OPEN ACCESS
CIVITAS
Revista de Ciências Sociais
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Civitas 20 (2): 248-258, maio-ago. 2020
e-ISSN: 1984-7289 ISSN-L: 1519-6089
http://dx.doi.org/10.15448/1984-7289.2020.2.31448
ARTIGOS/ARTICLES
Na captura de uma agência astuciosa: lições de uma
etnografia com crianças sobre usos da noção de bullying
In capturing of a crafty agency: lessons from an ethnography with children about uses
of the notion of bullying
En captura de una agencia astut: lecciones de una etnografía con niños sobre los usos
de la noción de bullying
Juliane Bazzo1
orcid.org/0000-0001-6196-3482
bazzojuliane@gmail.com
Recebido em: 19 jul. 2018.
Aprovado em: 2 out. 2019.
Publicado em: 4 ago. 2020.
Resumo: Este artigo aborda interpelações teóricas, metodológicas e éticas le-
vantadas ao se abraçar crianças enquanto sujeitos de pesquisa em uma etnografia
da agência da noção de bullying na contemporaneidade brasileira. Para situar
esses desafios em um contexto empírico, a exposição delimita como estudo
de caso as conexões que as crianças hoje estabelecem entre o agenciamento
desse conceito e a atribuição de apelidos pejorativos entre pares escolares.
Palavras-chave: Bullying. Agência. Infância. Educação. Etnografia.
Abstract: This paper deals with theoretical, methodological and ethical questions
raised when embracing children as subjects of research in an ethnography of the
agency of the bullying concept in Brazilian contemporaneity. In order to situate
these challenges in an empirical context, the paper delineates as a case study
the connections that children today make between the agency of this concept
and the attribution of pejorative nicknames among school peers.
Keywords: Bullying. Agency. Education. Childhood. Ethnography.
Resumen: Este artículo aborda interpelaciones teóricas, metodológicas y éticas
planteadas al abrazarse a niños como sujetos de investigación en una etnografía
de la agencia de la noción de bullying en la contemporaneidad brasileña. Para
situar estos desafíos en un contexto empírico, la exposición delimita como estudio
de caso las conexiones que los niños hoy establecen entre el agenciamiento
de este concepto y la atribución de apodos peyorativos entre pares escolares.
Palabras clave: Bullying. Agencia. Infancia. Educación. Etnografía.
Introdução
Bullying designa em língua inglesa o ato decorrente do substantivo
bully, que significa algo próximo a “brigão” ou “valentão” em português.
De autoria atribuída ao sueco Dan Olweus (2006), professor e pesquisador
em psicologia na Universidade de Bergen (Noruega), o bullying é um
construto científico da década de 1970, que se alastrou mundialmente
desde então, na função de nomear intimidações repetitivas entre pares
escolares. No Brasil, o conceito de Olweus (2006) experimenta uma
vultosa popularização somente ao longo dos anos 2000.
Artigo está licenciado sob forma de uma licença
Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.
1
Minha pesquisa de doutoramento em Antropologia Social buscou
destrinchar, sob uma perspectiva etnográfica, as “agências” (Ortner 2007)
Universidade Federal do Paraná (UFPR), Curitiba, PR, Brasil.
Juliane Bazzo
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que a noção de bullying tem recebido no cotidiano
da “iluminação recíproca” propiciada pela inser-
brasileiro, especialmente desde o estado do Rio
ção simultânea de finalidade comum nesses
Grande do Sul (Bazzo 2018). Nesse quadro, o estu-
ambientes. Nesse sentido, identifiquei entre as
do atentou para a atuação dos “empreendedores
duas escolas mais traços de similaridade que
morais” (Becker 2008): indivíduos, instituições,
de diferença nos agenciamentos da noção de
iniciativas e documentos responsáveis hoje por
bullying, sintonizados, por sua vez, com os dados
agenciar esse conceito em uma variedade de
coletados nos demais campos investigados.
contextos e, assim, alavancar uma série de filosofias, políticas e práticas, de fins diversificados.
Em tal panorama, as investidas de campo –
efetuadas entre 2014 e 2017 – incluíram pesquisa
em órgãos públicos e redes científicas, principalmente na capital Porto Alegre (RS), como também
a análise de conteúdos midiáticos, de produtos de
mercado e de documentos de referência, tanto
nacionais quanto internacionais, em que o bullying
aparece como mote. Não obstante, uma parte
crucial dessa imersão ocorreu em duas escolas,
uma pública e outra privada, situadas na região
de Gramado e Canela, municípios de pequeno
porte da Serra Gaúcha, onde residi por três anos.
Este artigo coloca em relevo justamente a
empreitada de campo nos ambientes escolares, uma vez que aborda interpelações teóricas,
metodológicas e éticas levantadas ao se abraçar
crianças enquanto sujeitos de pesquisa nesses
universos. Para situar empiricamente tais desafios, a exposição delimita como estudo de caso a
hoje corriqueira agência da noção de bullying por
Observações na escola pública
Um dos espaços escolares no qual me introduzi
como pesquisadora é uma instituição pública estadual, à época do estudo com cerca de 70 educadores e um mil alunos de camadas socioeconômicas
médias, distribuídos entre o Ensino Fundamental,
o Ensino Médio e a Educação de Jovens e Adultos.
As observações nessa entidade se articularam pela
imersão no cotidiano de três turmas discentes.
Considerada a definição do Estatuto da Criança
e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990) de que são
crianças os indivíduos de até 12 anos de idade incompletos, um dos grupos sob observação reunia
infantes stricto sensu e outro abrangia sujeitos que
tinham acabado de deixar essa condição. Dessa forma, entendeu-se oportuno abarcar ambos na análise
aqui desenvolvida.2 Nesse contexto, inseri-me em
uma turma de segundo ano e em outra de sétimo
ano do Ensino Fundamental, as quais contavam com
alunos de, em média, 7 e 12 anos, respectivamente.
Ao longo de um ano letivo completo, permaneci em
crianças para rechaçar a costumeira atribuição
média dois meses e meio em cada uma delas, com
de apelidos pejorativos entre pares nos espaços
um mínimo de duas visitas semanais.
educacionais. Tal recorte deriva de minha atenção
etnográfica às “práticas culturais” infanto-juvenis
cristalizadas atualmente nas chamadas “zoeiras”
nas escolas (Pereira 2010). Com esse termo,
crianças e jovens estudantes de diferentes regiões brasileiras têm definido suas relações de
“socialidade jocosa”, as quais contemplam, mas
não se restringem, a “gozações” de feitio discriminatório classificadas como bullying.
A exemplo da etnografia de Noel (2009) sobre
conflitualidades cotidianas no cenário escolar
argentino, meu estudo não se propôs a uma
“comparação sistemática” entre as instituições
de ensino pesquisadas. A análise serviu-se, sim,
2
A inserção nas turmas ocorreu sob chancela da
equipe diretiva e dos respectivos docentes que,
nas primeiras visitas, explicaram aos estudantes
o propósito de minha presença, com adaptações
para as faixas de idade envolvidas. No transcorrer
dos encontros, fui procurando ocupar lugares diferentes no interior das salas de aula, com o fim de
variar ângulos de observação. Dia após dia, meu
trabalho quase sempre iniciou pelo desenho de
um espelho de classe, para exercitar o reconhecimento dos estudantes pelo nome, identificar os
locais geralmente ocupados por eles, bem como
mapear as socialidades tecidas nesse entorno.
O terceiro grupo observado englobava jovens, já estudantes de Ensino Médio.
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Com a expansão da convivência, além de re-
desenho, registrei em que tipos de circunstâncias
flexões escritas em diários de campo, desenvolvi
o construto do bullying surgia; em que medida
sociogramas para pensar acerca dos relaciona-
minha presença como pesquisadora do tema
mentos entre os alunos. Nessas figuras, busquei
o suscitava; assim como situações nas quais,
delimitar os grupos internos de cada turma e os
embora favoráveis ao agenciamento, o conceito
vínculos de dominância, subalternidade, oposição
simplesmente não dava o ar da graça. A Figura 1
e solidariedade entre eles. Assim, entre escrita e
exemplifica um desses sociogramas.
Figura 1 – Sociograma de um grupo discente3
Fonte: Elaborado pela autora.
Certas peculiaridades a cercar meu trabalho de
hoje condenáveis no ambiente escolar.
observação mostraram-se similares àquelas de ou-
No começo das observações, a despeito do zelo
tras etnografias realizadas com crianças e adoles-
em esclarecer meu papel não fiscalizador, os estu-
centes, em escolas ou não (Lewis 2015; Cohn 2013;
dantes evidenciaram desconfiança das notas que
Horn 2013). À semelhança dessas investigações,
fazia em minha caderneta. Os menores me pergun-
embora apresentada às turmas como pesquisa-
tavam se registrava os nomes dos que conversavam
dora, passei muito brevemente a ser enquadrada
ou bagunçavam durante as atividades letivas. Esse
como docente pelos estudantes. Diante disso,
clima se desanuviou, entretanto, à medida que lhes
especialmente na aproximação com o alunado,
dei provas de que não estava ali para monitorá-los.
esforcei-me em demonstrar que minha posição
Entre os maiores, um momento propício para tanto
não era de autoridade ou de avaliação, elementos
se configurava quando, na ausência transitória de
esses conectados à docência. Tal investimento, em
um professor, pequenas regras eram infringidas e,
meu caso, assumia uma feição singular, dado meu
perante isso, eu mantinha discrição.
tema de estudo remeter-se a comportamentos
3
Os nomes expostos no desenho são todos fictícios.
Em linha com as etnografias mencionadas
Juliane Bazzo
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acima, minhas observações entre os infantes, par-
vernamental porto-alegrense Mahatma – Paz nas
ticipantes ou não, procuraram considerar outros
Escolas que, à época, promovia gratuitamente a
recursos expressivos para além da fala. Dessa
prática da meditação em cerca de 300 instituições
maneira, brincadeiras e jogos; desenhos, danças
de ensino pelo Brasil.4 Minha iniciativa em procurar
e encenações; risos e choros; posturas de isola-
essa entidade, cuja atuação incluía a Serra Gaúcha,
mento e interatividade, todos marcantes na rotina
pautou-se pela possibilidade de identificar, graças
infantil, receberam tanta atenção quanto palavras
à amplitude e singularidade de seu trabalho, um
ditas. Certamente, tais elementos se evidenciam
ambiente educativo capaz de gerar contrastes ana-
entre jovens, mas em meio às crianças alcançam
líticos factíveis com a escola pública pesquisada.
uma pungência peculiar, propícia ao investigador,
Nesse sentido, o colégio que me foi indicado
segundo Horn (2013, 5), na tarefa de traçar “[...]
pela organização, além de privado, inseria a
estratégias para [...] compreender as culturas in-
meditação em um conjunto de ações escola-
fantis e o seu modo de ser e de estar no mundo”.
res a reverberar filosofias contemporâneas tais
Para essa autora, cônscio desses códigos, o
como a “cultura de paz” e o “aprendizado socio-
etnógrafo pode, antes de tudo, aproximar-se das
emocional”. Dentre outros objetivos, iniciativas
crianças de um modo por elas aprovado. Esse
inspiradas nessa direção vêm almejando coibir
consentimento, não pautado pela assinatura
comportamentos entendidos como bullying, sob
de documentos, ocorre pela “convivência ética”
adesões e restrições (para um debate crítico, ver
(Horn 2013, 5), que leva em conta linguagens
Smolka et al. 2015). De qualquer modo, trata-se
singulares e, assim, respeita termos relacionais
de uma proposta que não existia, sistematizada,
diferenciados daqueles existentes entre adultos.
na instituição estatal sob estudo.
Tal conjuntura esclarece por que a entrevista
Dessa maneira, estabeleceu-se na escola par-
estruturada individual pode ser improdutiva na
ticular um grupo de controle produtivo, mas que
pesquisa antropológica com crianças. A atmosfera
exigiu uma estratégia de pesquisa diferenciada da
demandada por essa técnica, com hora e lugar
empregada no colégio público. Isso deveu-se tanto
marcado, bem como exigência de sentar-se
às minhas possibilidades temporais de dividir-me
por certo tempo, acaba por obstruir as formas
para a investigação simultânea de duas realidades
expressivas infantis, cuja preciosidade é melhor
educativas, quanto ao espaço de inserção ofertado
captada por observações e conversas informais.
pela instituição privada. Ajustada a tal conjuntura,
ao longo de um semestre, realizei quatro grupos
Grupos focais na escola privada
Ao espaço público de ensino, aliou-se minha
inserção em um colégio particular, integrante de
um conglomerado educativo de atuação nacional.
A unidade em que o estudo aconteceu, ao longo de
um semestre, reunia naquele momento em torno de
50 educadores e 400 alunos, alocados entre Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio e
Profissionalizante. Os estudantes também provinham
de classes médias, porém, ocupavam com mais
recorrência estratos superiores desse segmento em
relação aos discentes da escola estatal investigada.
A pesquisa no universo particular de ensino
viabilizou-se por meio da organização não go-
focais com alunos de duas turmas de 5.º ano do
Ensino Fundamental, ambas dentre as engajadas
na prática da meditação há mais tempo na escola.
Em etnografias do campo da educação, o grupo focal tem aparição recorrente como técnica de
pesquisa – alguns usos recentes estão em Lewis
(2015), bem como em Maggie e Prado (2014). No
caso específico de sua realização com crianças,
o grupo focal se revela vantajoso porque os
participantes, para além de conversarem com o
investigador, dialogam, sobretudo, entre si e em
seus próprios termos, quando confortáveis. Em
busca de tal fluidez, segui o conselho de Lewis
(2015) sobre deixar claro aos estudantes a não
Essa instituição interrompeu suas atividades no final do ano de 2017, quando eu também finalizava meu doutoramento. Para saber
mais, recomendo buscar na rede social Facebook por Mahatma Meditação.
4
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implicação avaliativa da atividade, bem como
de uma mesma turma, na faixa dos 10 anos de
a premissa de anonimato de tudo que ali seria
idade, individualmente engajados ou não na
dito. Uma vez criado esse ambiente, essa autora
prática meditativa, visto a adesão ser voluntária.
afirma que a “[...] técnica [...] abre uma ampla pos-
As questões postas a eles foram adaptadas a
sibilidade de negociações de sentido em que o
partir das exploradas em entrevistas estruturadas
indivíduo e sua carga cultural são constantemente
individuais, de respostas abertas, efetuadas com
interpelados pelo grupo” (Lewis 2015, 259).
jovens e adultos na escola pública e na privada. O
Cada grupo focal durou em média uma hora,
quadro 1 reúne exemplos dessas interpelações.
com o envolvimento de quatro participantes
Quadro 1 – Questões-chave de pesquisa
Fonte: Elaborado pela autora.
Como as intervenções na entidade privada
Em fins de 2014, esse grupo de trabalho apre-
tiveram caráter mais circunscrito, optei pelas faci-
sentou uma minuta de resolução considerada
lidades da gravação sonora para os grupos focais,
adequada aos seus fins que, a princípio, foi intei-
nos quais o registro escrito fica dificultado pela
ramente rejeitada pela Conep. Em virtude disso,
interlocução simultânea dos participantes. Na insti-
o documento acabou levado em 2015 à consulta
tuição estatal, ao contrário, o gravador mostrava-se
pública e, graças a um volume expressivo de
um impeditivo à fluência do trabalho de campo de
manifestações, terminou aprovado em sua quase
maior prazo, não só por inibir a espontaneidade
totalidade no ano seguinte, como Resolução n.
dos indivíduos no cotidiano, mas também porque
510/2016 do Conselho Nacional de Saúde (CNS).
a mim me parecia mais ágil e efetivo fazer registros
Porém, antes que fosse possível conferir opera-
escritos imediatos em diários de campo daquilo
cionalidade a tal instrumento, a Conep desfez o
que, dia sim, dia não, vivenciava na escola.
grupo de trabalho encabeçado pelo FCHSSA.
Até a finalização de meu estudo, tal controvérsia
Da atenção ética
No transcorrer de meu doutoramento, esteve em
ação um grupo de trabalho, capitaneado a partir
de 2013 pelo Fórum das Associações de Ciências
Humanas e Sociais (FCHSSA), voltado à confecção
de uma resolução sobre ética específica aos estudos dessas áreas do conhecimento. Esse esforço
continuava em aberto, com as associações integrantes do fórum ainda militantes no sentido de
reocupar seu espaço retirado (Sarti et al. 2017).
Solidária a essa disputa, optei por não submeter
minha proposta de pesquisa à apreciação de comitê
universitário de ética. Obviamente, essa escolha teve
um facilitador: nenhuma das instituições nas quais
decorreu da discordância quanto à hegemonia de
ingressei para a efetuação do trabalho de campo
critérios biomédicos, aplicados a quaisquer investi-
exigiu-me tal submissão. A decisão por esse cami-
gações com seres humanos, por parte da Comissão
Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), subordinada
ao Ministério da Saúde (Sarti et al. 2017).
nho, entretanto, não implicou, em hipótese alguma,
qualquer desatenção à ética; muito ao contrário,
o estudo cercou-se de um conjunto de cuidados.
Juliane Bazzo
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O primeiro deles diz respeito à investigação
nas instituições de ensino com crianças e ado-
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manutenção de significado, que é o realmente
interessante ao exame antropológico.
lescentes em situação de menoridade legal. Em
ambas as escolas nas quais ingressei, prestaram-se
esclarecimentos sobre minha atividade enquanto
pesquisadora a pais e responsáveis, seguidos pela
assinatura de termos de consentimento livre e
esclarecido. Tal procedimento coadunou-se, em
primeira instância, com medidas de proteção e de
tutela estabelecidas, respectivamente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei n. 8.069/1990)
e pelo Código Civil Brasileiro (Lei n. 10.406/2002).
Seja no universo privado de ensino, seja no
público, há no estudo o resguardo do anonimato, tanto das escolas, quanto dos interlocutores
que nelas dialogaram comigo, em situação de
menoridade legal ou não. Entendeu-se que tal
postura seria a mais apropriada para preservar a
identidade, a privacidade e a confiança que todos
eles depositaram em mim, ao me confidenciarem episódios de vida muitas vezes dolorosos e
constrangedores, não apenas a si próprios, mas
a terceiros. Trata-se de um cuidado imprescindível em espaços institucionais em que não raro
o relato de um sujeito implica outros, ainda mais
em cidades pequenas, onde há intensivo grau de
conhecimento entre pessoas.
Em virtude disso, ao problematizar situações
que ouvi ou presenciei, além de empregar nomes
fictícios, precisei lançar mão do recurso de modificação de certas circunstâncias sem, contudo,
impactar o campo semântico coberto pelos fatos,
algo fundamental à consistência reflexiva. Dou
um exemplo por excelência: as dinâmicas de
agenciamento do bullying comumente envolvem,
como já dito, a atribuição de apelidos pejorativos que, se revelados, fatalmente permitiriam
a identificação de certos indivíduos por outros.
Ao mesmo tempo, seria danoso analiticamente
ocultar tais alcunhas, posto parte intrínseca dos
processos em estudo. O que importa, no entanto,
não reside nos cognomes em si, mas nos significados que carregam. Assim, a despeito de sua
substituição por outros apelidos, priorizou-se a
5
Na captura de uma agência astuciosa
Para situar em um contexto empírico as demandas teóricas, metodológicas e éticas de
minha investigação antropológica com crianças,
quero compartilhar agora a história de Marina.
Em meio aos seus colegas de turma em fase
de alfabetização, Marina se diferenciava: pela
vaidade, desenvoltura e liderança. Ia à escola
sempre adornada, com maquiagem e outros
adereços. Mesmo ainda sem saber contar direito,
comercializava docinhos que ela mesma fabricava. Era estudante destacada, fato que fazia a
professora lhe convocar constantemente para
auxiliar outras crianças. Quando a docente não
estava por perto, a maioria dos colegas reconhecia em Marina alguém capaz de ajudá-los em
necessidades individuais ou de restabelecer a
ordem em conflitos coletivos.
Fartamente comunicativa, Marina não demorou
a se entrosar comigo. Conversava sobre assuntos
dos mais diversos, dentre eles, minha própria
pesquisa, sobre a qual demonstrava curiosidade.
Certo dia, perguntou-me: “Profe, como a gente tá
de bullying?”.5 Fui pega de surpresa, ao que ela
reiterou: “Disso que tu tá estudando, de bullying,
na turma”. Devolvi, então, o questionamento: “Você
acha que tem bullying aqui?”. De imediato, relatou-me que, no ano anterior, possuía um colega,
já egresso, que lhe dizia cotidianamente: “Marina,
sua baleia!”. E completou sobre o tempo presente:
“Na nossa turma, acho que não tem bullying. Só
um colega me chamou de gorda uma vez”.
No período em que acompanhei Marina na
escola, estava em crise o relacionamento dela
com sua melhor amiga, Valéria. Naquele ano,
essa colega havia se aproximado de uma outra –
Fabiana – e ambas vinham rejeitando a presença
de Marina. Em um certo recreio, observei a tentativa de Marina em participar de uma brincadeira
capitaneada pelas duas meninas, junto de outras
garotas. A antes melhor amiga de Marina vetou
“Profe”, diminutivo de professora, configura um vocativo empregado por alunos e docentes no cotidiano escolar brasileiro.
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sua integração, dizendo-lhe: “Minha mãe disse
eles [colegas] aprendam tem que deixar irem sozi-
pra eu não brincar com você porque tu és muito
nhos”. Mas, naquele dia, foi um dos garotos, Bruno,
chata”. Marina virou as costas e, com o semblante
quem se embrabeceu diante do protagonismo de
profundamente entristecido, sentou-se ao meu
Marina. Colérico, o menino exclamou:
lado, em um dos bancos do pátio.
Confidenciou-me não ser a primeira vez que
tais advertências lhe eram dirigidas: “Ela era minha melhor amiga e agora é inimiga. Eu não sei
por quê. Outro dia, ela ainda falou ‘tu é gorda,
tu é negra e minha mãe disse que não é pra eu
brincar com você’”. Marina, de fato, detinha for-
– Sua gorducha!
– Tu sabias que isso é bullying, Bruno? – falou
firmemente Marina, com as mãos na cintura,
após lançar um rápido olhar para mim.
– Parece a Dona Redonda, vai estourar! – prosseguiu sem intimidação o garoto, que conquistou expressivas risadas dos colegas em volta.
ma corporal ligeiramente desviante de padrões
hoje impostos de magreza. Mas, a observação
Para ultrajar Marina, Bruno metaforizou uma
sobre a cor da pele me gerou estranhamento
personagem de “Saramandaia”, novela de Dias
por não refletir, à primeira vista, o fenótipo da
Gomes exibida pela Rede Globo em 1976, objeto
menina. Perguntei-lhe então: “E tu, considera
de refilmagem da emissora em 2013. Na trama,
que é negra?”. Ela respondeu que não, mas me
Dona Redonda era uma mulher que comia sem
contou, no decorrer de nossa conversa, que um
parar e, devido a isso, acaba por explodir, per-
de seus avôs era e que, talvez, se originassem daí
fazendo uma das cenas emblemáticas dessa
as colocações de Valéria. “Sabe o que eu acho?
produção televisiva. Ao receber essa afronta,
Que elas têm inveja de mim, do meu jeito, porque
Marina não prosseguiu no embate com Bruno.
sou mais adulta”, conjecturou ao final.
Apanhou seu laptop e se retirou para um canto,
A despeito das animosidades, houve situações
em que verifiquei Fabiana e Valéria buscarem
acompanhada de algumas garotas interessadas
em explorar seu mais novo brinquedo.
a companhia de Marina. Isso acontecia, quase
sempre, quando as duas primeiras sentiam ne-
Apelidos: vetores de agência
cessidade de auxílio em alguma tarefa de sala
Em meus diários de campo, os apelidos pipo-
de aula. Todavia, testemunhei uma vez em que
cam a todo tempo em meio às vivências estu-
Marina conseguiu barganhar a atenção delas
dantis registradas. Não me causou estranheza,
durante um recreio: foi no dia em que trouxe à
portanto, a repetição de um ponto de debate
escola um laptop de brinquedo que havia ganho
nas discussões contemporâneas que presenciei
de presente. Não só Valéria e Fabiana se interes-
entre profissionais da educação: como controlar a
saram, mas outras diversas crianças rodearam
superabundância desses termos nos ambientes
Marina no pátio. No entanto, havia nesse contexto
de ensino para frear o bullying?
um concorrente de peso: um parquinho novo na
Muito antes da popularização desse construto,
escola. Os estudantes, então reunidos em torno
não obstante, tais alcunhas mostram ser parte inte-
do laptop, logo se dirigiram para lá.
grante da socialidade infanto-juvenil. Em artigo de
Tudo corria bem: praticamente todos os alunos
1944, Fernandes (2004) já apontava a centralidade
da turma estavam brincando juntos, algo incomum.
delas no cotidiano das “trocinhas”, agrupamentos
A certa altura, contudo, algumas crianças começa-
de crianças e adolescentes que, à época, povoa-
ram a pedir a ajuda de Marina, posto não se senti-
vam ruas de bairros populares paulistanos. Tem-se
rem seguras para certas manobras que as demais
aí uma versão primeva do que, atualmente, crianças
estavam fazendo no parquinho. A garota, como
e adolescentes chamam de “zoeiras” (Pereira 2010),
sempre, demonstrou-se prestativa. Entretanto, sua
uma marca de suas relações escolares.
postura não agradava a todos. Alguns dias antes,
Os educadores sabem, melhor que ninguém,
Fabiana já a tinha admoestado: “Se você quer que
que os apelidos têm um espaço longamente de-
Juliane Bazzo
Na captura de uma agência astuciosa: lições de uma etnografia com crianças sobre usos da noção de bullying
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marcado no cotidiano dos ambientes de ensino.
cias enquadradas como bullying demonstram-se
Assim, nos debates que testemunhei, os professores
recheadas de um componente contingencial a
nunca chegavam a respostas fechadas à pergunta
eles fundamental: as figuras de linguagem e,
colocada na abertura desta seção. As suas próprias
dentre estas, especialmente as metáforas, ca-
falas, em maioria, reconheciam a fluidez desses
pazes de condensar várias e inusitadas camadas
cognomes que, à primeira vista, podiam soar tanto
de interpretação – vide a inculpação de Dona
humilhantes, quanto inofensivos, sempre sob a pos-
Redonda. Tais recursos abastecem o idioma ritual
sibilidade de, mais tarde, revelarem-se em contrário.
em sua economia e agilidade, em prol de funções
Identificava-se, portanto, nos debates docentes
cruciais como problematizar dilemas, expressar
um atributo fundamental aos apelidos: a contin-
conflitos e trabalhar relações de poder.
gência que, na atualidade, também repercute
Se os rituais portam um vocabulário particular,
sobre a agência da noção de bullying. Na narrativa
do mesmo modo se definem por comporta-
das vivências de Marina, verifica-se que sobre ela
mentos singulares, os dois não raros reversos
recaem termos vexatórios considerados clássicos
a protocolos publicamente naturalizados (Tam-
pelas comunidades escolares na intimidação
biah 1985). Assim sendo, há que se considerar a
entre pares: baleia e gorducha, em referência à
conduta indicadora de eficácia discursiva para
obesidade enquanto marcador de “desvio” (Velho
práticas hoje tipificadas como bullying escolar:
1981) de um certo status quo. O domínio público,
a risada corporificada. A exemplo das metáforas
todavia, não garante qualquer estabilidade a essas
a circundar os apelidos, o riso não se presta à
expressões que, embora se perenizem, também se
previsibilidade. Sob viés batesoniano, Lagrou
transmutam em sinonímias das mais elaboradas.
(2009, 172) explica que o propósito de fazer rir
Ao prosseguir na história de Marina, vê-se que,
pressupõe ser “[...] inferido pelos envolvidos ao
perante o insulto de gorducha, ela responde à “acu-
longo do desenrolar da cena”.
sação” (Velho 1981) do colega com outra, ciente de
Nem tudo, porém, é flutuante nesse quadro.
minha presença enquanto investigadora daquele tipo
Os rituais de “agressividade verbal” em análi-
de acontecimento. “Tu sabias que isso é bullying?”,
se aqui, como quaisquer outros, perfazem uma
indagou de modo responsivo a garota. Uma vez
“reencenação da vida”: apontam “sistemas de
desafiado, Bruno trabalha com o imprevisto e apela
valores” a orientar a ação dos sujeitos envolvidos
para o não óbvio: evoca como ofensa a personagem
e, especialmente, tensões em curso nesses arran-
televisiva Dona Redonda. Dessa forma, consegue
jos (Duarte 1981). Por conseguinte, chega-se ao
roubar risadas generosas das testemunhas ao redor
paradoxo intrínseco aos ritos: se esses só podem
do confronto e, em seguida, calar Marina.
ser compreendidos contextualmente, há neles
Em minha investigação, problematizei episódios
sempre um nível de redundância, que trabalha
classificados como bullying na contemporaneidade
pelo didatismo e pela eficiência. Esse conteúdo
brasileira como “rituais acusatórios” (Velho 1981).
de repetição decorre, justamente, da cosmolo-
Nesses eventos, com recorrência, o conceito em
gia na qual os agentes se encontram imiscuídos
foco materializa-se como uma contra-acusação,
que, uma vez iluminada etnograficamente, pode
posto quase sempre agenciado em resposta a uma
revelar dinâmicas de humilhação, mas também
primeira imputação. Isso se deve à capacidade
de mutualidade ou até mesmo de insurgência
ímpar que o construto vem demonstrando de iman-
mobilizadas por apelidos, apesar da impossibili-
tar-se a marcadores de “desvio” dos mais diversos
dade de controlar a fluidez deles no mundo social.
– como os estéticos e os étnico-raciais referidos na
história de Marina –, eles mesmos mobilizadores
de longa data de uma profusão de “acusações”, a
À guisa de classificação
sustentar uma conjuntura de segregação no Brasil.
O quadro 2 apresenta um apanhado de ape-
Uma vez na posição de ritos, em concordância
lidos pejorativos registrados ao longo de meu
com abordagem de Tambiah (1985), as ocorrên-
trabalho de campo em instituições de ensino.
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Civitas 20 (2): 248-258, maio-ago. 2020
Quadro 2 – Categorização de apelidos pejorativos no universo escolar de pesquisa*
Fonte: Elaborado pela autora.
Graças a um exercício classificatório, verifi-
escravista, que se pensa elitizada, branca, mascu-
cou-se que uma expressiva quantidade desses
lina, heteronormativa, corporalmente escultural e
apelidos se cola, de imediato, a “categorias de
intelectualmente racional, tendo neste conjunto
acusação” de “desvio” (Velho 1981) históricas
de características um padrão idealizado de “nor-
na sociedade brasileira e, ao mesmo tempo,
malidade” desejável (Souza 2009).
em grande tensão nos anos recentes devido
Ainda no levantamento que realizei, emergiram
a transformações sociopolíticas no país. Essas
três coletivos singulares de apelidos, cujo ponto
mudanças, em boa parte, alavancaram-se por
comum reside no caráter de transversalidade
intervenções estatais pioneiras em favor da in-
em relação aos demais já citados. Um primeiro
clusão econômica e da diversidade sociocultural
grupo nesse status longitudinal engloba termos
durante os mandatos presidenciais do Partido
injuriosos referentes à higiene pessoal. De acordo
dos Trabalhadores (2003-2016). Tais políticas
com Elias e Scotson (2000), polemizar a sujeira
encontraram nas instituições de ensino espaços
coloca-se como meio eficaz de destacar a ano-
essenciais de operacionalização.
6
Boa parte dos termos vexatórios identificados
refere-se, dessa forma, a desigualdades étnico-ra-
mia de quaisquer desviantes – ainda que isso
não se paute em evidências reais –, com o fim
de estabelecer distinção diante deles.
ciais, de gênero, de orientação sexual, socioeconô-
Um segundo conjunto transversal de apelidos,
micas e estéticas. No grupo de apelidos focados
ainda mais robusto, mobiliza nomes de animais
em atributos comportamentais, por sua vez, vê-se
dos mais diversos. Essa recorrência conduz à
como pano de fundo outros três tradicionais tipos
abordagem clássica de Leach (1983) acerca das
de imputações: em torno da capacidade cogniti-
categorias animais que perpassam insultos ver-
va, da deficiência e da religiosidade dos sujeitos.
bais em diferentes sociedades. Nessa análise, o
Tal resultado reflete uma sociedade de herança
autor postula que ganha “contrapartida linguística”
São exemplos emblemáticos: o Programa Bolsa Família (Lei n. 10.836/2004); as cotas étnico-raciais de ingresso no ensino universitário federal (Lei n.12.711/2012); o Programa Brasil sem Homofobia lançado em 2004; além da Política de Educação Especial na Perspectiva
da Educação Inclusiva, datada de 2008.
6
Juliane Bazzo
Na captura de uma agência astuciosa: lições de uma etnografia com crianças sobre usos da noção de bullying
257
tudo aquilo que é “tabu”, ou seja, todos aqueles
tipo de comportamento, passível de punição após
elementos considerados ameaçadores a hierar-
a emergência da noção de bullying. A construção
quias de poder dentro das ordenações sociais.
do termo LV demonstra lógica parecida: trata-se
Em embates “estabelecidos-outsiders” (Elias e
da abreviatura da grife francesa Louis Vuitton, tam-
Scotson 2000) como aqueles em análise aqui, a
bém famosa por bolsas caras. Uma professora
humanidade desses últimos aparece, permanente-
confidenciou-me que estudantes utilizavam a sigla
mente, desautorizada pelos primeiros, por meio de
para denominar, de forma constrangedora, alunos
uma alegada não adequação aos padrões reconhe-
agraciados com bolsas de estudos, demarcando
cidos de “normalidade”. É desde esse ponto de vista,
assim desigualdades de poder aquisitivo.
portanto, que fazem sentido os apelidos animalescos.
Se as ofensas com animais indicam, portanto, serem
assertivas para erguer fronteiras de distinção, resta
problematizar porque estes e não outros seres não
humanos surgem repetidamente empregados.
Uma argumentação reside na igualmente
clássica análise de Lévi-Strauss (1986) sobre o
fenômeno do totemismo. De acordo com ele,
animais emergem em profusão, seja como totens, seja em insultos, porque conformam uma
“realidade sensível” imediatamente disponível aos
homens para refletirem sobre e classificarem as
diferenças humanas. As conexões mentais que se
estabelecem nesse panorama não são arbitrárias,
utilitárias ou contíguas, mas lógicas, relacionais
e metafóricas. Ou seja, eficazes para pensar e
trabalhar a alteridade em um âmbito intelectual.
O terceiro e último grupo perpendicular de
apelidos abrange referências chamadas de figurativas, no interior das quais a exploração de
recursos de linguagem se revelou deveras astuta.
Dois apelidos desse conjunto, certamente, mostram-se enigmáticos no quadro antes exposto:
Victor Hugo e LV, ambos coletados no universo
privado de ensino. O primeiro faz menção ao
estilista uruguaio, radicado no Brasil, famoso por
suas bolsas de valores nada singelos. Contou-me
uma docente que o pai de um aluno foi ao colégio
queixar-se do bullying perpetrado por colegas
contra o filho, posto chamarem-no cotidianamente
de Victor Hugo. A educadora, de imediato, pouco
entendeu. O pai então explicou-lhe que se tratava
de um eufemismo para a imputação de gay.
Os colegas, desse modo, retiraram uma referência do mundo da moda, onde a presença de sexualidades desafiadoras do padrão heteronormativo
se evidencia comum, para elaborar uma intimidação
velada, porquanto a escola estar muito atenta a esse
Considerações finais
O construto de bullying certamente nomeia
comportamentos que não são novidade nos meios
educacionais. A despeito disso, emerge na contemporaneidade brasileira como uma categoria
que dá nova voz a sensibilidades sobre segregação, violência, sofrimento e reparação em meio
às vivências estudantis. Essa noção traz consigo,
portanto, um novo vocabulário, desencadeador
de “efeitos performativos” sobre a realidade. Tais
impactos ultrapassam as fronteiras acadêmicas do
termo e revelam a “inteligência social dos atores”
mirins, a explorar no dia a dia “dimensões táticas”
(Fassin e Rechtman 2009) em torno do construto,
seja para se defender, seja para subalternizar.
O estudo de caso aqui exposto buscou ilustrar
essa conjuntura. À semelhança do observado por
Lewis (2015), a etnografia que realizei demonstra
uma percepção de mundo das crianças nada
inferior ou incompleta, mas sim peculiar. Tal singularidade de visão demandou, por conseguinte, um
protocolo próprio de pesquisa antropológica, que
privilegiou a fluidez de observações sistemáticas,
conversas informais e interlocuções diretas entre
pares via grupos focais, em detrimento, por exemplo, da fixidez de entrevistas pessoais estruturadas.
Ao apostar nesses métodos, constatou-se que
os infantes “[...] interagem ativamente com os significantes e práticas sociais que compõem suas vidas
diárias” (Lewis 2015, 255), inseridas em uma ordem
sociológica segregacionista. A etnografia com esses
sujeitos abre assim espaços para visualizar, por certo em termos particulares, determinados fatos com
uma “[...] clareza que elas (as crianças) nos cospem
na cara” (Cohn 2013, 239). Dentre tais constatações,
está a inverossimilhança da aspiração de certos
educadores de vetar termos risíveis nos ambientes
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Civitas 20 (2): 248-258, maio-ago. 2020
de aprendizagem, apesar da propagação da noção
de bullying como recurso acusatório.
Logo, à luz do ferramental teórico-metodológico
a balizar essa etnografia, argumento que as crianças
conhecem e exploram com perspicácia as propriedades rituais do riso canalizadas, segundo Douglas
(1993), para fomentar socialidades na mesma medida com que canalizam animosidades. A profusão
destas últimas, na forma de atribuição de apelidos
e da demarcação de casos de bullying, não conforma surpresa ou coincidência na cena cotidiana
escolar do Brasil. Um país secularmente recheado
de desigualdades, muito recentemente colocadas
em turbulência, tanto pelo que políticas públicas de
inclusão e diversidade precursoras transformaram ao
longo dos anos 2000, quanto pelo que de iniquidade,
apesar delas, ainda permanece intocado.
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Juliane Bazzo
Doutora em Antropologia Social pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), Porto Alegre, RS,
Brasil, com estágio doutoral na City University of New
York (Cuny), Queens College e The Graduate Center,
New York, EUA. Professora substituta do Departamento
de Antropologia da Universidade Federal do Paraná
(UFPR), Curitiba, PR, Brasil.