter ligeiramente soberbo da personagem, é muito comum que ocorram episódios de conflito entre ela e Manolito, uma vez que ambos competem quem será o melhor no futuro, proferindo provocações recíprocas com doses de ironia e humor. Na tradução dessa tira, constata-se que a expressão americana “Full Time” foi literalmente traduzida ao português para “tempo integral”. Sem entrar nos méritos das discussões linguísticas35, é comum que a lingua portuguesa abarque extrangeirismos em seu vocabulário devido ao fato de certas expressões já estarem, de certa forma, cristalizadas no idioma brasileiro. Nos estudos tradutórios, como apontado por Barbosa 35 Para mais detalhes sobre o assunto, ver FARACO, Carlos Alberto. Estrangeirismos: guerras em torno da língua. São Paulo: Parábola, 2001. 81 (1990), esse é um tipo de fenômeno (ou método) que deve ser compreendido como “empréstimo” da língua, já que pode ser comum entre ambas. No caso dessa tira, o humor se dá, especificamente, na menção da expressão Full Time, que traduzido, perdeu grande parte de seu efeito humorístico. A força de tal expressão, somada a representação (advinda da memória enciclopédica do leitor) de uma personagem que gosta de se colocar em uma posição de status, e que quer, por meio do interdito, provocar seu oponente, confere a essência do humor da tira. Além disso, o que promove a incongruência e dissolve as expectativas de relevância no desfecho dos quadrinhos, é justamente a inesperada percepção do ato de uma criança proferir esse tipo de comentário, que diga-se de passagem, implica em um juízo de valor, ou opinião, inadequada (ou aprimorada demais) para a idade que possui. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 112. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 57. 82 Dentre os modelos de tradução que foram brevemente analisados, observa-se, até o momento, a existência de duas situações distintas: traduções que deixam a desejar em decorrência dos tradutores não terem realizado o conjunto de adaptações necessárias, e, também, um exemplo de tradução literal que neutraliza, ou reduz significativamente, o efeito do humor. O que ocorre na interpretação da tira acima, remete a um outro caso: se a tradução não corresponder ao contexto do texto de chegada, ou seja, se não provocar um efeito contextual na memória enciclopédica do leitor, ela não será interpretada. Esse é um caso que não acarreta uma situação de risco, mas de certeza, uma vez que comunica um tipo de constructo cultural específico. No final da leitura e interpretação da tira, a pergunta que se faz é: como assim os reis magos? Ao entrar em contato com os inputs “ganhar” e “Reis Magos”, há uma possibilidade de se deduzir, na condição de brasileiros, que a mensagem do enunciado refere-se ao Natal, já que nesta data ganha-se presentes e os Reis Magos estão atrelados ao nascimento de Cristo. Contudo, ilustrar que são os Reis Magos que trazem os presentes no dia do Natal é uma tradição argentina, – em vigência na época de produção das tiras - cuja herança cultural é oriunda da colonização espanhola. No Brasil, esse tarefa é atribuida ao Papai Noel, figura também originária da europa, porém difundida pela cultura portuguesa, e que foi, ao longo dos tempos, sendo influenciada pela americana (BARROS, 1992) e, como se sabe, reforçada pelos interesses comerciais nacionais. 83 Tendo esse conjunto de informações, não se deve esquecer que é fundamental à interpretação humorística, que o processo inferencial seja o mais econômico possível em termos de esforço cognitivo, afinal um input torna-se relevante para um indivíduo quando seu processamento, no contexto prévio de supostos da mente, produz um efeito cognitivo, e este, deve ser positivo. Neste caso, o que não pode acontecer, é que a dúvida sobre os Reis Magos prevaleça à interpretação da intenção comunicativa do autor em relação ao inesperado, ou a resolução da incongruência do quadrinho final. Portanto, se a relação dos Reis Magos com a comemoração natalina argentina da época, não fizer parte da memória enciclopédica do leitor, o efeito (esperado) do humor da tira, certamente, não ocorrerá. Ao realizar o processo de semelhança interpretativa no ato tradutório, esta é uma situação que pode ser facilmente resolvida. A maneira possível, é substituir Reis Magos por outro referente de significação similar ao do público brasileiro atual, que é o Papai Noel. Assim, os diálogos entre Mafalda e Manolito poderiam ser adaptados para: Que caminhão bonito! Você ganhou do Papai Noel? / Ganhei / Ele cumpriu a missão de bom velhinho, não é? / Pois é. Pena que eu também já cumpri minha missão de piá... Sem dúvida, essa é uma tomada de decisão que o tradutor precisa realizar, pois seu objetivo principal é não colocar em risco a compreensão do leitor, uma vez que existam referentes linguisticos disponíveis e acessíveis que facilitam, e de certa forma, garantem o processo de interpretação do humor. Por isso a necessidade da criação do contexto artificial em que foi produzido o texto de partida, em que elencando-se informações sobre o público (audiência), as condições culturais envolvidas, o momento histórico e outros elementos do gênero, é possível “pensar” a tradução de maneira que 84 o texto dela resultado seja relevante ao leitor. Assim, a substituição para Papai Noel satisfaz a expectativa de relevancia do receptor; a troca de “cometido de reyes” pela interrogativa “Ele cumpriu com a missão de bom velhinho, não é?”, impõe ênfase a afirmação de Mafalda, assegurando uma resposta menos objetiva do que a primeira dada por Manolito; e por fim, a adaptação de “chico” por “piá”, realça a ideia de travessura com mais evidência do que a figura da “criança” sugerida pelo tradutor. Outro modelo que se aproxima a esse tipo de situação tradutória, pode ser observado na tira a seguir: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 119. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 63. 85 O amigo que Mafalda encontrou na praia chama-se Miguelito, que assim como ela, odeia sopa. É o típico personagem que ilustra a caricatira daqueles que não conseguem desenvolver raciocínios úteis e nem compreender mensagens críticas, irônicas ou ambiguas (BRUNET, 2010, p. 76). Ao entrar em contato com o input enjôo, é possivel deduzir, para aqueles que não sabem, que Alka-Seltzer trata-se de um medicamento que combate esse tipo de indisposição fisiológica. Entretanto, diferentemente de outros remédios mais conhecidos no Brasil, como Dipirona, Vick Vaporub, Benegrip, Neosaldina, e até mesmo os próprios Sonrisal e Eno, que contém princípios ativos similares, o Alka-Seltzer não possui apelo publicitário tão difundido em nosso país, quanto tinha nas décadas de 60 e 70 na Argentina, época de publicação da tira. Retomando a metodologia da análise anterior, nota-se e que a dúvida do que seria Alka-Seltzer tem grandes chances de prevalecer à intenção comunicativa do autor em relação ao inesperado, e desviar a resolução da incongruência no desfecho da tira. Se Alka-seltzer não fizer parte da memória enciclopédica do leitor, o humor não ocorrerá. Deste modo, uma das maneiras possíveis para resolver este impasse, é substituir Alka-Seltzer por outro remédio de igual eficácia, e de similar popularidade, ao público brasileiro atual. Sonrisal ou Eno se encaixariam nesses moldes, por exemplo, em que: “Coitado do Miguelito...” / “O que aconteceu?” / Desde o dia que imaginou que o mar era sopa, ele não pode ver a praia que fica enjoado.” / Mas... Olha ele! No mar! / Muito bem Miguelito! Tomou coragem?! / Não! Tomei Sonrisal mesmo... / ou Não! Tomei Eno... Ainda que o tradutor, por um motivo ou outro, não quiser mencionar 86 marcas específicas, ele ainda tem a possibilidade de utilizar na resposta de Miguelito, “Não.Tomei sal de frutas mesmo...” Considerando esses casos é importante destacar que nem todas as tiras traduzidas na obra seguem essa linha de raciocínio apresentada até agora. Muitas delas, e para a satisfação dos leitores e apreciadores do humor de Mafalda, passaram por transferências linguisticas de sucesso. Um modelo eficaz, que assemelha-se ao que foi almejado nessas duas últimas análises é: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 119. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 32. Na tradução para o português, percebe-se que a antiga marca alemã de equipamentos eletrônicos Grundig, foi substituida por outra mais atual, que é a Gradiente. Neste modelo, o tradutor considerou vários aspectos: que o enunciado “(...) 87 El señor Grundig”, se traduzido em sua forma literal, possivelmente não seria inferido pelo leitor contemporâneo; que a marca Gradiente é bastante difundida no Brasil, inclusive em termos de aparelhos de som; e que, se a adaptação fosse realizada, o humor da tira corresponderia ao contexto do leitor. Logo, para esse tradutor, não houveram barreiras na aplicação da semelhança interpretativa, nem oposição à realização de transformações em favor da equivalência do efeito humorístico, originalmente intencionado por Mafalda. Assim, sua tomada de decisão conseguiu manter a essencia do humor de Quino. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 82. Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 32. Na obra Mafalda, Felipe cumpre o papel do personagem que é, verdadeiramente, inocente e um dos únicos que se comporta mais como criança e menos como adulto. É 88 o melhor amigo de Mafalda, pois, na maioria das vezes, demonstra paciência aos questionamentos, irônia e sarcasmo proferidos pela parceira de brincadeiras. São raras as vezes em que ele apresenta comportamento perspicaz. É justamente essa característica específica de Felipe que incita o humor no último quadrinho, quando se percebe a reação de Mafalda a justificativa astuta do colega. Conhecendo esses elementos, o tradutor da tira realizou uma série de adequações, desde níveis de sintaxe até adaptações mais dispendiosas, como é o caso do Meccano, que era um brinquedo comum à época, similar ao que hoje entendemos por Lego. Além disso o tradutor considerou, que diferente da maneira antiga, os cofrinhos não são mais somente em forma de porquinhos. Existem atualmente outros protótipos infantis com essa mesma função, possuindo uma infinidade de temas, inclusive em formato próprio de cofre, com tecnologia de senhas digitais e outras maneiras modernas de fechamento. Assim, o trabalho de tal profissional corrobora com as novas propostas de tradução, correspondendo aos conceitos de semelhança interpretativa, criação de um contexto artificial para a previsão e comparação ao atual, e principalmente, levando em conta os processos interpretativos atrelados à linguagem humorística. Adentrando a uma esfera um pouco mais complexa, vejamos a seguinte sequencia de histórias: 89 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 143. 90 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 85. Comparando o original em espanhol com a tradução para o português, constatase que as adequações no texto traduzido atingem certo nível de recriação, de forma que realiza a adaptação de todo o conteúdo para a realidade contextual do leitor brasileiro. O tradutor desempenhou, no ato tradutório desta tira, o papel de autor de um novo texto, preservando todos os referentes semelhantes sintática e semânticamente a que podia, e por outro lado, valendo-se da linguagem em uso para reconstruir o humor na lingua portuguesa. Percebe-se que este tradutor tem sensibilidade e percepção 91 apurada na tradução da linguagem humorística, realizando com inteligência, criatividade e bom senso, seu trabalho de leitor/tradutor. As análises das tiras apresentadas nesse tópico nos levam a percepção de dois extremos na tradução de uma única obra: desde à pratica de tradução literal que rompe o efeito comunicativo do autor, até a prática da reconstrução do humor em busca de amplicar o nível de significação do leitor. Porém, como ressalta Brezolin (1997), o recurso da recriação é a única solução para alguns casos. E o que verdadeiramente ocorre, é que existem adequações mais simples e outras mais complexas, que demandam maior atividade cognitiva por parte do tradutor, já que a forma e conteúdo da mensagem não funcionariam em outra língua. Já na dimensão desses casos mais delicados, selecionamos outras duas tiras, em busca de traçar um modelo que possibilite compreender “como” o tradutor processa cognitivamente a tradução humorística, e “quais” os elementos mentais previstos nos estudos da pragmática cognitiva, que são dispendidos na tarefa de interpretação e tradução do humor. Vejamos no tópico final, a seguir. 4.2 A TRADUÇÃO DO HUMOR DE MAFALDA SOB A PERSPECTIVA DA TEORIA DA RELEVÂNCIA: A ANÁLISE DO CORPUS O fato de a obra Toda Mafalda (2009) possuir traduções que aderiram a possibilidade de recriação, - e dessa maneira, transpuseram o objetivo das histórias em quadrinhos que é o humor - abre precedentes para novas abordagens36. Portanto, nesse tópico pretende-se apresentar, passo a passo, uma tentativa de traçar o percurso 36 Uma vez que esse tipo de estratégia foi aceito, revisado e publicado por um corpo editorial competente. 92 cognitivo da interpretação humorística, juntamente aos conceitos da TR aplicada à tradução. Além disso, é também um dos objetivos sugerir ou discutir saídas possíveis para situações tradutórias sensíveis, que veremos a seguir. 4.2.1 As peculiaridades da semelhança interpretativa na tradução de textos de humor: adaptações obrigatórias. Como visto no capítulo anterior, quando um leitor que domina a língua espanhola se depara com uma tira em quadrinhos no idioma, e aceita lê-la, ele cria expectativas de interpretação37. Essa incitação ocorre pelo motivo de que o conhecimento enciclopédico ou “conhecimento de mundo”, traz à tona na mente (por meio dos processos inferenciais), que este é um tipo de texto que geralmente proporciona o prazer do riso. Ao se sentir atraído pela ideia de que é uma leitura agradável e breve, existe a resposta ao estímulo ostensivo comunicado pelo autor. Segundo Santos (2009), essa interação entre autor e leitor constitui um tipo de jogo humorístico, em que os interlocutores estabelecem uma espécie de contrato de humor, que comandará tal jogo até o desfecho da tira. No entanto, esse contrato é “assinado” por ambos sob a premissa de uma pressuposição pragmática, em que o autor tem a intenção de tornar manifesto ao leitor a informação do seu texto, esperando que sua intenção seja reconhecida e que o desfecho – neste caso – da tira, provoque um efeito humorístico. O leitor, por sua vez, mesmo reconhecendo a priori que será conduzido a um labirinto de interpretações, no qual se justapõem expectativas de incongruências com possibilidades humorísticas, 37 aceita O mesmo acontece com um leitor brasileiro ao ler uma tira em português. a proposta do jogo. 93 Cognitivamente, o acordo comunicativo entre autor e leitor, prevê também (e inclusive) a expectativa do efeito surpresa em um desfecho inusitado. Para estabelecer essa conexão, examinemos a tira: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 118. Mais conhecido como Papá, o pai de Mafalda exerce na obra o papel do chefe de familia trabalhador. Atuando como corretor de seguros, ele demonstra-se assíduo ao trabalho, honesto, econômico e paciente com a irreverência da filha. Um de seus prazeres é ir à praia nas férias, mas devido às limitações do seu salário, esses dias não são tantos quanto ele gostaria. Seguindo os procedimentos da Teoria da Relevância, no decorrer da leitura da tira, pode-se observar, por meio dos inputs visuais que: (1) O pai de Mafalda está na praia, deitado na areia tomando sol; (2) Mafalda e a mãe estão ao fundo. Nota-se que ele buscou privacidade, sossêgo e talvez silêncio; (3) ele gosta da situação, seu corpo está relaxado, sua face demostra um sorriso de satisfação e o formato do balão indica que ele está a refletir; (5) no segundo quadro, ainda refletindo, o pai de Mafalda levanta e uma reação de susto é percebida na expressão de seus olhos; (5) em seguida, um 94 personagem desconhecido aparece em foco, deitado, tomando sol, assim como o pai de Mafalda no início; (6) o desconhecido está em um local próximo, ainda mais vontade sobre uma toalha, relaxado, satisfeito, e por estar fumando, gera fumaça ao ambiente; (7) no quarto e último quadrinho, nota-se no pai de Mafalda a continuidade da expressão de susto, porém somada a de decepção. Em consonância interpretativa, os inputs linguisticos revelam que: (1) em pensamento, ele se coloca em uma posição de conforto, ostentando sobre sua situação atual em comparação com a de outros que, naquele momento, não possuiam os mesmos benefícios de descanso e prazer; (2) a onomatopéia ¡Ji-Ji! conota certa dose de sarcasmo; (3) imediatamente ele se arrepende de sua inclinação egoísta; e por fim, (4) percebe que existem pessoas ainda mais egoístas do que ele. As informações geradas pelos inputs acima permitem atingir o nível de forma lógica, ou inferências dedutivas triviais, em que é produto da realização do processo de decodificação visual e linguistica. Os inputs visuais atrelados interpretativamente aos inputs linguisticos, abrem precedentes a fim de que o leitor resgate, em sua memória enciclopédica, algumas informações do contexto cognitivo, que passam a constituir, possivelmente, as seguintes premissas implicadas38: (i) Por questões de sobreviência as pessoas precisam trabalhar, e por isso, elas têm pouco tempo para descansar; Devido à proposta desta pesquisa, toma-se como base a mesma metodologia de Silveira & Feltes (2002) para a apresentação dos inputs, premissas e suposições contextuais envolvidas na interpretação de charges. É importante destacar que Santos (2009) utilizou a metodologia do modus ponens em suas análises de piadas. 38 95 (ii) As férias são um momento especial em que se pode passar mais tempo com a familia e fazer outras coisas que propiciam prazer; (iii) É comum que as pessoas viagem nas férias em busca de sair da rotina e esquecer os problemas; (iv) Viajar à praia é geralmente a escolha mais acessível, ainda mais na Argentina, devido à localização geográfica; (v) Como a praia é pública, e no verão é muito frequentada, lá encontra-se toda sorte de pessoas, com os mais diversos comportamentos; Estas informações implicadas no processo interpretativo possibilitaram alcançar o nível pragmático, ou seja, a computar informações que não são ditas mas que são consideradas em busca da compreensão dos enunciados. O enriquecimento a nível pragmático serve de base para que, a partir destas informações, outras novas possam ser derivadas. Assim, os processos dedutivo-inferenciais promovem as seguintes suposições contextuais: S1 O pai de Mafalda considera que estar sempre ocupado com as obrigações do emprego é como estar vivendo numa escravidão; S2 Milhões de pessoas trabalham como “escravas” para que outras só desfrutem os prazeres da vida; S3 Preocupar-se mais com conforto próprio, sem se preocupar com bem estar do outro, é ser egoista; 96 S4 O pai de Mafalda pensa que nem para egoista serve, pois até para isso, outras pessoas têm performance melhor que a dele. Implicatura: Ser desapontado consigo mesmo é sinônimo de fracasso. Acessados pela entrada lexical, lógica e enciclopédica, as derivações dos processos cognitivos resultaram suposições que permitiram alcançar o nível de explicatura, ou seja, a forma lógica foi desenvolvida através de processos de natureza pragmática e os raciocínios lógico-dedutivos fizeram com que o conteúdo da tira fosse dissolvido. Porém, o leitor que é perspicaz e sabe que na obra de Quino há sempre, por tráz do riso, uma mensagem crítica, este consegue identificar na tira uma outra implicatura: a de que fumar na praia é um ato genuinamente egoísta. Um dos indicativos mais evidentes dessa implicatura, é que o quadrinho no qual aparece o indivíduo fumando na praia é o que tem maior tamanho. Se Quino quisesse enfatizar somente o fato do pai de Mafalda se sentir um fracassado, ele teria criado recursos extras para que o último quadrinho ficasse em destaque. Além disso, quem conhece a obra já percebeu, em leituras anteriores, que é um traço de caráter do pai de Mafalda se sentir inferior, e por isso, esse fator não é nenhuma novidade (por mais que também seja eficaz ao leitor que não é familiarizado com as tiras da personagem). Outro aspecto que deve ser considerado é que o autor é bastante engajado com questões ambientais, e como é sabido, a fumaça do cigarro é um poluente de ar. No âmbito dessas considerações, percebe-se que o surgimento das premissas e suposições proporciona - por meio da combinação dos inputs com o contexto cognitivo – a derivação de uma conclusão. Assim, a conclusão à que se chega com a leitura da 97 tira, de que ser desapontado consigo mesmo é sinônimo de fracasso, e que, fumar na praia é um ato genuinamente egoísta, denomina-se, segundo aos termos da TR, como implicatura contextual. Quando esse nível da implicatura é alcançado, obtém-se a forma lógica proposicional, que permite que se atribua valor de verdade à mensagem não-dita, porém, implicada ou comunicada pelo autor. Durante este percurso até a implicatura contextual, observa-se que a tendência do conhecimento enciclopédico é a de serem somadas as crenças, convenções e valores do leitor. Portanto, segundo Santos (2009), a implicação contextual é submetida simultâneamente a um módulo psicológico (como vimos anteriormente, abreviado por MP), que pela sujeição dos nossos próprios interesses, gera expectativas de uma possível força de verdade. Assim, se o efeito cognitivo for relevante, ou seja, se o máximo de informações foi atingido, com o mínimo de esforço mental, a forma atitudinal plena foi alcançada e o significado interpretado (idem, p. 243). O fato é que este percurso da interpretação do humor ainda não para neste momento. Segundo Santos, no interím do alcance da forma atitudinal plena, a forma lógica proposicional é convertida em entretenimento humorístico que o leitor, por sua vez, explicita no riso. Contudo, a conclusão irreverente que o pai de Mafalda faz de sua própria situação, é ainda, a responsável pelo humor da tira. Nessa inversão entre os conceitos e referentes é que reside a incongruência, afinal, não se espera que o personagem mencione tal juízo de valor sobre si mesmo. Assim, as regras dedutivoinferenciais que vão conduzir o leitor ao significado (próximo) daquele que o autor teve a intenção de comunicar, se convencionam e se ajustam, cognitiva e psicologicamente, aos conceitos e as expectativas de significado que o leitor veio construindo. Nesse 98 momento, é que elas entram em choque com os novos referentes que são revelados no desfecho dos quadrinhos. A descoberta do inesperado, do engano em relação àquilo que se esperava, reflete no alívio de esforços que a mente faz para processar a discordância cognitiva, e converter o significado do desfecho em “entretenimento humorístico”, que o leitor, por sua vez, interpreta como humor e exterioriza através do riso. Em síntese, são esses os recursos cognitivos que a mente humana precisa despender a fim de interpretar enunciados como as tiras em quadrinhos. A partir desses desenvolvimentos, chega-se o momento de levantar uma questão bastante plausível: na condição de tradutor, os processos cognitivos envolvidos na interpretação da tira se dariam desta mesma maneira? Levando-se em conta que o tradutor, ao entrar em contato com sua encomenda, já lê pensando como desempenhará a tradução, a resposta é que não. Porém, os princípios cognitivos são basicamente os mesmos. É inegável que o primeiro quadrinho da tira, em que possui o enunciado “¡Pensar que en este mismo instante hay millones de personas trabajando como negros, y uno aquí, de vacaciones!...” incita, garantidamente, a reflexão de como a palavra negro será substituida na tradução, vez que, se traduzida de forma literal, além de promover um choque de significados, seria uma armadilha que anularia qualquer chance de humor, prejudicando, inclusive, a reputação do próprio tradutor. Por este motivo, pode-se dizer que o conceito de semelhança interpretativa é posto em prática, neste caso, já na leitura do primeiro ato da tira ganhando força no efeito global após a interpretação. 99 A partir da análise da tira, é possivel identificar que a teoria de Gutt (1991/2000) torna-se ainda mais estreita, e aplicável, à proposta de trajeto cognitivo da interpretação do humor. Estas afinidades começam já no momento em que o leitor, ao aceitar ler os quadrinhos, cria expectativas de interpretação respondendo, portanto, ao estímulo ostensivo que é promovido pelo autor. No caso do tradutor, que é, antes de tudo, leitor, pode se dizer que além da expectativa interpretativa, ele cria expectativas de tradução. Essa ideia é possivel porque Gutt (1991, apud GONÇALVES, 2003, p. 40) explica que a semelhança interpretativa, uma vez que compartilha suas propriedades lógicas, explicaturas, implicaturas, compartilha também dois estímulos ostensivos que se assemelham interpretativamente. Assim, quando o tradutor inicia a leitura da tira, ele imagina possibilidades de comunicar em sua tradução um estímulo ostensivo semelhante àquele que recebeu em sua própria leitura. Neste trabalho, destaca-se que as expectativas de interpretação e de tradução ocorrem concomitantemente, pois é importante para o tradutor captar todas as particularidades do texto que vai traduzir, e devido esse seu interesse, suas expectativas de relevância aumentam, mais do que as do próprio leitor convencional. O procedimento de analisar o envolvimento dos inputs visuais e linguisticos pode também ocorrer dessa mesma maneira. Na interpretação humorística, ao passo que os inputs visuais e linguisticos correspondentes ao texto fonte (TF) vão sendo processados, o tradutor avalia-os conforme a realidade interpretativa do texto alvo (TA), de modo a identificar se eles irão se contradizer, implicar um no outro, ou apresentarem outras relações lógicas entre si. No caso desta tira, se o enunciado “(...) personas trabajando como negros, y uno aqui, de vacaciones...” - atrelado à imagem de um 100 homem branco, descansando, tomando sol - quando inferido em português, é entendido na condição de input (ou de vários deles), uma vez que incita a ideia de que se fosse traduzido literalmente, o contexto cognitivo do tradutor assinalaria que seria uma obtenção mental preconceituosa. Logo, o efeito cognitivo promovido por este (ou estes) input(s) no contexto da lingua portuguesa, chocaria-se, ao contexto da língua espanhola, ou seja, provocaria uma contradição entre os referentes, estabelecendo relações discrepantes entre eles. Neste interim, o tradutor buscaria outras propriedades lógicas que assemelhem-se às formas proposicionais, implicaturas e explicatiras que o autor teve a intenção de comunicar. Vejamos a estratégia do tradutor em relação a tradução desta tira para o português: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 62. Por meio dessas relações do conceito de semelhança interpretativa de Gutt (1991/2000) com a expectativa de interpretação, estímulo ostensivo, combinação e semelhança de inputs, nota-se a importância do desempenho do contexto cognitivo e efeito contextual do tradutor. Ao analisar esta tradução, percebe-se que a adaptação de “(...) trabajando como negros”, por “trabalhando que nem burros” não somente resolve o problema tradutório, como corresponde ao contexto do leitor do TA, já que a expressão “trabalhei como burro” ou até “trabalhei feito burro de carga”, faz parte da variedade de 101 ditos populares do brasileiro. Além disso, pode-se considerar que é um tipo de enunciado ainda mais utilizado do que seria a tradução “trabalhando como escravos”, por exemplo. Nota-se que o tradutor preocupou-se de tal maneira com o efeito humorístico que ele não contentou-se em cumprir com a semelhança mais próxima, que seria a adequação de “negros” por “escravos”, como aplicou outra palavra que fosse, pragmaticamente, mais próxima à realidade linguistica do leitor. Nesse sentido, pode-se dizer que na tradução humorística, o objetivo principal é que a satisfação interpretativa do leitor do TF seja semelhante no TA, ou seja, promova o riso. Portanto, o desafio cognitivo do tradutor é encontrar equivalentes linguisticocognitivos que sustentem, explicita e implicitamente, a presunção de relevância ótima transmitida no enunciado original (ou TF), de forma que possua efeito contextual semelhante. Do mesmo modo, é possivel estabelecer que as peculiaridades da tradução do texto humorístico, não são somente relacionadas ao fato do tradutor ter que transmitir informações análogas, que é o que geralmente acontece no processo tradutório dos textos convencionais, mas também (e sobretudo), que a mensagem da sua tradução provoque, no leitor do TA, entretenimento humorístico equivalente em termos de contexto e efeito, que pode ser conferido, mediante a prova do riso. 4.2.2. Unidade de tradução e contextos artificiais no processo tradutório de tiras em quadrinhos. Como demonstrado nas análises anteriores, é possível instituir que a emissão dos enunciados desperta o cumprimento da relevância, e que quando se é atraído por um estimulo ostensivo, cria-se expectativas de interpretação. Na linguagem 102 humorística, essas relações interpretativas são, segundo Santos (2009), atribuídas a uma espécie de jogo humorístico, em que os interlocutores realizam um acordo mútuo de entendimento, de forma que o autor tem a intenção de tornar manifesta a sua mensagem, e o leitor, respondendo ao estímulo ostensivo, e esperando uma fonte de prazer gerada pelo humor, aceite jogar o jogo proposto. A esta tendência à realização de um percurso cognitivo intuitivo e intencionado, Sperber e Wilson (2001) denominaram comunicação ostensivo-inferencial. Para estes teóricos, as relações recíprocas de interesse compõem o Princípio Comunicativo de Relevância, que designa o estímulo ostensivo como o responsável por criar uma expectativa de relevância ótima. Assim, o autor procura tornar o seu estímulo mas fácil possível para que seja inferido, proporcionando ao leitor evidências que possibilitem-no a atingir o seu objetivo. Por outro lado, participando desse jogo comunicativo, ou jogo humorístico, a meta do leitor será a de alcançar uma interpretação que corresponde à expectativa de relevância ótima intencionada pelo autor. O fato é que, para a realização de tal jogo, é necessário que o leitor, embasado na codificação linguistica, deva enriquecer os inputs de maneira a obter o significado explícito e preenchê-lo a nível de implicito, até que a forma proposicional – ou, segundo Santos (2009), forma atitudinal plena – seja alcançada. Vejamos: 103 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2008 p. 172. O pequeno garoto chama-se Guille. É irmão de Mafalda, e nesta tira, está em sua fase inicial de criança. Aprendendo a falar e ainda descobrindo o nome das coisas, uma das marcas de seu personagem é fazer confusões com os significados que absorve em sua interação com o mundo. Dessa maneira, a leitura da tira nos remete a decodificação dos seguintes inputs visuais: (1) Guille e sua família estão na praia; (2) ele observa um personagem desconhecido, de barriga grande, tomando sol; (3) a ausência do desenho da boca de Guille remete a uma ideia de pensamento, reflexão; (4) ao fundo, sentados na areia, os pais observam o filho. O pai, com as mãos na cabeça, anuncia fisicamente à reação de uma situação de enrascada, e a mãe, pelo desenho côncavo da boca, demonstra apreensividade; ao mesmo tempo, Guille, (4) em sua naturalidade de criança, pronuncia um comentário (ou interrogativa) que deixa o desconhecido altamente envergonhado, perceptívelmente notével pela mudança de cor do rosto; (5) No desfecho, a familia de Mafalda retorna, com todos os acessórios de praia, ao local à que possivelmente estão hospedados. Pai e mãe envergonhados e Mafalda demonstrando reprovação. 104 Simultâneamente, os inputs linguisticos revelam que: (1) Guille comunica ao desconhecido o que sabe sobre barrigas grandes; (2) A placa destaca que a familia está hospedada em um hotel; (3) O recepcionista percebe a vermelhidão do rosto dos pais de Guille e Mafalda, fazendo um comentário sobre a intensidade do sol; (4) O pai de Mafalda, responde brevemente ao recepcionista que “é quase isso”, com tom de fala envergonhado. Originária do processo de decodificação, a consonância interpretativa dos inputs linguisticos e visuais fazem com que se atinja – cognitivamente - a forma lógica não proposicional (ou somente forma lógica). Nesse momento, consegue-se obter a comprovação de que, se os inputs não forem enriquecidos pragmaticamente, pelas inferências não-demonstrativas39, a intenção comunicativa do autor não seria interpretada e compreendida por completo, ou de forma suficiente uma vez que o significado estararia restrito somente a sua forma linguistica. Diante a este motivo, é importante destacar que a decodificação é apenas um dos artifícios cognitivos envolvidos no input, em outras palavras, é o trabalho primeiro que os processos inferenciais realizam em busca da interpretação. Todavia, tem de se considerar que é a partir dessa decodificação, ou obtenção da forma lógica, que a mente abre precedentes para o leitor elabore hipóteses que sustentem explícita e implicitamente a presunção de relevância transmitida pelo enunciado. Assim, o continuum interpretativo recorre ao contexto cognitivo com o objetivo de levantar as seguintes premissas contextuais: 39 Inferências realizadas através dos elementos que não estão explicitados na locução verbal, devido ao fato de serem resgatadas da memória enciclopédica em busca da interpretação do enunciado. 105 (i) Guille tem um conceito formado em relação ao fato de pessoas terem barrigas grandes; (ii) Os pais conhecem os filhos, e por isso, sabem do que eles são capazes; (iii) Os pais de Guille preocupam-se com a sinceridade do filho e diante da situação, já previam o que poderia acontecer; (iv) Guille, assim como qualquer criança, fala com facilidade que pensa, uma vez que ainda está aprendendo a ponderar consequências; (v) O conhecimento de Guille sobre a cegonha, atrelado a barrigas grandes, é originário da lenda popular utilizada para ludibriar crianças a respeiro do surgimento e concepção dos bebês; (vi) Na maioria das vezes, os homens que são barrigudos não gostam de serem chamados assim; (vii) Quando os filhos promovem situações embaraçosas ou ofensivas, os pais, comumente, costumam tomar atitudes. A atitude tomada pelos pais de Guille foi a de ir embora. Essa seleção de hipóteses, ou premissas contextuais, possibilita que os processos inferenciais atinjam o nível pragmático, pois através delas, traz-se á tona pensamentos, recordações e outras conclusões de inferências já realizadas, que compõe o conhecimento de mundo do leitor. Assim, as derivações dos processos cognitivos acessados pela entrada lexical, lógica e enciclopédica, permite que seja atingido o nível de explicatura, em que a forma lógica é desenvolvida por meio dos 106 processos inferenciais de natureza pragmática, alcançando raciocínios lógico-dedutivos que fazem com que o leitor dissolva o conteúdo da tira a nível explícito. Dessa maneira, pode-se afirmar que a explicatura é uma espécie de combinação entre os traços conceituais definidos na memória enciclopédica, linguisticamente decodificados e contextualmente inferidos. Enriquecidas essas bases contextuais, a mente opera de modo a derivá-las em busca de informações novas. Conduzidos por estes processos, pode-se chegar as seguintes suposições contextuais: S1 Guille é comunicativo e desinibido, pois não sente dificuldades para falar com estranhos; S2 Guille é curioso, pois o fato de mencionar sua crença na lenda popular da cegonha, é um indicativo de que já perguntou aos pais, como são concebidos os bebês; S3 Os pais de Guille e Mafalda tem dificuldades de explicar tal assunto aos filhos; S4 Os pais falaram tão pouco sobre o assunto à Guille que deixaram até de explicar que somente as mulheres ficam grávidas. Isso fez com que o garoto atribuísse gravidez à todos aqueles que possuem barriga sobressalente. S5 O comentário de Guille envergonha o desconhecido, e a sua reação de vergonha, nos leva a crer que ele mesmo se imputa o estereótipo do “barrigudinho”. Implicatura: Os homens que são barrigudos (e mal resolvidos), não gostam de salientar que possuem essa característica. Do mesmo modo com que outras pessoas não gostam de serem atribuídas à algum outro estereótipo qualquer. 107 A partir desses encadeamentos, nota-se que a implicatura é uma premissa implicada, que oriunda da combinação do conjunto das premissas dedutivas, gera uma conclusão implicada. Desse modo, quando se alcança a conclusão, atinge-se a implicatura, finalizando a dissolução do conteúdo explícito e implicito comunicado pelo autor. A este nível, obtém-se a forma lógica proposicional, em que agora, pode-se atribuir um valor de verdade. Portanto, é então verdade que os homens que são barrigudos não gostam de serem salientados por essa característica? De acordo com Santos (2009), nesse momento mobiliza-se novamente (e cognitivamente) o módulo psicológico – que também participou na formulação das suposições contextuais – de forma que o leitor, para responder a essa pergunta, se dispõe a compatibilizar suas inferências dedutivas segundo suas crenças, convenções e valores sociais. Por isso é tão importante destacar que o humor é cultural, pois dados interesses, pensamentos, crenças, convicções, juízos de valor, e inclusive, estereótipos, são constituídos e inevitavelmente julgados de acordo com os valores culturais do indivíduo. Outro fator que merece destaque, é que segundo Sperber e Wilson (2001), a interpretação do implicito não ocorre de maneira ordenada: forma lógica/explicatura/implicatura, mas sim, mediante a um ajuste paralelo mútuo, por ordem de acessibilidade mental. Assim, quanto mais acessível o contexto cognitivo da informação, e quanto menor a complexidade linguística, menor será o esforço de processamento, e maior será a compreensão. 108 Os inputs também podem ser entendidos com essa mesma perspectiva. Quando os níveis de premissas, suposições e implicaturas são atingidos, o input é considerado relevante, pois a relevância do indivíduo é medida quanto ao poder que ele tem de aumentar o conhecimento sobre aquilo que lhe interessa, ou seja, quando seu processamento, no contexto prévio de supostos da mente, produz um efeito cognitivo. Neste aspecto deve-se considerar que, ao entrarmos em conexão com determinado input, podemos enfraquecer, ou até mesmo contrariar, as suposições já existentes armazenadas na memória enciclopédica. Por isso, um input é relevante se, e somente se, o efeito cognitivo é positivo. Dessa maneira, quanto maiores os efeitos cognitivos ao processar um input, maior será a relevância, e quanto maior o esforço de processamento, menor será a relevância para o indivíduo. A partir destes desenvolvimentos, pode-se concluir, de maneira geral, que os processos inferenciais mentais operam de modo produtivo e econômico, buscando alcançar o máximo de efeitos cognitivos, com o mínimo de esforço possível. Se esse raciocínio for seguido, é plausível estabelecer que se na leitura da tira, o leitor falhar quanto o contexto, ou aos processos dedutivos inferenciais constituintes das premissas, suposições e implicatura, não se atingirá o nível, ou efeito, do humor intencionado pelo autor, e logo, a expectativa de relevância não será cumprida, e o contrato humorístico será rompido. Para abordar a especificidade desse tipo de humor em confronto com a sua tradução, analisemos a tira na sua versão em língua portuguesa: 109 Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 277. No início da análise interpretativo-humorística da tira em sua língua original, contemplamos que as relações recíprocas de interesse entre autor e leitor compõem o Princípio Comunicativo de Relevância. Ao observar os enunciados acima, nota-se que a intenção do tradutor foi a de tornar o estímulo de sua tradução o mais fácil possivel para que seja inferido, ao ponto de proporcionar ao leitor evidências que o possibilitem atingir seu objetivo. Tendo o postulado da TR como base, pode-se identificar a existência de outra dimensão interpretativa, em relação a criação de expectativas de relevância ótima, que é a do tradutor em relação ao leitor. Portanto, é possível estabelecer, que ao passo que o autor do TF tem expectativas de relevância ótima em relação ao leitor TF, o tradutor, também na condição de leitor, precisa corresponder a essas expectativas, ficando satisfeito com a interpretação e compreensão que fez do TF, e além disso, captá-las a ponto de transpo-las equivalentemente em termos de contexto e efeito para o leitor do TA. Dessa maneira, na dimensão da tradução, não existem somente as expectativas de relevância ótima entre autor e leitor do TF. Existe também, e inclusive, expectativas 110 de relevância ótima entre o tradutor do TF em relação ao leitor do TA. Por isso, o Princípio Comunicativo de Relevância em tradução atua, simultâneamente, em duas esferas: a do autor em relação ao leitor de sua mesma língua, ou / leitor que domina a sua língua / e leitor que é tradutor; e a segunda, que é a do tradutor do texto fonte (ou original) em relação ao leitor do texto alvo (ou texto traduzido). Portanto, é inegável que o trabalho do tradutor atinge, em relação ao Princípio Comunicativo e expectativas de relevância ótima, um nível ainda mais complexo de interpretação. Outro fator de suma importância para o cumprimento do Princípio Comunicativo de Relevância em tradução, é a atuação do contexto artificial. Como visto anteriormente, Gutt (apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006) postula que o tradutor em contato com TF, não infere a partir de um ambiente cognitivo que seja, de forma mútua, manifesto ao seu. Por isso, a possível falta de congruência com o ambiente cognitivo compartilhado com o público do TF, fará, naturalmente, com que o tradutor tenha que desprender esforços extras para suprir a demanda. Dessa maneira, tendo-se em vista a tira em seu formato original e traduzido, faz parte do processo de tradução elencar as seguintes informações: (1) Ir a praia é também uma realidade comum ao público do TA? (2) A lenda da cegonha também pertence a cultura dessas pessoas? (3) O estereótipo do “Barrigudinho” também veicula nas interações piadísticas dos brasileiros? Essas são perguntas fundamentais, cujo tradutor precisa buscar respostas em seu contexto cognitivo. Se não há disponível em sua memória encliclopédica informações que sustentem a aplicação desses elementos, há que se recorrer a outras fontes de pesquisa. O fato é que, se for dado continuidade a este raciocínio, pode-se 111 perceber que esse enriquecimento pragmático (assim como os inputs, explicaturas e implicaturas) também é avaliado, ou seja, ao promovermos em nosso ambiente cognitivo tais perguntas, quando buscamos em nosso contexto cognitivo informações para gerarmos respostas, podemos encontrar suposições que sustentem, enfraqueçam, ou entrem em contradição na formulação dessas respostas. Portanto, o efeito cognitivo do tradutor é originário também de uma avaliação do processo de enriquecimento pragmático. Em outras palavras, enquando a relação do leitor convencional em relação às suas informações do contexto cognitivo é de ter, ou não, informações que sustentem a decodificação dos inputs a nível pragmático, o trabalho mental do tradutor envolve avaliar e confrontar esses elementos em cada cultura, para então continuar seu processo de tradução. A partir dessas observações, pode-se prever que os processos inferenciais do tradutor operam de modo mais produtivo do que econômico, em busca de alcançar o máximo de efeitos cognitivos em relação as possibilidades de tradução, e que esses quando manifestados no TA, promovam o mínimo de esforço interpretativo ao leitor. Para facilitar a compreensão de todo esse envolvimento entre inputs, explicaturas e implicaturas, com a necessidade de semelhança destes, e entre estes, no produto do TA, Gutt (apud ALVES & CARVALHO NETO, 2006, p. 16) propõe a substituição do conceito de enunciado pelo de unidade de tradução (UT), uma vez que o ato tradutório é, para ele, um processo de comunicação interlinguistica, cujo fundamento é a semelhança interpretativa entre enunciados convergentes nas duas línguas de tradução. 112 A partir desses preceitos e voltando a análise do conteúdo da tradução da tira, percebe-se que a UT que demanda maior atenção na comparação é “¿Tigueña nenito? ¿Ti?” traduzida para “ti ganha nenê, ti?”. Neste momento, aciona-se a resposta possível para a pergunta anterior: a lenda da cegonha pertence ou não a cultura dos brasileiros? Sim. Pertence. Para embasar essa afirmação, encontra-se, em outro momento da obra, o seguinte quadrinho: Fonte: Quino. Toda Mafalda, 2009 p. 324. É muito possível que a tradução das duas tiras tenha sido realizada por tradutores diferentes. O que é possível perceber com isso, é que o tradutor responsável por estas UTs, acredita que a lenda da cegonha ainda pode ser inferida pela audiência do contexto atual. Essa informação leva a crer que o tradutor da tira da UT “ti ganha nenê, ti?”, tenha, através dos processos cognitivos apresentados, chegado a conclusão que o efeito contextual de sua tradução suprisse melhor, ou com maior ênfase, o recurso da incongruência. Ou ainda que esta substituição seria um equivalente linguistico-cognitivo que sustentasse, explicita e implicitamente, a presunção de relevância ótima transmitida na UT do texto fonte, objetivando entretenimento humorístico equivalente. 113 Como apresentaram os teóricos da tradução, como Arrojo (1992), Brezolin (1997) e outros contemplados no capítulo um, cada tradutor possui seus referentes de tradução, uma vez que na condição de indivíduo, sua tradução é produto da significação de sua própria leitura. Portanto, não há somente uma possibilidade de tradução, e além disso, é dever do tradutor escolher estratégias – ou inputs semelhantes – que confiram ao texto o efeito desejado. Assim como “ti ganha nenê, ti?” pode ser compreendido pelo leitor, outras sugestões como “A xegonha tá xegando, né?”, “Qui tem nenê, né?”, ou ainda considerando que o personagem está tomando sol: “Caloi po nenê, né?”, “Po nenê ficá quentinhu, né?” seriam plausíveis, aplicáveis. O que importa neste caso, é que o leitor, a partir de sua implicatura, possa estabelecer um valor de verdade e que tal “força de verdade” seja compatível a influência do Módulo Psicológico - previsto por Santos (2009) - de forma que a leitura seja capaz de gerar inferências que possam ser avaliadas segundo as crenças, convenções, e valores sociais do indivíduo. Nesse interím, outro fator que se percebe, é que assim como o Princípio de Relevância constitui uma outra dimensão interpretativa em relação ao tradutor, o MP também, pois autor, leitor do TF, tradutor e leitor do TA, sofrem interferências à este nível. Assim, o tradutor expressa eficácia em sua tradução quando consegue estabelecer semelhança ao nível contextual social, cognitivo e psicológico dos indivíduos. E a chave para isso, é ser conhecedor dos elementos culturais de sua audiência. Por fim, cabe destacar que o comentário inadequado de Guille é ainda o responsável pelo humor da tira. Nessa discrepância entre o conceito de criança inocente, em relação ao domínio (ou desejo de domínio) de um assunto adulto, é que a 114 origem da gravidez, é que reside a incongruência, afinal não se espera, no primeiro na leitura do primeiro ato, que Guille profira tal comentário, e que seu alvo, obtenha-se de um juízo de valor sobre si mesmo, envergonhando-se. Assim, as regras dedutivoinferenciais (de autor para leitor e de tradutor para leitor) que vão conduzir ao significado próximo daquele que o autor, e em seguida tradutor, teve a intenção de comunicar, se convencionam e se ajustam, cognitiva e psicológicamente, aos conceitos e às expectativas que o leitor de ambas as audiências veio construindo. Por sua vez, a descoberta do inesperado reflete no alívio de esforços que a mente faz para converter tal discordância em entretenimento humorístico, que é externado através do maior dos objetivos do autor e do tradutor: o riso. 115 CONSIDERAÇÕES FINAIS Para se chegar a uma resposta possível, ou que desse conta de responder “como” os mecanismos cognitivos do tradutor processam a tradução de enunciados humorísticos, foi necessário primeiramente compreender que o processo tradutório não é um fenômeno tão simples quanto se pensa, já que as línguas estão em constante transformação e mantêm uma infinidade de significados a serem analisados dentro dos mais diversos contextos. A tradução é uma das únicas (senão a única) atividade da linguagem que atua na diferença entre as línguas, culturas, momentos históricos e outras particularidades intrínsecas a um determinado público. Por isso, o ato de traduzir é um processo de recriação de um texto que, traduzido, é reinserido em outro contexto histórico, social e interpretativo. Além disso, autor, tradutor e leitor são indivíduos, que possuem sua cognição, crenças, convicções, valores sociais e culturais próprios, que somados, não somente influenciam como regem os processos interpretativos. Para englobar todos esses fatores, vimos com as teorias de Gutt (1991/2000), que para realizar uma tradução eficaz, o tradutor precisa disponibilizar-se a interpretar o contexto de produção do texto de partida, verificar a acessibilidade da interpretação envolvida, seus efeitos contextuais, e principalmente, prover condições (via semelhança interpretativa), para que seu público-alvo alcance uma interpretação análoga, e de igual maneira acessível, àquela imaginada (e planejada) para o texto de partida. Neste momento, tal proposta cognitiva aplicada à tradução, abre precedentes para que se investigue também, e inclusive, os processos de interpretação. Ainda mais 116 quando relacionada a textos humorísticos, que por serem irremediavelmente calcados no fator cultural, operam de modo particular. Os processos cognitivos de interpretação apresentados, mostram que interpretar uma tira em quadrinhos - que é constituída além de inputs linguísticos, também por inputs visuais – torna-se uma atividade complexa à medida que precisa ser dissolvida em termos de crítica e incongruência. Nota-se, portanto, que o princípio de relevância consiste no fato de que a mente opera de forma produtiva e econômica, a fim de alcançar o máximo de efeitos cognitivos com o mínimo de esforço possível. Assim, quando tradutor e seu leitor dissolvem as hipóteses interpretativas (desambiguações, atribuições inferenciais, suposições contextuais, implicaturas, etc.), alcança-se o objetivo da comunicação, que no texto alvo, deve ser transposto cumprindo-se o nível de efeito equivalente. Nesse sentido, pode-se dizer que na tradução humorística, o objetivo principal é que a satisfação interpretativa do leitor do TF seja semelhante no TA, ou seja, promova o riso. Assim, o desafio cognitivo do tradutor é encontrar equivalentes linguisticocognitivos que sustentem, explicita e implicitamente, a presunção de relevância ótima transmitida no enunciado original (ou TF), de forma que possua efeito contextual semelhante. Do mesmo modo, é possivel estabelecer que as peculiaridades da tradução do texto humorístico, não são somente relacionadas ao fato do tradutor ter que transmitir informações análogas, que é o que geralmente acontece no processo tradutório dos textos convencionais, mas também (e sobretudo), que a mensagem da sua tradução 117 provoque, no leitor do TA, entretenimento humorístico equivalente em termos de contexto e efeito, que pode ser conferido, mediante a prova do riso. Na perspectiva dessas considerações, esperamos alcançado no leitor relevância com essa pesquisa e que de aqui em diante, novas propostas sobre o tema possam ser discutidas e desenvolvidas, já que os estudos são recentes e são variadas as possibilidades de investigação. 118 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALVES, Fábio; CARVALHO NETO, Geraldo. O princípio de relevância e a tradução de contextos artificiais: aspectos intuitivos, analíticos e reflexivos no desempenho de tradutores novatos e experientes. 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