As matrizes da pornografia de
Alfredo Gallis (1859-1910)
The roots of Alfredo Gallis’ (1859-1910) pornography
Aline Moreira*
Resumo
Alfredo Gallis (1859-1910), o pornógrafo mais famoso do mundo lusófono
no segundo oitocentos, ganhou fama no Brasil e em Portugal publicando
livros que rapidamente se tornaram referência de uma literatura pornográfica
contemporânea produzida originalmente em língua portuguesa. Sob a alcunha
de Rabelais, Gallis estreou na pornografia em 1886 com Volúpias: 14 contos
galantes. A leitura desse e outros livros nos permite esquematizar as matrizes da
pornografia gallisiana: o imaginário cômico-obsceno do mundo pré-industrial;
a galanteria da libertinagem pré-sadeana; e o argumento cientificista do século
XIX. Os livros do Rabelais português uniam o “baixo corporal” e o “realismo
grotesco” (BAKHTIN, 1987) ao novo modo de execução do relato licencioso,
mais condizente com uma nova era burguesa e científica: o naturalismo. Para
agradar ao gosto dos leitores, Rabelais não adotava a linguagem chula da cultura
popular da Idade Média, que não cabia na imprensa periódica do século XIX,
preferindo a linguagem erudita e metafórica do romance libertino, a exemplo
da palavra “galante” no subtítulo de Volúpias. Mesmo nos livros publicados sem
a assinatura do pseudônimo, Gallis mesclava o fundamento rabelaisiano com
enredos, personagens e configurações libertinas, em cenários que incluíam
a Lisboa moderna, oferecendo fantasias sexuais capazes de deleitar leitores de
variadas preferências, dos dois lados do Atlântico.
Palavras-chave: Século XIX. Literatura pornográfica. Alfredo Gallis.
* Doutoranda em Teoria da Literatura e Literatura Comparada no Programa de Pós-graduação
em Letras da UERJ.
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Alfredo Gallis (1859-1910), the most famous pornographer in the lusophone world
in the second eight hundred, gained fame in Brazil and Portugal by publishing
books that quickly became a reference of a contemporary pornographic literature
originally produced in Portuguese. Under the pseudonym of Rabelais, Gallis
debuted in pornography in 1886 with Volúpias: 14 contos galantes. Reading
Gallis’s books allows us to lay out the matrix of gallisian pornography: the
comic-obscene imaginary of the preindustrial world; the gallantry of preSadean libertinism; and the scientific argument of the nineteenth-century. The
books of the Portuguese Rabelais combined the “lower stratum of the body” and
the “grotesque realism” (BAKHTIN, 1987) with a new licentious perspective,
more in keeping with the bourgeois and scientific era: naturalism. To the
readers’ liking, Rabelais did not adopt the vulgar language of the Middle Ages’s
popular culture, which did not fit in the periodical press, preferring the erudite
and metaphorical language of the libertine novel, like the word “gallant” in the
subtitle of Volúpias. Even in books published without the pseudonym’s signature,
Gallis mixed the rabelaisian foundation with libertine plots, characters, and
scenario, in settings that included modern Lisbon, offering sexual fantasies that
could delight readers of varying preferences on both sides of the Atlantic.
Keywords: Nineteenth century. Pornographic literature. Alfredo Gallis.
A. Moreira
As matrizes da
pornografia de
Alfredo Gallis
(1859-1910)
Ainda há pouco apareceram as Volúpias pelo pseudônimo
Rabelais, uma pornografia em 200 páginas [...]. Aquilo já nem
se pode chamar literatura, nem sequer escola naturalista, nem
sequer escola, mas unicamente um monstro literário, que para
mais eficácia fala português1
Padre Sena Freitas
C
omo gênero, a licenciosidade em literatura tem gradações diferentes.
A depender do conteúdo e do modo como é representado – mais ou
menos explícito –, o texto literário pode receber as classificações de
pornográfico, erótico ou, ainda, obsceno (MAINGUENEAU, 2010). Contudo,
não é apenas o texto que determina a nomenclatura, fazendo com que seja
necessário compreender como cada contexto específico se apropria do “discurso
pornográfico”.
O texto que nos serve de epígrafe mostra que pornografia era uma palavra
já usada no final do século XIX para designar textos licenciosos, mas os outros
termos adotados por Maingueneau eram sinônimos usados indiscriminadamente.
Ao nos atentarmos para as fontes primárias, veremos que não era necessária uma
representação sexual “transparente” e “reveladora” (p. 36) para que um texto
fosse acusado de ser pornográfico. O público ignorava se uma determinada
obra representava uma “sexualidade compatível, dentro de certos limites, com
1 Diário de notícias, Rio de Janeiro, 26 fev. 1888.
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os valores reivindicados pela sociedade” (p. 32) para poder chamá-la de erótica
– categoria tratada pelo autor a partir de um olhar mais estetizante – e não se
importava com a suposta “intenção pornográfica” dos autores. Esses critérios,
postulados ao longo do século XX, não pertenciam ao imaginário de uma época
em que ser pornográfico significava transgredir, não importava de que maneira,
a moral vigente. Tais apontamentos são de fundamental importância para este
trabalho, uma vez que tratamos de um universo de leitura em que definições
formais a respeito da pornografia como um gênero ainda não existiam.
A pesquisa em periódicos revela que, no final do século XIX e início do
XX, os livros licenciosos eram um dos segmentos mais populares nas livrarias, em
especial no Rio de Janeiro. Mais baratas e atrativas como modo de entretenimento,
as chamadas “leituras [só] para homens” eram tratadas pela crítica conservadora
como um caso gravíssimo porque pareciam brotar “como cogumelos”.2
Utilizando-se de intensa propaganda nos jornais de grande circulação, os
livreiros apostavam em anúncios ousados para chamar a atenção dos leitores.
Ao folhear as páginas desses jornais, os leitores que encontrassem as expressões
“biblioteca do solteirão”, “histórias de prostituição”, entre outras, saberiam que se
tratava de uma lista recheada de títulos picantes não recomendados às mulheres.
Os comerciantes, por sua vez, sabiam que a aparente proibição era uma boa
estratégia publicitária, a exemplo de um anúncio da Livraria Cruz Coutinho
que dizia “as mulheres não devem ler (querendo podem fazê-lo)”. 3 As expressões
usadas nessas propagandas denotavam a oferta de erotismo e divertimento, e
não faltavam recomendações para que o leitor não se esquecesse de reforçar “os
botões das calças” antes da leitura (MENDES, 2016, p. 175).
A década de 1880 marca o auge da expansão do mercado editorial carioca
e o sucesso da pornografia como um dos gêneros mais populares, mas esses livros
que eram lidos “com uma só mão” (GOULEMOT, 2000) já circulavam no Rio
de Janeiro desde o início do século. A crônica “A moral do Brasil” aponta que um
dos indícios para a degradação moral dos brasileiros seria a circulação livre de
“escritos obscenos, e eminentemente corruptores”, tais como o anônimo Thérèse
Philosophe, publicado na França em 1748.4 Devido à popularidade, em alguns
casos, como o famoso Historie de dom Bougre, portieux de chartreux (1740) – na
versão em português, Memórias do frei Saturnino –, os livros não eram apenas
traduzidos para o português, mas adaptados para o cenário carioca do século
XIX (EL FAR, 2004).
O grande interesse por obras licenciosas estava diretamente associado à
popularização da leitura. Na medida em que o livro se impunha como mercadoria,
a demanda do público se voltava para uma maior diversidade de temas, garantindo
a escritores, editores e livreiros um lucro fácil e rápido. Em cidades como Lisboa
e Rio de Janeiro, observou-se o surgimento de uma literatura pornográfica
2 Revista Ilustrada, Rio de Janeiro, Ano 8, nº 358, 1883.
3 O Repórter, Rio de Janeiro, 14 jan. 1879.
4 O Sete d’Abril, Rio de Janeiro, 26 fev. 1839.
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contemporânea escrita em língua portuguesa que reivindicava seu espaço em
um mercado até então dominado pela literatura libertina francesa e inglesa.
A maioria dessas novas obras eram apócrifas e clandestinas: não apresentavam
local de publicação, nomes de editores ou mesmo pseudônimos, mas chamavam
atenção com títulos que deixavam claro o conteúdo pornográfico, como Amar,
gozar, morrer; Memórias de uma insaciável; Proezas de um clitóris; Elvira, a insaciada;
entre muitos outros.
Entretanto, ao lado dessas brochuras anônimas, destacavam-se os famosos
livros de Rabelais5, pseudônimo do escritor português Joaquim Alfredo Gallis
(1859-1910). Autor de uma vasta bibliografia que pode ultrapassar a marca de
setenta livros, Alfredo Gallis começou a carreira de escritor aos vinte anos, em
1879, no jornal português Instituições. Escrevendo até o ano de sua morte, em
1910, Gallis foi um polígrafo que se aventurou em vários gêneros de escrita,
desde romances, contos, artigos de fundo, crítica literária e política, homenagens
fúnebres, poemas, traduções a matérias esportivas.
Embora tenha sido escrivão da Corporação de Pilotos da Barra,
secretário do governador civil de Lisboa até o ano de sua morte e administrador
efetivo do concelho do Barreiro6, suas funções públicas não o impediam de
atuar ativamente no campo da escrita. Alfredo Gallis era um escritor versátil,
e não estaríamos equivocados em afirmar que sua principal ocupação era
escrever, independentemente do tipo de texto ou do público que viesse a ler o
seu trabalho. Essa versatilidade era uma marca dos escritores daquele tempo,
tanto em Portugal como no Brasil. A agitação política que dominou os dois
países, o desenvolvimento da imprensa e os avanços tecnológicos favoreciam a
profissionalização dos escritores, e era comum que alguns deles vivessem apenas
da escrita. Nas redações de jornais, onde muitos começavam, os escritores
experimentavam temas para seus livros, muitas vezes escondidos atrás de
pseudônimos (MINÉ, 2005; MENDES; DIAS, 2017). Gallis era, certamente,
um desses escritores profissionais que escreviam a respeito dos mais diversos
temas como uma forma de ganhar dinheiro, em uma vida de atividade literária
e jornalística bastante produtiva.
Além de publicar muitos textos em curtos espaços de tempo, Gallis
transitava com facilidade pelas suas múltiplas vozes literárias. Usou, pelo menos,
sete pseudônimos: Antony, Ulisses, Kin-Fó, Barão de Alfa, Condessa de Til,
Duquesa Laureana, mas nenhum foi mais conhecido que Rabelais. Era comum
naquela época que os escritores adotassem pseudônimos para justificar certo
projeto estético. Nas palavras de Olavo Bilac (1865-1918), “para cada estilo, cada
assinatura”, e adotar um pseudônimo não significava negar o que se escrevia
porque haveria sempre “a parte séria a que o escritor dá o seu verdadeiro nome,
e a parte leve, humorística, que bem pode correr por conta de um pseudônimo
5 Doravante, quando mencionarmos apenas Rabelais, trata-se do pseudônimo de Alfredo
Gallis; para fazer referência ao escritor francês usaremos François Rabelais.
6 Equivalente a “município” ou “câmara” no português falado no Brasil. Alfredo Gallis toma
posse do cargo em 01 de fevereiro de 1901, permanecendo até o final de 1905.
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transparente”.7 Estudiosos como Santana (2007) e Ventura (2011) partem desse
pressuposto e afirmam que Rabelais era o nome usado para assinar as obras que
Alfredo Gallis criava especialmente para o mercado de livros pornográficos.
A afirmação dos estudiosos é facilmente verificada nas fontes, mas não
quer dizer que Gallis escrevia para esse mercado apenas sob a assinatura que
tomara emprestada de François Rabelais (1494-1553). A pornografia conforme
os parâmetros do final do século XIX perpassa toda a obra do escritor. Livros
assinados com seu próprio nome, sua suposta persona “séria”, como o polêmico
A Amante de Jesus (1893), foram apropriados como literatura pornográfica.8 O
mesmo aconteceu com os doze volumes da série Tuberculose Social,9 vendidos como
pornografia pela Livraria Laemmert10 do Rio de Janeiro e censurados em Portugal
na primeira metade do século XX.11 Na crônica “Rio – Paraíso da literatura...”12 ,
um articulista declara que quando um leitor se demorava “revirando” as pilhas
de livros em uma livraria, sabia-se que ele estava “procurando qualquer coisa no
gênero Alfredo Gallis”. Enquanto a pornografia conservava o favoritismo dos
leitores, Alfredo Gallis também se mantinha como uma referência.
O mercado editorial luso-brasileiro da virada do século não se importava
com projetos estéticos, e, no caso de Alfredo Gallis, todos os seus livros
eram igualmente licenciosos porque partiam das mesmas matrizes: ciência e
pornografia. Margaret Jacob (1999) chama a atenção para a estreita relação que
a pornografia tem com o pensamento científico, uma vez que foi o discurso da
ciência que permitiu as metáforas necessárias para se pensar na concepção de um
gênero pornográfico. De acordo com a autora, a mecanização da carnalidade do
humanismo renascentista fez com que os corpos fossem “atomizados, despidos
de sua aparência e qualidade, sendo reconhecíveis apenas pelo tamanho, forma,
movimento e peso” (p. 169). Cada vez mais liberto das convenções opressoras do
pensamento medieval, o homem pôde se reconhecer como um indivíduo cujo
télos não era mais transcendente, e sim a mais simples “interação mecânica dos
corpos” (p. 169). Assim, “o desejo incessante, o excesso fortuito, a exuberância
absoluta dos corpos libertos das amarras tradicionais e das inibições pias” (p. 170)
só poderiam ser explicados por uma metafísica materialista.
É possível, portanto, esquematizar a poética gallisiana – a que também
podemos chamar de “pornografia gallisiana” – a partir de três tendências: o
imaginário cômico-obsceno do mundo pré-industrial; a literatura libertina; e o
7 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 25 jul. 1897.
8 O País, Rio de Janeiro, 15 out. 1896.
9 Publicada entre os anos de 1901 e 1904, esta série é o melhor exemplo da produção naturalista
de Alfredo Gallis, escrita supostamente para denunciar os vícios da sociedade portuguesa. Cada
um dos volumes trata de uma das chamadas “patologias sociais” que tanto animaram a pena
dos escritores da época, como a homossexualidade, o adultério e o alcoolismo, por exemplo.
Os títulos são: Chibos (1901), Os Predestinados (1901), Mulheres Perdidas (1902), Os Decadentes
(1902), Malucos (1902), Os Políticos (1902), Sáficas (1902), A Taberna (1903), Casas de Hóspedes
(1903), A Sacristia (1903), Mulheres Honestas (1903) e Os Pelintras (1904).
10 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 22 jul. 1902.
11 Constam no Arquivo Nacional da Torre do Tombo os documentos relativos à censura de
Sáficas e A Taberna, ambos assinados em 1939 (ALMEIDA, 2018).
12 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 05 abr. 1945.
A. Moreira
As matrizes da
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(1859-1910)
argumento científico do século XIX. Em seus livros, Gallis reunia o fundamento
rabelaisiano do “baixo corporal” e do “realismo grotesco” (BAKHTIN, 1987) à
galanteria da libertinagem pré-sadeana13, filtrando tudo a partir das lentes do
novo modo de execução do relato licencioso, mais condizente com uma nova
era burguesa e científica: o naturalismo. Ao agenciar todas essas expressões do
materialismo, Gallis e seus pseudônimos apresentavam uma oferta variada de
configurações e temas licenciosos facilmente reconhecidos pelos leitores em
finais do século XIX.
O fundamento rabelaisiano está claro, principalmente, no pseudônimo
escolhido por Alfredo Gallis para estrear no mercado de livros pornográficos. Seu
primeiro livro, Sinopse dos homens célebres de Portugal, data de 1883; nessa época,
Gallis era pouco conhecido na imprensa por suas crônicas e contos, publicados
até mesmo em jornais brasileiros. Foi apenas em 1886 que, através da alcunha de
Rabelais, Alfredo Gallis se tornou um escritor realmente famoso nos dois lados
do Atlântico. Volúpias: 14 contos galantes foi a primeira obra pornográfica do
escritor e a primeira a ser assinada com o pseudônimo.
Publicado em São Paulo pela Livraria Teixeira, o livro foi anunciado na
imprensa portuguesa com um misto de entusiasmo e alerta:
Rabelais publicou recentemente um volume de contos
intitulado Volúpias e de que naturalmente já não resta um só
exemplar, se dermos créditos às opiniões que por aí correm
sobre o estado do paladar da maioria dos leitores...
As Volúpias, por isso mesmo que são de molde a não as
recomendarmos a meninas solteiras, devem necessariamente a
estas horas ter um lugarzinho reservado nas estantes de todos
os machos solteiros casados e viúvos.14
Ainda não sabemos quando Gallis assumiu a autoria, mas, no início da
década de 1890, ele já era conhecido por usar o “pseudônimo Rabelais, que
[era], essencialmente, distinto literato... só para homens”.15 O livro teve ainda
outras duas edições: a segunda, de 1893, foi publicada pelos mesmos editores
da primeira; a terceira, de 1906, saiu pela Tipografia da Empresa Literária e
Tipográfica, do Porto.
Uma das características mais marcantes da poética de Gallis e seus
pseudônimos é o uso de longos proêmios, configurando um espaço em que o autor
parece estabelecer um protocolo de leitura com seu leitor. Na primeira edição,
Rabelais classifica o livro como “uma inutilidade relativa”, pois, se os contos
13 Chamamos essa tradição de “pré-sadeana” apoiados em Ladenson (2015), para quem a obra
do Marquês de Sade (1740-1814) marca a transição da literatura licenciosa como locus amoenus
– do sexo obsceno e cômico ligado ao imaginário humanista – para um locus horribilis, ligado ao
gótico, de que Sade era admirador confesso, e às violências das revoluções burguesas, de que foi
contemporâneo.
14 Pontos nos ii, Carmo, 24 abr. 1886.
15 O Antonio Maria, Lisboa, 23 jul. 1891.
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“despretensiosos e amenos [...] não devem servir de educação moralista às damas,
podem pelo menos adoçar razoavelmente o spleen dos ociosos, o aborrecimento
dos tristes, e a melancolia dos hipocondríacos (RABELAIS, 1906, p. 5-6). O
livro é inútil como ferramenta pedagógica porque não pretende moralizar,
apenas “exorcizar” a tristeza e seriedade da literatura através da excitação sexual
e do divertimento.
A união dessas duas instâncias – sexo e riso – tem origem nos fabliaux
franceses que, de acordo com Ladenson (2015), marcam o início da tradição do
sexo como tema literário. Nome usado para designar um tipo de narrativa satírica
curta, geralmente em verso octossílabo, os fabliaux surgiram entre os séculos
XII e XIII, servindo como uma espécie de “licença extrema” para “denunciar
os luxuriosos, suas malícias e seus prazeres” (ALEXANDRIAN, 1993, p. 35).
Tendo a comicidade como elemento principal, os fabliaux eram produzidos para
divertir e entreter, através de uma linguagem cômico-obscena usada para satirizar
as instituições basilares da sociedade. Entre suas representações mais comuns
estavam o adultério, acentuando a esperteza das mulheres e a ingenuidade dos
maridos; e o deboche acerca dos religiosos, homens libidinosos e astutos que
usavam o confessionário para seduzir as fiéis, sinalizando, talvez, o início da
vertente anticlerical da pornografia.
Chegamos aos fabliaux através da grande influência que exercem na
obra de François Rabelais, que é a “expressão suprema” do riso na Idade Média
(BAKHTIN, 1987, p. 84). Segundo Bakhtin, a imagem de François Rabelais
como “grande poeta ‘da carne’ e ‘do ventre’” e a censura de seu “fisiologismo
grosseiro” são restrições concebidas a partir do sentido que “a ‘matéria’, o ‘corpo’
e a ‘vida material’ (comer, beber, necessidades naturais, etc.)” adquiriram ao longo
dos séculos, especialmente no XIX (p. 16). No Brasil, Domício da Gama (18621925) definiu a obra do escritor renascentista como uma “epopeia de carnalidade
juvenil e triunfante”.16 Assim, é possível levantar a hipótese de que, ao adotar
um nome conhecido por esses méritos, Gallis alcançava dois propósitos: o de
legitimar sua obra, associando-a a um escritor já considerado erudito; e inserir
seu livro de estreia no gênero pornográfico dentro da tradição obscena francesa
para testar “modos de contar histórias com o propósito assumido de ‘ativar a
vontade’ do leitor” (MENDES, 2016, p. 185).
De acordo com Ladenson, François Rabelais tinha familiaridade com
os fabliaux, e sua homenagem ao gênero se faz a partir da apropriação dos
aspectos mais grosseiros e explícitos (2015, p. 229). Nele, a descrição anatômica
já exagerada recebe proporções descomunais. O universo pantagruélico,
exuberante e gigantesco em todos os sentidos, é uma apoteose de materialidade:
bebe-se muito, come-se ainda melhor, e há sempre fartura. Nos banquetes, os
personagens “cagam” e “cantam” impulsionados pela bebida que nunca cessa
(RABELAIS, François, 1966, p. 44). No “realismo grotesco” rabelaisiano, corpo
e matéria são elementos positivos e universais. Não restritamente fisiológicos,
16 Gazeta de Notícias, Rio de Janeiro, 04 fev. 1890.
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Alfredo Gallis
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mas não mais regidos pela transcendência cristã. O “baixo corporal”, que consiste
no ventre e nos órgãos genitais, principalmente o falo, representa o “exagero
positivo” da hiperbolização rabelaisiana. O corpo e suas eventuais imagens
escatológicas – necessidades fisiológicas ou fluidos sexuais – não são dignos de
vergonha, pois representam apenas uma exaltação da vida que não se prende à
ideia de moralidade. É nessa tradição que o Rabelais português se insere. Antes
de ser pornográfica, erótica ou obscena, é, para usar uma palavra de Bakhtin,
“recreativa”, pois nasce da “liberdade” e da “licença” (1987, p. 71) e se destina ao
prazer físico e mental.
Os livros de Gallis/Rabelais, especialmente Volúpias, podem ser inseridos
na categoria “alegre”, mais um dos muitos nomes usados para designar os textos
pornográficos. Essa “leitura alegre” era anunciada nos jornais como uma leitura
que “agrada a todo o mundo, afugenta os desgostos, desenvolve os nervos e ativa
a vontade!”.17 Os livros pornográficos ofereciam mais do que excitação sexual:
“eram bons para a saúde, pois abriam o apetite e ajudavam a ‘desenferrujar no
tempo frio’ [...], eram capazes de fazer acelerar o coração, ou, quem sabe, causar
uma ereção e um orgasmo – uma experiência de satisfação física e mental, um
refrigério para os rigores da vida em sociedade” (MENDES, 2016, p. 174-5).
Além de prazer sexual, a literatura produzida naqueles anos oferecia humor, que
também servia como “um liberador das emoções reprimidas” e “compensava, em
seus efeitos, o dispêndio contínuo de energia exigido para manter as proibições
que a sociedade impõe e os indivíduos internalizam” (SALIBA, 2002, p. 23).
O riso era um recurso literário em voga no contexto da Belle Époque brasileira,
funcionando como uma “dimensão importante” para se pensar esse período da
história (p. 28).
Nas palavras de Rabelais, para que Volúpias cumpra o seu objetivo, o leitor
precisa:
Pôr de parte a crítica e a austeridade como coisas feias que para
aqui não servem.
Acender um charuto de puro tabaco havano e beber um cálice
de curaçáo;
Estar só em casa ou em companhia amena onde a camisa de
rendas e as ligas de seda azuis celestes o acompanhem a leitura;
Conservar o chambre largo para o que der e vier;
(RABELAIS, 1906, p. 9).
Essa passagem ecoa a epígrafe de Gargântua (1534): “É verdade que pouca
perfeição,/ Salvo no riso, aqui podeis obter:/ Outra coisa não posso oferecer,/ Ao
ver as aflições que vos consomem;/ Antes risos que prantos descrever,/ Sendo
certo que rir é próprio do homem./ Vivei alegres.” (RABELAIS, François, 1966,
p. 19). Ao evocar a alegria, Volúpias retorna às origens cômicas da pornografia.
17 Jornal do Comércio, Rio de Janeiro, 3 ago. 1892
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A segunda matriz da pornografia gallisiana é a literatura libertina, que
dominava o universo de leitura licenciosa antes da ascensão da pornografia
luso-brasileira. Um leitor poderia encontrar nas livrarias exemplares de Memoirs
of a Woman of Pleasure (1748), de John Cleland (1709-1789), e Les Amours du
Chevalier Faublas (1787), de Jean-Baptiste Louvet du Couvray (1764-1797).
Contudo, bastava ter em mãos um exemplar de Volúpias para se deliciar com temas
extraídos da tradição libertina, escritos originalmente em língua portuguesa,
contemporâneos em termos de cenários e linguagem. É possível organizar a
leitura dos catorze contos a partir das principais configurações libertinas – o
anticlericalismo, o voyeurismo, a iniciação sexual, entre outras –, mas Rabelais
sabia fundir vários desses temas em uma única narrativa.
O anticlericalismo é uma das configurações libertinas mais marcantes.
De acordo com Peakman (2003), a atividade sexual de membros do clero é uma
das principais preocupações no corpus da literatura no século XVIII. Presente
já nos fabliaux, a crítica à Igreja através do discurso pornográfico encontra nas
Luzes uma abordagem filosófica e política que a populariza ainda mais. Com o
tempo, esse se tornou um subgênero da pornografia que servia não apenas para
atacar a Igreja, mas também excitar o leitor.
Não parece ser à toa que, em “O divino esposo”, conto de abertura de
Volúpias, essa configuração se sobreponha às outras. Rabelais se apropria da figura
histórica de Santa Teresa D’Ávila (1515-1582) para narrar um episódio que mescla
anticlericalismo e cientificismo. No imaginário da literatura anticatólica inglesa,
entre os séculos XVI e XVIII, divulgava-se a crença de que as devotas possuíam
uma constituição física e psicológica hipersexualizada, e que, portanto, o êxtase
religioso não estaria ligado a fenômenos sobrenaturais (PEAKMAN, 2003). O
repertório naturalista de Gallis/Rabelais, além de seu conhecimento da tradição
pornográfica, forneceu os argumentos da histeria para justificar o “organismo
de histérica” da personagem, que se excita apesar da fé. Percorre pela narrativa
um tom onírico apropriado tanto para a carga mística da narrativa quanto para
o potencial erótico dos delírios da santa. Durante um sonho em que se casa
com Jesus, o “organismo lúbrico-religioso” e o “cérebro doentio” da personagem
levam seu corpo ao ápice: através do orgasmo, “Teresa foi santa!” (RABELAIS,
1906, p. 30). Em Volúpias, a experiência religiosa é, também, pornográfica.
“Luiza” apresenta outro desdobramento do anticlericalismo, a tradição
dos “nunnery tales”.18 Luiza é uma jovem rica que, aos quinze anos, é mandada
para um convento para aprender os dotes necessários a uma moça de família,
mas o que aprende vai além das lições de costura. O mote central da narrativa
é a iniciação sexual da jovem noviça pelas mãos da experiente superiora.
Nessa tradição, a prática sexual dentro dos conventos não recebe julgamento.
As companheiras de claustro poderiam explorar, num ambiente seguro, “as
potencialidades de seus corpos”, e, na medida em que a virgindade é preservada,
18
“Contos de convento”, em tradução livre (PEAKMAN, 2003).
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as jovens garantem as chances de conseguir um bom casamento, conscientes
de que esses encontros homoafetivos serviam apenas como preliminares para o
“verdadeiro idílio”, que só seria alcançado pela penetração masculina (EL FAR,
2004, p. 236). Ao mesmo tempo em que a clausura pode ser vista como símbolo
de controle, funciona também como um espaço privado, ideal para a exploração
da sexualidade (PEAKMAN, 2003). Sobre a polêmica do “amor exótico” entre
duas mulheres, Rabelais ironiza: “qual é o convento onde o escândalo não
floresce?” (RABELAIS, 1906, p. 69). Devido ao forte potencial pornográfico,
os conventos eram um dos cenários preferidos dos pornógrafos que queriam
oferecer aos leitores histórias picantes e transgressivas.
Presente em clássicos libertinos franceses, a iniciação sexual de jovens
com mulheres mais velhas funcionaria como uma espécie de educação carnal,
aos moldes do anônimo L’Ecole des filles ou la philosophie des dames (1655),
considerado o “primeiro romance libertino de aprendizado” (GOULEMOT,
2000, p. 33). Além dos conventos, a primeira experiência sexual poderia acontecer
também no espaço doméstico. Segundo El Far, enquanto as meninas aprendiam
com outras meninas da sua idade ou mais velhas, “os meninos envolviam-se com
as empregadas, tias solteironas, visitantes ocasionais, irmãs ou mães adotivas”
(2004, p. 236). Em “A primeira noite feliz”, Luizinho, durante as férias do colégio
interno, descobre o sexo com a entediada Martha, amiga de sua madrinha. Sem
culpa ou vergonha, Martha confessa à amiga que invadira o quarto do rapaz,
culpando o próprio sistema nervoso, que possui uma “extrema sensibilidade”
(RABELAIS, 1906, p. 184). A madrinha sente inveja da amiga, pois “raras vezes
na vida é dado a uma mulher colher a primeira rosa primaveril” (p. 185).
Já em “A primeira mariposa”, a iniciação sexual se dá ainda mais cedo.
Lolita é uma formosa menina de dez anos, enquanto Quim é um “garoto levado
da breca” de doze anos que só se acalma na presença da prima. Confiando na
ingenuidade das crianças, os pais não maldavam as muitas horas que passavam
brincando em algum canto afastado do jardim, onde “escreviam diariamente os
primeiros caracteres, trêmulos ainda, do longo alfabeto da atração dos sexos”
(RABELAIS, 1906, p. 147). Mesmo para a sociedade oitocentista, acostumada
a casar bem cedo as suas filhas, o conto de Rabelais brincava com o limite do
aceitável, filtrando tudo com ares de inocência explorados pela idade próxima
dos primos. O tema da descoberta sexual ainda na infância pode ser encontrado
em Thérèse Philosophe. A protagonista conta que descobre a masturbação aos
sete anos, e, aos nove, brincava com o “guigui” dos meninos em momentos de
“libertinagem inocente” (TERESA, 2000, p. 32). Ao final, o conto de Rabelais
parece sugerir que quanto mais cedo começam as experiências sexuais, melhor.
Há dois contos muito semelhantes em Volúpias: “Os pombos” e “Entre
roseiras”. As histórias se passam em cenários idílicos e exploram os encontros
furtivos de jovens casais que terminam na perda da virgindade das moças. No
primeiro, Carmen é uma jovem de dezoito anos que, às escondidas na mata em
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plena madrugada, entrega sua virgindade ao perspicaz Luiz, um “verdadeiro
demônio” (RABELAIS, 1906, p. 242), que pede à moça uma prova de amor.
No segundo, a natureza testemunha mais um encontro secreto. Na noite fria, as
mãos de Júlio vão se aquecer “nas piras sagradas do amor” de Julieta (p. 273). No
dia seguinte, o pai da jovem comenta entristecido que tivera um grande desgosto
naquela manhã: suas duas esplêndidas roseiras haviam sido completamente
destruídas durante a noite. Consternado, ele lamenta: “perdi a noite passada as
mais mimosas flores dos meus cuidados” (p. 274). Julieta concorda, pensativa;
ao seu lado, distraidamente, Júlio acende um charuto. O conto termina com
maliciosas reticências.
O tema da instrução sexual também pode ser visto em “Noite de núpcias”,
conto em que Rabelais explora os segredos da primeira noite dos recém-casados
Lulu e Mimi. Cada atitude dos personagens parece meticulosamente pensada: a
velocidade e a intensidade do beijo, o decote da camisola, os sussurros e o estado
lânguido em que ela se deixa ficar enquanto recebe as carícias. Não há pressa,
embora ele tenha sido ensinado que tinha a “obrigação moral de tomar posse de
todas aquelas opulências amorosas o mais breve possível” (p. 41). O sexo não é
simplesmente um ato movido pelo instinto. Marido e mulher estão empenhados
em atingir, juntos, o gozo matrimonial. Cada detalhe das preliminares é
importante, inclusive, o sexo oral, descrito como uma “delicadeza encantadora
do prólogo admirável do livro do matrimônio” (p. 47). Completamente nus,
“foi com um cúmulo invejável de arte e finura que ele lhe ofereceu o pequenino
travesso deus Cupido, guloso e avaro de colher a mais mimosa açucena d’aquele
jardim celestial” (p. 47). Sem ser explícito e com uma linguagem tão galante
quanto os gestos dos personagens, Rabelais permite que o leitor aprenda como
dar e sentir prazer.
Numa sociedade ainda carente de representações do corpo, a literatura
pornográfica funcionava como a principal fonte de conhecimento carnal. Gallis
dedicou parte de sua obra a narrativas voltadas à instrução sexual: O que as
noivas devem saber! (1904), assinando como Condessa de Til; O que os noivos não
devem ignorar (c. 1900), sob a alcunha de Barão de Alfa; e Segredos femininos,
como Duquesa Laureana, cuja data de publicação ainda é desconhecida. Esses
manuais de filosofia prática, na medida em que revelam segredos da vida íntima
feminina, como cuidados com a higiene e truques de sedução, têm potencial
para ativar as fantasias dos leitores. Santana observa que o pseudônimo Condessa
de Til oferece uma visão feminina “camuflada”, revelando certa “duplicidade”
ao abordar fantasias e caprichos sexuais masculinos, mas sempre recomendando
que as leitoras não se escandalizem. A suposta autora, uma respeitável mulher
madura, executa uma combinação perfeita de “registo didáctico, ciência sexual
e arte erótica” (2007, p 245). A narradora feminina, que remete às professoras
do sexo da literatura libertina, possui uma “propriedade estimulante” que “excita
e manipula” ( JACOB, 1999, p. 177). Embora escrita por homens para leitores
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As matrizes da
pornografia de
Alfredo Gallis
(1859-1910)
homens, essa voz feminina explora um lugar de transgressão e autonomia que,
fora da ficção pornográfica, não era permitido às mulheres.
Outra configuração clássica da tradição libertina usada por Rabelais é
o voyeurismo. Praticado pelos personagens, funciona como uma estratégia
narrativa que tem como único objetivo estimular a masturbação do leitor, que
é convidado a se afastar momentaneamente da ficção para alcançar ele também
o gozo (EL FAR, 2004, p. 212). No conto “Em flagrante”, no silêncio da noite,
Alberto é surpreendido com o inconfundível som de beijos vindo do quarto ao
lado. Procurando uma melhor posição para ver sem ser visto, ele se depara com a
visão de Adélia e Rosita seminuas, “o quadro mais sedutor e incitante que é dado
imaginar-se” (RABELAIS, 1906, p. 101). A cena produz um efeito poderoso
em Alberto, que começa a sentir o sangue inchar “todos os canais eretores” (p.
101). Desistindo de apenas observar, ele invade o quarto, sendo calorosamente
recebido pelas duas amigas. O dia já está claro quando, finalmente, ele se retira
para descansar. Ao todo, foram “seis visitas ao templo Adelio, e quatro ao Roseo”
(p. 109).
Em “Entre giestas”, Rabelais une anticlericalismo, voyeurismo e a fantasia
idílica da pornografia. Assim que o dia amanhece, o Abade Maurício, homem
bonito e respeitável de quarenta anos, recolhe-se em um canto tranquilo para ler
e ficar em paz com seus pensamentos, até que, bem perto dele, um homem e uma
mulher começam a trocar beijos furiosos. João e Rosinha tinham fugido para
aquele esconderijo para um encontro extremamente sensual antes de começarem
os respectivos trabalhos. Mal chegam, já começam a se despir. Parecem já ser
muito íntimos, e o abade vê, maravilhado, João agarrar “sua fouce de folha larga”
e tocar com “o gume no botão da mimosa flor” (RABELAIS, 1906, p. 232).
Rosinha suspira, e Maurício solta “um débil ai... tinha-se-lhe entornado sem
querer, todo o rapé da sua magnifica caixa de ouro com esmaltes de Limoges!...”
(p. 233). As reticências sugerem que, da mesma forma que o casal, o abade tenha
atingido o orgasmo.
A pornografia nivela os corpos e contraria os mecanismos sociais. Figuras
paradigmáticas da literatura libertina, as protagonistas femininas, embora fruto
da imaginação masculina, eram colocadas em papéis muitas vezes transgressores,
relativizando as imposições morais. No final do século XIX, um dos nomes
para designar a literatura pornográfica era “histórias de prostituição”, que remete
diretamente à etimologia da palavra pornografia: “escritos sobre prostitutas”
(DARNTON, 1996; LADENSON, 2015). Não era necessário que a personagem
vivesse de sexo para ser chamada de prostituta, bastava apenas que transgredisse
o papel social apropriado a uma mulher da sociedade oitocentista.
Em Volúpias, a única prostituta no sentido estrito do termo é a personagem
de “O rouxinol de Laura”. O conto segue um modelo que seria explorado de
maneira mais precisa em Cocotes e conselheiros,19 também de Rabelais, publicado
19 Como o título sugere, os doze contos do livro tratam do envolvimento entre prostitutas e
homens públicos, na maioria velhos, descritos de maneira jocosa principalmente em episódios
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em 1887. A narrativa ironiza a figura de um general, que, embora goste de
alardear suas aventuras amorosas e garantir ser “forte e vigoroso como um sátiro”,
sua “espada gloriosa permanecia na bainha...” (RABELAIS, 1906, p. 114). Numa
espécie de falocentrismo às avessas, Rabelais usa a espada como uma metáfora
para falar da impotência do general. A “lâmina fraca” do velho não pode ser
enrijecida nem ao toque de Laura que, irônica, diz que a “arma” não poderia
ser usada “nem mesmo em batalha simulada” (p. 127). A ave que dá nome ao
conto parece ser uma metáfora para a vagina. O rouxinol de Laura tem a fama
de ser completamente sem plumas, mas aparece surpreendentemente negro. A
cor negra vinha da tinta usada nos bigodes do general, transferida à ave após
os sôfregos beijos que recebera. Depois de reticências, lê-se que, desde então, o
general ficara proibido de beijar o rouxinol.
Em “Modesta”, um dos contos mais curtos do livro, tudo gira em torno
de um único encontro amoroso entre a viúva Modesta e seu amante. Os versos
da epígrafe – “Amando, amando muito, assim Modesta/ Passava a existencia,
em gozo, em festa” (p. 155) – indicam que o objetivo central da narrativa é
o prazer sexual. Não há moral da história, não há culpa, qualquer explicação
extra ou anedota por parte do narrador. Esse conto é o que mais se encaixa na
concepção moderna de pornografia: serve única e exclusivamente para excitar o
leitor (HUNT, 1999). Já “Susana” aborda um dos temas de maior recorrência na
literatura do segundo Oitocentos, o adultério. Uma típica descrição naturalista
parece, logo de início, justificar o adultério: Suzana era mestiça; do pai, herdara
“a graça dos filhos do meio dia da França”, da mãe, “a indolência lasciva e
sedutora das americanas do sul” (RABELAIS, 1906, p. 198). O visconde é o
típico português gordo e bonachão que faz fortuna e se casa com uma mulher
muito mais jovem. Luiz, por outro lado, era um belo rapaz de “musculatura
hercúlea” (p. 201). A narrativa se passa na praia, onde Susana e Luiz se encontram
às escondidas na barraca que servia de vestiário para os banhistas. A narrativa
termina com um diálogo malicioso entre os amantes na presença do visconde.
Completamente ingênuo, ele não faz ideia de que as ausências de Luiz na praia
não eram causadas por uma dama qualquer.
O último conto de Volúpias tem um título sugestivo: “Eva”. Como
Modesta, ela também é uma jovem viúva. Rica e reclusa, construíra para si um
jardim particular magnifico que funcionava como uma espécie de santuário
bucólico intransponível. Num dia, enquanto descansa após um banho no lago,
Eva é atacada por uma assustadora serpente. João, seu empregado de maior
confiança, chega no último momento e mata a cobra com um único golpe.
Eva desmaia, deixando João completamente atordoado com a visão de sua quase
nudez. Com o sangue queimando nas veias, ele se reclina, sutil como um reptil,
e beija a coxa de Eva. A personagem desperta e corresponde imediatamente.
Passados seis meses, ela havia engordado “extraordinariamente”. Em suas últimas
de impotência sexual.
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As matrizes da
pornografia de
Alfredo Gallis
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palavras, o narrador pondera que “mais uma vez a serpente deu causa a que Eva
pecasse...” (p. 296).
Ao longo de sua carreira literária, Alfredo Gallis escreveu livros que
exploravam a sexualidade através dos tempos. Com títulos sugestivos, como
Voluptuosidades romanas e A devassidão de Pompeia, por exemplo, o autor
retoma um modelo muito utilizado pela pornografia inicial, de Pietro Aretino
(1492-1556) e seus contemporâneos, para se apropriar do estereótipo de que
as sociedades antigas eram altamente sexualizadas. A tarefa exigia erudição e
conhecimento dessas culturas, ou apenas leituras suficientes para reproduzir o
que já fora dito. Gallis tinha um vasto repertório ao seu dispor e talento para falar
da licenciosidade de romanos, gregos (O Sensualismo na Antiga Grécia, 1894),
judeus (A luxúria judaica, 1910) e, até mesmo, erotizar personagens bíblicos,
como o fez em As doze mulheres de Adão (1901).
A primeira incursão do escritor nesse tema foi em Volúpias, com
“Ligurino”. Nesse conto, Rabelais se dirige ao leitor e o convida a contemplar
uma cena de extrema sensualidade, um típico banquete romano. A narrativa
explora a paixão do velho poeta Horácio (65 a.c.-8 a.c.) por um efebo que dá
nome à narrativa. O efebo era um personagem recorrente no final do século
XIX, especialmente, no romance naturalista, a exemplo do lavadeiro Albino,
d’O cortiço (1890); o grumete Aleixo, do Bom-Crioulo (1895); e Eugênio, d’O
Barão de Lavos (1898) (MENDES, 2000). A figura do efebo aparece na literatura
ocidental desde a Antiguidade, representado como um “menino bonito” que
“ocupa um espaço ideal entre homem e mulher, efeito e afeto” (PAGLIA, 1992, p.
118). Seu potencial erótico faz referência ao mítico Ganimedes, raptado e levado
ao Olimpo depois de Zeus ficar completamente apaixonado por sua beleza. Gallis
tem um livro dedicado inteiramente a essa figura, O Sr. Ganimedes: psicologia
de um efebo (1906). Personagens como Ligurino faziam parte do imaginário
coletivo do século XIX, e mesmo os leitores não eruditos o reconheceriam como
pornográfico.
Fugindo do vocabulário chulo da tradição cômico-obscena, o Rabelais
português recorre a metáforas do universo pagão como recurso descritivo. A
alcova de Modesta, por exemplo, é ricamente decorada em ouro, vermelho e
preto; ao fundo, uma pintura representa o nascimento de Vênus. Seres mitológicos
adornam a cabeceira da cama e, ao redor, espelhos multiplicam os requintes de
luxo daquele “santuário da deusa” (RABELAIS, 1906, p. 161). Completamente
nus, Modesta e o amante se assemelham a divindades pagãs: ele, Apolo; ela,
Vênus. Esse imaginário pagão está também em “Deliciosa”, do livro Diabruras
do Cupido: contos galantes,20 para relatar o encontro sexual entre a prostituta
Cleópatra e um cliente cujo nome parece não ser relevante. Nas cenas, enquanto
20 A Edições Tinta da China, de Lisboa, lançou em 2011 o livro Aventuras Galantes, uma
brochura que reúne nove contos publicados sob a alcunha de Rabelais: dois de Diabruras de
Cupido: contos galantes, do qual desconhecem informações sobre a publicação, e sete extraídos de
Volúpias.]
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o amante se ocupa da “gruta de Calipso” e da “deliciosa flor de Vênus” da cortesã,
ela trata de cuidar da “seta de Cupido” (RABELAIS, 2011).
A última das matrizes da pornografia gallisiana é o argumento científico
do naturalismo. À época de sua primeira circulação, a ficção naturalista era mais
uma das categorias de “livros para homens” (MENDES, 2016). A revolução
científica da segunda metade do século XIX preparou um terreno fértil para
a proliferação de histórias destinadas à excitação sexual. Assim, para os leitores
brasileiros do final do século XIX, “o romance naturalista era um produto
em demanda numa sociedade recém-liberada das amarras da escravidão e da
monarquia” (MENDES, 2015, p. 9). As representações do corpo, o trato das
“patologias sociais” e o discurso científico, que tentava não julgar os “desvios”
morais dos personagens, faziam com que as obras naturalistas fossem “anunciadas,
vendidas e lidas como histórias sobre sexo”, e pouco importava que os escritores
dissessem que seus livros representavam “estudos” críticos sobre a sociedade (p.
9).
Esse foi o argumento usado por Alfredo Gallis em Chibos, ao afirmar
que seu objetivo era realizar uma “autópsia dos males sociais” (GALLIS, 1901,
p. 5), o que não impediu que esse romance fosse apropriado como pornografia.
Independentemente dos objetivos dos escritores, a centralidade nos aspectos
fisiológicos da construção dos personagens dava ao leitor uma chave de leitura,
também, fisiológica. Nas narrativas de Gallis, não faltam menções à histeria, à
constituição orgânica dos personagens e expressões como “organismo voluptuoso”,
“natureza indomável”, entre outras, que são repetidas em praticamente todos os
livros para justificar o desejo sexual dos personagens e o potencial pornográfico
dos textos.
A importância de Volúpias no contexto da obra de Alfredo Gallis
está, portanto, na negação de qualquer objetivo moralizante. Nas palavras de
Rabelais, o livro representa o amor “tal qual ele é, e não como o romantizam”
(RABELAIS, 1906, p. 7). As cenas de sexo, sempre claras apesar das metáforas,
oferecem uma espécie de nivelamento das hierarquias sociais aos moldes da
suspensão das normas organizadoras da sociedade que ocorre na carnavalização
rabelaisiana, conforme Bakhtin (1987). Nos contos, homens e mulheres buscam
apenas o prazer num processo de dessacralização do amor romântico porque
tudo acontece através da perspectiva mecânica dos corpos em sintonia.
Diferentemente do que faz em grande parte de sua obra, Gallis autoriza a
leitura pornográfica de Volúpias, cuja licenciosidade pode ser identificada já no
título e na assinatura, pois o leitor do século XIX sabia que o nome Rabelais era
um indicativo de literatura obscena. Convidando o leitor a deixar as roupas largas
para facilitar a masturbação, Rabelais confirma que os contos são um convite à
satisfação física e mental. A ressalva de que não poderia ser lido por mulheres
era apenas um recurso para instigar a imaginação pornográfica. Os personagens
não sentem culpa, e, embora não esteja completamente ausente certo juízo de
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valor por parte do autor, percebe-se que ele não se limita a simples insinuações,
descrevendo de maneira precisa posições sexuais praticadas entre homens e
mulheres. Essa ausência de culpa é uma das características que o autor toma
emprestado do imaginário medieval rabelaisiano, em que as pressões sociais são
suspensas, pois importam apenas a liberdade, a alegria e o prazer.
Oculto por trás de um nome muito conhecido, ao menos inicialmente, ele
se resguardava de eventuais fracassos em termos de crítica e venda. Mas o livro
foi um sucesso e lhe garantiu a fama de um dos pornógrafos mais conhecidos
no final do século XIX. Ao olhar para a sua produção literária, percebemos que
o livro de 1886 já começava a dar pequenas amostras do que um escritor com
tantos recursos como Alfredo Gallis podia fazer. Antes mesmo que os muitos
livros de Rabelais enchessem os anúncios de “romances para homens” e ele se
tornasse uma referência no gênero, Volúpias já era uma coleção licenciosa inteira
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Submetido em: 31/08/2019
Aceito em: 11/10/2019
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