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SUZANO Isaac COSTA1 Orientadora: Maria Cristina LEANDRO FERREIRA2 Resumo: Toda a fantasia que ronda o imaginário do homem viril é baseada na defesa laudatória de uma força que se coloca como superior a de qualquer outro indivíduo. Nestas condições, estar em paridade com os impotentes, desprovidos de poder, significa não ser viril, e assim ter negada a sua identidade enquanto indivíduo do sexo masculino, já que, nesse esquema, ser homem não comporta o fracasso e a impotência – essa masculinidade (tratada como tóxica e/ou frágil) precisa ser constantemente reafirmada. No caso de Suzano, esse sujeito impotente, frustrado com um sistema econômico-social que não reconhece sua pretensa superioridade e desprovido do poder de subjugar os demais, busca tomar seu espaço de assalto, numa tentativa de resgate da virilidade por intermédio da demonstração de força. Ressalte-se, ainda, que no interior da comunidade organizada em torno dos chans, esse sujeito odioso, ao eliminar os diferentes usando a força, será reconhecido como herói, arauto da masculinidade. A arquitetura desse tipo de comunidade gira em torno da construção de uma figura masculina que se delineia em detrimento de tudo aquilo relacionado ao frágil, ao diferente e ao feminino, além de apregoar sua necessária dominação (desejo de possuir), ou exterminação (desejo de destruir). Palavras-Chave: Virilidade; Desejo; Sujeito odioso. 1 INTRODUÇÃO O jornalismo, de maneira geral, opera com o imediatismo. Na corrida pela transmissão ao vivo, pela cobertura em tempo real, ganha quem primeiro se pronuncia sobre determinada notícia, alimentando mais rápido um bando de espectadores ávidos pelo inédito. Em Análise de Discurso, as “pautas quentes” podem ser perigosas, já que a narrativa que se constrói sobre um evento pode rumar para qualquer caminho, a depender da reação dos sujeitos ao que foi noticiado, ou da própria ação do sujeito que protagoniza o ato descrito. Os sentidos que circulam nos acontecimentos históricos cobertos pela mídia não são inéditos, mas não deixam de estar em constante erupção, o que torna necessário à leitura do 1 Doutorando em Estudos da Linguagem pela UFRGS, e-mail: isaac.costa@tuta.io. Pós-doutora em Análise do Discurso, Paris 3, Sorbonne Nouvelle. Professora Titular do Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS. 2 Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado analista de discurso a mobilização de recortes do interdiscurso, via memória3, em que se consiga observar um assentamento, repetição, qualquer tipo de estabilidade, ainda que ínfima, que situe aquele acontecimento numa determinada rede de significação. Um exemplo prático: inúmeras análises sobre o caso da garota marcada com uma suástica em outubro de 20184 (e a minha não foi exceção) foram solapadas pelos rumos que a investigação tomou, revelando haver incongruências entre o que se afirmava ter ocorrido – um ato violento contra o corpo social esquerdista, e aquilo que se percebeu como verdade – a simulação de uma agressão que teatralizava uma disputa ideológica. Independentemente da discussão sobre o que seja a mentira e de como analisá-la, o fato é que quanto mais recente é um acontecimento, mais propenso o analista está a responder de maneira apressada e/ou inconclusiva, afetando-se em demasiado pelas condições de produção do discurso, e ignorando o recorte temporal que precisa ser realizado em qualquer trabalho de AD. Enquanto sujeito, o analista não está acima ou fora da conjuntura social em que o discurso é produzido, o que torna mais complexa a tarefa em questão: como conseguir lançar um olhar sobre determinado acontecimento sem correr o risco de ser soterrado pelo fluxo de sentidos? E, na outra ponta do mesmo paradigma, como deixar de tratar de um tema que instaura ou reabre uma ferida social e evidencia uma espécie de trauma coletivo? Para ambas as perguntas, a resposta que se enceta é esta: não há como. Analisar um discurso significa, necessariamente, assumir um risco, e esse movimento se dá como resposta aquilo que oprime, que fere, oculta, inviabiliza e mata. Foi assumindo a carga de um investimento teórico desse porte que, em 1969, Michel Pêcheux travou batalhas no interior de campos que carregavam, à época, o mesmo tipo de comodismo que assegura reproduções teóricas de pouquíssimo deslocamento e que pode nos colocar na confortável posição de replicadores. Não há como, meus caros. Não existe meio seguro de se fazer AD, porque fazê-lo foi, desde o princípio, arcar com o tipo de revolta mais 3 Não cognitiva ou recuperada individualmente, mas social, resultado do enlace entre a memória mítica, a memória inscrita nas práticas sociais, e a memória construída do historiador: uma memória discursiva, nos termos de Pêcheux (1999, p. 49). 4 GROSS, Laura. Delegado fala que símbolo grafado em jovem que relatou agressão na Cidade Baixa é budista. Site da Rádio Guaíba, 10/10/2018. Recuperado de: <https://bit.ly/2RFUR03> Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado perigosa existente, a de ousar se revoltar e pensar por si mesmo5. O que proponho neste texto é, então, um desafio: o de investigar o massacre de Suzano sob a perspectiva da Análise de Discurso de inspiração pecheutiana, destacando o funcionamento do sujeito que comete este tipo de crime, na tentativa de compreender seus desejos. Ao contrário da temática, minha motivação para tanto não é complexa, e acredito ser da mesma espécie que a de qualquer analista de discurso: esta é, substancialmente, a nossa tarefa. 2 CONDIÇÕES O crime que figura como pano de fundo deste texto ocorreu no dia 13 de março de 2019 em uma escola estadual de Suzano, região metropolitana São Paulo, e consistiu em uma covarde tentativa de demonstração de força por meio do uso de armas de fogo, flechas disparadas por uma besta e coquetéis molotov, que terminaram por ferir onze pessoas e matar outras sete. As duas pessoas a abrirem fogo contra os alunos eram homens brancos de classe média, de 17 e 25 anos, que cometeram suicídio ao serem cercados pela polícia. Um suposto terceiro envolvido, menor de idade, está detido e aguarda julgamento. Algumas observações sobre os criminosos são dignas de nota, e se referem essencialmente ao fato de que eles participavam de imageboards (chans), uma espécie de fórum online que não requer cadastro e que não arquiva histórico, possibilitando a navegação anônima. Esse tipo de ferramenta é conhecida pela ocultação do IP do usuário por intermédio de softwares de código aberto como o TOR, acrônimo de The Onion Router. Na prática, esse sistema funciona em camadas (daí a associação com onion) que se sobrepõem em uma base de oito mil servidores alternativos e garantem que o user tenha privacidade e anonimato garantidos. Originalmente, o chain e o TOR foram elaborados para assegurar a interação entre pessoas que, de alguma forma, tinham acesso censurado à informação – pela política de uso de internet de seus países de origem, e/ou pelo backlash que poderiam sofrer ao compartilhar certos dados de maneira nominal. Dessa forma, a polícia poderia investigar cyber crimes sem ser identificada, e ativistas poderiam resguardar suas 5 A referência é à Semântica e Discurso (PÊCHEUX, 2014, p. 281). Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado identidades, na busca pela manutenção de sua integridade física, frequentemente ameaçada. Contudo, pela facilidade de acesso somada à ocultação de IP, essas plataformas digitais passaram a ser utilizadas por grupos extremistas que divulgam posts odiosos e, em casos mais graves, organizam ataques coordenados como o de Suzano, celebrados por certas comunidades virtuais que heroicizam os criminosos a cometerem os atentados. Nesses moldes, são reconhecidos e idolatrados indivíduos como aqueles responsáveis pelo massacre no Realengo, ou mesmo em Columbine, Virginia Tech, Olean High School e Montreal, para citar alguns. Esse tipo específico de massacre segue um certo modus operandi replicado – um tiroteio à queima roupa, premeditado, em espaço escolar, e que culmina no suicídio de seu autor ou autores. Além disso, os assassinos são sempre homens, heterossexuais, brancos, adolescentes ou jovens adultos, que compartilham de um ressentimento particular. A mídia, e a sociedade, em amplo aspecto, trataram de tentar apontar as possíveis motivações desses sujeitos por meio da associação dos atos criminosos a distúrbios psicológicos, ao bullying, e a uma pretensa cultura de incitação à violência, que, de maneira geral, comporta programas de TV, filmes, livros, músicas e videogames que envolvam explicitamente atos violentos. Nesse cenário, figuram ainda a desestruturação familiar, o isolamento social e a dificuldade de socialização, que, em maior ou menor medida, e atreladas aos fatores citados, fabricariam um assassino. Do campo discursivo em que me situo, cabe ressaltar algumas particularidades mais opacas quanto à aplicação aparentemente transparente desses fatores como coeficientes de uma regra de três, cujo x determina a motivação do criminoso. Em primeiro lugar, a simples exposição às condições da cultura da violência não é capaz de, por si só, tornar um sujeito em um infrator. Se assim o fosse, qualquer espectador dos noticiários que promovem a espetacularização do crime, público alvo dos “pinga sangue”, sairia pela cidade cometendo toda sorte de delitos. Em segundo lugar, o bullying, majoritariamente endereçado aos negros, mulheres e homossexuais, não faz com que esses grupos minoritários reajam de maneira agressiva. Em verdade, o maior prejuízo nos casos desse tipo de assédio é um comportamento depressivo, que se configura precisamente pela ausência de Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado potência de ação. O último dos condicionantes, o transtorno psicológico, aponta para um despreparo da sociedade no que diz respeito à identificação, discussão e tratamento dos distúrbios mentais, já que a livre associação entre crime e doença mental não é óbvia, e termina por estabelecer um paralelo generalista que beira a ignorância pela via do preconceito. Se isolados esses fatores não dão conta de explicitar a motivação do assassino, tampouco em conjunto corroboram com a delimitação de um perfil pré-moldado, o que se verifica, no caso de Suzano, pelo não atendimento dos sujeitos às condições previamente estabelecidas. O giro necessário nesse cenário é do mesmo tipo daquele que aludi ao introduzir a precisão teórico-metodológica do analista de discurso no tratamento dos seus objetos: não basta a identificação das condições imediatas de produção, há de se situar o acontecimento numa determinada rede de significações que remonte um recorte específico do interdiscurso pelo viés da memória. O que proponho aqui não é ignorar a existência da tríade dos fatores mobilizados, mas sim deixar de aplicá-los como parâmetros autotélicos, descolados da conjuntura social que lhes possibilita o significado. Essas condicionantes, isoladas ou em contato, não funcionam como molde estanque: antes, apontam para um intricado conjunto de condições de produção de um discurso específico que atravessa e possibilita o surgimento de determinados acontecimentos. É possível conectar o caso de Suzano ao de Realengo pela mimese de certos signos compartilhados: a faixa etária dos criminosos, o ambiente do ato cometido, o modo como os assassinatos ocorreram e o posterior suicídio dos autores. As mesmas associações também podem ser feitas entre Realengo e Columbine, donde primeiro se situa a relação com o bullying, já que foi essa tragédia a responsável por “apresentar o bullying ao mundo” (MARRAN, 2017, s/p). Nesses termos, em Realengo, o autor “teria sido vítima de bullying, suposta motivação atribuída para que ele planejasse o massacre” (G1, 2011, s/p). Entretanto, e como vinha afirmando, a alocação desse fator num quadro de repetitividade não confere uma explicação da motivação dos assassinos, o que foi observado tanto em Columbine, “I also explain why other factors - such as bullying - are not sufficient to explain the occurrence of Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado school shootings”6 (LANGMAN, 2009, s/p), quanto em Realengo, “no primeiro trecho, diz: ‘a luta pela qual muitos irmãos no passado morreram, e eu morrerei, não é exclusivamente pelo que é conhecido como bullying’, diz” (UOL, 2011, s/p). A tentativa de explicação da motivação pelo bullying, nesses casos, se baseia na caracterização do assassino como vítima de um sistema que o oprime, figurando o crime cometido como ato reacionário aos maus-tratos sofridos no âmbito escolar, social e/ou familiar. Esse apagamento da culpa está ligado ao fato de o autor desse tipo de crime ser menor de idade, referido, assim, como menino ou adolescente, mesmo que não o seja, como se percebe no tratamento conferido a um dos autores do massacre de Suzano, de 25 anos, retomado como um dos “dois adolescentes encapuzados [que] mataram oito pessoas no local e cometeram suicídio em seguida” (G1, 2019, s/p). A mesma conjuntura social que mascara a culpa de um assassino pelo viés do bullying, sentencia à morte, mesmo sem evidências definitivas, um jovem adolescente com problemas mentais pelo estupro e assassinato de sua patroa. Ao fim dos quatro minutos de deliberação de seu caso e da emissão da decisão do júri, Jesse Washington7 foi arrastado pela multidão que o aguardava do lado de fora do tribunal de justiça de Waco, onde foi brutalmente espancado, castrado, arrastado pelos quarteirões e queimado ainda vivo por um público que, mais tarde, vendeu partes de seu corpo como suvenir, registrando fotos do ocorrido e transformando-as em cartões postais. Jesse era negro. Os culpados pelos massacres escolares são brancos. O linchamento de Jesse não se cruza com o massacre de Suzano, mas recupera a memória de um funcionamento social específico: o do ódio direcionado às minorias. Não por acaso os assassinos de Suzano e dos crimes que lhes serviram de modelo são homens brancos – o que o modelo triplo de fabricação da motivação criminosa reflete é o encobrimento do conflito essencial nesse caso: sua causa é o discurso de ódio, e o que lhe antecede é a intolerância dirigida a negros, mulheres e homossexuais. Só há causa daquilo que falha: historicamente, ao 6 “Eu também explano porque outros fatores (tais como o bullying) não são suficientes para explicar a ocorrência dos tiroteios escolares” Tradução livre. 7 TENREYRO, Tatiana. Jesse Washington Was A Real Person & 'BlacKkKlansman' Brings His Horrific Story To Light. BUSTLE, 08/09/2018. Recuperado de: <https://bit.ly/2Qz1Ebl>. O caso também é mencionado em BlacKkKlansman, dirigido e coescrito por Spike Lee (2018). Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado caucasiano foi prometido o lugar de dominância, o sucesso profissional, financeiro e amoroso. Ao falhar, se enxergar como uma categoria entre outras, ver destruída a sua coroa e desestruturado o seu reinado, esse sujeito direciona seu desejo frustrado ao outro, e o planeja destruir, como se aniquilando os diferentes ele conseguisse reconstruir uma configuração social utópica de maneira heroica. A motivação do criminoso não está em qualquer uma daquelas condicionantes: elas marcam apenas o início de um panorama mais abrangente, gestado na conjuntura social capitalista, calcado na mutação da virilidade, e que remonta o funcionamento discursivo de um sujeito odioso, identificado com formações discursivas racistas, misóginas, homofóbicas e xenofóbicas, atravessadas pelo ódio. A sua motivação está na própria concepção desse sujeito no discurso em que se insere e pelo desejo que manifesta. 3 SUJEITOS O sujeito do discurso pode ser compreendido a partir de duas chaves de interpretação complementares, embora diametricamente opostas: uma fornecida pelo Materialismo histórico-dialético, e outra pela Psicanálise freudo-lacaniana. O primeiro desses âmbitos vai situar as condições externas ao sujeito, enfatizando as relações de produção que originam a configuração social em que ele se insere; o segundo, dissertar de que maneira sua falta constitutiva vai ser encoberta pelo desejo, a partir da análise das tentativas falhas dessa tamponagem no plano simbólico. Em outro texto8 tratei do sujeito odioso como fruto da ação do multiculturalismo do Estado hegemônico, consubstanciado a uma das paixões fundantes do ser para Freud, o ódio, no aspecto que lhe permite a agressividade enquanto afeto. O termo multiculturalismo veio de empréstimo da formulação original de Zizek (2016) sobre a alteridade absoluta, e denomina um tipo de ideal centrado na ocultação das diferenças pela marcação de similaridades – étnicas (no Brasil não existe raça, pois somos todos miscigenados), de gênero (no Brasil não existe pluralidade de gênero, pois, acima disso, somos todos humanos) e religiosas (independente da religião, todos somos filhos de Deus). O encobrimento do conflito 8 COSTA, Isaac; LEANDRO FERREIRA, Maria Cristina. A Violência Constitutiva – relações entre pulsão de morte e expressões de luta no sujeito do discurso (no prelo). Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado sob o viés da universalização cria uma espécie de barreira que, quando atravessada, deflagra o desejo de acentuação das particularidades. Se esse desejo projetado pelo sujeito for frustrado, e/ou não sublimado, e quebrar a cadeia da demanda numa vazão odiosa, podem ocorrer “explosões de violência absolutamente contingentes” (ZIZEK, 2016, p. 223). A acusação não é a de que qualquer tentativa de particularização implique em uma agressão, um atentado contra o outro, como o foi Suzano, por exemplo, muito embora a particularização, em si, consista em um ato iminentemente violento. Explico: essa constatação inicial sobre a universalização reflete no plano ideal uma relação social concreta, ainda que sob o viés da inversão, já que parte da concepção de uma categoria particular como sendo universal. Inversão e universalização são duas das formas de apresentação da ideologia, que é, em suma, a representação imaginária das relações concretas que tornam uma classe dominante. A quem atende a afirmação de que somos todos iguais? Que grupo particular se beneficia com o encobrimento das diferenças sociais, e sua consequente apresentação como universal? O conflito entre os diferentes grupos sociais é a base da luta de classes, motor da história de todas as sociedades e responsável pelas divisões do trabalho que estruturam a conjuntura social a partir da determinação econômica. Esse sistema social assenta na dominação de um grupo sobre o outro, leia-se, dos detentores dos meios de produção sobre a força produtiva. O ocultamento dessas relações pela ideologia serve para garantir a reprodução desse modelo, de modo a manter a dominação, exercício assegurado pela ação dos aparelhos ideológicos do Estado. Apagar o conflito afirmando que somos todos iguais corresponde, assim, ao exercício ideológico da classe dominante. Evidenciar o funcionamento dessa estrutura, assumindo a existência da diferença entre as classes e seus conflitos por intermédio da particularização, é um ato violento porque consiste numa tentativa de desorganização desse sistema. Nesse contexto, violência e agressão não são sinônimas: a primeira está relacionada à disparidade, evidenciação da diferença social, enquanto a segunda designa um tipo de afeto atribuído pelo ódio e direcionado a determinado objeto de desejo, que comporta a busca pela satisfação gozosa do sujeito. Nesses termos, a Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado agressão está, em si, conectada a uma tentativa de satisfação do desejo de destruição do outro pelo sujeito odioso, enquanto a violência diz respeito ao conflito que lhe serve de base. No caso de Suzano, o desejo de destruição ocorre pela impossibilidade de atendimento do pedido do sujeito dirigido ao outro, que quebra a cadeia da demanda e cede lugar ao ódio, coagulado ao querer destruir. Em verdade, o que esse sujeito odioso quer é a concretização de uma projeção distorcida arquitetada como promessa histórica: que lhe seja garantido sucesso (profissional e pessoal) com base no seu lugar de privilégio, assegurado pelo atendimento a certos estigmas estéticos e de status, como a cor da pele – branca, e o gênero – masculino. Na impossibilidade de o outro cumprir esse papel, o sujeito direciona seu desejo para a aniquilação, dando vazão à agressão. Como vinha afirmando, as ideias dominantes em um determinado período são aquelas da classe dominante. No caso da conjuntura brasileira, essa classe cristaliza certos aspectos que remontam um sujeito dotado de características socialmente não-marcadas (porque tidas como evidentes ou neutras) que lhe conferem status, como a cor da pele – branca, a classe social – alta, o modo de falar – culto, e a orientação sexual – hétero. Em estado de dominância, essa arquitetura é posta como padrão a ser replicado, e associa-se à hegemonia, muito embora não garanta, por si só, o pertencimento ao grupo dominante, já que o que de fato caracteriza a dominância é deter o poderio dos meios de produção. O mero atendimento aos padrões estéticos da classe dominante, ou a busca pela sua replicação, não implica conquista de prestígio social, aqui compreendido enquanto estatuto que opera com o poder de aquisição, tradução do que referi anteriormente como sendo “sucesso (profissional e pessoal)”. O poder de aquisição engloba a retenção de capital suficiente para compra de determinados objetos que funcionam para manutenção da posição hegemônica. Tais objetos são definidos, por repetição, com base na predição da parcela em dominância, de forma que cada conjuntura define para si quantos e quais são os objetos que lhe conferem status: sua materialização, assim, pode incluir desde animais a pessoas, imóveis, automóveis, empresas, ações, sexo, armas, aparelhos eletrônicos, enfim. Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado Some-se a isso a perpetuação da crença de que o homem guardaria uma relação íntima com o poder de aquisição, sendo este o substituto moderno para o conjunto de signos outrora associados à virilidade. O sentido de ser viril conjuga masculinidade e dominação numa equação que tem como coeficientes o poder e a força. Nesses termos, ser um homem viril significa necessariamente dominar e conquistar, estar superposto a qualquer outra categoria de ser humano. Em todas as esferas de atividade e em qualquer classe social que esteja alocado, o homem busca a validação de sua masculinidade pelas vias que lhe permite a virilidade, o que se evidencia nas constantes tentativas de depreciação das minorias e seu mecanismo correlato, a autopromoção aliada à ultra-valorização de signos que remontem a um ideal viril: corpos musculosos, barbas, armas, bebidas alcóolicas, comportamentos agressivos, ausência de emoções etc. Na memória discursiva, esse discurso da virilidade atravessa a constituição de alguns tipos de ícone, como o pirata – que conquista os territórios inimigos e deflora as virgens que estiverem no caminho, o lenhador – que depende exclusivamente da própria força e sabedoria, o policial – que promove segurança por meio da autoridade e da violência, o bombeiro, o astronauta, o lutador, enfim, imagens que remetem de algum modo a um ato heroico e/ou viril. Esse tipo de personagem participa da construção de um imaginário que situa a figura masculina como necessariamente agressiva, dominadora, conquistadora, competitiva e heroica. O espaço reservado ao ser masculino é diametralmente oposto ao sensível e não comporta, assim, demonstrações de vulnerabilidade e do que é comumente associado à fragilidade: por oposição, qualquer estigma do universo de saberes ligado ao ser feminino. Essa divisão sexista dissimula quaisquer aproximações entre o desenvolvimento do homem e o da mulher, e pode contribuir para o quadro de agravamento de patologias como a misoginia, por exemplo. Assim apresentada, essa falsa correspondência entre a delicadeza e o feminino, aliada a crença de que, exceto pela prática sexual, macho e fêmea são alheios um ao outro, também participa da construção de condutas homofóbicas e transfóbicas em geral. Isso porque, do ponto de vista da masculinidade, existe uma conexão direta entre mulheres, homossexuais, transexuais e travestis, que partilham dos signos Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado femininos e que, juntos, representam, para o homem, o outro, espantalho do que não ser, ou do que deve ser erradicado. A qualquer tempo, se a ação do sujeito da masculinidade divergir daquela determinada pelo conjunto de normas pré-estabelecidas socialmente que remontam ao agir do homem, formas cristalizadas como “seja homem”, “engula o choro”, “homem não chora”, “você é um homem ou um rato?”, o interpelam, na pretensão de fazê-lo (re)identificar-se com o discurso da virilidade. Dessa forma, tais construtos, assim colocados, remetem ao funcionamento da forma-sujeito, a sentinela de uma matriz de sentido que regula e controla “o que pode ou deve ser dito” (PÊCHEUX, 2014, p. 147). No exemplo aqui discutido, essa é a forma-sujeito de uma formaçãodiscursiva da masculinidade, atravessada pelo discurso da virilidade. Materializado, tal discurso se mostra em construções simbólicas apoiadas em um imaginário que comumente remete à dominação pela força e à necessidade de validação da masculinidade como condição a ser conquistada e eternamente defendida. Nessas vias, essa performance do masculino e toda a fantasia que ronda o imaginário do homem viril são baseadas na defesa laudatória de uma força que se coloca como superior a de qualquer outro indivíduo, de forma que a associação com a fragilidade e com a impotência descaracteriza o ser masculino. Nestas condições, para este sujeito da masculinidade, estar em paridade com os impotentes, desprovidos de poder de aquisição, significa não ser viril, e assim ter negada a sua identidade enquanto indivíduo do sexo masculino, já que, nesse esquema, ser homem não comporta o fracasso e a impotência – essa masculinidade (tratada como tóxica e/ou frágil) precisa ser conquistada e constantemente reafirmada. No caso de Suzano, esse sujeito impotente, frustrado com um sistema econômico-social que não reconhece sua pretensa superioridade e desprovido do poder de subjugar os demais, busca tomar seu espaço de assalto, numa tentativa de resgate da virilidade por intermédio da demonstração de força. Ressalte-se, ainda, que no interior da comunidade organizada em torno dos chans, esse sujeito odioso, ao eliminar os diferentes, será reconhecido como herói, arauto da masculinidade. Em verdade, toda a organização desse tipo de comunidade gira em torno da construção de uma figura masculina que se delineia em detrimento de tudo aquilo Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado relacionado ao frágil, ao diferente e ao feminino, além de apregoar sua necessária dominação (desejo de possuir), ou exterminação (desejo de destruir). Não por acaso, em Realengo, “„ele matava as meninas com tiros na cabeça. Nas meninas, ele atirava para matar. Nos meninos, os tiros eram só para machucar, nos braços ou nas pernas‟” (G1, 2011, s/p), e em Suzano, o terceiro indivíduo detido, “com o intuito provocar mais comoção do que o ataque de Columbine, nos Estados Unidos, o menor diz que o plano envolvia despir as garotas, executá-las no meio do pátio e depois posicionar os corpos de ‘forma humilhante’” (CATRACA LIVRE, 2019, s/p). A produção desse sujeito odioso passa, então, pela: a) mutação da virilidade, marcada pela transferência do poder de dominação para o de aquisição; b) frustração do desejo de particularização pela dominação; c) vazão agressiva do desejo; e, finalmente, d) direcionamento destrutivo do desejo, que passa a compreender a aniquilação do diferente, veiculada pelo ódio a qualquer grupo dissidente da hegemonia: mulheres, negros, gays, esquerdistas, estrangeiros etc. Ainda a título de condição de produção do discurso no qual se inscreve esse sujeito, é interessante destacar o constante aumento da taxa de desemprego no Brasil (MARÉS, 2019, s/p), incidente na conquista de poder aquisitivo, e a facilitação do porte de armas no país, assegurado por decreto em janeiro de 2019 (G1, 2019, s/p). O mero apontamento deste último fator não encerra a discussão sobre o assunto, mas situa sua repercussão no quadro geral de avais ideológicos concedidos desde a eleição de 2018, proporcionados pela identificação desses sujeitos com uma figura que se apresenta como epicentro de posicionamentos intolerantes, fundamentalistas, ignorantes, odiosos, enfim, que demonstra níveis preocupantes de instabilidade mental e de despreparo político. 4 INFERÊNCIAS A primeira das constatações abordadas por este estudo deslocava o foco da motivação do ato criminoso das condições de produção e o situava na constituição do sujeito do discurso. Este deslocamento se torna possível a partir da percepção de que o exterior não é exclusivamente o determinante do sentido, mas sim a relação tensa que ele (o exterior) trava com a contraparte (interior) de certas condicionantes Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado do sujeito, donde se situam o inconsciente e o desejo. Essa formulação não tem a pretensão de ignorar as condições de produção, mas de operar, com base nelas, um recorte específico do interdiscurso, via memória, que situe o objeto de análise num tempo determinado e demonstre, nesse movimento, um diálogo entre os mecanismos de constituição do sujeito e as condições de produção do discurso em que ele se insere, a fim de se observar a produção do sentido. Ainda na ADD-69, ao discutir sobre as condições de produção, Pêcheux (1990) explora a participação do sujeito nesse esquema como seu experimentador, construtor da montagem em que figuram as condições: “neste caso, com efeito, o experimentador é somente o construtor de uma montagem que funciona independentemente dele, extraídos os artefatos experimentais” (PÊCHEUX, 1990, p. 80). Dessa maneira, a investigação das condições de produção compreende não apenas o exterior específico da linguagem ou mero mapeamento das formações imaginárias, mas inclui em si a análise dos processos de constituição do discurso e do sujeito. Nesses termos, este mesmo sujeito é parte integrante dessa montagem: “o experimentador é uma parte da montagem, qualquer que seja a modalidade de sua presença” (PÊCHEUX, 1990, p. 80). Esse processo opera com a dimensão da linguagem enquanto espaço das manifestações simbólicas, falhas desde sua inscrição, com o materialismo históricodialético como meio de investigação da ação ideológica e das condições de determinação da conjuntura social, e com a Psicanálise enquanto área que permite a observação do funcionamento dos desejos que movem o sujeito. A conjunção entre as três áreas de base da AD permitiu mapear a constituição de um sujeito que se coloca entre o desejo de retomar para si o controle da própria narrativa e o de aniquilar os seus antônimos, numa vazão agressiva do ódio. Nesse esquema, no lugar de condicionantes generalistas como o bullying, figuram a ação ideológica da particularização e a mutação histórica da virilidade, donde se situa a transferência do mérito da conquista para o poder de aquisição. Essencial à compreensão do sentido no caso dos massacres escolares está, também, a participação dos sujeitos em grupos anônimos de propagação do ódio, que atribuem notoriedade aos autores dos assassinatos em massa por meio da Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado exaltação de seus nomes e replicação dos seus atos. Também por esta razão 9, durante essa exposição, os assassinos não foram referidos pelos nomes próprios, tendo estes sido ocultados das citações em que apareciam. A busca pelo reconhecimento no interior das comunidades virtuais faz parte do movimento de particularização do sujeito odioso, e marca o ensejo de pertencer e de exercer um tipo de influência e poderio, ainda que póstumos. Em reconhecimento desse funcionamento, movimentos de apagamento dos nomes dos autores desse tipo de ato criminoso são endossados publicamente por figuras como Jacinda Ardern, primeira ministra da Nova Zelândia, que em seus pronunciamentos deixa explícito o tratamento anônimo direcionado ao autor do atentado de Christchurch 10, por exemplo. Por fim, e sempre seguindo o edifício teórico erguido por Pêcheux, reafirmo que enquanto analistas de discurso, nossa função é a de interpretar, e assim ousar pensar e se revoltar, entender o funcionamento desses sujeitos quebrados e refletir, a partir daí, na melhor maneira de suturar as feridas que deixaram abertas no corpo social, ainda que sejam de difícil cicatrização. REFERÊNCIAS PÊCHEUX, Michel. Semântica e Discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. ORLANDI, Eni Puccinelli (trad.). 5° ed. Campinas: UNICAMP, 2014. _____. Papel da memória. In: ACHARD, Pierre. et al. (org.) Papel da memória. NUNES, José Horta (trad.). Campinas: Pontes, 1999. _____. Análise Automática do Discurso (AAD-69). In: GADET, F. & HAK, T. (orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. MARIANI, Bethania et. al. (trad.). Campinas: Editora da UNICAMP, 1990. ZIZEK, Slavoj. O sujeito incômodo – O centro ausente da ontologia política. BARICHELLO, Luigi (trad.), 1 ed. São Paulo: Boitempo, 2016. 9 E essencialmente porque a AD não opera com indivíduos, mas com sujeitos. “He sought many things from his act of terror, but one was notoriety, and that is why you will never hear me mention his name. He is a terrorist. He is a criminal. He is an extremist. But he will, when I speak, be nameless. And to others, I implore you: speak the names of those who were lost, rather than the name of the man who took them.” (GUARDIAN NEWS, 2019, s/p). “Ele buscou muitas coisas a partir de seu ato de terror, mas uma delas foi notoriedade, e é por isso que vocês nunca me ouvirão mencionar seu nome. Ele é um terrorista. Ele é um criminoso. Ele é um extremista. Mas ele será, quando eu falar, „sem nome‟. E para os outros, eu imploro: falem os nomes daqueles que foram perdidos, e não o nome daqueles que os levou embora”. (Tradução livre). O nome das vítimas do massacre de Suzano segue após as referências deste texto. 10 Cascavel (PR), 2019 | Texto Completo – não paginado Notícias CATRACA LIVRE. Polícia descobre estratégia dos assassinos do Massacre de Suzano. Catraca Livre, 19/03/2019. Recuperado de: <https://bit.ly/2YJhG6M> _____. Dupla ataca escola em Suzano, mata oito pessoas e se suicida. G1, 13/03/2019. Recuperado de: <https://glo.bo/2T4IGJI>. _____. 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