Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Academicismo e Modernismo na América Latina

2008, CD - ROM Academicismo e Modernismo na América Latina

O PONTO DE PARTIDA PARA ESTE TRABALHO remete à disciplina História da Arte III, cuja ementa contempla um conteúdo plástico latino-americano, mas esbarra na escassez de um arsenal imagético e bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Entre 2004-2 e 2005-2 teve inicio um levantamento preliminar que contou com envolvimento dos alunos do Curso de Artes Plásticas do CEART-UDESC e confirmava a necessidade de um aprofundamento do material, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Neste sentido, o empreendimento teve continuidade, procurando identificar as principais características artísticas entre os países da América Latina, bem como considerando a relação de proximidade-distância e semelhança-diferença de sua produção, capaz de gerar abordagens e potencializar reflexões sobre as artes plásticas no âmbito da modernidade para além das leituras auto-centradas ou que registram apenas os vínculos europeus ou norte-americanos. Reconhecendo a extensão do assunto, bem como as implicações analíticas e comparativas envolvidas, o caso brasileiro foi considerado para fins de um outro estudo.

CHEREM, R. M. ; MAKOWIECKY, S. . Academicismo e Modernismo na América Latina. 1ª. ed. Florianópolis: UDESC, 2008. v. 1000. Rosangela M.Cherem e Sandra Makowiecky ! " # $%%& $ $%%' $ ( ) * )# +, -.#/) ( ( " 0 ! 23 ! 4 ! 5 1 6 2 2 23 47 5 ( ! ! , ',% " #+ %' %+ - % - " # $ % + $ " %$&'% () & + -% !$ ! + '* % ! $& + %, . ( $%%8 $%%9" - ! 1 6 ! ( 23 5 6 : 27 27 4 27 "# ( 6 23 ! 2 ; 27 ( 23 7 27 " < = >9' ( ( ? 4 @ 4 " / ( $% % $ + %$ $0+% 1 9'% % A'% ! ( 23 ( ! " ) 2 $%%8 ( &'%% !+ " 7 + 1 7 89455: % % % ( % & % 2 % ' *-% 9 7 3!% & + = !$&+% %$ -% + & + ?+% $ +% 7 ! ! !& + & ! % '%@ + %( , 2 & # ' >?>% " # + 3! %$ ! 1 " '! + %, . %,!'> ( ) # % ' ( $ 3! % 3! + -% % $ 4556" $ 455<" '0$ '! %, $ % * % 7 & + ! 45567455< " & +0$ &+ & +* % " + " & > $ '% #% 3 8;94556 & + ! ). +<0 %,!'> ( + %$" $&'% ( > + " ' % 7 %$ . 23 % %,!'> ( 6 $ ! % !+ % + $ $&'% + ! + & + ?+% #+ + !+ ! "0 23 6 6 ( ! ( 6 23 2 23 6 ( 23 23 " ( 23 ( 6 ( 6 ( " B 6 6 6 3 6 23 2 23 : ( 23 ( ( "< 23 2 ! 43 ! C 4 27 B $ B 23 23 ( 5 23 " = ( ( 6 23 ! 6 23 ( " < ( 4 ! 3 : ( 3 EE" 4 ! ( "1 ( ( ( 6 23 ! 23 ( " 27 23 ( "0 ( 5 : 3 6 23 ! 3 6 23 23 23 " 3 ". 3 23 3 23 23 ( 3 4 5 : ( " A 6 B 23 ! 23 . 23 23 " / ( 7 ( 4 7 (F # ( ( 6 ! ( ( " ( 5 (F 6 "* ( 6 D 2 ( 6 23 ! " ( ( ! ( ( ! 23 ", ? 3 4 ( 3 ( 27 47 27 ( ( 27 " ( ( 6 ( 3 23 23 " C D 6 27 ! 3 2 : : " G ( 23 3 ( ( ( ( 7 7 6 "* ( 3 = 4 6 ( 6 2 6 6 5 @ = """@" / ! ( ! ( 6 ! 6 ! : ( 23 : 27 " . 27 ! : 4 6 5 2 27 27 27 ( & "? 4 ; ( 27 27 ( 23 27 ( 6 6 2 27 " # 3 3 ( ( ( ! 6 ( 6 : 23 : ( " : 6 ( : ( : ( ( ( ( / E = ( ! 3 ( " * 6 3 ( 3 "# ! ( ( 3 23 ( 5 ! " < ! " 6 ! ( 23 ( ! ! ( ; ( ; 4 "* ( 4 23 ( ! 23 ( ( : ( ( ( ! 23 " H 2 23 6 23 ! "0 ( ( ( EE 3 6 EE ! ( ! " A ( 23 * ' I )# +, -.#/) ( 7 27 ( 23 47 ( 47 " 3 ! 23 C 4 6 $% % $ ( + %$ 23 " ) ( / $ ( ( +% 47 " 23 23 ( 43 ( 27 ( +% + &() ( ( ( ! ! 1 ) ( ( 4 "H 6 % ?+% %#%'% + " F% ! % +!& )0*J. 8 ARQUIVOS: SOBRE OS LIMITES E DESTINOS DE UMA PESQUISA Academicismo e modernismo em Santa Catarina1 Sandra Makowiecky 2 Giorgio Vicenzo Filomeno e3 Participantes do Grupo de Pesquisa (SC):Marina Rieck Borck4 Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5 Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina e América Latina. Seu início foi assinalado pela escassez de um arsenal imagético e bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Apresenta-se aqui uma parte deste percurso ocorrido durante o manuseio de arquivos e a elaboração de um mais amplo, bem como as reflexões teórico-metodológicas daí decorrentes. Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina; América Latina; arquivos;museu. 1- OS CONTORNOS DA PESQUISA. A partir da disciplina História da Arte III, ministrada pela professora Rosangela Miranda Cherem, cuja ementa contempla um conteúdo plástico latino-americano, verificou-se a escassez de um arsenal imagético e bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Entre 2004-2 e 2005-2 teve inicio um levantamento preliminar que contou com envolvimento discente e foi devidamente explorado, mas que ratificava a necessidade de um aprofundamento do 1 Academicismo e modernismo em Santa Catarina – UDESC, Centro de Artes Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC. 3 Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina. 4 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC 5 Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (Coordenadora do projeto SC) e Rosangela Miranda Cherem ( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também acadêmica do curso de Artes Plásticas. 2 material, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Neste sentido, fez-se necessário prosseguir o estudo, procurando identificar as principais características artísticas entre os países da América Latina, bem como considerando a relação de proximidadedistância, semelhança-diferença de sua produção, destinada tanto à geração e potencialização de novas abordagens e reflexões sobre as artes plásticas no âmbito da modernidade, como em especial, abordando o modernismo para além de leituras auto centradas ou que registram apenas os vínculos europeus ou norte-americanos. Como um projeto de pesquisa formulado com fins institucionais foi previsto uma investigação para ser desenvolvida entre fevereiro de 2006 a fevereiro de 2008. Porém a extensão documental e a dificuldade de localização das fontes levaram à prorrogação de mais um semestre, ou seja, até julho de 2008, para finalizar a parte de América Latina. Utilizando os acervos bibliográficos disponíveis na Internet e conforme os países da América Latina, os principais objetivos da pesquisa ficaram definidos no sentido de mapear os artistas e sua produção no âmbito das Academias de Arte e dos movimentos identificados com o modernismo, permitindo reconhecê-los conforme suas percepções estéticas e sensibilidades temáticas, condições de trabalho, expectativas, sociabilidades e demais critérios apontados pelo levantamento empírico; além de indicar possibilidades de estudo e desdobramento de problemas a serem desenvolvidos em investigações posteriores. Em outras palavras, constatada uma escassez de estudos e pesquisas sobre as artes plásticas neste continente, buscou-se um caminho capaz de permitir tanto um entendimento mais abrangente e rico da produção artística como favorecer avanços para além dos catálogos e estudos sobre acervos privados e/ou monotemáticos, bem como ampliar as articulações das particularidades em relação ao conjunto de questões mais abrangente, permitindo análises mais consistentes acerca de certas contaminações e desdobramentos plásticos. O recorte cronológico definido envolvia desde o nascimento da mais antiga academia de artes latino-americana (1785 no México) até a segunda guerra mundial, uma vez que depois daqueles anos instalou-se um outro contexto de rupturas, relacionado ao concretismo e neo-concretismo até a morte das vanguardas, configurando-se num outro objeto de estudo. Em função da amplitude do objeto a ser estudado e da inegável ausência de estudos mais abrangentes e sistematizados sobre o assunto, a pesquisa se configura como 2 uma espécie de cartografia de problemas relativos à História da Arte na América Latina. Contudo seu foco principal não pretende reconhecer ou definir questões meramente relativas às identidades estéticas, mas compreender como as imagens pictóricas comportam e compartilham sensibilidades e percepções artísticas próprias à modernidade, bem como suas contradições e paradoxos. A opção por um CD ROM com um levantamento de artistas, obras e biografias conforme os países, além de uma parte incluindo artigos, pareceu um caminho viável, devendo o mesmo instrumento ser destinado à divulgação e manuseio de outros interessados em ampliar seu repertório sobre o assunto. Na organização desta espécie singular de arsenal imagético foram incorporados artistas e obras pouco conhecidos, acolhidos como parte de um arquivo destinado ao domínio público, contribuindo para que o virtual engendre uma afinidade com a memória compartilhada e considerando que este tipo de fonte como estrutura de memória não é novidade. O arquivo, externo, diretamente no suporte, atual ou virtual, tem sua democratização medida pela participação e acesso e pela sua constante apropriação e interpretação. Embora o arquivista deva levar em conta a incompletude do arquivo e o mesmo possua inúmeras possibilidades de armazenamento, também deve saber que não haveria o desejo de arquivo sem a noção de finitude e sem a possibilidade de esquecimento. Se o arquivo não se reduz à memória e nem à mneme ou à anamnesis, é especialmente possibilitado pela pulsão de morte, de agressão e de destruição, também pela finitude e expropriação originárias: “[...] Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios de informação.”( DERRIDA, 2001, p. 28) 2- AS DECORRÊNCIAS DO PERCURSO. Entre as tarefas realizadas destacam-se a divisão dos países, seus respectivos artistas e levantamento de produção plástica conforme os pesquisadores e seguindo uma padronização definida previamente no que diz respeito aos dados a serem obtidos e sua sistematização. Levantamento dos endereços de museus, galerias e instituições de arte, bem como de possíveis endereços para pesquisa via internet, além de catálogos, folders e livros. Envio de correspondências na tentativa de encontrar 3 material bibliográfico destinado a complementar as informações. Através da disciplina de História da Arte III e das leituras realizadas semanalmente pelo grupo de pesquisa em 2007-2 tiveram início as análises do material coletado, seguido posteriormente pela redação e discussão dos textos destinados à composição do CD ROM. Assim, o presente estudo se desenvolveu especialmente a partir da constituição de séries e agrupamentos imagéticos, considerando afinidades e diferenças artísticas, além de levantamento de problemas e desdobramentos analíticos indicados a partir das imagens; bem como da problematização das injunções temporais contidas nas obras, em termos de eucronias e anacronismos da modernidade. Entre as dificuldades encontradas destaca-se o fato de que o material visual levantado nem sempre disponibilizava os dados necessários à pesquisa, como por exemplo, título, tamanho e técnica da obra ou localização do acervo ao qual pertence. Outra dificuldade apontada refere-se ao fato de que as biografias de alguns artistas, bem como local e data de nascimento e falecimento, eram bastante imprecisas, incompletas e, por vezes, inexistentes. Alguns países não só apresentaram insuficiência de dados como a maioria dos artistas que os representam está situado apenas a partir da segunda metade do século XX. A aquisição de catálogos e textos específicos de cada país também foi dificultada devido a entraves de acesso, manuseio e distribuição dos mesmos, além de entraves financeiros e de transporte. Nos meses em que os pesquisadores se fizeram valer de diversos meios para enriquecer seu repertório mergulhando nos mais recônditos corredores em busca de novos dados e imagens, foram debatendo e compreendendo a extensão da reflexão sobre a tradução como sendo não uma mera repetição, mas como espécie de sobrevida da obra pela mutação, considerando seu caráter fugidio e de deslizamento constante. Assim, a obra não vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor, acima dos meios de seu autor. Sua sobrevida da obra excede a vida e morte biológica e ultrapassa a condição orgânica, fazendo nascer a tarefa de compreender a vida para além dela mesma como forma que ultrapassa a história. Devendo a tradução ser da obra e não do autor, não tem a ver com o receptor ou com comunicação, não é imagem, cópia ou representação, sendo que “Ele nomeia o sujeito da tradução como sujeito endividado, obrigado por um dever, já em 4 situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como sobrevivente ou agente de sobrevida” (DERRIDA, 2002, p.33). É preciso ainda reconhecer que entre as advertências desta empreitada encontramse os riscos proporcionados pelas atribuições errôneas e apócrifas, todavia este é um perigo do qual não escapam nem mesmo os museus e os colecionadores, freqüentemente às voltas com obras falsificadas ou com autoria atribuída equivocadamente. Igualmente os dados desta pesquisa guardam sua fragilidade. Em sua qualidade de arquivo, são débeis e irresolutos e, certamente na grande maioria, apenas um sopro do que são seus originais, apresentando-se frequentemente distorcidas em forma e cor e desprovidas de detalhes importantes, como tamanho e data das obras. Filtradas as imagens, foram adotados os critérios de melhor resolução para a reprodução em um cd rom, reduzindo em cerca de um terço as quase cinco mil imagens capturadas dos quinze países pesquisados. Neste rol não estão incluídas as imagens e Santa Catarina e Brasil, que formará outro CD ROM. Por sua vez, convém ressaltar que a sobrevida das obras no espaço virtual pode se dar com mais facilidade e por mais tempo do que a dos trabalhos nas suas materialidades originais, pela infinita reprodução e perpetuação nos discos rígidos do mundo. Por pior que seja a qualidade do original, se ele estiver digitalizado e disponibilizado, através dele será possível entrar em contato com uma parte daquilo que de outro modo seria inacessível ou acabaria perdido, em outras palavras: A reprodução não rivaliza com a obra-prima presente: evoca-a e sugere-a... Levanos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis, não a esquecê-las; e, sendo inacessíveis, que conheceríamos nós sem a reprodução? Ora, a história da arte nos últimos cem anos, desde que escapa aos especialistas, é a história do que é fotografável (MALRAUX, 1965, p.108). Ao longo da pesquisa os organizadores deste arsenal imagético iam se reconhecendo na posição de criadores do arquivo, curadores de um museu cujas obras nunca chegaram perto nem viram. Recolhendo e organizando criteriosamente milhares de trabalhos, catalogando centenas de artistas e biografias foram deslindando novos critérios de reunião e agrupamento, separação e ordenação, procedimento que permitia reconhecer a presença das contingências relacionadas à localização e qualidade documental, bem como da arbitrariedade relacionada por vezes à quantidade das obras selecionadas. Eis os gestos que 5 contemplam o anarquivável, tal como abordado em O mal de arquivo: [...] estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum “mal-de”, nenhuma febre surgirá para aquele que, de um modo ou de outro, não está com mal de arquivo ( DERRIDA, 2001, p.118) 3- CONSIDERAÇÕES ESPECÍFICAS SOBRE O ARSENAL IMAGÉTICO. Como construir um arsenal imagético, cujos arquivos enquanto fontes principais e registros complementares se apresentam escassos ou dispersos, inacessíveis ou pouco pensados em seu conjunto? Quais os caminhos possíveis para dar conta deste desafio sem perder-se diante das meras generalidades a que remetem, incorrer nas leituras simplificadoras e banalizantes que confundem imagem com ilustração ou então extraviar-se em meio a peculiaridades absolutizantes? Para responder tal inquietação parece conveniente primeiro problematizar o próprio arquivo construindo um campo situado entre a série concebida como repetição com diferença e o museu imaginário considerado como arsenal infinito e único de afecções. Refletindo sobre o fato de que a falência da representação no pensamento moderno faz com que todas as identidades sejam simuladas e produzidas como efeito ótico sob o jogo da diferença e repetição, Deleuze ( 2006) destaca que a diferença se constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua negação, nem se refere à oposição nem se constitui como contradição. Considerando as imagens a serem estudadas, postula-se a sobrevivência das formas, menos como o que foi herdado e mais os desdobramentos e as possibilidades resultantes, sendo que os acontecimentos como as imagens, só podem ser pensados pelos procedimentos de recombinação e montagem. Eis porque as obras, como os artistas, devem ser considerados na relação com as séries que procuram menos a generalidade e mais os vestígios da diferença e do retorno, sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições coexistem, não porque se constitui como reprodução do mesmo e sim porque é arremesso em direção ao outro, nos diz Deleuze, em Diferença e repetição( 2006). Por sua vez, André Malraux (1965) aborda o nascimento de um arsenal imagético a 6 partir da reprodutibilidade técnica, resultando complexas metamorfoses no que diz respeito aos usos e sentidos da obra de arte, permitindo que cada um possa constituir seu próprio acervo ou museu imaginário. O museu imaginário é de todos, sendo formado pelas recordações particulares de cada um e não dependendo de um local. Num mundo de esquecimento, é assim que as obras ressuscitam, sobrevivendo não pelo que foi dito sobre elas mas pelo que ainda nos dizem. Enfim, o autor lembra que o museu imaginário é um fenômeno do mundo moderno, particularmente ampliado com a reprodutibilidade técnica, permitindo não só acessar diferentes acervos como também estabelecer novas comparações, agrupamentos e classificações. Neste sentido, trata-se de encarar a difícil tarefa de pensar ao mesmo tempo as imagens e seus arquivos, não só para evitar os meros relatos e classificações, como também para pensar as novas combinações e destinos possíveis para as obras de arte. 4- IMPLICAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA E A TEMPORALIDADE. Uma vez acessado o arsenal e constituída a série de imagens, com quais fios é possível tecer a trama? Como produzir um campo fértil de reflexões no âmbito da história da arte, contornando tanto uma abordagem mais cronológico- evolutiva ou contextualizante como outra meramente formalista porém considerando as questões que reverberam no tempo e no espaço? Em que medida pode a obra de artistas pouco conhecidos e de reduzida fortuna crítica tornar-se objeto de reflexão e leitura? Como evitar a armadilha da diluição das singularidades em contextos homogeinizadores e extrínsecos e/ou das particularidades isoladoras e desconectadas que ignoram a formulação-armação de problemas? Como construir um campo de análise onde o que prevalece e ainda pode ser dito incide sobre o estranho que escapa e surpreende bem ali onde uma luz já posta parece apenas indicar o já conhecido? Como reincidir o periférico e o pouco qualificado sem cair na visada monótona e exaustiva das abordagens já feitas? É possível pensar a relação entre os artistas e suas obras sem tornar ambas as instâncias como meros equivalentes, evitando tanto a lógica da salvação pela exaltação do injustamente esquecido como o veredito do merecidamente ignorado? No seio das obras acadêmicas reconhecemos certas investigações plásticas mais pela sua concomitância do que como simples ecos europeus. Os recortes modernistas 7 situados depois da primeira grande guerra em vários países latino americanos podem ser lidos como uma construção discursiva associada muito mais aos seus protagonistas e suas memórias, decorrendo daí certas posturas antagônicas às academias de belas artes. Então se as chamadas vanguardas latino-americanas adotaram freqüentemente bandeiras antiacadêmicas como parte de seu desejo de aggiornamento é porque ignoravam ou esqueciam os choques produzidos intencionalmente por participantes de ambientes oficiais, mesmo na Europa. Ou seja, mesmo dentro de certos circuitos institucionais as posturas inquietas e chocantes, disfarçadas ou não já se deixavam deslindar. Mesmo cumprindo certas expectativas em termos de reconhecimento nos circuitos existentes ou simplesmente atendendo às encomendas, observa-se que alguns artistas conseguiram ultrapassar não só as questões de território e nação, como também buscaram superar o caráter ilustrativo e/ou narrativo, guardando na superfície pictórica todo um universo de inquietações e investigações plásticas. A este respeito convém lembrar a publicação intitulada Arte na América Latina , organizada pela professora Dawn Ades ( 1997) de História e Teoria da Arte da Universidade de Essex, Inglaterra cuja obra apresenta em seu conjunto a idéia não apenas de que as artes plásticas estiveram diretamente vinculadas às experimentações literárias, como o fato de que em diversos países o modernismo foi engendrado no âmbito acadêmico. Raciocínio complementar a este fenômeno é apresentado no livro Arte Internacional Brasileira, escrito por Tadeu Chiarelli ( 2002). O autor parte do pressuposto não só de que o local se articula com o circuito internacional de modo reelaborado e muito peculiar como também que o modernismo antecede a Semana de 22, registrando a incorporação sem confinamento de uma tradição erudita e artesanal e somando-se a um localismo antiacadêmico, advindo das percepções estéticas surgidas a partir do último quartel do século XIX e dos influxos do novecentos. Todavia, se pensar é armar problemas, este procedimento parece se tornar particularmente interessante quando as obras enfocadas não pertencem ao repertório canônico mas podem ser abordadas pelo seu caráter de recorrência e sobrevivência, levando a pensar, de um lado, como se operavam, mesmo para artistas inseridos num circuito periférico, as referências e renitências que resultaram na incorporação de certas 8 perspectivas, enquanto que de outro lado, cabe pensar a mescla de tempos atravessados pelos arremessos fragmentários da memória contidos nas imagens e que as tornam resíduo e rastro de outras imagens ou espectralidade de outras temporalidades. Conforme Rosalind Krauss (1996) ao tratar o mito da originalidade como preceito vanguardista, se no século XIX as cópias tiveram um importante papel pedagógico na formação do gosto, o culto da originalidade e da espontaneidade serviu para confirmar o mito da genialidade artística. Em tempos de revolução industrial e de reprodutibilidade técnica, as artes plásticas insistiram em confirmar seu estatuto romântico, associado ao espontâneo e ao irrepetível. Problematizando a história da arte e encarando a questão da temporalidade contida na obra Ante el Tiempo: de DIDI-HUBERMAN (2006), assinala que toda ela possui mais memória do que história, pois o tempo não se reduz à história, sendo que a memória é feita de tempos descontínuos e heterogêneos, daí que ela é sempre anacrônica e ocorre na contradança da cronologia. Dito de outro modo, a relação tempo- imagem pressupõe uma constante articulação com a memória, uma vez que toda obra carrega consigo um pretérito e também uma projeção em direção à posteridade, sendo que nela está contida uma fagulha explosiva que permanece naquilo que um dia foi, fazendo com que o passado não cesse de se reconfigurar como abertura. Cada época traz consigo infinitas possibilidades de encontros com o passado, bem como prefigura e guarda potencialidades futuras. Concepção que por sua vez guarda familiaridade com a concepção warburguiana de que algo do que um dia foi fica retido, persiste e insiste nas imagens, atravessando os tempos e voltando como ondas mnemônicas. Nem simples continuidade, nem arquétipos, trata-se de problematizar as imagens como persistência de lapsos e anacronismos, irresoluções e resíduos do tempo que nos alcançam em nossas inquietações. Assim, não se trata de um humanismo à maneira de Vasari, Kant ou Panofsky, os quais não questionam nem a representação nem o regime de saberes da disciplina de história da arte, mas de um procedimento crítico que considera menos a série das regras e convenções como verdades definitivas e mais a série das exceções que fazem as imagens cintilarem como desvios ou de-tempos, tornando-se aquilo que interrompe o fluxo regular das coisas, pois não parece jamais caber num momento 9 perfeitamente adequado, tal como uma lei subterrânea que persiste no retorno de uma enfermidade, aparição que conjuga diferente- semelhante, imobilidade-aceleração, recalque e retorno de uma latência. Eis o conceito de sintoma, não conforme o entendimento semiológico ou clínico, mas como a potência imagética que recusa tanto conceder a última palavra ao presente como se submeter ao tempo cronológico. Referências bibliográficas: ADES, Dawn. Arte na América latina. S.P., Cosac & Naify, 1.997. CHIARELLI, Tadeu. A Arte Internacional Brasileira. S.P., Lemos, 2002. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 2ª edição. ________. Francis Bacon – Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. R.J. Relume Dumará, 2001 DERRIDA, J. Torres de Babel.. Belo Horizonte: UFMG, 2002 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo editora S. A., 2006. FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. KRAUSS, R. La originalidad de la Vanguardia. Madrid, Alianza Editorial, 1996 MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa, Edições.70, 1965. 10 # ! " #$$% & ' ( ) * + + /0 ) * #,- #%- ! . 1 2 3435 ' . 6 . /9 7 . . +2 /9 8 6 . * * 8 /0 . . ! " . / # $ " & %& ' ' 8 /9 ( : ; * /0 ! . + /9 . 5 : : + /9 : 5 & ' ( ' > = 5 ? . 2 ! . * #$<, 8 = 1 .2 . . + 8 = + +2 + @ " 2 2 B + 2 * ' ' D E < 5 = I 6 * 6 : 2 + ! + . 6 + M(4 = /0 * 6 >?"G 5 ' H + : 8 5 ' H #$-C 5 2 ? 8 ! 8 #$-, 6 ! DFE 5A / . /0 D#E 6 M(4 2 ! M(4 = I G ' J K = = 6 6 5 JL F A . . ! * @ . * * ++ 5A #$$% * + #O,, 8 . ") 1 0 . = * 2 5 * ) + = # @ ' 5 @ & + @ 8 ' 5 ( .0 5 5 /0 0 6 /0 1 . ! 5M 5 M 0 /9 + 5 5 L7 .5 L7 5 5 L7 +5 L7*! 5 8 8 + /0 . 7*! 7 0 .2 . 4 8 KKK5 KKK5 KKK5 6. @ . . # + 8 8 @ /0 . /0 4 /9 /9 0 " ) 2 ' ( 5( ) 5 # ,- ) # %- 5 /0 ' . 5 +5 L7 + 7+ > > > 45 & #$$% 1 P 7 77KKK5 N 6 + . 46 ) 6 1 . !6 . F5 L7+ . * 5 8 @ 5M + 2 < ) . . ! /0 8 . @ 5> 6 6 * . 2 6 . + @ 61 5 ) 5 28 8 @ ! + 5Q @ 8 @ 2 ! 5 + 0 . + @ ! . 5 . @ . 0 / /0 . ! . + ! .2 5 /0 . . 1 %& ( 2 +5 . . /0 . . 2 /0 8 * 6 . . * . . 2 . @ + ' 6 * + @ " + 5+ , 6 #F5 5 78 . 8 /0 7 ) 8 #$O7F,,R,R#R7 5 . . + " A4 77 5 .2 5 ( 21 ! 8 /9 N ! 0 = . 1 + 5 2 2 + . @ + + 6. @ /9 9 @ 8 2 + A 8 /9 5 S 7 FO8 ,F5! C ( . + /9 6 ) 7 8@ $F ) #F< #OF ) #<# #-F I: I: I: ? B H#$-R * @ H#$O# * -#$OO * @ +2 H#$$CI * ) 8 6 + .@ H#$%# * G. 2 ; /9 ' " '2) ) 7 5 /0 F,, + @ + I5 A #%, 8 @ #,, ) O< < ) #%# # + + @ /0 7 7 + 8 8 @ ) 5 ( * G4 5 8 5 !$ + #%, ) F,, 5 ' 77KKK5 @ . . 5 7+ 7+ S S #$$C5 ( . 7 S#$$CS & 5 5! ' . = . . ) /9 * .2 8 " H#O<C * 7 & #$< ) #<, H#O<R * U H#OC, * H#OC% * 7 ##,)O, I5 U 0 R,)#,R T I 6. + ' + + C- ) -% ? @U + I: -C % ) $, I: ! 86 T + T + 4 I: ( " " # * @ " V H#OCC * 6. 7 N ) % F 8 +! . .2 + 8 < 6 6 . . ? + 8 ( ' + 2 7 ' H ! ( 01, G 7 I5 + 5 5 / > . 6 5 7. MA" 1G #OO# > M U" M3 H M 5I5 8 ! /9 6 5 @ 8 + 2 U 6 @ 5M @ . 2 ;4 "5 ' ' 77KKK5 6. . 1+ + 8 @ ( /0 = < 5G 8 2 " M 4U"4 8 A ? 8 4 8 * * 2 .0 8 8 . * . . 6 .. . 8 L / 8 * . + F 8 & .+ 2 1 5 @ ) 6 1 ! 2 @ /9 8 + %& ) F5 2 345 # 6 75 5( " 5" 6 #OOO5 ") /0 5 / /9 + 9 ) 6 . . /9 * . . @ /0 . @ N 7 . 6 8 . . . /0 . . + @ /9 . . @ ) . + /0 @ / 5 ? + ; * + ) . + 1 ( G4 5 " P + $ , 99::: U 5 1 C- ) -% " @ 8 /0 N @ + 1 8 + 6 + !6 ) 5 + / /0 2 N /0 /0 5 / !$ #OC, * 9, ; = <! ! 9 ; ,= > ? @ // . > A 8 .6 /0 . N N /0 C5 8 W C ;4 " * + 8 2 /0 . + 4 A 1 5 ! = 1 ! !* ! 5 G5 5 " 5 F,,F $$ ) # F < 2 C5 R . @ 8 ' 9 5" 8 . 8 / * 2 6 0 !6 ) . . + 335 A . 8 / 2 . /9 8 + + = 5 B '"34 M5 B 2 @5 P 7 #,, ) #-F ' 77 5 5 5 )7 " + + . @ + @ .2 #$O# 7 /0 . = L 7 7 * S + 0 2 . /0 2 9 '2) ) 7 )%7 @ = 0 2 .2 . @ * ! ) ) ,% <5 + @ * 9 . = /9 * * 8 @ /9 /0 @ 5" + @ . 0 . N /0 ) 1 +2 8 @ 0 2 .2 . 2 =1 6 5 $ " >5 ? ; @5 % ! P 7 O< < ) #%# # 5 77KKK5 5 7 7$#%O7 #$OO5 1 8 1 .2 /0 . + . .= 5Q + + ) 8 ) 1 + 8 1 1 /0 /0 + ! 2 5 * = ) " >5 ' 5C * 7 $F ) #F< ' 77KKK5 L5 7 ?4?41;>(" ' = 8 ) % + 6 /0 * T /9 /9 /0 . @5 8 0 / /0 /0 %5 + #$%# ; * 7 5 5 ! , 5( ; F,,- O %& D' & + = 8 /9 . @ ! . * 2 + * 1 X *) ( + . + 5 8 N @ . 1 8 8 . @ . @ + /0 + 8 .2 8 8 * 2 8 5 . + T !6 2 8 P - 8 +2 8 = . /0 N + /0 T ; 2 + " A4 5 " G. 5 7 # OF ) #5<# ' 77+ 8 ,5 5 7+ >GG5 8 8 /0 8 /0 + . 2 + 2 . + /0 = 2 /0 " 8 8 = @ 5 + . .= + 8 + % - 18 ! ! 1 6 54 . 0 /0 N , ! * 1" 7" > #$-R ( 8 ,7 ! " S ; E S$,5 5' @ #OO-5 5 #, . @ ? @ /0 R /0 . 8 0 6 @ / . 6 = N + /0 /0 = @ 0 5 @ . ! 6. @ + + . + /0 0 + /0 . 0 = 5 M Y'(4 ' ? @U P 7 ##,)O, 5 ' T + 77KKK5 + 5 7 F 5 7 7 G .5 8 /9 0 /0 2 + /0 /0 8 = 8 @ /0 ) = * . @ 8 @ 5 5(/ B , B8 5 G5 5 " 5 #O$$ 5 F# ! ! /9 5 . 0 . / 8 + ?" ">V" /0 /0 . +2 / 2 + * R 8 + + " ) /0 5" 2 #OCC5 5 ## %& % 2 . + + . /0 8 /9 + 8 5 8 2 8 8 + .. . 8 2 /0 @ . A + + $ 6 0 . 1 /0 5 /9 . + /9 6 8 / /9 /0 . @ @ @ /0 . + +2 . * * 0 8 8 /0 + 6+ + 6 2 /0 ) 5 + 8 5 8 T + 8 . * +2 8 8 ! .. O . 5 M Y'(4 5 " V 5% #OC%5 P 7 R,)#,R 5 ' T + 5 77KKK5 + 5 7 7 7 FC5 8 + 8 ! + . 6 /0 + 6 8 / @ 8 T @ ) /9 . $ ' ?" >3 4? & 9 25 5 ! / 8 @ O @ ; G H " 5 5&5 8 @ 8 + 7 G0 ? 5 " 5 R, F,,, 6 F,,# 6 5#,O 54U5 5 /9 #F %& + + Q ? 1; + 8 )0 #, ( ' # . @ /0 8 + ( ! @ + + & 8 )9 +2 5G ) ) 6 = 2 * + 9 + = T /0 5 B ) ! 8 ) + /0 = @ + . . /9 N /9 @ /0 ) /9 5 Z 0 8 8 T . @ 1 . ) 8 5G 8 . + / 8 6 /0 / 8 @ ! +2 8 N + 6 " A4 77KKK5 2 * = 5 + + N = @ 8 . = 8 ( 8 8 ) 2 /0 8 #, 8 8 . 0 8 8 @ * + 5 5 5 ?4?41;>(" ' ( 5+ 5 5 7 5 , " !$ O$7! #O<# L 5 7 Q 5 ' #OO%5 #< G @ 1 2 + 8 . . . 8 * / . 2 6 ## @ 8 5 9 /0 /0 . @ /0 . * + @ 8 @ ) * 68 ? ! . @ /0 . . . ! /0 ! /0 * @ 8 /0 /0 . + + ) A2 ## + 6 5 ?4?41;>(" ' 5 C 2 ' F,,<5 " 5 F,,% . 1 = /0 8 > 45 & 2 5 ! " 8 * #,, ) R, 5 77KKK5 5 5 7 7 7,,#,%$5 8 / 8 . 0 8 @ 8 @ . 5 2 . ) .2 . . 5 /0 5 " @ .2 .2 5 * .* 5 8 1 + 2 / 8 8 5 4 445 CONTAMINAÇÕES E DESVIOS NAS PINTURAS DA AMÉRICA LATINA Academicismo e Modernismo na América Latina. [1] Rosângela Cherem[2] e Ana Lúcia Oliveira Fernandez Gil[3] Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo[4] RESUMO: Este artigo se apresenta como um breve levantamento de problemáticas próprias a História da Arte, particularmente no que diz respeito ao pensamento plástico e sua relação com as rupturas e desvios encontrados na produção pictórica da América Latina. Aborda duas questões que reverberam, destacando em Cândido Portinari e Oswaldo Guayasamin uma assimilação que advém como repetição das experimentações vanguardistas, e salientando em Raquel Forner e José Silveira D’Ávilla certas renitências barrocas. PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; História da Arte; pintura; América. Latina. Questão I – A Sombra de Picasso As reflexões que aqui seguem destinam-se a buscar uma ultrapassagem dos enquadramentos estilísticos, problematizando certas referências e contaminações da cultura européia em relação aos países da América Latina e abordando como os artistas incorporam na sua produção combinações entre os códigos estilísticos aprendidos na Europa e certas particularidades do repertório imagético de clave local. Adotando um repertório considerado de vanguarda, particularmente no que diz respeito aos compromissos artísticos com as causas de transformação de seus meios, muitos destes protagonistas se empenharam em abordar [1] Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina. Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC. [3] Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC. [4] Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis, bolsista voluntária, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas. [2] plasticamente os impasses e dramas nacionais, problematizando questões sociais e políticas nas cenas pictóricas. Todavia, enquanto alguns artistas seguiam uma vertente mais voltada para a problemática da cor e a temática da natureza da pintura, outros representantes, como o Portinari (N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro, 1962) no Brasil, utilizavam o expressionismo social como uma ferramenta de denúncia, assim como o Oswaldo Guayassamín (N. Quito, 1919 – M. Quito 1999) do Equador. É notório observar como as obras destes dois pintores assemelham-se, tanto no que diz respeito às cronologias, bem como às experiências no percurso acadêmico, opções estilísticas como em relação ao temas abordados. Também é interessante salientar outros paralelos encontrados. Portinari, assim como Gayassamín, estudou na Escola de Belas Artes, um no Rio de Janeiro e outro em Quito, ambos receberam bolsas para estudar na Europa e pertenceram ao mesmo período acadêmico, recebendo as mesmas bagagens consideradas vanguardistas para a época. A produção de Portinari foi muitas vezes comparada a dos muralistas mexicanos, não só quanto ao suporte, mas também pela temática através do interesse pela questão social, a narração eloqüente e a monumentalidade. Em suas obras, os retirantes nordestinos, os trabalhadores rurais de membros deformados, os tons de marrom e os de roxo dos campos cultivados, expressam a força da terra. Sofre forte influência das obras de Picasso, principalmente no período que está na França, a exemplo da Guernica e seu uso de cores sombrias, cujo mural apresenta-se como um protesto à invasão dos nazistas na cidade de Guernica, na Espanha. Como Portinari, Guayassamín, na sua obra humanista indianista, considerada pelos críticos como expressionista, também reflete a dor e a miséria que suporta o seu país, bem como a maior parte da humanidade, enunciando a violência e retratando as guerras do início do século XX. Também produz murais em instituições do governo e privadas, como Portinari. Ambos retratam o cotidiano do seu povo, os seus costumes, mas são influenciados pela estética do movimento ao qual aderiram. Essas pinturas por sua vez, carregam uma dramaticidade das expressões, mas os planos de fundo inseridos não denotam as batalhas e acontecimentos de maneira clássica, como representados na Europa, com suas conquistas e tragédias (geralmente são fundos chapados e com cores sombrias ou neutras, característica muito pertinente nas obras latino-americanas). Diferentemente das gerações precedentes, delimitadas pela realidade imperial e da vida cujo centro era a corte do Rio de Janeiro, é notório salientar também que muitos artistas da primeira metade do século XX se preocupavam com a busca pictórica de uma nova identidade nacional, reelaborada em tempos de imigração e trabalho livre. É assim que nas suas telas surgem novas cenas e paisagens como as de Portinari e Volpi, descendentes italianos e do lituano Lasar Segall. Nas figuras 1 e 2, por exemplo, a cena denota um contexto típico do Brasil, que retrata o êxodo das famílias nordestinas e as dificuldades e sofrimentos enfrentados pela fome e pobreza. Salientam-se aqui os tons de roxo, azul e bege que insistem em se repetirem num contraste sombrio, além da presença de ossos no chão, fazendo alusão à seca que castiga esta terra pobre, as famílias mestiças com os olhos a saltados e pés descalços, característica muito usada na corrente expressionista, com o intuito de salientar a condição humana. Outros detalhes dão sutileza a esta nova realidade, como a composição das famílias, sempre numerosa, com faces desbotadas e rostos desacreditados, vagando num espaço vazio, denota a sensação das incertezas. Inclusive, percebe-se a construção de sutis planos de fundo como a representação de montanhas ao fundo da figura 2, mas difusa, e nublada, dando a idéia de uma superficialidade pictórica e não possuindo uma densidade como nas representações paisagísticas européias. Vale lembrar que o uso das distorções e cores utilizadas para expressar o contexto, apesar de ficar claro que trata-se de uma realidade nacional, continua arraigada a valores estéticos europeus, no uso de técnicas e estilos de correntes vanguardistas. Fig. 1: CANDIDO PORTINARI (N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro, 1962), Criança Morta (Criatura muerta), 1944 Óleo s/ tela, 176 x 190 cm. Col. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand São Paulo, Brasil Fonte: http://www.iejusa.org.br/artes/index.php Fig. 2: CANDIDO PORTINARI (N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro, 1962), Retirantes (Retirantes), 1944 Óleo s/ tela 190 x 180 cm. Col. Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand São Paulo, Brasil Fonte: http://masp.uol.com.br/exposicoes/ 2006/portinari/ Fig. 3: OSWALDO GUAYASAMÍN (N. Quito, 1919 – M. Quito 1999) Os Desesperados nº 1 – A Idade da Ira – 1966 Óleo sobre tela, 100 X 200 cm Localização: Quito – Equador Fonte: http://en.wikipedia.org/ wiki/Oswaldo_Guayasamin Fig. 4: OSWALDO GUAYASAMÍN (N. Quito, 1919 – M. Quito 1999) O Grito III, 1983 Óleo sobre tela, 130 x 90 cm Localização: Quito – Equador Fonte: http://www.guayasamin.com/ pages/2_obra_edad_ira.htm Nas figuras 3 e 4 também são conservados os usos das cores sombrias, que são características do movimento e as figuras representadas fora de proporção, principalmente as mãos; mas Oswaldo Guayassamín não se preocupa tanto com a cena, preferindo enfatizar a expressão humana, contudo permanece as características acadêmicas aliadas ao indianismo que representa o seu povo e sua história. O plano de fundo, como uma característica moderna observada nos países latinos, também aqui, nas obras do Guayassamín, não têm a densidade e a força das vanguardas, mas retrata a condição social e econômica ao qual seu país se encontra como também o Portinari fez. De acordo com o crítico Rodrigo Naves, crítico de arte e editor da revista Novos Estudos (Cebrap), a pintura moderna afastara as relações mais ou menos serenas entre espaço e objeto, entre figura e fundo. Afinal, como manter uma única dinâmica, que a todos impõe à lógica do mercado? Com o cubismo o espaço adquire um tanto da solidez das coisas, ao passo que elas recebem algo da plasticidade espacial. Assim, a unidade das telas obtinha uma nova configuração na em medida que este intercâmbio propiciava uma interação mais estreita entre ambos. Fragmentadas, recortadas por diferentes pontos de vista, as pinturas analíticas de Picasso e Braque estabelecem também uma continuidade entre as figuras e seu ambiente, sem as antigas imunidades recíprocas. Daí decorre a força estrutural dos quadros cubistas, pois é justamente aquela trama de relações que constitui o verdadeiro conteúdo das telas. O mesmo autor levanta críticas ao artista dizendo que ele não conseguia se libertar de um estilo marcadamente sentimental e não resistia a apelar para as emoções derramadas, ainda que socialmente inócuas com o intuito de obter ampla difusão e reconhecimento, por meio do que chama de “empatia áspera” 1. 1 Todavia, como colocado por Annateresa Fabris (1977), “o veio realista de Portinari ganha reforço na Europa na época em que um Picasso neoclássico era o grande modelo, e Portinari, é moderno dentro das peculiaridades do modernismo no Brasil, que não teve sincronia com os movimentos estéticos do Velho Mundo”2. Importante perceber ainda, que o cubismo, mesmo exercendo muitas influências, foi transformado por Portinari: seu trabalho é marcado mais como um jogo de iluminação sem prejudicar a imagem natural. Quanto ao engajamento social do artista, muitos o avaliaram como sendo superficial ao mostrar o operário com uma expressão serena e tranqüila, afastando a idéia de sofrimento causado pelo trabalho. Quando interrogado sobre o fato de não criar um estilo novo, respondia que seu traço era seu estilo e a forma como realizava seus trabalhos, era única3. Para ele, não havia sentido em buscar um estilo novo em cada artista. Tanto na América Latina, como no Brasil, as pinturas apresentam características muito peculiares, no que diz respeito às reproduções pictóricas, pois conseguem aliar as influências européias e o artesanato local vindo de outras etnias trazidas para o Brasil. Tal situação gerou no século passado uma produção de caráter oficial e sem-oficial que, absorvendo apenas a sofisticação das técnicas artísticas introduzidas pela Academia – e não erudição com que ela teoricamente poderia contribuir -, manteve em grande parte o caráter preponderantemente artesanal da produção anterior à instalação daquela instituição. Naquele período, a produção artística ou repetia soluções já institucionalizadas pela tradição acadêmica, ou então mantinha-se alheia àquela influência, preservando valores estéticos híbridos, constituídos pelas experiências populares mescladas, muitas vezes, pela tradição barroca do lugar, já enraizada. De acordo com esta afirmativa, explica o crítico de arte, Tadeu Chiarelli: A contribuição do imigrante para a arte brasileira foi justamente seu saber artesanal, sua intimidade com os meios técnicos adquiridos em seu país natal e/ou em suas colônias no Brasil. Um saber artesanal que, diferentemente daquele já existente no país, dera as bases para que em 1 www.estado.estadao.com.br, entrevista da edição de 23 de junho de 1993. http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2005/humanas2005/o_engajamento.PDF 3 www.estado.estadao.com.br 2 nações como a Itália, por exemplo, fosse formulada uma arte erudita sofisticada, fato que a herança portuguesa parece não nos ter cegado. Pela origem social da maioria desses artistas imigrantes, porém, sua presença no Brasil reforçou na produção local seu caráter fundamentalmente popular, existente como substrato da arte aqui realizada, uma vez que, como foi visto, esta era produzida em grande parte por artistas de baixa extração social. Eles trouxeram um aprimoramento técnico maior, uma intimidade mais aguda com os processos do fazer artesanal, reforçando assim uma produção menos voltada para a severidade grandiloqüente e distante da arte erudita, e mais afeita à possibilidade de uma convivência menos hierarquizada com o público. (CHIARELLI, Tadeu, 2002, pg.19) Para Pablo Neruda, Guayasamín forma, ao lado do brasileiro Portinari e dos pintores mexicanos José Clemente Orozco, Diego Rivera e Rufino Tamayo, a “estrutura andina do continente”. “São importantes e exuberantes, crispados e ferruginosos”. “Eu o coloco (Guayasamín) em meu santuário de santos militares e aguerridos, arriscando-se sempre por inteiro na pintura. Como pequenas nuvens, as modas passam por cima de sua cabeça sem nunca o amedrontarem” 4, afirmou o grande poeta chileno, em 1969. Para complementar este item indo a uma questão teórica sobre a familiaridade das imagens entre Portinari e Guayasamin, cabe destacar que suas obras guardam as particularidades artísticas que as constituem como diferença. Segundo Deleuze a obra de arte se repete como singularidade sem conceito e uma perseverança não faz uma repetição. Se a repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra a variação, uma eternidade contra a permanência: Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que não tem semelhante ou equivalente. Como conduta externa, esta repetição talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e mais profunda no singular que a anima. A festa não tem outro paradoxo aparente: repetir um “irrecomeçável”. Não acrescentar uma segunda e uma terceira vez à primeira, ma elevar a primeira vez à “enésima” potência. Sob esta relação da potência, a repetição inverte-se, interiorizando-se (DELEUZE, 1988, p. 6) 4 Fragmento do texto retirado do site: http://www.revistamuseu.com.br/galeria.asp?id=11067 Sob todos os aspectos, a repetição só aparece na passagem de uma ordem de generalidade à outra, aflorando por ocasião desta passagem e graças a ela. Esta fórmula significa: em totalidades semelhantes, poder-se-á sempre reter e selecionar fatores idênticos que representam o ser-igual do fenômeno. Assim procedendo, não nos damos conta, porém, daquilo que instaura a repetição, nem daquilo que há de categórico ou é de direito na repetição, sendo que o que é de direito é “n” vezes como potência de uma só vez, sem que haja necessidade de se passar por uma segunda, por uma terceira vez. Na sua essência, a repetição remete para uma potência singular que difere por natureza da generalidade, mesmo quando ela, para aparecer, se aproveita da passagem artificial de uma ordem geral a outra. Questão II – As renitências do barroco Este item problematiza a repetição de questões pictóricas, que sendo mais explicitadas na pintura barroca acabam persistindo e retornando no século XX, reafirmando a constatação de que certos rótulos não são suficientes para reconhecer as particularidades de uma obra. Em especial, trata-se das pinturas de Raquel Forner (N. 22/04/1902, Buenos Aires – M. 1988) e de José Silveira D’Ávila (N. Florianópolis, 1924 – M.1985), artistas pertencentes ao assim chamado período modernista na América Latina e de Santa Catarina. Como os artistas anteriormente abordados, estes possuem formação acadêmica. José Silveira D’Ávila estudou na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e Raquel Forner, da mesma forma, estudou na Academia de Belas Artes de Buenos Aires. Chama atenção certos elementos encontrados nas suas pinturas que não se ajustam plenamente e nem se encontram em conformidade com nenhum padrão ou estilo pictórico especificamente, remetendo a uma variedade de contradições implicadas nos detalhes e aspectos de outras temporalidades, quebrando um estado de familiaridade e estabilidade visual. E se sobressaíram justamente por não seguirem fielmente padrões estilísticos exigidos. Neste sentido, Raquel Forner trabalha com elementos periféricos e características surreais, sua obra possui uma atmosfera densa, onde comparecem geralmente figuras centrais mórbidas e ao seu redor, muitos detalhes e figuras sombrias e soturnas que preenchem todo o campo periférico de suas pinturas. Seu trabalho denota dor e sofrimento, apresentando-se também como denúncia da guerra civil espanhola e fazendo alusão a Segunda Guerra Mundial. Mulheres com véus, acompanhadas de jovens com expressões sombrias e criaturas fantásticas, cuja caveira é presença constante. O mistério permanece com a tela, que vira fundo ao parecer rasgada. Como se fosse um “buraco-negro”; parece existir um outro lugar que aos olhos, permanece oculto. Apesar de Forner estar classificada na corrente surrealista, suas obras denotam um “ar barroco”, pelo uso de cores sombrias e como exemplo, na figura 10, a representação de um Cristo numa espécie de papel ou pergaminho, sendo puxado pela jovem. A maioria das figuras humanas representadas nos quadros estão de lenço. José D’Ávila trabalha com as contradições tonais e com os excessos de arabescos e ornamentos, comuns tanto ao barroco como ao rococó, mas deixando transparecer suas inquietações religiosas e transcendentais, reafirma um olhar cristão mesmo no uso dos seus títulos. Sua obra apresenta-se dividida em duas atmosferas: uma mais pesada, na parte inferior e outra mais leve, na parte superior, o que causa uma diferença de superfícies e traz uma leveza à parte superior da composição. Destaque-se o efeito aqüarelado na parte superior de seus quadros, possivelmente decorrente de sua experiência com vidro. Como Forner, seu trabalho também possui muitos detalhes que instigam, pois geralmente as imagens que são representadas conflitam com a composição figura-fundo. Eis uma semelhança entre os dois artistas: a peculiaridade dos detalhes e expressões. Porém a diferença está na orientação que cada um toma em relação à composição, ou seja, como estes dois artistas trabalham os elementos da cor, luz, sombra e formas. Outra característica que merece ressaltar são as figuras zoomórficas do José Silveira D’Ávila, evidenciando ainda mais esta atmosfera do fantástico, mas sempre com nuvens, com a presença da caveira em um dos planos, como também explora a Raquel Forner, só que na periferia ou no centro dos seus quadros. Se o trabalho de Forner é mais sombrio e fantasmagórico, o de D’Ávila vem misturado com o transcendental. Em ambos os pintores registra-se um anacronismo evidenciado nas imagens aqui apresentadas, singularidade que parece situá-los fora de sua época. Relacionados a certas características modernistas, especialmente ao surrealismo, suas obras têm uma carga ideológica muito forte, com a presença constante desses signos e pelo uso de muitos detalhes. As características que denotam as peculiaridades nas obras destes dois artistas é como eles trabalham com diferentes temporalidades, juntando elementos anacrônicos, que estão latentes em suas obras, ou seja, são as caveiras, os homenzinhos, as figuras zoomórficas, os planos, as diferenças tonais, são estes elementos que dão força, potência a este conjunto de obras. Não estão preocupados em estar representando fielmente uma época ou estilo, com suas características formais consagradas. Justamente o que intriga é essa miscelânea de elementos que configuram estas pinturas, dando-lhes potência. É interessante fazer uma analogia com estes planos (céu, inferno, limbo) nas obras destes dois artistas. No caso das obras do D’Ávila, é como se as figuras estivessem à caminho da redenção, da salvação, ao passo que, nas obras da Raquel Forner, suas criaturas estivessem no plano do limbo, como os católicos denominam o local reservado para os suicidas, pessoas em conflito. Por sua vez, as obras da pintora salientam as dicotomias e antíteses do barroco, com signos surrealistas, como a mão que está abaixo da circunferência que simboliza a terra (ver fig. 10). Como se as almas boas tivessem direito à salvação e as almas perdidas ficassem no purgatório, em busca da redenção, criando essa relação de valores, com o intuito de evidenciar estas virtudes ou pecados pela representação tonal e luminosa de seus quadros. O interessante é pensar que “o anacronismo atravessa todas as contemporaneidades. Não existe – quase – a concordância entre os tempos. Reconhecer no anacronismo uma riqueza, pois tentamos explicar algo que retorna, que volta, que está latente na história da arte e que permanece em muitas produções, e o mais interessante: em diferentes contextos e civilizações, mas que se repetem, com inúmeras variáveis de acordo com as mais diversas possibilidades que estas obras possam causar em diferentes culturas, provocando diferentes olhares e indagações. ” (HUBERMAN, DIDI, Arte ante el Tiempo, pág. 13). Fig. 6 JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA (N. Florianópolis, 1924 – M.1985) Renovação, 1963 Acrílico s/ papel, 40 x 32, cdi “d’Ávila” Doação Marion d’Ávila. Fonte: arquivo de imagens do MASC – Museu de Santa Catarina Fig. 7 JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA (N. Florianópolis, 1924 – M.1985) Apocalipse, s.d Aquarela s/ fórmica, 38,5 x 47 c.d.i “d’Ávila” Aquisição MAS C Fonte: arquivo de imagens do MASC – Museu de Santa Catarina Fig. 8 - JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA (N. Florianópolis, 1924 – M.1985) Antífona, s.d – Ilustração para olivro “Poesia Completa de Cruz e Souza” Carvão s/ papel, 23 x 16 c.d.i “d’ávila” Doação Edições FCC Fonte: arquivo de imagens do MASC – Museu de Santa Catarina Fig. 9 - RAQUEL FORNER (N. 22/04/1902, Buenos Aires – 1988) “Retábulo da dor”, 1942 Óleo s/ tela, 152,5 x 87 cm Fonte: http://www.mnba.org.ar/obras_ autor.php?autor=125&opcion=1 Fig. 10 - RAQUEL FORNER (22/04/1902, Buenos Aires, - 1988) “Drama”, 1942, Óleo s/ tela, 126 x 178 cm Coleção do Museu Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires. Fonte: http://www.fundacionkonex.com.ar/bienales_del_arte/forner_raquel.asp REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 NAVES, Rodrigo. A forma difícil, ensaios sobre arte brasileira, São Paulo. Ed. Ática, 2ª edição, 1996 2 CHIARELLI, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, 2ª edição – São Paulo: Lemos Editorial, 2002. 3 Novecento sudamericano, (Relazioni artistiche tra Italiae Argentina, Brasil, Uruguai) Relações artísticas entre Itália, Argentina, Brasil e Uruguai, Pinacoteca, Ed. Palazzareale. 4 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. R.J: Graal, 1988, cap. I e II. 5 DELEUZE, Gilles. A lógica da sensação. R.J: Zahar, 2007, p. 123 e seg. 6 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, cap. I REFERÊNCIAS INTERNET 1 http://www.revistamuseu.com.br/galeria.asp?id=11067 - Acesso em 4 de junho de 2008 2 http://www.culturabrasil.org/portinari.htm - Acesso em 4 de junho de 2008 3 http://www.guayasamin.com/pages/1_og_biografia_2.htm - Acesso em 4 de junho de 2008 4 www.estado.estadao.com.br – Acesso em 25 de maio de 2008 5 www.culturabrasil.pro.br/portinari - Acesso em 25 de maio de 2008 6 http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2005/humanas2005/o_engajamento.PDF Acesso em 20 de maio de 2008 Retratos negros e buracos Academicismo e modernismo em Santa Catarina1 Sandra Makowiecky 2 e Marina Rieck Borck3 Participantes do Grupo de Pesquisa (SC): Giorgio Vicenzo Filomeno4 Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5 RESUMO: Desde as primeiras manifestações culturais do homem a representação da figura humana é tentativa recorrente. As pinturas rupestres já tratavam desta questão, da busca de uma identidade, de um rosto para aquele ser desconhecido – uma imagem para o próprio homem. Este artigo parte deste começo para tratar de retratos produzidos por artistas modernos latino-americanos – pensando o retrato como noção operatória, e por isso mesmo descolado de discursos como o da regionalidade ou o da biografia como explicação da obra, apesar de respeitar o recorte proposto. PALAVRAS-CHAVE: academicismo, modernismo, teoria e crítica de arte, arte brasileira, arte latino-americana, história da arte. O RECORTE: As imagens de que trata este artigo foram escolhidas dentre milhares de pinturas modernas latino-americanas, compreendidas no período que vai do início do século XX até meados de 1950, variável, conforme as peculiaridades de cada país em relação à arte e ao moderno, pesquisadas pelo grupo “Academicismo e modernismo em Artes Plásticas em Santa Catarina”. O procedimento para o recorte do olhar proposto aqui procurou uma inquietação não nova, ao contrário, talvez das mais antigas da história da pintura universal: o rosto e sua ausência quando da representação do homem. Devido à aproximação entre os grupos de pesquisa, um responsável pelo academicismo 1 Academicismo e modernismo em Santa Catarina– UDESC, Centro de Artes Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC. 3 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC. 4 Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina. 5 Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky e Rosangela Miranda Cherem. Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também acadêmica do curso de Artes Plásticas. 2 e modernismo em Santa Catarina e o outro pelo mesmo recorte temporal na América Latina, e pela participação do procedimento por ambos os grupos – esboçamos a problemática sobre o arsenal imagético e suas possibilidades de abordagem, particularmente no que se refere a questões relacionadas à cronologia e anacronismo, semelhança e dessemelhança, proximidade e distância, superfície e profundidade – achamos por bem concentrarmos nas imagens e nos problemas que a seleção feita acarreta para a História da Arte, dentro de todo nosso arsenal imagético, sem nos concentrarmos na questão do território onde foram feitas as imagens, dentro de nosso amplo espectro de interesse. Por isso, vamos nos deter neste artigo em particular em artistas latino-americanos, ao invés dos artistas catarinenses. O que nos interessa é a reflexão possível na leitura de imagens e as possibilidades de estudar a história da arte, no âmbito do grande grupo de pesquisa, do qual participa com alto grau de importância o grupo sobre Academicismo e Modernismo na América Latina. O PROBLEMA: Pode-se mesmo questionar que pessoas são estas, cujos rostos não se mostram nos quadros onde pousam retratadas. De que modo o rosto serve ao homem – que emoções pedem que o rosto seja retirado da cena; quando é retirado da idéia de homem? Este artigo procurará relacionar as imagens latino-americanas selecionadas com questões universais acerca do rosto e do retrato, pensando-o como noção operatória mais que como uma forma de representação tradicional a serviço de discursos que vão para além da própria questão humana. Em última instância, o que se pretende neste artigo é libertar o retrato de sua função tradicional, que visa reconhecer no homem um rosto já recheado de significados. Nestas imagens o rosto não aparece, mesmo quando se mostra. Os olhos são vazios, vazados, quando existem. No percurso da narrativa proposta pelas imagens latinas, seguindo o recorte de imagens proposto, será possível perceber o quanto o ato de esconder o rosto com as mãos talvez seja mais recheado de significados para além do próprio homem do que o rosto e os olhos desenhados – que muitas vezes representam o abismo, na linha de Blanchot e Bataille, dois autores fundamentais para este raciocínio. Das camadas de Didi-Huberman, o presente artigo retira sua noção de retrato, do retrato como ausência, falta, como buraco. O problema, aqui, são os rostos que não se representam, ao contrário, mostram o quanto descoincidentes são consigo mesmos; o problema é o corpo como bloco, como caixa, como espaço. O problema, aqui, é a semelhança – não a semelhança a alguma coisa, positiva, mas segundo o raciocínio de Roger Callois, em sua Psicastenia Legendária – “simplesmente semelhança”6 A MÁSCARA: O rosto não é um assunto novo, sabe-se das antigas representações do homem pelo homem, quando ainda talvez não se soubessem já determinados pelos gestos humanos. Neste tempo remoto, em meio a pinturas de animais e caças feitas em paredes, aquele homem propunha para si uma imagem – um rosto: um rosto não humano, mas daquela caça que confrontavam. O rosto do homem era o pássaro; o da mulher era o corpo, as ancas, os seios. Mas que forma teria o olho que refletia tais absorções? Ao longo da História da Arte, a representação que o homem faz de si – e o uso que faz de sua própria imagem em função de um dizer qualquer – sempre foi assunto recorrente. Talvez haja questões regionais que diferenciam o uso da figura humana a serviço de uma idéia estruturada e sistematizada, em função de um discurso implicado com um determinado contexto histórico, por exemplo. No entanto, parece precipitado afirmar o uso da figura humana – do rosto – apenas como um veículo político partidário de causas alheias à própria condição humana. Nem sempre ele representa alguma coisa para além do que esconde. Seja na pré-história, nas pinturas das cavernas, onde aparece a figura humana pelas primeiras vezes, seja nas imagens feitas por pintores modernos da América Latina de diversos países, em maior ou em menor grau de comprometimento com questões exteriores, percebe-se a retirada do rosto quando se pretende acessar o máximo da condição humana: a angústia gerada pela falta – de vida, de olhos, de força. Quando o rosto sai da cena é a pergunta. O que aparece quando ele sai. Quando ele é retirado – e quando deve ser retirado? Essa superfície nervosa que se chama rosto. Nas pinturas latino-americanas ele é representado de diversas formas e recebe vários significados a partir delas. Os primeiros Fig. 1 – Chile. Alfredo Valenzuela Puelma. 'Meu filho Rafael'. S/ dados 6 Callois, p. 63 exemplos desta série, numa clave impressionista, os rostos sustentam olhos melancólicos, tristes, como o rosto da criança do chileno Alfredo Valenzuela ( Fig. 1). De rosto inerte, parado, os olhos da criança transbordam tristeza, porém uma tristeza contida, já um pouco distanciada do momento máximo do encontro com a dor, como quem apenas narra através do olhar um evento passado. O clima impressionista de Mary Cassatt e James McNeill Whistler aparece muito forte nesses olhos fundos e distantes. Também o clima dado pela influência das grandes pinturas realistas espanhóis sobre o olhar de Alfredo Valenzuela. fig. 2 – Chile. Camilo Mori Serrano. 'Mulher de azul'. S/ dados Também na outra imagem, na ‘Mulher de Azul’( Fig. 2) , cuja melancolia do corpo fala no lugar dos olhos, os olhos são opacos, buracos. A vaporosidade da carne, inapreensível, é reforçada pelo negrume dos olhos que se voltam para quem a olha, a quem ela se oferece. A moça de Camilo Mori não parece mais que um corpo, um invólucro capaz ao sexo, cujos olhos vazados ausentam-se da oferta: seu rosto sorri fraco, seus olhos ameaçam e não se mostram, ao contrário de seu busto, que se mostra e insinua abrir-se para quem quiser. Há uma espécie de resignação débil no sorriso, neste seio em meio a frutas. Há a resignação da condição de um corpo que não pertence ao rosto – e este remete ao corpo; o sorriso é forçado, aparecido de traz do buraco dos olhos, das uvas, e das maçãs. Um quadro cujo estilo dialoga com o que havia de vanguarda na Europa do início do século. Camilo Mori esteve por duas vezes na Europa. Da França trouxe as primeiras insertivas modernas, quando abandonou o realismo popular. Entre as estadas nesses lugares todos, era o Chile quem o abrigava e respondia a suas perguntas. São todos rostos: mostram-se ao mesmo tempo em que se velam. Ao se velarem, por contrário, sugerem uma série de possibilidades. As imagens que seguem ( Fig. 3, 4 e 5) são de rostos escondidos por mãos expressivas. Fig. 3 – México. David Alafaros Siqueiros 'Angústia (mãe do artista)' 94x76 cm Em três imagens seus pintores trocaram a face pelas mãos, pelos ombros. Nesta série, quem os representou foram os artistas David Alafaros Siqueiros e o equatoriano Eduardo Kingman. O mexicano adotou as causas populares e se engajou na luta em favor da revolução com ideais comunistas e do povo mexicano. Chegou a fazer pintura de cavalete, mas destacou-se pelos murais. Compunha o grupo de muralistas mexicanos, entre Orozco e Rivera. Eduardo Kingman adota a semelhança dos muralistas mexicanos, adota a retórica deles; expressa-se com um desenho grosseiro, fortemente delineado, a linha rica de expressividade. Constrói as figuras com um realismo rigoroso, a serviço do discurso da carne que é capaz de identificar nos corpos que representa em seus quadros. Fig. 4 – Equador. Eduardo Kingman. S/ dados Aquilo que estamos habituados a perceber nas feições do rosto, no olhar, é passado neste contexto pela expressão das mãos. Elas escondem os rostos, o acento é transferido do sensível da pessoa através de seu olhar, interno, privado, para as mãos, expostas, destinadas ao trabalho – estas falam sob o viés do drama humano, da dor ostensiva e do sofrimento. São imagens, como foi dito, bastante trabalhadas pelos muralistas, que assumiram a causa do povo e se valeram da arte para construir mensagens em favor da minimização do sofrimento humano – cunho social. Mas percebe-se uma diferença de estilo bastante grande no traço de Kingman e de Siqueiros. Kingman parece ultrapassar Fig. 5 – Equador. Eduardo Kingman. ‘Agobio’. S/ dados a causa populista, apesar de usar a forma do corpo comumente usada em favor deste discurso. Especialmente este, retratou o cansaço, mesmo que um cansaço social, quando abandona o corpo de suas figuras às mãos e ao chão, à descrença. É como se fossem seus corpos apenas carne e desilusão, tristeza. Para não cair, apóiam-se nas juntas do próprio corpo, apegados à matéria como tábua de salvação. As mãos são apoios da alma. Os ombros se elevam acima da cabeça. O gesto das figuras, na superfície, representa a dor humana e faz referência às questões sociais da latino-américa, ao estilo criado no México, consagrado como latino-americano. No entanto, ressalta-se o cansaço representado pelas costas altas, pois é isto que as imagens tratam. O abandono do corpo a sua própria sorte deixando apenas um bloco de significados formado por carne. Uma carne segura nos ossos, no quanto eles puderem estender-se; o resto é mole, derramado. Tamanho abandono cria limites finos com o do corpo estendido no chão – com o corpo da morte, o corpo do sono. Fig. 6 – Equador. Oswaldo Guayasamin. 'O grito I', 1983. Óleo s. tela, 130 x 90 cm O horror acompanha certos limites, o grito é alto na história da arte. Guayasamin (fig. 6) mostra o horror em parte, a boca aberta, o buraco do olho, o rosto metade coberto, metade grito. Este pintor equatoriano trata do tema em vários de seus quadros. Ele mostra o rosto do medo, de quem viu o medo – o horror apenas pode ser visto pelos olhos que o viram. Guayasamin retrata o rosto de quem presenciou o inominável, o indizível, que só pode ser registrado se registrado deste rosto que o vivenciou. Sua vida artística foi tradicional, burguesa, recheada de exposições individuais em importantes museus pelo mundo. Gradua-se como Pintor e Escultor na Escola de Belas Artes de Quito; pensar que tal mistura de faturas tenha resultado em tamanha expressão do grito, que é a parte que cabe a este texto. Percebe-se no quadro em questão a dramaticidade cênica, dada pela materialidade, pela densidade escultórica da pintura. O rosto é fino, a pele é fina, capaz de rasgar-se. É nervosa bem na superfície, treme quando faltam noites dormidas e sobram vidas conturbadas, quando desdobra-se do horror. César Aira fala da impressão de Krause sobre o rosto do amigo Rugendas depois de descrever para o leitor o estado deste rosto atingido por um raio, melhor, Aira fala de impressões sobre um rosto que vivenciou o horror: “Krause estremecia só de pensar como era frágil um rosto. Basta um golpe e já está destruído para sempre, como um vaso de porcelana. Em compensação, um caráter era algo mais durável e uma disposição psicológica parecia eterna.”7 Rugendas escondeu o horror de seu rosto com uma mantilha preta, rendada. Guaysamin escondeu parte do horror com as mãos. Estes rostos ainda representam algo para além de si, mas ainda existe um objeto a que se destina a expressão deste rosto que se esconde. Em artigo publicado numa revista de cultura, Augusto Contado Borges analisa umas imagens que acompanharam as inquietações de Bataille sobre a condição humana, sobre a dor; fotos de um supliciado chinês – um infrator chinês no início do século cuja pena foi ser esquartejado em cem pedaços, tendo sua pele retalhada e seu corpo despedaçado, ainda vivo, em praça pública. Ainda em relação à Rugendas, sob efeito do ópio, esta droga tinha sob o supliciado função oposta à morfina usada pelo pintor viajante: “Afinal, o ópio lhe havia sido ministrado para isso: prolongar seu sofrimento a fim de forçá-lo a viver na própria pele seu maior e derradeiro papel.”8 O rosto do êxtase é ausente do próprio corpo, abandona seu corpo para suportá-lo, ainda, depois. Nas palavras do artigo: “(...) vemos porções de seu corpo arrancadas, membros decepados, a pele em carne viva, o sangue escorrendo das chagas multiplicadas por toda a superfície. A despeito de tudo, seu rosto conserva uma expressão bizarra, desafiadora, como se não fizesse parte da cena: um rosto fora 7 8 Aira, 2006. p. 60 Borges, 2001. de cena, de lugar, de sentido. Na mais contraditória das imagens, a jovem vítima parece não sentir o que sente. A aparência do supliciado numa das fotos é a de um sujeito que não se coaduna com o corpo. No entanto, era justamente esse corpo que impiedosamente ia aos retalhado poucos pelos sendo carrascos imperiais.(BORGES, 2001). Eis o problema. Na medida em que o rosto se ausenta da cena, quando a expressão não coincide com a representação simbólica de expressão adequada a cada experiência de que se possa falar; quando o rosto se depara com o absurdo e não responde mais à consciência, o que se vê? Na medida em que a presença do corpo é mais solicitada, através da dor, do suplício, onde se encontra o ser a quem pertenceria aquele corpo? É possível atribuir o rosto do supliciado ao corpo sob tortura? É puro corpo – e ausência. Na pré-história a figura humana não tinha um rosto seu que não fosse roubado das aves ou de outros bichos. Usavam máscaras e escondiam seus rostos – atrás das mãos. Quando gravavam a palma da mão nas paredes das cavernas, ainda quando representava o mundo abstratamente, através de risco e pontos repetidamente dispostos em cavernas anteriores à Lascaux. Didi-Huberman sugere um “lugar humano” a partir destes “primeiríssimos traços de humanidade”9 em texto que trata do retrato. O homem da caverna estava já ensaiando um rosto seu, apesar de escondê-lo. Segundo o autor, o rosto teve suas primeiras inscrições no mundo quando algum homem ritualizou a ausência, o buraco, deixada pela morte do outro. Ritualizou o outro através de algum gesto: este é o retrato: ritualização do outro ausente. Antes mesmo de representar-se a si enquanto figura distanciada do meio, ainda os primeiros homens usavam características alienígenas a eles para se representarem, a ausência de seu próprio rosto foi preenchida pelo rosto do outro: o pássaro emprestou-se ao homem, que não se sabia distinto dele. A cabeça do pássaro substituiu a cabeça do homem, quando para este ainda não havia rosto, apenas buraco, ausência, intuição e dessemelhança. Hoje a cabeça do pássaro acompanha o animal a que se destina por semelhança positiva, não segundo a semelhança defendida por Callois, ou a do homem pré-histórico. Hoje crê-se em uma 9 DIDI-HUBERMAN, 1998. p. 66 imagem humana, e pretende-se lugares certos para as coisas. No entanto, este deslocamento de objeto acontecido nas cavernas continua havendo. Hoje acontece sob outra perspectiva, de acordo com nosso tempo, através do suporte e do discurso atuais, porém, cujo significado atribuído pode ser exatamente o mesmo que atribuímos aos deslocamentos pré-históricos. Ou seja, houve um segundo deslocamento, deslocou-se, ao contrário de nossos antepassados, o objeto permanece – a cabeça é a mesma, e novamente restitui-se o buraco – desloca-se o lugar do rosto. Agora vemos a ausência por semelhança, um rosto assemelhando-se ao rosto ausente. Depois de tanto tempo, ainda na modernidade, os pintores latinos – como outros tantos, a começar por Francis Bacon e seus infinitos ensaios sobre a condição humana e seu retrato – retiram seu rosto da figura. Ausentam os rosto de expressão. Retiram do homem o que o difere de outros animais, devolvendo-lhe seu maior traço distintivo, o Fig. 7 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Estudo', 1914. Óleo s. cartão, 46 x 54 cm profundo do humano. Rafael Barradas, uruguaio, torna suas figuras desanimadas( Figs. 7, 8, 9, 10). Os olhos são buracos resignados, semelhantes a nada, cegos, quase ausentes do corpo e da cena, ainda quando estão esboçados. As figuras perdem o movimento para a paralisia do corpo inerte, estático, parado. O pintor teve uma carreira consistente, de cujo intelectual, convivendo com pensadores ao freqüentar saraus e deixar-se contaminar pelos pensamentos filosóficos e literários. Desenhista, fez cartazes e ilustrações para revistas. Fig. 8 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73 Fig. 9 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73 cm Fig. 10 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar e Antoninha', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73 cm Esta última série de imagens representa o corpo visto por Rafael Barradas, o corpo confundido com bloco, coincidente com o vazio de sentido. Os rostos mal esboçam traços reconhecíveis – se há, têm olhos opacos ou inexistentes. Só sombra. As figuras são contidas no corpo e se lançam ao observador através de olhos obliterados, são ocelos; os blocos são mimetizados em corpos – cabeças imitam rostos, buracos imitam olhos e blocos imitam corpos. Pura semelhança sem objeto. Olhos de vidro, olhos apagados, rostos inexistentes e expressão nenhuma de humanidade no corpo. Os retratos são formais e tradicionais, enganando solenemente o vidente desavisado: meio corpo estendido virado para frente. Barradas parece enxergar o mesmo que Callois, a partir de outro lugar. Callois se espanta com a mimetização de uns animais em especial com o meio; Barradas sugere o espanto da coincidência do corpo do homem consigo próprio. Ambos tocam na questão da semelhança – semelhança com nada. Através de um procedimento metonímico, o pintor latino faz uma série de retratos com mesma forma. Repete várias vezes o bloco com significação humana – pois nomeia os quadros com nomes próprios, como se fossem os nomes das pessoas retratadas. Figuras que se assemelham aos nomes, sem rostos ou gestos. No entanto, as figuras marcam um lugar: elas estão ali, ocupando um espaço, como ocupa o corpo que dorme, para Blanchot. A CONCLUSÃO: A questão maior tratada neste artigo, portanto, vem a ser o retrato e seus desdobramentos em imagens modernas da América Latina, confirmada através especialmente das imagens do uruguaio Rafael Barradas, que trouxe em seus quadros a discussão iminente sobre o retrato feita por grandes teóricos, em acordo e concordância direta com questões universais que atravessaram o tempo, chegando aos dias de hoje tratando destas questões tão enigmáticas como o eram em tempos passados. Seu retrato, apesar de intentar mostrar o retrato tradicional, foge a ele. Os olhos incisivos e vazios retratados por Barradas não remetem a outras questões que não sua existência mesma, o seu próprio vazio. Seriam suas imagens, portanto, o retrato como noção operatória, ao invés de simples representação de pessoas. Abaixo, outro retrato, de Franscisco Goitia ( Fig. 11), como mais uma tentativa de esclarecer e confirmar a tese aqui proposta. Em sua vida, além de passar mais de 5 anos na Europa, ao voltar para o México, aliou-se a um general de guerra, como seu pintor oficial, por isso acompanhando-o e aos seu exército por todas as partes que fossem. Acompanhou muita guerra e muita morte. Goitia mostrou os estragos e sofrimentos que estes também significaram para o povo do México. O ‘povo’ de Goitia parece desiludido da salvação, estão mais próximos, mais uma vez, do real da condição humana – não é mais o sofrimento cênico anterior à morte. Também retirou-se novamente da “civilização” ao morar em meio a índios ao lado de um antropólogo amigo, onde atuou como mestre e promotor. O quadro ‘Tata jesus Cristo’, abaixo, é um de seus mais conhecidos, e traz o rosto ausente e o rosto da dor extrema. Fig. 11 – México. Francisco Goitia. 'Tata Jesucristo', 1926. O rosto e sua ausência nos serviram de motivo para pensar questões relacionadas em especial ao anacronismo, através de uma possível reflexão sobre a leitura de imagens – e as possibilidades de estudos da história da arte. A série proposta pretendeu libertar o retrato de sua função tradicional e reconhecida, que crê haver nos rostos apenas certas e determinadas interpretações, que não vê no rosto mais que superfície recheada de significados. A PRESENÇA DOS VÉUS NO OLHAR ARTÍSTICO Ana Emília Jung1 RESUMO O presente artigo visa, através de um breve panorama histórico, explicitar a relação olho/olhar presente no discurso de filósofos e pensadores desde a antiguidade. Dando ênfase ao argumento fenomenológico e psicanalítico sobre este assunto, trataremos de fazer compreender o conceito de olho-sujeito presente na obra do historiador e crítico de arte Georges Didi-Huberman, a partir do qual todo olho contem sua névoa, ou seus véus. O que constitui a visibilidade? Quais mecanismos a visão e o olhar engendram? Se todo olho é um olho-sujeito, como afirma Didi-Huberman, o que é ver? Quais são os véus que se interpõem entre olho, sujeito e mundo? Para pensar estas questões faz-se necessário compreender que a questão relacionada à natureza do olhar está presente desde a antiguidade no discurso dos pensadores. Naquele momento os filósofos não faziam a distinção entre a sensação subjetiva da visão e o processo físico da luz. Platão por exemplo, na obra Timeu, descreve os olhos como porta-luzes onde o raio visual tratava de conectar luz e visão e o olhar iluminava os objetos de sua visibilidade. Para ele, os olhos serviriam para contemplar as coisas divinas e fazê-las matéria da própria filosofia, a visão funcionaria como apreensão visual e o olhar estaria no universo de domínio das idéias - da theoria2. Aristóteles, por sua vez, descreve a contemplação como a busca da felicidade e do prazer, em oposição a busca de saber, e nesse viés São Tomás de Aquino formula a “visão da essência divina” ou a beatitude. Se até então o olho e o olhar se complementavam e fundamentavam a busca da verdade e do saber, em Sócrates essas funções separamse. O filósofo introduz a distinção entre o olho que vê a evidência da luz e o olho que possui inteligência, o olho da alma. E com o avanço do estudo da ótica, metodicamente explorada por Euclides, o olho separa-se definitivamente do olhar no aspecto que faz dele um puro órgão anatômico. É a fenomenologia inaugurada por Husserl e fundamentada por Merleau-Ponty que, no campo da filosofia, retomará o debate do binômio olho-olhar como 1 Mestranda pelo PPGAV – CEART UDESC linha de Teoria e História da Arte, orientada por Rosângela Miranda Cherem. 2 Ação de ver e contemplar, pura intelecção. experiência ligada ao desejo3 e reintegrará o olhar subjetivo à ciência. Criticando Descartes, seu império da evidência e o olho da razão, Merleau-Ponty propõe uma reflexão que rompa com a dicotomia sujeito/objeto para assumir o entrelaçamento de ambos a partir da noção de visibilidade. No livro “Um olhar a mais, ver e ser visto na psicanálise” Antonio Quinet traça um panorama da problemática do olho/olhar que circunda a filosofia e fundamenta o campo analítico, a percepção visual inclui o gozo, apesar de velado, que se manifesta na afetação do sujeito mais do que como um ser que vê como um ser visto. O binômio visível e invisível de Merleau-Ponty se desdobra para a psicanálise em visão e olhar, imaginário e real pulsional sustentados em sua antinomia pelo simbólico da linguagem. 4 1. Visível e Invisível em Merleau-Ponty Para Merleau-Ponty é o olhar que toca as coisas do mundo providenciando a aproximação entre vidente e visível5. Ambos, objeto e sujeito, entrelaçam-se fazendo parte do mesmo elemento carne e estão contidos no mundo, é que a espessura da carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade para ela, como de sua corporeidade para ele; não é um obstáculo entre ambos mas o meio de se comunicarem6. À visibilidade deste campo incorpóreo de atração mútua o autor chama de “carne do visível”, sobre isto ele comenta: Este campo é o lugar em que reflexão e intuição ainda não se distinguem, oferecendo-nos juntos a existência e a essência, o visível e o vidente. O olhar apalpa as coisas: interação do visível e do tangível. Essa “espessura da carne”- este campo denso entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade. As coisas não são achatadas, de duas dimensões, mas seres dotados de profundidade, só acessíveis a aquele que com elas coexiste num mesmo mundo.7 Entendendo que todo o olhar possui o que olha, Merleau-Ponty se pergunta qual a relação de princípio entre vidente e visível, e ainda, se o vidente se inclui como carne do mundo, ele próprio passa a ser visto como visível, supondo um outro vidente que o olha, qual seria então o jogo de reflexão que sucede entre dois pontos da mesma 3 No campo da psicanálise, Freud é o articulador da função do olho em relação ao desejo, campo denominado por ele de pulsão escópica e que serve como base para os estudos de Lacan. Lacan é um dos principais interlocutores de Merleau-Ponty. 4 QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro:Jorge Zahar, 2004, 2ed, p.33 5 Merleau-Ponty situa o visível como a coisa passível de ser vista e o vidente como aquele que vê. 6 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.132 7 Id., ibid., p.132 carne? O que o anima? A pergunta nas palavras do autor: O que é esta pré-posse do visível, esta arte de interrogá-lo segundo seus desejos, esta exegese inspirada?8 Vidente e visível reciprocamente inseridos e entrelaçados numa rede de interações tal como dois espelhos postos um diante do outro criam duas séries indefinidas de imagens encaixadas, que verdadeiramente não pertencem a nenhuma das duas superfícies, já que cada uma é a réplica da outra, constituindo ambas, portanto, um par mais real que cada uma delas9. Assim, na atração entre vidente e visível não há hierarquias, no grande espetáculo do mundo, vejo de onde também sou visto. Quiasma é o que figura esta constituição da coisa, a relação que permeia o jogo de olhares, de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se saiba quem vê e quem é visto10. Figura 01. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951) Vasos (1949) Óleo sobre hardboard - 77,5 x 47,5 cm Figura 02. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951) A Natureza Morta com Maçã e Janela (1942) Óleo sobre madeira - 77,5 x 55,4 cm 8 Id., ibid., p.130 Id., ibid., p.135 10 Id., ibid., p.135 9 Figura 03. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951) Merenda Óleo sobre cartão - 50 x 70 cm Nas imagens do pintor argentino Fortunato Lacámera (Buenos Aires, 18871951) algo além da superfície pictórica parece estar sugerido através do efeito de translucidez que o jogo de luz aponta. É como se os elementos pintados, copo, maça, pão, jornal, etc. estivessem numa sintonia tal que se assemelhassem mais do que se diferenciassem. Mas o que faz com que uma maça cintile numa mesma densidade que um copo de água ou um jornal amassado senão a maneira que provocam um olhar? Nessas três pinturas que usamos como exemplo, não somos tomados pela função dos objetos representados, entramos num estado de espírito que nos conecta sem hierarquia para com as figuras e nos deparamos com a possibilidade de inverter o senso comum onde o eu vidente é o que olha primeiro. Aqui, como concebido por Merleau-Ponty, já não sabemos mais se vemos ou somos vistos, de qualquer modo estamos diante de algo que apreendemos e também através do qual somos apreendidos. Fortunato Lacámera consegue nos oferecer em imagem a possibilidade de vislumbrar a estrutura incorpórea de atração que Merleau-Ponty denomina carne do visível. 2. Campo escópico em Lacan Também para a psicanálise, assim como vimos acima na fenomenologia de Merleau-Ponty, o olhar não é um olhar do sujeito e sim um olhar que incide sobre o sujeito, é um olhar que o visa: olhar inapreensível, invisível, pulsional11. Em Lacan o espaço de relações fundado na imbricação quiasmática entre olhares é chamado de 11 QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, 2ed, p.41 campo escópico, nesse espaço não é o vidente quem em princípio dirige o olhar mas aquele que responde secundariamente a preexistência de um olhar outro, primordial: eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte.12 Esse dado-a-ver determina o empuxo daquele que vê algo anterior a seu olho. Nesse sentido visão e olhar são de ordens distintas, enquanto a visão apreende o universo tangível, é o olhar que posiciona o sujeito no sentido do Ser. Figura 04. Marcelo Pogolotti (1902 - 1988) Evasão (1937) 600 x 479 cm No quadro “Evasão” do pintor cubano Marcelo Pogolotti (1902-1980) há um jogo que poderia nos remeter ao campo escópico lacaniano. Nessa imagem a figura feminina se encontra diante de um espelho e a imagem refletida na superfície espelhada não corresponde ao que seria essa reprodução. O que está refletido é uma outra cena que sugere algo alhures e onírico. Não seria a imagem do espelho uma tentativa de figurar o lugar do empuxo? 3. Olho-sujeito em Didi-Huberman A partir da reflexão iniciada na fenomenologia, em Freud e em Lacan, Georges Didi-Huberman elabora o conceito de olho-sujeito. O lugar de onde vemos é, em sua concepção, o lugar de onde somos constituídos, de modo que são as nossas faltas as que nos apontam o mundo. No jogo do olhar, entre mundo e objeto, é 12 LACAN, Jacques. O seminário, os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1998, p.73 impossível supor um olho nu pois todo olho é um olho-sujeito que traz consigo sua experiência, como ele nos mostra: O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor13 O olhar cindido do qual nos fala Didi-Huberman não se apóia nem na evidência do visível, tautológico, nem no alhures da dimensão da crença mística. É constituído no momento de fratura e sustenta sua posição de entremeio na dialética dessas forças. No momento de cisão é que o que vemos justamente começa a ser atingido pelo que nos olha e somos então atravessados pela dimensão capaz de nos desestabilizar. Diante das imagens artísticas o olho-sujeito, de efeito singular, deixase ser provocado pela descontinuidade. Esse é o viés dos véus do olhar artístico, principalmente nas imagens que sabem apresentar a dialética visual desse jogo no qual soubemos (mas esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar lugares para essa inquietude.14 Figura 05. Horácio March (1889 - 1978) Paisagem Óleo sobre cartão - 60 x 50 cm 13 14 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.77 Id., ibid., p.97 Na pintura “Paisagem” do argentino Horácio March (1889-1978), o caminho não cumpre sua promessa de levar-nos até o horizonte, pois a rua termina e diante do oceano só podemos contemplar a paisagem. Insinuando a vastidão que está alhures na condição de ser oceano, somos impedidos do todo, temos que nos contentar com o fragmento da promessa. E talvez justo por isso a promessa não se desfaça. Essa é uma obra capaz de provocar um encontro do espectador com a noção de desestabilização. Dando e tirando, oferecendo e não entregando a possibilidade do encontro, Horácio March nos coloca na própria experiência a qual nos aponta DidiHuberman, a de inquietar nossa visão diante do véu. REFERÊNCIAS DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998 LACAN, Jacques. O seminário, os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998 MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo, ed. Perspectiva, 2003 QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, 2ed 1 O DETALHE ANACRÔNICO Elke Otte Hülse1 RESUMO Três recortes de tapeçarias de tempos distintos podem proporcionar ao tapeceiro da atualidade, várias reflexões. Inicialmente o cartão a ser usado como referência para a trama, depois o urdimento adequado a esse cartão e finalmente a trama de material conveniente que através das cores, texturas e escolha adequada dos recursos técnicos, transforme esse conteúdo em uma tapeçaria. Ainda assim pode uma tapeçaria contemporânea ser só cópia do cartão? E ao observar outras manifestações artísticas como, por exemplo, a pintura, esta muitas vezes poderia ser a fonte para criação de um novo cartão. PALAVRAS-CHAVE: cartão, urdume, tapeçaria, pintura, recursos técnicos. Ao observar um detalhe da tapeçaria “A Mon Seul Désir”2 e em seguida outro da tapeçaria “Arvore da Vida com Salamandra”3, percebem-se muitas informações em comum. Reportome a Lacan, quando ele denomina compulsão da repetição, ao ato de olhar sempre a mesma coisa em obras distintas. Ao olhar do tapeceiro, inicialmente o que chama a atenção é o processo técnico, especificamente os recursos utilizados como hachura, interpenetrações mínimas, degrades, emendas, enfim como os recursos técnicos foram utilizados para melhor explorar o cartão. Num segundo momento é o conjunto de cores que atrai o olhar, ainda a textura dos materiais e finalmente a tapeçaria, a criação como um todo. Essas mesmas considerações provavelmente podem ser feitas pelo tapeceiro quando busca na história da pintura montar sua constelação de imagens. Na tapeçaria essa reflexão me leva ao início, especificamente ao urdimento. No tear, sempre iniciamos com o urdimento e é surpreendente como esse fazer se assemelha ao escrever de uma partitura musical. Nas duas situações, existe o silêncio entre os fios do urdume e entre as notas musicais. Esse intervalo entre os fios do urdume para o tapeceiro experiente pode ser facilmente resolvido, mas em todas as situações esse é o ponto 1 Mestranda do PPGAV-CEART, UDESC, linha de Teoria e História da Arte, orientada por Profa. Dra. Sandra Makowiecky. 2 Detalhe da tapeçaria ao final do texto 3 Detalhe da tapeçaria ao final do texto 2 essencial para uma resolução adequada da trama. Pode ser considerado um simples exercício técnico, mas envolve estabelecer um espaço vazio do tamanho apropriado entre os fios de urdume. O ponto crítico para a qualidade da tapeçaria é uma relação entre o número de fios do urdume e sua espessura. Assim o intervalo por si só determina a espessura da trama, tal qual o urdume faz. Contudo as variações dessas relações são muitas vezes negligenciadas. Precisamos observar o espaço entre os fios do urdume, a espessura desse fio, sua torção porque tudo isso define o macio ou o duro da trama. Existem algumas regras básicas nessa escolha, mas um compasso adequado e que mantém um ritmo constante da trama é urdir com um espaçamento entre fios da espessura de um fio e um quarto. Esse detalhamento pareça um tanto mecânico e segue um ritual muito metódico e hoje em dia como os teares são simples de serem urdidos também é um trabalho solitário. Na Idade Média os fios do urdume eram mais grossos do que os da trama. Acho que esses fios são parecidos com as esposas, porque a função deles não aparece, só se vêem os sulcos sob a trama colorida. Mas se não fossem eles, não haveria tapeçaria. (Chevalier, 2006, p.134) Assim existe a relação de espessura entre urdume e trama que proporciona uma tapeçaria mais dura quando temos mais fios e mais macia quando temos menos fios por centímetro no urdume. Essas regras são flexíveis e cabe ao tapeceiro ajustar seu urdume às necessidades que seu desenho exige. Quando um urdume é de um fio mais fino, conseqüentemente a trama também será de fios mais finos que resultam num tecer mais lento, demorado como exemplifica o detalhe da tapeçaria “A Mon Seul Désir” e também no detalhe, “Árvore da Vida com Salamandra”. Discutir essa questão do espaçamento entre os fios do urdume parece obvia para o tapeceiro experiente, mas tem implicações em outros aspectos da confecção da tapeçaria. O urdume só se justifica na tapeçaria quando a trama atua sobre ele, assim como as notas musicais só se justificam quando um instrumento musical as interpreta. Na tapeçaria o intervalo entre os elementos, a relação figura/fundo também é de grande preocupação. O tecer de uma tapeçaria é semelhante ao montar de um quebra-cabeça. Muitas vezes o fundo precisa ser tecido primeiro e é a forma do fundo que determina muito da real forma do objeto, ou figura. Um exercício que exemplifica muito bem é quando temos uma fileira de círculos para serem tecidos. Os intervalos entre os vários círculos precisam ser tecidos primeiro, é o suporte para então tecer os círculos e completar a área 3 em volta deles. Não é possível tecer a parte de baixo dos círculos sem antes construir o suporte, isso para um tapeceiro experiente é sabido, mas na tapeçaria diferente da música o intervalo entre os fios do urdume pode sim provocar desvios na forma. Para Deleuze, na tecelagem como espaço estriado as formas organizam uma matéria, o estriado é o que entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as linhas melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais. E ainda no espaço estriado, as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro. (Deleuze,2002, p.184) Portanto quanto mais fios no urdume mais próximo a tapeçaria poderá seguir o cartão. Tanto na música como na tapeçaria, temos tempos de execução marcados por ritmos, intervalos e pela composição. Na música é possível improvisar, na tapeçaria algumas decisões também acontecem no ato de tecer, mas o cartão representa praticamente toda criação que é planejada antecipadamente. Talvez a música clássica possa ser comparada à tapeçaria Medieval, mas a tapeçaria contemporânea ainda segue partituras e ritmos muito próximos da tapeçaria medieval. Provavelmente o melhor companheiro do tapeceiro seja um fundo musical. Na tapeçaria contemporânea devido as pequenas dimensões, o tapeceiro às vezes desenvolve cartões que podem ser tecidos da parte inferior à superior como exemplifica “As Meninas da Guerra”4. Na tapeçaria tradicional da Europa, o desenho é tecido da direita para a esquerda, equilibrando o peso da trama na vertical com o urdume na horizontal. No detalhe de “As Meninas da Guerra”, percebe-se que na trama o destaque está na textura dos fios e não no uso de técnicas minuciosas. Existe uma indefinição, uma rugosidade que dificulta a percepção visual da técnica usada, mas por outro lado é a textura que instiga o olhar do observador. Nas duas tapeçarias tecidas com fios tradicionais a ênfase dada pelos tapeceiros é justamente no uso das interpenetrações e hachuras. Nesse sentido, o eterno retorno é bem a conseqüência de uma diferença originária, pura, sintética, em si. Se a diferença é o em si, a repetição, no eterno retorno, é o para si da diferença. (Deleuze, 2006, p 183) Em “As Meninas da Guerra”, o urdume de fio mais grosso e espaçado, ou seja, dois fios por centímetro, permitindo assim o uso de materiais mais grossos, como tiras que dificultam o 4 Detalhe do fundo tapeçaria ao final do texto. 4 uso da técnica tradicional, mas por outro lado a solução encontrada é harmoniosa com o material explorado. A textura está diretamente relacionada aos materiais usados e Deleuze considera o tecido como um espaço estriado que pode ser infinito em comprimento, mas não na sua largura, definida pelo quadro da urdidura, a necessidade de um vai e vem, implica um espaço fechado. (...) um tal espaço parece apresentar necessariamente um avesso e um direito; mesmo quando os fios da urdidura e os da trama tem exatamente a mesma natureza, o mesmo número e a mesma densidade.(Deleuze, 2002 p.181) A tapeçaria tradicional francesa era e continua sendo tecida pelo avesso onde os tapeceiros só vêem uma pequena parte do que estão tecendo. Todas as emendas e os arremates ficam no avesso e dificultam a visualização do trabalho em execução. Lendo Michel Leiris, em “Espelho da Tauromaquia”, ouso relacionar o cartão ao touro, os fios do urdume à capa usada pelo toureiro e a tapeçaria representando o toureiro. O espaço do ateliê é a arena onde acontece todo o espetáculo, repleto de fios coloridos, texturas variadas e o próprio tear instiga o tapeceiro e quem tem acesso ao espaço. O cartão é a referência, o que move o tapeceiro a tecer e fica preso por trás dos fios do urdume. Esse por sua vez, assim como a capa do toureiro é frágil e serve para que o tapeceiro use como apoio onde cria sua trama. O urdume vai ficar entre a intenção do tapeceiro e o cartão. Mesmo que o tapeceiro crie seu próprio cartão, esse deverá ser só um instrumento porque ao final a tapeçaria deve triunfar. Na tapeçaria contemporânea existe uma preocupação especial da tapeçaria não ser mera cópia do cartão, mas ter identidade própria. O tapeceiro precisa do cartão para executar a tapeçaria, mas depois de finalizar, do “Olé”, no instante entre o além e o aquém, acontece a rachadura da beleza, onde a tapeçaria não mais quer estar associada ao cartão. São muitas horas, dias, meses de convivência, conivência e cumplicidade em que o cartão provoca o tapeceiro a trabalhar em sua tapeçaria. Como antes da crise final do ato amoroso, ficamos todos em suspenso, na angústia de que tudo termine, no êxtase maravilhado de que tudo continue. (Leiris, 2001, p47) Quando depois de horas tecendo o tapeceiro se afasta e olha o executado, deixa que o mundo exterior interfira, desfaz-se a quase tangência entre o cartão e a tapeçaria que mantém o tapeceiro atado a sua trama. Entretanto, veremos que mesmo essa figura da tangência não é senão um limite ideal, praticamente jamais atingido, (...) incompletude obrigatória, abismo que buscamos inutilmente transpor, brecha aberta à nossa perdição. (Leiris,2001,p29) É justamente ao 5 finalizar no instante do “Olé”, do “Bravo”, quando depois de muitas horas de total comunhão entre o tapeceiro e sua trama, esse termina sua tapeçaria e como em uma primeira forma de rachadura, suficiente por si só para que, da plenitude do amor, passamos à dilaceração, reconhecendo nossa deficiência uma vez que, aplacados, seguimos vivos e não há nada mais a fazer senão contemplar o objeto amado como um objeto, passada a identidade ofuscante. (Leiris,2001 p50) A tapeçaria finalizada não mais depende do cartão, acontece então por um lado o provável sacrifício do cartão e pelo outro lado as glórias da tapeçaria. Na medida em que se pode dizer que, ao menos simbolicamente, qualquer atividade estética legítima traz consigo, refletida ou não na obra, sua porção trágica. (Leiris,2001,p19) Para o tapeceiro a maior tragédia é a tapeçaria ser mera cópia ou transposição do cartão. Como evitar a vitória do cartão sobre a tapeçaria? Completa-se o ciclo onde o tapeceiro, deve perceber na técnica o sintoma. Esse volta na confecção da tapeçaria, onde o tapeceiro só entende o sintoma quando ele constrói a constelação, quando faz as montagens. Neste caso, o antigo presente desempenharia o papel de um ponto complexo, como de um termo último ou original que permaneceria em seu lugar e exerceria um poder de atração: ele forneceria a coisa a ser repetida, condicionaria todo o processo da repetição, mas, neste sentido, ele seria independente desse processo. (Deleuze,2006, p153) 6 Figura 1. Autor desconhecido. detalhe de A Mon Seul Désir Tapeçaria (1480 /90) . Figura 2. José Diego Rivera (1886 – 1957) - México A história do México 7 Figura 3. José Diego Rivera (1886 – 1957) Indústria de Detroit, North Wall - detalhe (1932-33) Figura 4 Jean Pierre Larochette detalhe de Arvore da Vida com Salamandra (1.50 x 1.50) Tapeçaria (1995) Figura 5.Henrique Schucman, detalhe de Meninas da Guerra (1998) 8 Tapeçaria (1.80 x 2.80m) Figura 6. Carmelo de Arzardun (1888 - 1968) Partida de Futebol (1919) Óleo sobre tela - 87 x 116 cm 9 Figura 7. Fray Guillermo Butler (14.12.1880 - 17.07.1961) Sem dados Figura 8. Leonora Carrington (06.04.1917) As distrações de Dagobert (1945) Óleo sobre tela - 74,9 x 86,7 cm Assim como as grandes tapeçarias medievais partiram de uma pequena pintura, a pintura mural dos mexicanos, Diego Rivera; e Leonora Carrington, tem elementos técnicos muito usados pelos tapeceiros contemporâneos na composição de seus cartões. A cena do pintor uruguaio, Carmelo de Arzadun, poderia ser desenvolvida na tapeçaria, usando a hachura na parte superior, técnica essa muito próxima do que o pintor ali desenvolveu. O retrato do pintor argentino, Fray Guillermo Butler, da mesma forma poderia ser desenhado em um cartão e tramado como uma tapeçaria. A escolha dessas pinturas especificamente, só se justifica no olhar de um tapeceiro. CONCLUSÀO O historiador francês, George Didi-Huberman, entende as diferenças do tempo como semelhanças, quando escreve que toda obra é anacrônica. A constelação de detalhes das 1 tapeçarias apresentadas, assim como das pinturas dos artistas latino-americanos, reforça que a técnica utilizada nos diversos períodos da história, sempre volta e se renova. Na tapeçaria, os materiais não convencionais, misturados aos fios tradicionais como os usados em “As Meninas da Guerra”, são exemplos de reaproveitamento de restos de tecidos já tramados industrialmente e transformados novamente em tiras. Diante de uma imagem, tão recente, tão contemporânea, o passado sempre reaparece. Enfim diante de uma imagem temos humildemente que reconhecer, que provavelmente ela nos sobreviverá, que diante dela somos um elemento frágil, o elemento do passado, e que diante de nós ela é um elemento do futuro, o elemento da duração. (DIDI-HUBERMAN, 2005, p12) REFERÊNCIAS CHEVALIER, Tracy. A Dama e o Unicórnio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2003. DELEUZE, Giles. Diferença e Repetição. São Paulo, Graal, 2006. DELEUZE, Giles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo, Editora 34, 2002. DIDI-HUBERMAN,Georges. Ante el Tiempo. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2005. LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia. São Paulo, Cosac & Naify, 2001. ARQUIVOS: SOBRE OS LIMITES E DESTINOS DE UMA PESQUISA Academicismo e modernismo em Santa Catarina1 Sandra Makowiecky 2 Giorgio Vicenzo Filomeno e3 Participantes do Grupo de Pesquisa (SC):Marina Rieck Borck4 Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5 Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina e América Latina. Seu início foi assinalado pela escassez de um arsenal imagético e bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Apresenta-se aqui uma parte deste percurso ocorrido durante o manuseio de arquivos e a elaboração de um mais amplo, bem como as reflexões teórico-metodológicas daí decorrentes. Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina; América Latina; arquivos;museu. 1- OS CONTORNOS DA PESQUISA. A partir da disciplina História da Arte III, ministrada pela professora Rosangela Miranda Cherem, cuja ementa contempla um conteúdo plástico latino-americano, verificou-se a escassez de um arsenal imagético e bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Entre 2004-2 e 2005-2 teve inicio um levantamento preliminar que contou com envolvimento discente e foi devidamente explorado, mas que ratificava a necessidade de um aprofundamento do 1 Academicismo e modernismo em Santa Catarina – UDESC, Centro de Artes Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC. 3 Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina. 4 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC 5 Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (Coordenadora do projeto SC) e Rosangela Miranda Cherem ( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também acadêmica do curso de Artes Plásticas. 2 material, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Neste sentido, fez-se necessário prosseguir o estudo, procurando identificar as principais características artísticas entre os países da América Latina, bem como considerando a relação de proximidadedistância, semelhança-diferença de sua produção, destinada tanto à geração e potencialização de novas abordagens e reflexões sobre as artes plásticas no âmbito da modernidade, como em especial, abordando o modernismo para além de leituras auto centradas ou que registram apenas os vínculos europeus ou norte-americanos. Como um projeto de pesquisa formulado com fins institucionais foi previsto uma investigação para ser desenvolvida entre fevereiro de 2006 a fevereiro de 2008. Porém a extensão documental e a dificuldade de localização das fontes levaram à prorrogação de mais um semestre, ou seja, até julho de 2008, para finalizar a parte de América Latina. Utilizando os acervos bibliográficos disponíveis na Internet e conforme os países da América Latina, os principais objetivos da pesquisa ficaram definidos no sentido de mapear os artistas e sua produção no âmbito das Academias de Arte e dos movimentos identificados com o modernismo, permitindo reconhecê-los conforme suas percepções estéticas e sensibilidades temáticas, condições de trabalho, expectativas, sociabilidades e demais critérios apontados pelo levantamento empírico; além de indicar possibilidades de estudo e desdobramento de problemas a serem desenvolvidos em investigações posteriores. Em outras palavras, constatada uma escassez de estudos e pesquisas sobre as artes plásticas neste continente, buscou-se um caminho capaz de permitir tanto um entendimento mais abrangente e rico da produção artística como favorecer avanços para além dos catálogos e estudos sobre acervos privados e/ou monotemáticos, bem como ampliar as articulações das particularidades em relação ao conjunto de questões mais abrangente, permitindo análises mais consistentes acerca de certas contaminações e desdobramentos plásticos. O recorte cronológico definido envolvia desde o nascimento da mais antiga academia de artes latino-americana (1785 no México) até a segunda guerra mundial, uma vez que depois daqueles anos instalou-se um outro contexto de rupturas, relacionado ao concretismo e neo-concretismo até a morte das vanguardas, configurando-se num outro objeto de estudo. Em função da amplitude do objeto a ser estudado e da inegável ausência de estudos mais abrangentes e sistematizados sobre o assunto, a pesquisa se configura como 2 uma espécie de cartografia de problemas relativos à História da Arte na América Latina. Contudo seu foco principal não pretende reconhecer ou definir questões meramente relativas às identidades estéticas, mas compreender como as imagens pictóricas comportam e compartilham sensibilidades e percepções artísticas próprias à modernidade, bem como suas contradições e paradoxos. A opção por um CD ROM com um levantamento de artistas, obras e biografias conforme os países, além de uma parte incluindo artigos, pareceu um caminho viável, devendo o mesmo instrumento ser destinado à divulgação e manuseio de outros interessados em ampliar seu repertório sobre o assunto. Na organização desta espécie singular de arsenal imagético foram incorporados artistas e obras pouco conhecidos, acolhidos como parte de um arquivo destinado ao domínio público, contribuindo para que o virtual engendre uma afinidade com a memória compartilhada e considerando que este tipo de fonte como estrutura de memória não é novidade. O arquivo, externo, diretamente no suporte, atual ou virtual, tem sua democratização medida pela participação e acesso e pela sua constante apropriação e interpretação. Embora o arquivista deva levar em conta a incompletude do arquivo e o mesmo possua inúmeras possibilidades de armazenamento, também deve saber que não haveria o desejo de arquivo sem a noção de finitude e sem a possibilidade de esquecimento. Se o arquivo não se reduz à memória e nem à mneme ou à anamnesis, é especialmente possibilitado pela pulsão de morte, de agressão e de destruição, também pela finitude e expropriação originárias: “[...] Não, a estrutura técnica do arquivo arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio surgimento e em relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o evento. É também nossa experiência política dos meios de informação.”( DERRIDA, 2001, p. 28) 2- AS DECORRÊNCIAS DO PERCURSO. Entre as tarefas realizadas destacam-se a divisão dos países, seus respectivos artistas e levantamento de produção plástica conforme os pesquisadores e seguindo uma padronização definida previamente no que diz respeito aos dados a serem obtidos e sua sistematização. Levantamento dos endereços de museus, galerias e instituições de arte, bem como de possíveis endereços para pesquisa via internet, além de catálogos, folders e livros. Envio de correspondências na tentativa de encontrar 3 material bibliográfico destinado a complementar as informações. Através da disciplina de História da Arte III e das leituras realizadas semanalmente pelo grupo de pesquisa em 2007-2 tiveram início as análises do material coletado, seguido posteriormente pela redação e discussão dos textos destinados à composição do CD ROM. Assim, o presente estudo se desenvolveu especialmente a partir da constituição de séries e agrupamentos imagéticos, considerando afinidades e diferenças artísticas, além de levantamento de problemas e desdobramentos analíticos indicados a partir das imagens; bem como da problematização das injunções temporais contidas nas obras, em termos de eucronias e anacronismos da modernidade. Entre as dificuldades encontradas destaca-se o fato de que o material visual levantado nem sempre disponibilizava os dados necessários à pesquisa, como por exemplo, título, tamanho e técnica da obra ou localização do acervo ao qual pertence. Outra dificuldade apontada refere-se ao fato de que as biografias de alguns artistas, bem como local e data de nascimento e falecimento, eram bastante imprecisas, incompletas e, por vezes, inexistentes. Alguns países não só apresentaram insuficiência de dados como a maioria dos artistas que os representam está situado apenas a partir da segunda metade do século XX. A aquisição de catálogos e textos específicos de cada país também foi dificultada devido a entraves de acesso, manuseio e distribuição dos mesmos, além de entraves financeiros e de transporte. Nos meses em que os pesquisadores se fizeram valer de diversos meios para enriquecer seu repertório mergulhando nos mais recônditos corredores em busca de novos dados e imagens, foram debatendo e compreendendo a extensão da reflexão sobre a tradução como sendo não uma mera repetição, mas como espécie de sobrevida da obra pela mutação, considerando seu caráter fugidio e de deslizamento constante. Assim, a obra não vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor, acima dos meios de seu autor. Sua sobrevida da obra excede a vida e morte biológica e ultrapassa a condição orgânica, fazendo nascer a tarefa de compreender a vida para além dela mesma como forma que ultrapassa a história. Devendo a tradução ser da obra e não do autor, não tem a ver com o receptor ou com comunicação, não é imagem, cópia ou representação, sendo que “Ele nomeia o sujeito da tradução como sujeito endividado, obrigado por um dever, já em 4 situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como sobrevivente ou agente de sobrevida” (DERRIDA, 2002, p.33). É preciso ainda reconhecer que entre as advertências desta empreitada encontramse os riscos proporcionados pelas atribuições errôneas e apócrifas, todavia este é um perigo do qual não escapam nem mesmo os museus e os colecionadores, freqüentemente às voltas com obras falsificadas ou com autoria atribuída equivocadamente. Igualmente os dados desta pesquisa guardam sua fragilidade. Em sua qualidade de arquivo, são débeis e irresolutos e, certamente na grande maioria, apenas um sopro do que são seus originais, apresentando-se frequentemente distorcidas em forma e cor e desprovidas de detalhes importantes, como tamanho e data das obras. Filtradas as imagens, foram adotados os critérios de melhor resolução para a reprodução em um cd rom, reduzindo em cerca de um terço as quase cinco mil imagens capturadas dos quinze países pesquisados. Neste rol não estão incluídas as imagens e Santa Catarina e Brasil, que formará outro CD ROM. Por sua vez, convém ressaltar que a sobrevida das obras no espaço virtual pode se dar com mais facilidade e por mais tempo do que a dos trabalhos nas suas materialidades originais, pela infinita reprodução e perpetuação nos discos rígidos do mundo. Por pior que seja a qualidade do original, se ele estiver digitalizado e disponibilizado, através dele será possível entrar em contato com uma parte daquilo que de outro modo seria inacessível ou acabaria perdido, em outras palavras: A reprodução não rivaliza com a obra-prima presente: evoca-a e sugere-a... Levanos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis, não a esquecê-las; e, sendo inacessíveis, que conheceríamos nós sem a reprodução? Ora, a história da arte nos últimos cem anos, desde que escapa aos especialistas, é a história do que é fotografável (MALRAUX, 1965, p.108). Ao longo da pesquisa os organizadores deste arsenal imagético iam se reconhecendo na posição de criadores do arquivo, curadores de um museu cujas obras nunca chegaram perto nem viram. Recolhendo e organizando criteriosamente milhares de trabalhos, catalogando centenas de artistas e biografias foram deslindando novos critérios de reunião e agrupamento, separação e ordenação, procedimento que permitia reconhecer a presença das contingências relacionadas à localização e qualidade documental, bem como da arbitrariedade relacionada por vezes à quantidade das obras selecionadas. Eis os gestos que 5 contemplam o anarquivável, tal como abordado em O mal de arquivo: [...] estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante, alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo, repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum “mal-de”, nenhuma febre surgirá para aquele que, de um modo ou de outro, não está com mal de arquivo ( DERRIDA, 2001, p.118) 3- CONSIDERAÇÕES ESPECÍFICAS SOBRE O ARSENAL IMAGÉTICO. Como construir um arsenal imagético, cujos arquivos enquanto fontes principais e registros complementares se apresentam escassos ou dispersos, inacessíveis ou pouco pensados em seu conjunto? Quais os caminhos possíveis para dar conta deste desafio sem perder-se diante das meras generalidades a que remetem, incorrer nas leituras simplificadoras e banalizantes que confundem imagem com ilustração ou então extraviar-se em meio a peculiaridades absolutizantes? Para responder tal inquietação parece conveniente primeiro problematizar o próprio arquivo construindo um campo situado entre a série concebida como repetição com diferença e o museu imaginário considerado como arsenal infinito e único de afecções. Refletindo sobre o fato de que a falência da representação no pensamento moderno faz com que todas as identidades sejam simuladas e produzidas como efeito ótico sob o jogo da diferença e repetição, Deleuze ( 2006) destaca que a diferença se constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua negação, nem se refere à oposição nem se constitui como contradição. Considerando as imagens a serem estudadas, postula-se a sobrevivência das formas, menos como o que foi herdado e mais os desdobramentos e as possibilidades resultantes, sendo que os acontecimentos como as imagens, só podem ser pensados pelos procedimentos de recombinação e montagem. Eis porque as obras, como os artistas, devem ser considerados na relação com as séries que procuram menos a generalidade e mais os vestígios da diferença e do retorno, sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições coexistem, não porque se constitui como reprodução do mesmo e sim porque é arremesso em direção ao outro, nos diz Deleuze, em Diferença e repetição( 2006). Por sua vez, André Malraux (1965) aborda o nascimento de um arsenal imagético a 6 partir da reprodutibilidade técnica, resultando complexas metamorfoses no que diz respeito aos usos e sentidos da obra de arte, permitindo que cada um possa constituir seu próprio acervo ou museu imaginário. O museu imaginário é de todos, sendo formado pelas recordações particulares de cada um e não dependendo de um local. Num mundo de esquecimento, é assim que as obras ressuscitam, sobrevivendo não pelo que foi dito sobre elas mas pelo que ainda nos dizem. Enfim, o autor lembra que o museu imaginário é um fenômeno do mundo moderno, particularmente ampliado com a reprodutibilidade técnica, permitindo não só acessar diferentes acervos como também estabelecer novas comparações, agrupamentos e classificações. Neste sentido, trata-se de encarar a difícil tarefa de pensar ao mesmo tempo as imagens e seus arquivos, não só para evitar os meros relatos e classificações, como também para pensar as novas combinações e destinos possíveis para as obras de arte. 4- IMPLICAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA E A TEMPORALIDADE. Uma vez acessado o arsenal e constituída a série de imagens, com quais fios é possível tecer a trama? Como produzir um campo fértil de reflexões no âmbito da história da arte, contornando tanto uma abordagem mais cronológico- evolutiva ou contextualizante como outra meramente formalista porém considerando as questões que reverberam no tempo e no espaço? Em que medida pode a obra de artistas pouco conhecidos e de reduzida fortuna crítica tornar-se objeto de reflexão e leitura? Como evitar a armadilha da diluição das singularidades em contextos homogeinizadores e extrínsecos e/ou das particularidades isoladoras e desconectadas que ignoram a formulação-armação de problemas? Como construir um campo de análise onde o que prevalece e ainda pode ser dito incide sobre o estranho que escapa e surpreende bem ali onde uma luz já posta parece apenas indicar o já conhecido? Como reincidir o periférico e o pouco qualificado sem cair na visada monótona e exaustiva das abordagens já feitas? É possível pensar a relação entre os artistas e suas obras sem tornar ambas as instâncias como meros equivalentes, evitando tanto a lógica da salvação pela exaltação do injustamente esquecido como o veredito do merecidamente ignorado? No seio das obras acadêmicas reconhecemos certas investigações plásticas mais pela sua concomitância do que como simples ecos europeus. Os recortes modernistas 7 situados depois da primeira grande guerra em vários países latino americanos podem ser lidos como uma construção discursiva associada muito mais aos seus protagonistas e suas memórias, decorrendo daí certas posturas antagônicas às academias de belas artes. Então se as chamadas vanguardas latino-americanas adotaram freqüentemente bandeiras antiacadêmicas como parte de seu desejo de aggiornamento é porque ignoravam ou esqueciam os choques produzidos intencionalmente por participantes de ambientes oficiais, mesmo na Europa. Ou seja, mesmo dentro de certos circuitos institucionais as posturas inquietas e chocantes, disfarçadas ou não já se deixavam deslindar. Mesmo cumprindo certas expectativas em termos de reconhecimento nos circuitos existentes ou simplesmente atendendo às encomendas, observa-se que alguns artistas conseguiram ultrapassar não só as questões de território e nação, como também buscaram superar o caráter ilustrativo e/ou narrativo, guardando na superfície pictórica todo um universo de inquietações e investigações plásticas. A este respeito convém lembrar a publicação intitulada Arte na América Latina , organizada pela professora Dawn Ades ( 1997) de História e Teoria da Arte da Universidade de Essex, Inglaterra cuja obra apresenta em seu conjunto a idéia não apenas de que as artes plásticas estiveram diretamente vinculadas às experimentações literárias, como o fato de que em diversos países o modernismo foi engendrado no âmbito acadêmico. Raciocínio complementar a este fenômeno é apresentado no livro Arte Internacional Brasileira, escrito por Tadeu Chiarelli ( 2002). O autor parte do pressuposto não só de que o local se articula com o circuito internacional de modo reelaborado e muito peculiar como também que o modernismo antecede a Semana de 22, registrando a incorporação sem confinamento de uma tradição erudita e artesanal e somando-se a um localismo antiacadêmico, advindo das percepções estéticas surgidas a partir do último quartel do século XIX e dos influxos do novecentos. Todavia, se pensar é armar problemas, este procedimento parece se tornar particularmente interessante quando as obras enfocadas não pertencem ao repertório canônico mas podem ser abordadas pelo seu caráter de recorrência e sobrevivência, levando a pensar, de um lado, como se operavam, mesmo para artistas inseridos num circuito periférico, as referências e renitências que resultaram na incorporação de certas 8 perspectivas, enquanto que de outro lado, cabe pensar a mescla de tempos atravessados pelos arremessos fragmentários da memória contidos nas imagens e que as tornam resíduo e rastro de outras imagens ou espectralidade de outras temporalidades. Conforme Rosalind Krauss (1996) ao tratar o mito da originalidade como preceito vanguardista, se no século XIX as cópias tiveram um importante papel pedagógico na formação do gosto, o culto da originalidade e da espontaneidade serviu para confirmar o mito da genialidade artística. Em tempos de revolução industrial e de reprodutibilidade técnica, as artes plásticas insistiram em confirmar seu estatuto romântico, associado ao espontâneo e ao irrepetível. Problematizando a história da arte e encarando a questão da temporalidade contida na obra Ante el Tiempo: de DIDI-HUBERMAN (2006), assinala que toda ela possui mais memória do que história, pois o tempo não se reduz à história, sendo que a memória é feita de tempos descontínuos e heterogêneos, daí que ela é sempre anacrônica e ocorre na contradança da cronologia. Dito de outro modo, a relação tempo- imagem pressupõe uma constante articulação com a memória, uma vez que toda obra carrega consigo um pretérito e também uma projeção em direção à posteridade, sendo que nela está contida uma fagulha explosiva que permanece naquilo que um dia foi, fazendo com que o passado não cesse de se reconfigurar como abertura. Cada época traz consigo infinitas possibilidades de encontros com o passado, bem como prefigura e guarda potencialidades futuras. Concepção que por sua vez guarda familiaridade com a concepção warburguiana de que algo do que um dia foi fica retido, persiste e insiste nas imagens, atravessando os tempos e voltando como ondas mnemônicas. Nem simples continuidade, nem arquétipos, trata-se de problematizar as imagens como persistência de lapsos e anacronismos, irresoluções e resíduos do tempo que nos alcançam em nossas inquietações. Assim, não se trata de um humanismo à maneira de Vasari, Kant ou Panofsky, os quais não questionam nem a representação nem o regime de saberes da disciplina de história da arte, mas de um procedimento crítico que considera menos a série das regras e convenções como verdades definitivas e mais a série das exceções que fazem as imagens cintilarem como desvios ou de-tempos, tornando-se aquilo que interrompe o fluxo regular das coisas, pois não parece jamais caber num momento 9 perfeitamente adequado, tal como uma lei subterrânea que persiste no retorno de uma enfermidade, aparição que conjuga diferente- semelhante, imobilidade-aceleração, recalque e retorno de uma latência. Eis o conceito de sintoma, não conforme o entendimento semiológico ou clínico, mas como a potência imagética que recusa tanto conceder a última palavra ao presente como se submeter ao tempo cronológico. Referências bibliográficas: ADES, Dawn. Arte na América latina. S.P., Cosac & Naify, 1.997. CHIARELLI, Tadeu. A Arte Internacional Brasileira. S.P., Lemos, 2002. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 2ª edição. ________. Francis Bacon – Lógica da Sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2007. DERRIDA, J. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. R.J. Relume Dumará, 2001 DERRIDA, J. Torres de Babel.. Belo Horizonte: UFMG, 2002 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Argentina: Adriana Hidalgo editora S. A., 2006. FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. KRAUSS, R. La originalidad de la Vanguardia. Madrid, Alianza Editorial, 1996 MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa, Edições.70, 1965. 10 FIGURAÇÕES DA MORTE NA OBRA DE FRANCISCO GOITIA Academicismo e modernismo na América Latina [1] Rosângela Cherem [2] e Kamilla Nunes [3] Participantes do Grupo de Pesquisa América Latina: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo [4] Participantes do Grupo de Pesquisa Santa Catarina: Giorgio Vicenzo Filomeno e Marina Rieck Borck[5] RESUMO: Dentro do arsenal imagético dos artistas latino americanos selecionados nesta pesquisa, escolhemos escrever sobre Francisco Goitia que, assombrado pelos horrores provocados pela Revolução Mexicana em toda a década de 1910, guardou numa série pictórica imagens de enforcados e cadáveres. O presente artigo é composto por três blocos que se desdobram como problemáticas relacionadas à morte enquanto dissimulação do Ser, à paisagem enquanto antemundo e à guerra como fenda que possibilita a criação artística, decorrente da consciência da completa obscuridade do homem, da arte e do cadáver. PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; Teoria e Crítica de Arte; Arte LatinoAmericana; História da Arte. [1] Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina. Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC. [3] Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC. [4] Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente participante). Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis de Araújo, bolsista voluntária, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas. [5] Acadêmicos do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina, Giorgio Vicenzo Filomeno, Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, Marina Rieck Borck , acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC. [2] I – Numa tentativa de intensificar o sofrimento, a dor, a barbárie e os horrores massificados causados pela guerra, num tempo em que a televisão não a tornava um espetáculo, como aconteceu em 1990 na Guerra do Golfo, com a invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas, Francisco Goitia (1882-1980) pintou duas telas de cadáveres enforcados em árvores, já em fase decomposição. Uma delas, intitulada Paisagem de Zacatecas com enforcados II, feita em 1914, ano que a revolução estava acabando, com cerca de um milhão de mexicanos mortos, o que significa 10% da população total daquela época, apresenta dois corpos suspensos em árvores, um em primeiro, outro em segundo plano, quase suprimido pelas bordas da tela. Essa duplicação de enforcados engolidos pela FIGURA 1 paisagem, com a pele junto ao osso, cuja cor é a mesma da vegetação seca e informe, remete à aparição daquilo que deixou de ser e no entanto ainda é enquanto dissimulação. Ou seja, “quando tudo desapareceu ainda existe alguma coisa, quando tudo falta a falta faz aparecer a essência do ser que é de ser ainda onde falta” (BLANCHOT, 2001, p. 255). As biografias do artista registram que ele pendurava os cadáveres nas árvores pelo pescoço, simulando um suicídio por enforcamento, para observar os estágios de decomposição do corpo. Este ato pode ser considerado uma tentativa obscena (aquilo que está fora de cena) de exagerar as perturbações causadas pela guerra, com o intuito de causar impacto e/ou repulsa na sociedade que viria a olhar a imagem como se esta fosse uma representação dos desastres da guerra. Tal falta de correspondência do artista com a verdade torna ainda maior o silêncio enigmático da obra de arte, que para Maurice Blanchot (1907 – 2003) é um não se dar a conhecer pela impossibilidade do acontecimento, ou seja, da penetração no objeto artístico. Quando nos damos conta de que a verdade dessas pinturas não é exterior a elas, compreendemos que as verdades não passam de ilusões, elas podem se tornar tão reais quanto é para o protagonista do romance a Invenção de Morel1, sua amada Faustine, ou para Marco Pólo, em As Cidades Invisíveis, os lugares que descreve para o Grande Khan2. Eis, portanto, a associação paradigmática entre o cadáver e a obra de arte. Ambos, em suas particularidades, provocam sensações semelhantes à que experimentou Jacques Derrida (1930 -) em seu banheiro sendo olhado nu por um gato, se vendo visto nu, impotente diante 1 2 BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. 3. ed. – São Paulo: Cosac Naify, 2006. CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2. ed. - São Paulo: Companhia da Letras, 2006. da situação lúdica criada por ele, a ponto de sentir vergonha do animal, que não reagia a seus movimentos, mas o observava com constância na fixidez de um olhar impenetrável. Enquanto o filósofo encontra no animal, que é para ele o completamente outro, a semelhança consigo mesmo, percebendo “o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa anunciar a si mesmo” (DERRIDA, 2002, p. 31), o artista, percebendo o inorgânico, o inestético e o informe de um corpo em decomposição, ainda que reconhecível enquanto corpo-humano, atenta para a completa obscuridade, o vazio e o silêncio que não só sucede como faz parte do humano. Na segunda pintura que Goitia realizou durante a FIGURA 2 revolução, agora com giz pastel e intitulada O enforcado, o artista mostra descobertos os ossos do corpo, revelando um estágio avançado de decomposição. Ainda que o primeiro e segundo plano da composição possam ser distinguidos, ambos sofrem de uma interdependência rítmica, de forma que o isolamento da figura em primeiro plano implica na sua própria desfiguração. Ao contrário, por exemplo, de Francis Bacon (1909 – 1992), que costumava isolar suas figuras para “romper com a representação, interromper a narração, impedir a ilustração, liberar a figura: para ater-se ao fato” (DELEUZE, 2007, p. 12). Duas maneiras opostas de operar para chegar ao mesmo resultado: ater-se ao fato. Ao tornar o fundo tão importante quanto a figura, projeta-se uma suspensão temporal e espacial que remete ao antemundo, àquilo que não FIGURA 3 pertence mais ao mundo, “embora esteja aqui, melhor dizendo, atrás do mundo” (BLANCHOT, 2001, p. 258). O cadáver e a paisagem se dissolvem no sombrio dos tons dourados e ocres, na euforia das pinceladas verticais, que tornam análogos os planos, fazendo da paisagem um espaço que denota o Aqui Jaz, pressuposto de um sepultamento. Essa paisagem que acolhe o cadáver é também a paisagem dos campos de batalha, manchados de sangue e providos de armadilhas para provocar a morte do inimigo, como as minas enterradas aos milhares a espera de um desavisado. Logo, o cadáver que se tornou vítima da paisagem, nas pinturas de Goitia, nela repousa até seu total desaparecimento. Sabendo que seria impossível transmitir, comunicar ou mesmo fazer o outro sentir parcialmente a experiência de estar na guerra, com ameaças constantes de morte, mutilações e o que resta de esperança em meio a tanta brutalidade, Goitia ultrapassou os limites da mera representação e/ou registro da guerra, assumindo a liberdade pictórica própria de uma artista que conhece as fronteiras abissais entre arte e realidade, entre sentir e expressar, entre falar e ouvir. II – Após estudar em Barcelona com o mesmo professor de Juan Miró, Francisco Gali, e na Itália, reproduzindo em pintura as arquiteturas clássicas, Goitia regressou ao México e pouco depois serviu ao General Felipe Ángeles na Revolução Mexicana, citada no início do artigo. Anos depois, recordando a experiência, relatou: “Fui a todas as partes com seu exército, observando. Nunca portei armas porque sabia que minha missão não era matar” 3. Sabemos, portanto, que a única munição de que dispunha era lápis, giz pastel, tintas, folhas e telas. Percorrendo o tema do cadáver em decomposição, e não propriamente as ações de guerra, o combate em si, ele pintou a tela intitulada pelo Museo Francisco Goitia, A Bruxa, único retrato desse período. De acordo com o diretor desse museu, apenas à Tata Jesuscristo ele deu nome, todas as outras obras foram intituladas posteriormente para fins de organização do FIGURA 4 acervo e estratégia de discernimento. A Bruxa, pintada em 1916, reflete não apenas a completa obscuridade de daquilo que se tornou o outro de si mesmo, mas também o instante inapreensível do dar-se conta da morte. Sua cabeça se liquefaz, desfaz, escapa de si mesma, transformando-se numa máscara que encobre a face da morte. Máscara não enquanto Imago, que se dá pela semelhança com o morto, portanto com o outro daquilo que já não é, mas que ainda guarda pela forma particularidades que fazem remanescer suas características físicas, mas enquanto um objeto que o oculta pela expressividade (aquilo que significa e é significada) exterior àquele do qual faz parte, ou seja, a máscara faz reviver o humano naquilo que deixou de ter a consciência de si. Percebemos então que A Bruxa suscita problemáticas referentes ao que faz de um serhumano um humano, posto que como Ser se compreende todas as coisas que são. Assim, se um cadáver é, se ele existe, ele é Ser. Mas, o que está implicado quando dizemos que ele não 3 Citação retirada da biografia de Francisco Goitia cedida pelo Museo Francisco Goitia. é mais um humano? Pergunta que permeou o pensamento de grandes filósofos como Aristóteles e Heiddeger, que gerou e ainda gera debates na área da ciência com relação à eutanásia, a experimentos com células tronco, entre outros e que Goitia não se atreveu a responder, mas não cessou de se indagar. Sabemos que A Bruxa é uma imagem advinda do olhar do pintor para um cadáver em decomposição, mas ela também remete ao informe dos corpos que sobreviveram à guerra. Pessoas cuja carne foi estraçalhada por granadas, balas, e tantas outras armas fatais. Cujo rosto se tornou irreconhecível e o corpo, pelas mutilações, não mais assumiu as funções a que era qualificado. A imagem da guerra é, então, também a imagem do disforme, da mutilação e auto-mutilação, da morte entrelaçada ao erotismo que aparece em Georges Bataille (1897 – 1962). Em busca do limite da literatura, num tempo do absurdo e sem esperança de futuro, da falta de coerência da realidade passada com a vida cotidiana, ele escreve o texto História do Olho, publicado originalmente em 1928. Para expressar seu desejo de apagamento, Bataille utiliza o pseudônimo de Lord Auch, que serve como máscara por trás da qual o autor pode revelar seus traumas no que diz respeito à relação com seu pai. No decorrer do romance percebemos que os personagens se arrostam com a morte de maneiras diferentes, ora com pesar, ora com perversidade, como quando, depois da atordoada morte de Marcela, Lord Aush diz: Marcela pertencia-nos a tal ponto, em nosso isolamento, que não a víamos como uma morta qualquer. Os impulsos antagônicos que se apossaram de nós naquele dia se neutralizavam, deixando-nos cegos. Afastavam-nos para longe, para um mundo em que os gestos não têm alcance, como vozes num espaço que não é sonoro. (BATAILLE, 2003, p. 60) Nessa perspectiva, captar o instante único e permanente daquilo que não foi, nem será, mas daquilo que é e sobrevive apenas como imagem, torna-se o maior desafio para esses artistas interessados em pensar a morte, a guerra, o informe FIGURA 5 e todas essas abordagens que se fazem presentes também na obra de alguns pintores latino-americanos. As telas da pintora mexicana María Izquierdo (1902 – 1955), FIGURA 6 por exemplo, se caracterizam pelos tons sombrios e objetos que referenciam a morte e/ou o morto que, sempre na presença de cavalos, ou uma corda pende de uma árvore seca num lugar deserto, ou um caixão aparece ocultando o cadáver. Onde Goitia evidencia o corpo em decomposição, Izquierdo o solapa. Nas cenas de enterros e enfermos, a morte está nas relações taciturnas entre o cadáver oculto pelo caixão que o envolve e as pessoas que o acompanham para a última despedida. Pedro Figari (1861 – 1938), no Uruguai do início do século XX, com uma produção de caráter dramático, pintou uma série de velórios, que assim como os de Izquierdo estão imersos num ambiente melancólico, por assim dizer, lúgubre, evidenciado pelas cores terrosas, sombras indefinidas, postura dos personagens e, em alguns momentos, elementos sombrios como a lua cheia. Não obstante, em Juan Manuel Blanes (1830 – 1901), mais impactante que uma mulher esparramada no chão, vítima da febre amarela, é notar as mãos inocentes de um bebê que agarra seu vestido, no local que cobre os seios, a espera de uma resposta aos seus atos. Essas diversidades de experimentos artísticos provenientes de sensibilidades e experiências intrínsecas, tanto nas artes plásticas quanto na literatura, cinema, música e teatro, abrem leques para reflexões acerca dos problemas culturais, sociais e também políticos, no âmbito da descrença e falta de esperança de um presente capaz de superar as barbáries do passado e consequentemente, de um futuro promissor, sem marcas de sangue e memórias acinzentadas. É assim o ambiente criado por Samuel Beckett (1906 – 1989), FIGURA 7 em Fim de Partida e Esperando Godot: acinzentado. Seus personagens, concebidos na época turbulenta da pós-segunda guerra mundial tentam, através dos diálogos e da inércia a que se dispõe dar sentido a um mundo desprovido de sentido. Em Fim de Partida, os pais de HAMM, com as pernas amputadas, moram dentro de latões de lixo, enquanto HAMM, cego e impossibilitado de mover as penas, ocupa numa cadeira de rodas exatamente o centro da sala (BECKETT, 2002). Podemos perceber, portanto, a forte influência do surrealismo no teatro de Beckett e como o diretor enfatiza, com elementos cênicos pós-dramáticos, os restos humanos e a ruína. FIGURA 8 III – Em A Idade Viril, obra autobiográfica que não obedece a uma ordem meramente cronológica dos fatos, Michel Leiris (1901 – 1990) descreve suas impressões diante dos acontecimentos das atividades cotidianas, como ir ao teatro. Ainda que o autor tenha escrito esse livro depois de romper com os surrealistas, ele continua exprimindo através da literatura, seu descontentamento com relação à guerra, como quando relata que foi tomado por um acesso de pânico depois de assistir à peça Volta ao Mundo em 80 dias, por achar que o barco ia afundar e estourar com o vapor. Ao sair do teatro, começou a berrar: “Não quero que estoure... Não quero que estoure...” Depois do ocorrido, ele enuncia relacionando os fatos: “Ainda hoje sou tentado a lançar semelhantes gritos para tentar deter a marcha dos elementos: ‘Não quero que haja guerra!’ eu diria, mas os elementos, como outrora, não parecem dispostos a me obedecer” (LEIRIS, 2003, p. 45). Temos aqui a impotência do homem diante da tentativa de realizar seus desejos e os meios que ele utiliza para mostrar seu descontentamento. Como reagir à beleza convulsiva, repulsiva e ao mesmo tempo atraente da guerra? Para Leiris, bem como para Goitia, a reação está diretamente vinculada à criação a partir de metáforas, dissimulações e jogos de tangência entre a ilusão da verdade e da mentira. Foi assim que depois de aproximadamente três décadas passadas do fim da Revolução Mexicana, Francisco Goitia continuou pintando enforcados como fazia quando serviu ao general Felipe Ángeles. As duas telas posteriores à guerra contêm nuances de azul, como se fossem imagens retidas na memória, tal qual acontece nos filmes quando as lembranças dos personagens aparecem em preto e branco. A obra Paisagem de Zacatecas com enforcados II, realizada entre 1938 e FIGURA 9 1942, apresenta semelhança e principalmente diferenças marcantes com a que Goitia pintou no ano de 1914, mostrada no início desse artigo. Ambas exibem dois enforcados na árvore em meio à paisagem. Mas enquanto a primeira denota seriedade, a segunda remete ao lúdico que se manifesta nos esqueletos caricaturais de animais espalhados, a priori, aleatórios na paisagem. Os cadáveres pendurados, já decompostos, parecem volúveis e leves, FIGURA 10 como folhas secas que pendem inclinadas nas árvores, prestes a serem carregadas por uma corrente de ar. Assim como María Izquierdo e Pedro Figari, Goitia acrescenta à cena símbolos mórbidos que aludem à morte, como a coruja e o morcego. Se olharmos atentamente, percebemos também que toda a composição está em diagonal, ora curvada para esquerda, ora para a direita, de forma que nem mesmo as cordas que suspendem os cadáveres se encontram na vertical. Relativamente a essa instabilidade pictórica advinda de infortúnios causados por projeções imaginárias, Augusto Contador Borges (1954 -) escreve um artigo sobre o Supliciado Chinês aos olhos de Georges Bataille. No decorrer do texto o autor descreve como as imagens do supliciado afetaram e causaram vertigem em Bataille, para então entrar na discrepância entre os pontos de vista do carrasco e da vítima, até concluir que “o que temos em comum – com o carrasco – é a conseqüência das possibilidades do horror, em que cruzamentos súbitos, arrepios momentâneos, que vez por outra nos atingem no extremo de nós mesmos com a descarga elétrica de uma idéia absurda” (BORGES, 2001). Isso nos leva a pensar até que ponto os cadáveres que Goitia enforcou nas árvores para observar sua decomposição foram vítimas da guerra. Fou Li recusa a dor que o dilacera, ele a nega como Goitia negou a dor de matar o outro. Não se trata, é claro, da mesma sensação de dor, mas da mesma negação a ela. Na guerra os papéis de carrasco e vítima se alternam constantemente, ou seja, se o inimigo atira, é preciso deixar a piedade de lado e revidar o ataque, pois essa é a única maneira de escapar da morte. Em 1958-60 Goitia pintou a tela chamada Cabeça de enforcado. Assim como Théodore Gericault (1791 – 1824), cujas naturezas-mortas compostas por cabeças decepadas FIGURA 11 referenciam os desastres em tempos de sombra, após a queda do Império de Napoleão em 1815, Goitia acrescentou a essa pintura um caráter trágico e catastrófico outrora inexistente. Não temos mais a imagem do horror diante da morte, como na Bruxa, mas do horror diante da crueldade do homem. Enquanto José Maria Velasco, professor de Goitia no México, olhava para a ausência do FIGURA 12 homem na paisagem, Goitia olhava para a ausência do humano no homem. Sigmund Freud (1856 – 1939) em O Mal-Estar na Civilização fala da relação entre o instinto de vida e o instinto de destruição relacionado à disputa entre Eros e a Morte. Para Freud, a agressividade é um instinto do homem que se opõe ao programa de civilização e é também “derivado e o principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com este divide o domínio do mundo.” (FREUD, 1997, p. 81). Desde criança somos condicionados a regras sociais e aprendemos a diferenciar o bem do mal, mas para Bataille “ser carrasco ou vítima nos coloca acima de nossos limites” (BATAILLE apud BORGES, 2001), de forma que é preciso que tenhamos a consciência da violência e abjeção que existe em nós. Antes da religião se perpetuar pelo mundo pregando o bem e condenando o mal, os contos mitológicos tratavam com naturalidade o instinto de agressão definido por Freud. Como exemplo, podemos citar Mercúrio, que com um só golpe decepou Argos, enviado por Juno para vigiar Io; Perseu, assim como Mercúrio, cortou a cabeça da Medusa e a entregou à Minerva, que por sua vez fixou-a no meio de sua égide, transformando o escudo numa arma mortal que petrificava todos que o olhassem; Juno enviou uma praga à civilização governada por Éaco que devastou a terra e matou todos os seus habitantes, só porque a ilha tinha o nome de uma das amantes de seu marido. Da naturalidade à barbárie, do orgulho de lutar por uma causa à injustiça advinda dela, do carrasco à vítima – instâncias da diversidade de olhares e comportamentos dos que viveram as experiências da guerra e dos comprometidos a transmiti-la através da arte. A guerra é para esses artistas um lapso que permite criar, gritar, explorar sensações e um motivo a mais para manipular o caos, dando a ele forma, cor e vida. Mesmo que a forma seja informe, as cores sejam tristes e a vida vista através do cadáver. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA 1 BATAILLE, Georges. História do Olho. São Paulo: Cosac Naify, 2003. 2 BECKETT, Samuel. Fim de Partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002. 3 BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. 3. ed. – São Paulo: Cosac Naify, 2006. 4 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 5 BORGES, Augusto Contador. Georges Bataille: Imagens do Êxtase, 2001. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag9bataille.htm> Acesso em 27 jan. 2007. 6 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2. ed. - São Paulo: Companhia da Letras, 2006. 7 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007. 8 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002. 9 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997. 10 LEIRIS, Michel. A idade viril. São Paulo: Cosac Naify, 2003. REFERÊNCIA DAS FIGURAS 1 Francisco Goitia. Paisagem de Zacatecas com enforcados II. 1914. Óleo sobre tela, 95 x 100 cm. Imagem cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia. 2 Francisco Goitia. O enforcado. 1912 – 17. Pastel sobre papel. 53 x 42 cm. CONACULTA INBA / Museo Francisco Goitia. Imagem cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia. 3 Francis Bacon. Figura Sentada. 1979. Disponível em: <http://www.ciudadpintura.com>. Acesso em: 10. jun. 2008. 4 Francisco Goitia. A Bruxa. 1916. Óleo sobre tela; 30 x 33 cm. Imagem cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia. 5 María Izquierdo. A corda. 1947. Óleo s/ tela. 43 x 51 cm. Disponível em: <http://www.museoblaisten.com/spanish.asp?myURL=%2F02asp%2Fspanish%2FpaintingSp anish%2Easp&myVars=numID%3D655>. Acesso em: 10. jun. 2008. 6 Pedro Figari. Qui se charge du mort? Óleo s/ cartão. 62 x 80 cm. Coleção Museu Municipal Juan Manuel Blanes. Montevideo, Uruguay. Disponível em <http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=14155&Empnum=0&Inicio=76>. Acesso em: 10. jun. 2008. 7 Juan Manuel Blanes. Um episódio da febre amarela em Buenos Aires. 1871. Óleo s/ tela. 230 x 180 cm. Coleção Museu Nacional de Artes Visuais. Montevidéu, Uruguay. Disponível em: <http://revistapersona.8m.com/34DHowlin.htm>. Acesso em: 10. jun. 2008. 8 Perla Frenda em "Fim de Partida" de Samuel Beckett. Foto: Marcelo Kahn. Disponível em: <http://digitandoteatro.blogspot.com/2008/02/de-dentro-do-lato-de-lixo.html>. Acesso em: 10. jun. 2008. 9 Francisco Goitia. Paisagem de Zacatecas com enforcados II. 1938- 1942. Óleo sobre tela. 58 x 96 cm. Colección: CONACULTA - INBA / Museo Francisco Goitia. Imagen cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia. 10 Fou Li. O supliciado Chinês. Disponível em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag9bataille.htm> Acesso em: 10. jun. 2008. 11 Francisco Goitia. Cabeça de enforcado. 1958-60. Óleo sobre tela. 122 x 93 cm. CONACULTA - INBA / Museo Francisco Gotilla. Imagen cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia. 12 Théodore Gericault. Cabeças Cortadas. 1818-1819. Óleo sobre tela, 50 x 61 cm. Coleção National Museum, Estocolmo. Disponível em: http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/edu/theodore_gericault_g1.htm. Acesso em: 10. jun. 2008. As cidades e as narrativas plásticas modernistas Academicismo e modernismo em Santa Catarina1 Sandra Makowiecky 2 Participantes do Grupo de Pesquisa (SC): Marina Rieck Borck3Giorgio Vicenzo Filomeno4 Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5 Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina, entretanto, especificamente nesta abordagem comparece uma problemática sobre o arsenal imagético, particularmente no que se refere às questões relacionadas à cronologia e anacronismo, texto e contexto, cópia e original, proximidade e distância, superfície e profundidade, problemática central da pesquisa, utilizando imagens das cidades e modernismo como fio condutor. Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina. O contexto - A pesquisa proposta problematiza uma história da pintura em Santa Catarina entre meados dos séculos XIX e XX, especialmente considerando como base levantamentos feitos com imagens encontradas em sites e catálogos relacionados a este assunto e que tematizam através de cenas, paisagens, objetos e retratos questões próprias à linguagem pictórica. Serão privilegiados os diferentes aspectos e interlocuções que se apresentam para tramar e delimitar uma análise das sensibilidades e percepções artísticas, tais como, principalmente, proximidade e distância. 1. -O presente texto é parte integrante de uma pesquisa intitulada Academicismo e modernismo em Santa Catarina– UDESC, Centro de Artes, cujo levantamento já conta com mais de 500 imagens e conta com a participação de bolsistas de iniciação científica. 2 Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC. 3 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina. 4 Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina. 5 Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (coordenadora do projeto SC) e Rosangela Miranda Cherem ( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e acadêmica do curso de Artes Plásticas. Neste sentido, temos que entender Santa Catarina na periferia de centros como Rio de Janeiro e São Paulo e mais recentemente, além destes, com Porto Alegre e Belo Horizonte. Entretanto esses centros estão na periferia de centros artísticos do mundo, cada qual em seu momento histórico. No século XIX, por exemplo, o Rio de Janeiro era centro para Florianópolis, mas periferia para Paris. Os centros irradiadores culturais vez por outra mudam. De todo modo, continuamos periferia de alguma coisa. Muitas vezes um tipo de representação proposto encontra terreno fértil para se enraizar, como foi o caso do neoclassicismo no Brasil, no século XIX, uma vez que seu universo simbólico supria os anseios políticos, sociais e culturais da classe dominante. Portanto, não há como relegar o fato de que são as nossas próprias condições históricas, sociais e econômicas, que também determinam nossa produção artística. Segundo evidências do próprio campo artístico, a relação entre centro e periferia não deve ser valorativa, não deve ser vista como uma relação entre avanço e atraso. Ao contrário, é um jogo móvel, sujeito a acelerações e tensões repentinas, ligadas a modificações não apenas do campo artístico como também do social e político. A presença de referências de outras manifestações artísticas evidencia a existência de uma circularidade de idéias percebidas na diacronia e sincronia dos acontecimentos. Se fossemos nos levar pela suposta linha reta da história, tal perspectiva só levaria a concluir que a produção em arte em Santa Catarina, que é o objeto desta pesquisa, está algumas décadas atrasada na história. Mas este raciocínio de nada serve para o estudo da nossa produção plástica. Como diz Annatereza Fabris: “A arte moderna produzida no Brasil, pelo menos no caso das artes plásticas, é moderna numa acepção peculiar e local, mas não se pensada no âmbito das propostas européias” (1994, p.20). As cidades - As relações entre cidade e objeto artístico aparecem em autores como Francastel e Argan, que introduzem aspectos subjetivos na análise das formas urbanas simbologia, imaginário – considerando-as como produto cultural. Dentro do processo histórico das cidades, não cabe uma compreensão de temporalidade cronológica, isso porque elas abrigam uma trama de tempos descompassados que se cruzam de formas diferentes, gerando mudanças constantes. A cidade [...] nunca é absolutamente sincrônica: o tecido urbano, o comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística, econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes. Mas ao mesmo tempo, a cidade está inteira no presente (LEPETIT, 2001, p. 139). 2 Tanto a subjetividade do imaginário quanto a dimensão histórica da relação entre forma urbana e sociedade estão presentes no conceito de paisagem. Ao mesmo tempo, a paisagem é fruto da história pois em cada época o processo social imprime materialidade ao tempo, produzindo formas/paisagens ( LUCHIARI, 2001, p.12). A paisagem constitui-se assim na representação de diversos momentos históricos de um grupo social, como observa Milton Santos: Considerando um ponto determinado no tempo, uma paisagem representa diferentes momentos de desenvolvimento de uma sociedade. A paisagem é o resultado de uma acumulação de tempos (SANTOS, 1992, p.13). A noção de cotidiano é desenvolvida por Michel de Certeau, para quem o espaço é um lugar praticado. É um lugar percebido, ou seja, para a mesma forma urbana podem corresponder experiências espaciais distintas (CERTEAU, 2003, p. 176-203) bem como representações plásticas distintas. Na relação entre forma urbana, estrutura social e tempo, deve-se levar em conta Lepetit quando este afirma que “as sociedades urbanas procedem continuamente a uma reatualização e a uma mudança de sentido das formas antigas, reinterpretando-as constantemente” ( LEPETIT, 2001, p.147). No termo cidade [...] acumula-se uma grande soma de experiências históricas.[...] As cidades desenvolveram-se de uma maneira que chamamos espontânea, mas que, na realidade, era determinada pela evidência que a figura histórica da cidade tinha na consciência individual e coletiva.(ARGAN, 1998, p.240). No conceito de paisagem urbana, enfatiza-se a sua dimensão simbólica enquanto rede de significados e significantes; na sua dimensão histórica, é expressão dos laços que ligam o presente à herança do passado. Se estudarmos a forma sem conteúdo, iremos reduz a realidade a um simulacro, eliminando a subjetividade do cotidiano, nos diz Certeau (2003). E então, o que podem nos dizer os artistas? Como as cidades, as esquinas e praças aparecem na representação plástica modernista? É nos anos de 1920, com a industrialização em curso, que se verificam processos de urbanização mais nitidamente modernos, e os modernismos que tem lugar nesse período se beneficiam da reconfiguração das principais cidades brasileiras, mas mesmo assim são tímidos. Nos diz Peixoto( 2006), que basta lembrar que dois ensaístas do modernismo paulista, Paulo Prado e Sérgio Milliet, diretamente envolvidos com a renovação operada nas artes, como analistas da sociedade nacional, voltam-se ou para o passado e para as raízes do Brasil ou para o universo rural. 3 Se para Beatriz Sarlo, o “desejo de cidade é mais forte na tradição argentina, que as utopias rurais”( 1990), na tradição brasileira, mesmo nos anos 1920 – que também aqui “ apresentam a mudança de modo espetacular”( p.32) – é preciso, senão inverter, ao menos suavizar a assertiva: os universos rural e tradicional competem de modo decidido com o desejo de cidade de nossos modernistas. (PEIXOTO, 2006, P. 178-9). Diz ainda a autora, que a dualidade sertão/litoral é também parte constitutiva da imaginação social sobre o Brasil e se desdobra, em momentos variados, em outros dualismos espaciais recorrentes nas interpretações sobre o país a partir do século XIX, como campo/cidade, norte/sul e que os temas das oposições podem variar, mas remetem sempre a um mesmo núcleo: todas tematizam as dramáticas relações entre tradição e modernidade entre nós. Os discursos sobre as cidades implicam lidar com a ordem do simbólico e também com a ordem física, com a realidade das ruas, praças e traçados, embora as duas dimensões- a da “ cidade letrada” e da “cidade real”, como quer Angel Rama ( 1985), jamais se confundam. A literatura e a arte do modernismo experimental que surgiu nos últimos anos do século XIX, se afirmou nos primeiros 40 anos do século XX e continua até hoje, podese dizer, foi uma arte das cidades, principalmente das cidades poliglotas, cosmopolitas. Quando pensamos em modernismo, não podemos deixar de evocar cidades com cafés, revistas e galerias de arte, locais onde se destilam as novas estéticas. Sempre existiu uma ligação entre as artes, especialmente a literatura e as cidades. E se o modernismo é uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno foi capturado pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma sociedade tecnológica moderna. A tendência modernista está profundamente enraizada nas capitais culturais da Europa e se espalha pelo mundo. Portanto, não é casual que o século XX seja o grande século de urbanização ocidental. Sobre as cidades como centros ciclônicos de civilização, diz Bradbury; Ecos formais desse processo ressoam claramente na forma e na falta de forma, na criação e na descriação da arte modernista. O caos cultural alimentado pela cidade populosa em crescimento constante, Torrre de Babel contingente e poliglota, é reproduzido como análogo caos, contingência e pluralidade nos textos literários modernos, no desenho e na forma da pintura modernista (1989, p.78) Além de arte metropolitana, o modernismo é uma arte cosmopolita: uma cidade leva a outra no típico percurso estético até a metamorfose da forma. Irradiavam influência e mantinham contato, e em larga medida é devido a essa fecundidade nas comunicações e contatos que o modernismo constitui um movimento internacional. O 4 modernismo no Brasil e no resto do mundo, teve nas cidades, seu habitat natural. É da vida e da experiência urbanas que os artistas e intelectuais ligados aos diversos modernismos surgidos no começo do século XX retiram a matéria prima de sua produção ( Bradbury, 1989). Os artistas e as imagens da cidade – No contexto da modernização, busca-se evidenciar a relevância daquilo que é local e peculiar na vida da cidade. O cotidiano da cidade surge do convívio do novo com o antigo. Voltar-se para a vida, o dia-a dia, falar de temas corriqueiros, que, por estarem incorporados ao cotidiano, já não são percebidos como elemento diferenciador da vida na cidade e do povo, são questões recorrentes nos trabalhos dos artistas, que empenharam as suas sensibilidades na valorização desses aspectos simples, populares, óbvios até. E procuraram transformar a vida em arte para poder representar com a arte a vida das pessoas comuns.Temas que antes eram experimentados na privacidade vieram a público, tornando-se capazes de figurar num espaço destinado à arte. A ambição do modernismo em querer exprimir o imaginário brasileiro, faz com que procure reconstituir esse imaginário a partir de suas origens. Deste modo, a imagem do modernismo não se limitará ao perímetro das cidades, retomando como signos algumas características formais próprias à paisagem interiorana, tais como as construções populares, ou ainda as casas-grandes e as igrejas coloniais esquecidas no tempo (ZILIO, 1982, p.78). Aparecem temas como: casas simples, quintais, esquinas, praças, festas populares, os lugares da cidade, com as ruas, praças, morros, cais, as personagens presentes no cotidiano. Muitos artistas tentavam dar conta da paisagem física e humana das cidades, construindo uma iconografia local, nos diz Chiarelli ( 1994), lembrando que os padrões do modernismo brasileiro já estão presentes no final do século XIX e ganham importância com a transformação da Academia Imperial de belas Artes em escola Nacional de Belas Artes. Surge daí um paisagismo nacionalista que vai servir de parâmetro para a construção de uma arte nacional no início do século XX. Os artistas assumem as condições locais caracterizando-as e tornando-as positivas. O modernismo instaurou-se sob o signo do nacionalismo, projetando para o futuro o que tentava resgatar do passado, estabelecendo alguns possíveis contornos para uma imagem brasileira. Há muito chegamos à conclusão de que a arte não é produzida num espaço vazio, de que nenhum artista é independente de predecessores e modelos, de que ele, tanto quanto o cientista ou o filósofo, é parte de uma tradição específica e trabalha numa área estruturada de problemas. O grau de maestria neste contexto e, pelo menos em certos períodos, a liberdade para modificar 5 esses rigores são, presumivelmente, parte da complexa escala pela qual o êxito final é medido (GOMBRICH, 1986, p 24). Ao falarmos de modernismo, podemos entender as características da nova mentalidade como as sintetizadas por Mário Barata (1983) baseadas no anticonvencional, no antideclamatório, na liberdade de se inventar poéticas, linguagens, sintaxes, de lidar com os sentidos, de colocar a composição subordinada a construção mental, de tornar o colorido não um fato de representação, mas de uma opção estética, desprezo aos padrões convencionais, necessidade de renovação, mas sobretudo, a liberdade absoluta de espírito, considerada como elemento criador por excelência. Alejandro Xul Solar (1887-1963), argentino, é um dos mais representativos pintores da vanguarda latino americana. Em 1912 foi para a Europa onde ficou ate 1924. Beatriz Sarlo ( 2005) diz que sempre considerou os quadros de Xou Solar um quebra – cabeça de Buenos Aires, ficando impressionada com a paixão hierárquica e geometrizante, a exterioridade de seu simbolismo. Em suas proposições, Xul Solar antecipa-se ao Surrealismo, assim como tangencia o Maneirismo e o Dada.( Figuras. 1, 2, 3 ). Figura 1 Figura 2 O que Xou mescla em seus quadros também se mescla na cultura dos intelectuais: modernidade européia e diferença rioplatense, aceleração e angústia, tradicionalismo e espírito renovador, crioulismo e vanguarda. Buenos Aires: o grande cenário latino americano de uma cultura da mescla. ( SARLO, 2005, p. 201). Antonio Berni Rosário (Argentina -1905-1981), em 1925 ganha bolsa de viagem à Europa. Nesse momento, interessa-se por idéias socialistas, associa-se com os surrealistas e começa a pintar nesse estilo. Em 1930, regressa à Argentina. Trabalha com a temática social que permite compreender o cotidiano das cidades latinas, seus 6 costumes e mitos regionais. Berni cria um universo onde dois mundos aparentemente antagônicos, se confrontam: o da arte culta e da cultura popular ( figura. 4 a figura. 7). Figura 3 Figura 4 Figura 6 Figura 5 Figura 7 Jose Antonio Velasquez (Honduras -1906-1983). Fez uma arte ingênua e primitivista. Foi minucioso em suas obras. Nos quadros de Velazquez, onde vemos as telhas pintadas uma a uma, os cachorros urinando sobre as paredes ou os troncos e as pessoas ocupadas em algo. O cotidiano das cidades expresso em sua singeleza. ( figura 8 e 9). 7 Figura 8 Figura 9 O venezuelano Rafael Monasterio (1884 -1961). Viaja à Espanha. Depois da criação da Escola das Belas Artes, surgiu um movimento acadêmico de pintura, impulsionado por pintores venezuelanos formados na Europa, a partir do qual a pintura venezuelana foi virando-se, cada vez mais, para a abstração geométrica e a arte cinética. Todavia, em Monasterio percebemos características modernistas de se voltar a um regionalismo (figuras 10 e 11). Figura 10 Figura 12 Figura 11 Figura 13 8 Bárbaro Rivas ( Venezuelano - 1893 -1967). Pintor autodidata é considerado pela crítica como o mais notável dos ingênuos venezuelanos. As tipologias de suas personagens e as ambientes de sua estranha obra estão, sem dúvidas, tomados de Petare, cidade onde sempre viveu (figuras 12 e 13). Alfredo Helsby Hazell ( Valparaíso -1862 -1933). Em 1906, lhe foi concedida bolsa de estudos para a Europa, tendo se radicado em Paris. Regressou ao Chile em 1908. Herdeiro de uma sensibilidade inglesa para a cor, admirava os paisagistas Whistler e Turner e, dessa maneira, interpretou as paisagens cordilheiras, campos, marinhas, as cenas de Valparaíso e do sul de Chile ( figura 14). Figura 14 Figura 15 Camilo Mori Serrano (Chile 1896 – 1973) .Em 1920, recebeu bolsa do governo chileno para estudar na Europa por três anos. Foi para a Academia de Roma e, finalmente, instalou-se em Paris no apogeu do movimento modernista. Retornando ao Chile, uniu-se aos pintores do Grupo Montparnasse, o qual foi decisivo na difusão das novas correntes pictóricas francesas no Chile.( figura 15). Luis Herrera Guevara (Santiago 1891 -1945). Após uma viagem a Europa, na qual percorreu os principais centros de artes, inscreveu-se nos ateliês da Sociedade de Belas Artes de Santiago. Fazia uso de cores que ele mesmo chamava de artificiais e desdenhava das tonalidades naturais das paisagens campestres, preferindo as cores brilhantes da cidade, na qual retratou com um completo desapego as perspectivas e proporções. Recriou a vida da cidade de Santiago. Criou um universo pessoal composto por figuras humanas deformes e em atitudes irreais, ruas, edifícios, praças e igrejas distorcidas.( figuras 16 e 17). 9 Figura 16 Figura 17 Pedro Figari ( Montevidéu-1861 -1938), em 1925 mudou-se para Paris. De lá, projetou e organizou exposições na Europa e América. Regressou ao Uruguai em 1933. Pedro Figari foi um pintor de manchas e não de linhas. Pintou o passado através de suas lembranças. Povoou seus quadros com gaúchos, negros e crioulos com metáforas de um ser presumidamente uruguaio.( figuras 18 e 19). Figura 18 Figura 20 Figura 19 Figura 21 José Cuneo (Montevidéu -1887 -1977 –Alemanha). Em 1917 estudou em Paris e se interessou pela pintura de Cézanne e Gauguin. De volta ao Uruguai, realizou uma série de retratos e paisagens da cidade de Melo. Em 1927, de volta a Europa conheceu a 10 obra de Chaim Soutine atraindo-lhe as deformações expressionistas e o uso da diagonal, o que marcará sua obra futura. A partir de 1930 começou uma série de ranchos, luas e aquarelas do campo uruguaio. (Figura 20) Rafael Barradas ( Montevidéu 1890 -1929). Durante sua estadia em Barcelona se uniu a Joaquín Torres García Até 1920 viveu em Madrid Mudou-se para Hospitalet de Llobregat, Barcelona, onde realizou uma série de paisagens da localidade. ( figura 21). Joaquín Torres García (Montevidéu 1874-1949). Radicou-se na Europa por quarenta e três anos. Em 1928, conheceu Theo Van Doesburg, artista que lhe apresentou o neoplasticismo e também Mondrian, que será decisivo na pintura de Torres Garcia. Inspirando-se no seu ambiente, Torres-García desenvolveu obras esquemáticas e simbólicas que evocavam o desenho e o ritmo da cidade, onde registra as formas e as cores das casas estreitas e das ruas vertiginosas de Montevidéu.( figuras 22 e 23). Figura 22 Figura 24 Figura 23 Figura 25 11 Humberto Causa (Montevidéu -1890 – 1925). Através de uma bolsa de estudos conheceu a Alemanha, Itália, França e Espanha. Em 1918, ao regressar ao Uruguai, radicou-se na região de Maldonado, para se dedicar ao ensino e a pintura da paisagem daquela localidade ( figuras24 e 25). Em Santa Catarina, Eduardo Dias (Florianópolis, 1872 -1945) foi um dos pintores que mais retratou Florianópolis em seu isolamento. As paisagens do Morro do Antão, as da ponte Hercílio Luz e as da minúscula cidade adquirem um sentido quase metafísico ao lado de uma atmosfera poética. Vemos um olhar mais livre e ingênuo da paisagem e do belo casario da antiga Desterro. A pintura “Colégio de Jesuítas” mostra em suas minúcias, as particularidades de um registro da vida cotidiana da cidade. ( figuras 26 e 27) ) Figura 26 Figura 27 Martinho de Haro (1907-1985) ganhou prêmio de viagem à Europa e estudou em Paris. Não deu saltos para novas tendências, foi fiel as intenções construtivas da diretriz moderna, rigoroso controlador dos meios expressivos, de sua fidelidade aos temas e “de quebra, ajudou a criar a memória afetiva da cidade” ( ANDRADE FILHO, 2007, p. 37). ( figuras28 e 29). Figura 28 Figura 29 12 Concluindo- Nesta seqüência de imagens de cidades feitas por artistas que mantiveram, em sua maioria, contato com experiências européias, se percebe uma matriz discursiva que não é européia tão somente, mas sim, particular de cada artista, impregnada de suas vivências e pensamentos. E a rua aparece sempre. Para Fabris (2000), a rua é o lugar tópico da modernidade: niveladora; transformadora das línguas; vitrine do conforto humano, posto que proporciona ao animal civilizado coisas como luz, luxo, bem-estar, comodidade; local de espreita da vida; criadora de tipos; inventora de novas formas de comunicação. A cidade da memória coletiva descrita por Maurice Halbwachs ( 1990) está sempre em transformação e o seu esquecimento significa que os grupos que dela guardavam lembranças, desapareceram. Para Boyer ( 1994) as relações fundamentais entre arquitetura, forma urbana e história devem ser questionadas, pois a cidade é a expressão coletiva da arquitetura e carrega na sua trama e no desenredo de seu tecido os traços de memória de formas arquitetônicas mais antigas, planos diretores e monumentos públicos. As demandas e pressões da realidade social constantemente afetam a ordem material da cidade, contudo ela permanece sendo o teatro de nossa memória. Suas formas coletivas e reinos privados nos contam das mudanças que estão acontecendo; nos lembram também de tradições que diferenciaram esta cidade de outras. São nesses artefatos físicos e traços que nossas memórias da cidade jazem enterradas, pois o passado é carregado até o presente através desses lugares. Endereçados ao olho da visão e à alma da memória, as ruas de uma cidade, monumentos e formas arquitetônicas constantemente contêm grandes discursos sobre a história. A imagem da cidade é um conceito abstrato, uma forma construída imaginariamente. Modelo, espacial, social e cultural, a cidade apresenta-se, não raras vezes, como o território privilegiado da utopia. Em muitas “arquiteturas pintadas”, como no caso do renascimento, configura-se o desejo utópico de construir modelos ideais, projeções de uma visão de mundo, um pensamento filosófico, que só em poucas ocasiões terão a oportunidade de transformar-se em realidade ( FABRIS, 2000, p.9). Mas a arquitetura na cidade não é somente um espetáculo moldado pela ordem representacional dos planejadores e arquitetos, ela envolve também o público. Como espectadores, nós viajamos através da cidade observando seus espaços arquitetônicos construídos, mudando cenários contemporâneos e reflexões do passado até que eles se condensem em uma visão personalizada. Nossa memória da cidade é especialmente cênica e teatral: nós viajamos de volta no tempo através de imagens que lembram partes 13 e pedaços de uma cidade anterior, nós projetamos essas representações anteriores em cenários recompostos unificados e nos apaixonamos por estes cenários infinitos. Referências bibliográficas ANDRADE FILHO, João Evangelista. Um moderno na província. IN: MATTOS, Tarcísio; Corrêa Neto, Ilmar; Andrade Filho, João Evangelista (orgs). Martinho de Haro. Florianópolis: Tempo Editorial, 2007. p. 31 – 51. ARGAN, Carlo Giulio. A história da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998. BARATA, MÁRIO. In: Arte moderna no Salão Nacional. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1983. BOYER, M. Cristine. The City of Collective Memory: Its Historical Imagery and Architectural Entertainments. Cambridge Mass.: MIT Press, 1994. BRADBURY,M. E MCFARLANE, J.Modernismo-Guia geral. São Paulo: Companhia das Letras,1989. CERTEAU, M. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Ed. Vozes, 2003. CHEREM, Rosangela Miranda. Notações para uma história da pintura na América Latina. Jornada de pesquisa da UDESC, CEART, 2008.Site: http://www.ceart.udesc.br/revista_dapesquisa CHIARELLI, Tadeu. Entre Almeida Júnior e Picasso. In: FABRIS, Annateresa ( org). Modernidade e modernismo no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994, p.57-65. FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo: Studio Nobel, 2000. FABRIS, Annateresa. Modernidade e Vanguarda: o caso brasileiro. In:______ (org.). Modernidade e Modernismo no Brasil. Campinas: Mercado de Letras, 1994. p.20. FRANCASTEL, P. A realidade figurativa. São Paulo: Perspectiva, 1982 FRANCASTEL, Pierre. Pintura e sociedade.São Paulo: Martins Fontes, 1990. GOMBRICH, E.H. Arte e ilusão. Um estudo da psicologia da representação pictórica. São Paulo: Martins Fontes, 1986. GONÇALVES, Denise et al. Cidade Histórica na contemporaneidade – Pressupostos teóricos para uma análise das formas urbanas. REVISTA OHUN - ANO 2 - nº 2 - 2005. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia PPG-AV-EBA-UFBA.Disponível em < http://www.revistaohun.ufba.br/html/artigo3n2.html>. Acesso em 22 jun. 2008. HALBWACHS, Maurice – A memória coletiva. São Paulo: Vértice/Editora dos Tribunais, 1990. HYDE,G.M. A poesia da cidade. In BRADBURY,M. E MCFARLANE,J. Modernismo-Guia geral. São Paulo: Companhia das Letras,1989. LEHMKUHL, Luciene. Os modernistas da ilha: obras e exposições do grupo de artistas plásticos de Florianópolis. IN: FLORES, M.B. LEHMKUHL, L. COLLAÇO, V.R.M. (orgs).A casa do Baile: estética e modernidade em Santa Catarina. Florianópolis: Fundação José Boiteux, 2006. LEPETIT, Bernard. Por uma história urbana – Bernard Lepetit. São Paulo: EDUSP, 2001. LUCHIARI, M.T. A (re)significação da paisagem no período contemporâneo. In: ROZENDHAL, Z. Paisagem, imaginário e espaço. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2001. 14 PEIXOTO, Fernanda Arêas. As cidades nas narrativas sobre o Brasil.In: FRÚGOLI JR; ANDRADE, L.T; PEIXOTO, F.A.(orgs). As cidades e seus agentes: práticas e representações.Belo Horizonte: PUC Minas/Edusp, 2006. RAMA, Angel.As cidades das letras.São Paulo: Brasiliense, 1985. REVISTA OHUN - ANO 2 - nº 2 - 2005.Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia PPG-AV-EBA-UFBA. Disponível em < http://www.revistaohun.ufba.br/html/cidade_historica.html>. Acesso em 19 de jun.2008. SANTOS, M. apud NEVES, E. Paisagem-conceito. In: Paisagem e ambiente. Ensaios IV. São Paulo: FAUSP, 1992. SARLO, Beatriz. Buenos Aires: Cidade Moderna IN: Paisagens imaginárias. São Paulo: Editora da USP, 2005. p.199-217. SILVA, Maria Beatriz Setúbal de Rezende. Preservação na gestão das cidades. In: Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, n. 24, 1996. -------------------------------------------------------------------------------------Referências das imagens - Figuras 1- Figura 1 -Argentina. Xul Solar. (1887, Buenos Aires – 1963).‘Cidade e abismos’, 1946. Têmpera e aquarela s/ cartão35 x 50 cm. Malba - Coleção Costantini 2- Figura 2. Argentina. Xul Solar. (1887, Buenos Aires – 1963).‘Ciuda Lagui’, 1939 Aquarela 37.5 x 50 cm. 3 Figura 3. Argentina. Xul Solar. (1887, Buenos Aires – 1963).‘Barrio’, 195Têmpera 40 x 56 cm Xou Solar. Disponível em < http://www.zaz.com.br/bienal/xul.htm>. Acesso em 22 jul.2007. 4- Figura 4. Argentina. Antonio Berni. Sueño de uma noche de verano a orillas del lago gardas – 1931 5- Figura 5.Argentina .Antonio Berni. ‘El tanque blanco’, 1956. 6- Figura 6.Argentina .Antonio Berni. ‘La calle’, 1955. 7- Figura 7.Argentina .Antonio Berni. ‘La gallina ciega’, 1974 Antônio Berni Rosário. Disponível em <http://www.bienalmercosul.art.br/fundacaobienal/site/controller.jsp?c=viewArtistDetai ls&artist.uid=229.> Acesso em 13 jul. 2007. Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_Berni.>Acesso em 13 jul.2007. 8-Figura 8. Honduras. Jose Antonio Velasquez .Santo Antonio do Oriente, 1949. Óleo sobre tela. 52.07 x 76.2 cm. 9 Figura 9. Honduras.Jose Antonio Velásquez. Vila de Santo Antonio do Oriente. José Antônio Velazques. Disponível em < http://www.honduras.com/museum/jvelas1.htm>. Acesso em 23 jul. 2007. 10. Figura 10. Venezuela. Rafael Monasterio.Calle de Quíbor’, 1957 Óleo s/ masonite 60 x 80 cm. 11-Figura 11.Venezuela. Rafael Monasterio..Barrio de Duaca’, 1956 Óleo s/ tela 64 x 84 cm. Rafael Monasterio. Disponível em < http://www.morellajimenez.com.do/pinturamonasterios.htm> Acesso em 10 ago. 2007. 12-Figura 12.Venezuela. Bárbaro Rivas.Vista de Pueblo (Escenas Pueblerinas)’,1960 Óleo s/ masonite 46 x 46 cm . 13- Figura 13. Venezuela. Bárbaro Rivas. ‘Barrio Caruto’ (segunda versión),1925 Esmalte s/ masonite 52 x 68 cm 15 Bárbaro Rivas- Disponível em < http://www.galeriamuci.com/artistas/rivas.htm> Acesso em 24 jul. 2007. Disponível em < http://www.bcv.org.ve/BLANKSITE/c3/colecarte/rivas_index.htm> Acesso em 24 jul. 2007. 14. Figura 14. Chile. - Alfredo Helsby Hazell, (n.Valparaíso - 1862 – f.Santiago 1933).Igreja Divina Providência, s/ data. Óleo s/tela, 55 x 76 cm. Coleção particular. Alfredo Helsby. Disponível em < . http://www.mapocho.org/wpcontent/uploads/alfredo_helsby_providencia.jpg> Acesso em 19 jul. 2007. 15. Figura 15. Chile. Camilo Mori Serrano.Domingo em Valparaiso, s/ data. Camilo Mori Serrano. Disponível em < www.artistasplasticoschilenos.cl>. Acesso em 18 mai.2007. 16- Figura 16. Chile. – Luis Herrera Guevara.. Cerro Bellavista, 1940. Óleo s/ tela. Pinacoteca Banco Central de Chile, Santiago. 17. Figura 17. Chile – Luis Herrera Guevara. Igreja de São Francisco e Praça das Flores, s/ data. Óleo s/ tela. Coleção particular. Luis Herrera Guevara. Disponível em < www.artistasplasticoschilenos.cl> e disponível em < www.mac.uchile.cl/virtual/h2/index.html>. Acesso em 24 mai.2007. 18- Figura 18. Uruguai. Pedro Figari, L'Ancien Montevideo: le vieux marché, 1890.Aquarela. 50 x 80 cm. Museo Histórico Nacional, Casa de Fructuoso Rivera. Montevideo 19. Figura 19. Uruguai.– Pedro Figari, (Montevidéu - 1861 / Montevidéu - 1938) Toque de oración, 1925, óleo s/ cartão, 69 x 99 cm. Coleção Museu Nacional de Artes Visuais de Belas Artes. Pedro Figari. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/figari.htm> Aceso em 10 abr.2007. 20. Figura 20. Uruguai – José Cuneo. Caserío de Cagnes, 1929. Óleo s/ tela. 74 x 92 cm. Coleção Museu de Arte Latino-americano de Buenos Aires - MALBA. Argentina Jose Cuneo. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/cuneo.htm> e Disponível em http://www.rau.edu.uy/uruguay/cultura/cuneo.htm Acesso em 12 mai.2007. 21.Figura 21. Uruguai – Rafael Barradas. Paisaje de Hospitalet. 1926. óleo s/ cartão. 48 x 64 cm.. Coleção Guillermo de Osma. Madrid. Espana. Rafael Barradas. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/barradas.htm>. Acesso em 11 fev.2007. Disponível em < http://www.museopatioherreriano.org/MuseoPatioHerreriano/coleccion/catalogo_razona do>. Acesso em 11 fev.20076. 22. Figura 22. Uruguai– Joaquím Torres Garcia.Escena Callejera, 1918 Torres Garcia. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/torres.htm> e Disponível em < www.torresgarcia.org.uy.jpg>. Acesso em 02 fev.2007. 23. Figura 23. URUGUAI – Joaquím Torres Garcia, (Montevidéu - 1874/ Montevidéu 1949). Paisaje de ciudad, 1928.Óleo s/ cartão. 36 x 56 cm. 24. Figura 24. Uruguai – Humberto Causa. Palma de Mallorca, 1915 .óleo s/ tela. 119 x 135 cm.Coleção Museu Nacional de Artes Visuais, Montevidéu, Uruguay. 25. Figura 25. Uruguai – Humberto CausaPlaza de Pollenza, 1915.Coleção Museu Nacional de Artes Visuais, Montevidéu, Uruguay. Humberto Causa. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/causa.htm>Acesso em 20 mai.2007. 26. Figura 26. – Brasil. Eduardo Dias - “Colégio de Jesuítas”, s/d. Óleo sobre tela – 23,5 x 33 cm. Acervo do MASC, tombo nº 418. 27. Figura 27. Brasil. Eduardo Dias. “Netos do Diabo”, s/d. Óleo sobre tela Circa 1,50 x 80 cm. Coleção Edhy Francisco Mattos. 16 28. Figura 28.Brasil. Martinho de Haro. “Panorama de Florianópolis”. Óleo sobre eucatex. 63 x 113cm. 1975. Acervo do MASC. 29. Figura 29. Martinho de Haro –“Porto”. Óleo sobre eucatex. 211 x 271cm. Acervo Teatro Álvaro de Carvalho (TAC). 17 Danae, Maria e uma Jovem Burguesa Roberto Freitas1 Figura1. Danae 925 AC. Danae é uma importante personagem feminina da mitologia grega, mãe de um herói, foi vítima de uma sucessão de crueldades humanas. Filha de Acrísio, rei de Argos, e Euridice, viveu isolada do mundo trancada em uma torre de bronze e depois jogada a própria sorte dentro de uma arca de madeira às águas agitada dos mares. Sua desgraça começa quando seu pai é alertado oracularmente de que sua morte viria das mãos de um neto, filho de Danae. No intuito de mudar o seu destino decidiu impedir que sua filha ficasse grávida, para isso enclausura a filha, mantendo a vigia confiada a seus mais fieis guardas. Infelizmente, para sua sorte de Acrísio, Zeus se enamora da virgem e, usando de sua capacidade divina de se metamorfosear, se transforma em uma 1 Mestrando pelo PPGAV – CEART UDESC linha de Teoria e História da Arte, orientado por Rosângela Miranda Cherem. chuva de ouro, entra por um orifício no teto de sua prisão, fecundando a jovem de um menino que se chamaria Perceu. Figura 2. Tintoretto Danae (1580) Ao saber da gravidez de Danae, Acrísio manda matar mãe e filho. Enquanto a arca navegava a deriva Zeus, com auxílio de Posseidon, acalma os mares e faz com que os dois cheguem a salvo na ilha de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades, onde são resgatados por pescadores e levados ao seu rei local, Polidectes. Com o tempo o monarca se apaixona por Danae e resolve desposá-la. Com medo que Perceu atrapalhasse seus planos manda o jovem para morte, delegando uma tarefa que julgava impossível, matar a medusa, uma terrível besta mitológica que transforma todos que a vissem em pedra. Para a surpresa de seu padrasto Perceu mata a medusa, na sua volta jogos comemorativos são realizados com a presença dos monarcas das redondezas, é neste momento que Perceu mata seu avô num acidente com um dardo, cumprindo-se a profecia. Figura 3. Gustav Klimt Danae (1907-1908) Maria é o personagem feminino mais importante da mitologia cristã, sua saga de mãe é tão trágica que se equivale a de Danae. A virgem Maria é fecundada por um deus, que emana suas forças através do espírito santo, a sua forma divina quando experenciada pelos seres humanos, que se revela na forma de uma bola de fogo, raios dourados de luz. Uma vez grávida teve que fugir porque o rei Herodes mandou matar a criança que seria o “rei dos reis”, segundo uma profecia, o que provocou uma grande chacina de crianças. O filho de Maria, Jesus, era um semideus, assim como Perceu realizou grandes feitos proféticos, mas acabou tragicamente numa cruz, enquanto Perceu morre de velho como rei de Argos e constrói a famosa cidade de Micenas. Figura 4. Vercellio Tiziano Danae with a Nurce (1553-54) Figura 5. Jan Gossaert A Fecundação de Danae (1527) Figura 6. Rembrandt Danae (1636-47) O foco desta investigação não é nem um pouco a figura de um semideus, nem Jesus nem Perceu interessam, mas a figura de uma mortal que em sua pureza é capaz de fazer com que um deus desça dos céus para ter com ela um filho, figura que encantou os mais diversos artistas nos mais diversos períodos, artistas que se encontravam diante do desafio de representar uma personagem capaz de enamorar um deus. Figura 7. Willian Blacke O Sonho de Jacob Ramon Frade foi um conhecido pintor caribenho da virada do século XIX para o XX, atuou principalmente em Porto Rico, mesmo que tenha feito inúmeras viagens para o Haiti e República Dominicana, onde fez estudou desenho com Adolphe Laglande. Ainda freqüentou ateliê de pintura de Luis Desangles, onde se formou como pintor acadêmico. Paralelo a seus estudos em artes estudou arquitetura por correspondência, o que possibilitou para o artista trabalhar como agrimensor e engenheiro civil, o que o levou a um trabalho de pintura muito voltado para paisagens e a vida simples do trabalhador do campo de Porto Rico, isso o transformou em um pintor realista e um artista humanista, voltado para o homem simples do campo. Figura 8. Ramón Frade Sonho de amor De todas as pinturas do artista que vi, chamou muito a atenção uma que foge muito do seu universo de atuação, se trata de uma pintura de caráter burguês e romântico no que se refere ao tema. Trata uma jovem deitada preguiçosa, num lugar excessivamente frio e escuro, aparenta estar confortável, entregue a um doce sonho. Seu corpo caído sobre um divã, a parte baixa de seu ventre está sobre um tecido dourado, o corpo está todo muito relaxado, parece reagir doce e prazerosamente aos seres sonhados, pequenos cupidos quase invisíveis voando a sua volta, sendo que um segura delicadamente a sua mão. Há uma pomba com as asas ainda semi abertas, como que acabado de chegar, e flores sobre uma almofada de veludo que espontaneamente colocadas reforçam a atmosfera de sonho. A pintura intitulada “Sonho de Amor” da primeira década do século XX. Figura 9. Jan van Eyck, Anunciação (1432) Figura 10. Chagall, Marc O Sonho de Jacob Os sonhos sempre estiveram presente no cotidiano das pessoas, desde a mais remota antiguidade é possível encontrar relatos sobre interpretação de sonhos. Um exemplo disso é a bíblia, repleta de imagens de sonhos. Nas artes visuais o sonho sempre esteve presente como uma grande temática sempre associada ao seu lado místico, da anunciação ou da revelação, eco da natureza divina que lhe era atribuída de maneira incontestável. Figura 11. Giovanni Battista Tiempolo Jupter e Danae (1736) Alguns sonhos foram amplamente explorado por artistas, principalmente os sonhos que, narrados na bíblia, são tidos como um direto contato com algum ente superior que dita regras ou dá pistas sobre o destino de determinada pessoa o mesmo de toda a humanidade. Assim a idéia da revelação de uma verdade sagrada através de um sonho místico ganha forma, se desdobra no que os teólogos da idade média chamavam de interpretação dos quatro sentidos da escritura. Figura 12. Dominico Beccafumi A Anunciação (1545) Figura 13. Richard Hamiltoni A Anunciação (2004-05) O Sonho de Jacob, por exemplo, foi pintado por inúmeros artistas, Willian Blake o fez com a majestade de um visionário, como se o próprio o tivesse sonhado. Uma escada em caracol sobe até o infinito iluminado como o sol, enquanto os anjos que sobem e descem são mulheres que carregam ânforas, bandejas, e outros objetos simbólicos. Esse mesmo sonho foi utilizado como tema por muitos outros artistas, exemplo as imagens abaixo de Gustav Doré, de um anônimo do séc. XIV e, na pintura extremamente comovente de Marc Chagall, onde a abertura de ligação entre esses dois mundos, o do imaginário simbólico místico e o do cotidiano se encontram e trocam influências se misturam criando novas configurações no universo cultural humano. Figura 14. Paulos Bor A anunciação Figura 15. Jean Luc Godard Je vous salue, Marie fotogramas do filme no momento da anunciação Figura 16. Orazio Gentileschi, Danae (1621) Mas se o tema do sonho bíblico assume uma grande importância simbólica não apenas para quem sonha, mas para toda a cultura, o sonho da jovem adormecida de Ramón Frade sonha em um outro universo, um espaço particular, idílico e sem responsabilidade, construído pelo hedonismo de quem ama. Um sonho banal, mas que ao mesmo tempo coloca a simples mulher representada no patamar simbólico de Danai ou Maria, e essa é a articulação que dá força a pintura: ao mesmo tempo em que uma jovem burguesa tem um sonho erótico, toda a icnografia usada pelo pintor aponta para uma cena sagrada. Na pintura é possível ler uma versão do mito do ente sagrado que fecunda uma virgem. Apesar de ser completamente impossível saber qual será a sina heróica de seu filho semideus, poder-se-ia imaginar que para um homem que era pintor e agrimensor, idealista, interessado pelo homem simples do campo, vivendo num dos lugares mais injustos das Américas estivesse associada ao sonho de mudança e revolução, ao martírio e a mudanças. Figura 17. Fra Angelico A Anunciação (1430-32) PAISAGENS URBANAS: VISÕES DE ARCÁDIA Aletea Hoffmeister Mattes* Rosângela Cherem** Resumo: Analisando algumas pinturas latino-americanas do início do século XX, este artigo propõe uma relação entre a pintura de paisagens urbanas e a idéia de Arcádia, considerando as paisagens como resultado da relação com o espaço físico e, ao mesmo tempo, projeção individual e subjetiva. A partir de escritos de Foucault, Schama e Deleuze desenvolve-se uma reflexão sobre as paisagens e seu imaginário, considerando certos desdobramentos pertinentes a sensibilidades e percepções de cada artista em relação à cidade. Palavras-chave: pintura, paisagem, cidade, Arcádia. * Mestranda do PPGAV – CEART, UDESC linha de Teoria e História da Arte ** Orientadora; professora do curso de Mestrado no PPGAV – CEART, UDESC. No ritmo de nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa desaprovação, construímos de forma imaginária uma cidade dentro da cidade, que temos a oportunidade de ver ou de morar nela. A cidade permite uma aventura da imaginação como essa somente, na medida em que o que dela se exponha demonstre imediatamente ter a capacidade de absorver o novo. Henry-Pierre Jeudy1 A cidade existe independente do olhar do indivíduo, mas no momento em que ele a mira, a sua imagem se compõe e uma nova configuração pode atravessá-la. Daí a particularidade da paisagem, mesmo que seus elementos sejam coletivos e se deixem ver por todos. O olhar para a paisagem sempre é parcial e carregado das impressões singulares do observador, é por isso que um único lugar pode conter infinitas paisagens. Tal compreensão permite pensar certos procedimentos pictóricos de Fortunaro Lacámera e Onofrio Pacenza ao registrarem o bairro de La Boca, na capital Argentina. Em obras como “Esquina de Rocha, Figura 1. Fortunato Lacámera Esquina de Rocha, La Boca Óleo sobre tela 83 x 110 cm La Boca” e “Esquina Boquense”, de Lacámera, a arquitetura detalhada emerge entre as formas, impedindo-nos de ver o horizonte e destacando-se em relação a alguns indivíduos silenciosos e imóveis. As cenas são banhadas de luz, criando um jogo de contraste com a projeção das sombras. Mais de um caminho existe na cena, há opções para penetrar as ruas, mas o movimento estará nos olhos do espectador, pois toda paisagem está imóvel, silenciosa. Também imóveis são as cenas de Pacenza ao retratar o mesmo bairro em obras como “Canto de La Boca” e “Paisagem Citadina”. Porém, o artista nos coloca em Figura 2. Fortunato Lacámera Esquina Boquense Óleo sobre cartão 60 x 47 cm outra realidade. A arquitetura é mais simples e plana, suas paredes contínuas com cores manchadas revelam uma estrutura menos meticulosa, num lugar carregado do sentimento de abandono. No plano amplo das ruas vazias, sob um céu de azul denso, estas 1 JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2005, p.81. paisagens nos impõem sua presença, levando-nos a partir de um canto sombrio e nos conduzindo até um rio que encontra o horizonte. Diante destas obras cabe salientar que se o mesmo lugar é visto de maneiras tão distintas, talvez isto se relacione ao fato de que a composição da paisagem sempre se faz pelo pela subjetividade de quem a vê, como potência que surge a partir de projeções particulares. Tentemos pensar um pouco esta questão a partir da Arcádia. Em termos geográficos, é Figura 3. Onofrio Pacenza Canto de La Boca Têmpera 16 x 23 cm uma área da península do Peloponeso, no sul da Grécia. Nos textos mitológicos essa região era guardada por Pã, uma divindade meio homem meio cabra, que jamais ficava indiferente a quem entrasse em seus domínios. Atemorizando aqueles com quem não simpatizava, levava-os a uma angústia associada ao anseio de partir. Já aqueles por quem Pã se afeiçoava, eram agradados com os privilégios do lugar e seus prazeres, quase enfeitiçados pela vontade de jamais sair. Assim, a idéia de Arcádia pode ser associada a Figura 4. Onofrio Pacenza Paisagem citadina Óleo sobre cartão 22 x 29 cm de heterotopia, ou seja, como aquilo a que Foucault2 definiu como um espaço simultaneamente real e virtual, pois funciona de forma dependente dos lugares físicos pré-existentes, mas ao mesmo tempo sua existência não está apenas contida neles. Como uma projeção no espelho, em que ao mesmo tempo se está e não está. Como uma imagem do prédio refletido na poça de água, ela se relaciona à água e ao prédio, mas não é nenhum deles. Ou ainda como a paisagem, que só pode ser concebida pelo olhar daquele que mira o lugar a partir de um determinado ponto e distância, mas ela não está nos olhos do observador nem nas entranhas do lugar. Diante de tantos registros presentes nas artes, na filosofia, na história e na geografia, não é difícil compreender as infinitas controvérsias que impedem uma única definição de Arcádia. Assim, diferentes percepções e sensibilidades podem evocar este lugar, sendo por vezes um panorama suave e pacífico, e em outros momentos traduzido como local de mistério e temor. Conforme Simon Schama: 2 FOUCAULT, Michael. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. R.J.: Forence Universitária, 2001. Sempre houve dois tipos de Arcádia: tumultuada e tranqüila; sombria e luminosa; um lugar de ócio bucólico e um lugar de pânico primitivo.3 O autor ressalta que, independente da ênfase que recebe, na medida em que Arcádia é procurada e reconstruída, torna-se produto da mente organizada, e mesmo que seja uma idéia abundante em subjetividade, é constituída de pensamento lógico. Talvez seja justamente por isso que esse lugar não-físico, onde a idéia de paraíso convive com a presença humana, inspirou urbanistas, artistas, poetas e tantos outros. Esse mundo tão abrangente, de regiões inalcançáveis, instiga a uma procura contínua ao longo da História, especialmente através das obras de artes visuais e da literatura. Podemos pensar na busca por Arcádia através Figura 5. Rafael Barradas Paisagem de Sans, 1927 Óleo sobre tela 66 x 88,5 cm das diferentes visões que os artistas têm das paisagens citadinas, encontrando na arte condições privilegiadas para explorar suas possibilidades e interpretações, e que se apresentam em múltiplas formas: singular, universal, banal, surpreendente, fragmentada, funcional, contemplativa, assombrosa. Os artistas uruguaios Rafael Barradas e Alfredo De Simone nos provocam com suas visões. Quando olhamos, por exemplo, “Paisagem de Sans” ou a série Figura 6. Rafael Barradas Paisagem de Hospitalet, 1926 Óleo sobre cartão 41,2 x 56,5 cm “Paisagem de Hospitalet” de Barradas, nos deparamos com superfícies rasas, nas quais estão paisagens de cidades monocromáticas, que nos lembram as ruínas, a seca, o deserto. Os contornos destacam as formas geométricas de ângulos em ponta, enquanto os personagens sem rosto se confundem com a arquitetura. Estamos em uma terra árida, quase inóspita. Que lugar é este? Por que as personagens se conformam a ele? Como posso fazer tais interpretações se nunca estive lá? Em outro extremo, temos De Simone. Ao Figura 7. Alfredo De Simone Rua do bairro sul vermos “Rua do bairro sul” e “Vista da cidade” somos envolvidos pela densidade que está na superfície. As Óleo sobre cartão 3 Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 513. marcas deixadas pela espátula trabalharam a tinta de forma pastosa, criando volumes matéricos. Sem contornos, não há limites e as áreas se misturam, resultando em manchas de várias cores. Como resultado, a imagem envolve as formas da arquitetura, o ar, a água, e até os possíveis indivíduos, como se todos fossem parte de um único todo orgânico. É preciso se afastar para compreender a Figura 8. Alfredo De Simone Vista da cidade Óleo sobre cartão obra como uma paisagem. Que cidade é essa se torna incompreensível se me aproximo? Por que é preciso estar longe para decifrá-la? Se entrar, haverá opção de retorno? Eis as ressignificações da Arcádia. A paisagem da cidade é a elaboração de conteúdos reais e imaginários, revelando o subjetivo através do corpo da obra. Ao pintar uma cidade, o artista mostra o que está no limite de seus olhos e na amplitude de seus pensamentos e sentimentos. A imagem ganha forma a Figura 9. Luis Herrera Guevara Colina Bellavista, 1940 Óleo sobre tela partir do contraponto entre o domínio do fato e o domínio da ficção. E por isso uma tela nunca será uma visão imparcial ou neutra. Nesse contexto, podemos pensar nas obras do chileno Luis Herrera Guevara. O artista pinta espaços distintos com elementos que os assemelham, como se todos tivessem a mesma morfologia, como se fossem perspectivas diferentes de um só lugar. Essa análise pode ser feita usando como exemplo “Colina Bellavista”, “Praça Iquique”, “Diário A União de Valparaíso”, Figura 10. Luis Herrera Guevara Praça Iquique referências às cidades de Santiago do Chile, Óleo sobre tela Iquique e Valparaíso respectivamente. Nas três obras o colorido é intenso, com destaque para as cores quentes e os contornos negros, marcados por linhas densas. O traço simples, sem uma preocupação com a rigidez da perspectiva, conduz o olhar para uma paisagem repleta de detalhes; e as ruas em diagonal, que ascendem ou descem, movimentam a cena e revelam ao espectador que algo é instável: a cidade ou aquele que a vê. Na obra “Evocação a Paris”, a paisagem faz referência a uma cidade não só de outro continente, mas Figura 11. Luis Herrera Guevara Diário A União de Valparaíso Óleo sobre tela 60,2 x 70 cm que possui também aspectos geográficos, urbanos e sociais extremamente diferentes, mas, curiosamente, encontramos nelas várias características semelhantes às das obras já citadas. Guevara não está acessando cidades utópicas, como Atlântida e Eldorado, sua produção é intrínseca a locais reais, contudo, ao manipular as imagens através da pintura, aproximando espaços fisicamente independentes, revela as visões de um lugar que não é exatamente aquele indicado no título de cada tela. Ele nos convida a ver aquela que, para ele, poderia se denominar Arcádia. O âmbito da cidade torna-se assim o das projeções pessoais, da carga subjetiva daqueles que com ela se relacionam, sendo que o particular interfere na paisagem do coletivo e retorna ao indivíduo novamente, numa reelaboração contínua. Figura 12. Luis Herrera Guevara Evocação a Paris, 1942 Óleo sobre tela 50 x 58,7 cm Tal leitura nos leva a problematizar o que faz com que um pintor assemelhe cidades tão diferentes, ou, como pode, em outro momento, construir tantas paisagens diversas referenciando o mesmo lugar. A questão também parece encontrar ressonância nas palavras de Armando Silva: a macrovisão do mundo passa pelo microcosmo afetivo, a partir do qual aprendemos a denominar, a situar ou marcar o mundo que compreendemos não só de fora para dentro mas originalmente ao contrário, de dentro, do meu interior psicológico, ou ainda, dos interiores sociais do nosso território para o mundo como resto.4 Ao olharmos as paisagens urbanas feitas por artistas que viveram em épocas concomitantes e em locais semelhantes, vemos inúmeras paisagens distintas. Cenas de múltiplas cores ou planos monocromáticos que se apagam gradualmente. Formas definidas e com contornos destacados ou pinceladas disformes que se fundem em incontáveis manchas. Espaços cheios, ocupados por paredes, 4 SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p.XXIV. portas e janelas, ou vazios que passam pelas ruas e se estendem ao céu. Áreas iluminadas ou grandes sombras que sugam a luz. Movimento de linhas que agitam os olhos de quem as vê ou imagens estáticas que parecem indiferentes ao espectador. Contudo, no caso dos artistas que comparecem neste texto, a solidão aparece como um sentimento constante. Talvez essa seja a linha que aproxima as obras e às remete ao mesmo sentimento original que impulsiona o desejo de buscar algo ainda não plenamente compreendido, bucólico ou perigoso. É a ausência do homem como personagem principal. Temos apenas seu vestígio em vultos silenciosos ou em construções que evidenciam sua ação, mas não o louvam. Se algum dos indivíduos aparecerá em uma das janelas, se um dos personagens ganhará destaque e atrairá a atenção do observador, será um mistério, como o mito de Pã que poderá a qualquer instante seduzir ou afastar o viajante que passa por seu território. O fato é que, se o espectador olhar para a obra e deixar seus olhos percorrerem seu espaço, já não importa se será ou não encontrado por Pã, pois já foi levado a entrar na Arcádia e não poderá voltar às costas para ela. Segundo Deleuze5, a construção do sentido envolve o paradoxo da proposição, isso significa que ao contemplar uma obra passamos por três pressupostos: a designação, a manifestação e a significação. A obra existe a partir da designação, do estado individual que lhe foi escolhido e determinado pelo artista; considerando esta primeira proposição, a análise é objetiva: são pinturas, imagens bidimensionais produzidas pela mão do homem a fim de registrar paisagens. Porém, a obra também é indissociável da segunda proposição: a manifestação. Nela implicam os desejos e as crenças que são intrínsecos à sua designação inicial, e assim a leitura se amplia e se aprofunda: a composição e a escolha das tonalidades de cor geram determinadas impressões e sentimentos. A terceira proposição, a da significação, trata-se da relação das duas anteriores, ou seja, entende-se que a obra apresenta uma imagem que desperta determinadas sensações e isso implica em uma condição de verdade que está na obra. É difícil ficar indiferente a uma verdade colocada diante de seus olhos, por isso, se fruir a obra e arriscar-se nessa região inicialmente enigmática, cedo ou tarde o espectador pensará sobre a construção de sua própria Arcádia e não poderá mais olhar sua cidade de origem com os mesmos olhos. DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo:Perspectiva, 2007. FOUCAULT, Michael. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. R.J.: Forence Universitária, 2001. JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2005. SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001. 5 DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo:Perspectiva, 2007. OS LUGARES IMATERIAIS DE ARMANDO REVERÓN Priscilla Menezes de Faria1 O silêncio branco da tela é recortado pelo ruído breve do gesto do pintor. Através do leve caminhar de sua mão, uma figura se desvela. Aparição e ocultamento, a imagem que surge parece proteger-se com a presença de um véu, sua diáfana armadura. Armando Reverón (1889 - 1954), pintor Venezuelano, apresenta em suas pinturas lugares de um mundo encoberto, feito de atmosferas adensadas, climas nebulosos. O artista, nascido em Caracas, foi um dos expoentes na produção de um modernismo Venezuelano, estudou na Academia de Belas-Artes de Caracas e completou seus estudos artísticos na Espanha, vivendo em Barcelona e Madri a partir de 1911. Em 1920, Reverón se estabelece em Macuto, nas proximidades do mar do Caribe, onde vive em reclusão. Em contato constante com a luz brilhante da região equatorial, o artista pinta paisagens quase monocromáticas entre 1925 e 1936, fase conhecida como seu Período Branco. Do contato de Reverón com a geografia do litoral caribenho surgem obras que dialogam com procedimentos pictóricos do pós-impressionismo, numa interpretação da intensa luz equatorial em pinturas quase monocromáticas, feitas de pura impressão luminosa. Em suas imagens, o ar toma forma, é esbranquiçado e difuso, feito de transparências opacas, sutilezas espessas. A economia de seus acúmulos formais propõe a ilusão de um paradoxal adensamento nebuloso. O pintor, indicando a percepção visual através de seu limite, nos convida ao exercício de tocar o mundo com os olhos menos densos. 1 Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, participante da pesquisa Academicismo e Modernismo na América Latina sob a orientação de Rosângela Miranda Cherem. Figura 01. Armando Reverón (1889 - 1954) O Playon (1942) Óleo e têmpera sobre tela A pintura de Reverón investiga os limites entre o material e o imatérico, encontrando formas para o ar, buscando limites para substâncias rarefeitas. Valendo-se da suavidade e do lirismo de imagens nebulosas, o pintor apresenta a imagem em seu desaparecimento, propõe a forma em seu vestígio. Suas paisagens são murmúrios de si mesmas, imagens de suas próprias desaparições. Se considerarmos que toda imagem tem um corpo, que seria sua própria condição de artifício aparente, podemos pensar que um corpo sempre se delineia por encontros de superfície; abismo entre pele e nada, rasgo entre densidade e ausência, corte entre adensamento e dispersão. A imagem existe por se oferecer a esse roçar de retinas que incide em sua superfície imagética e nesse oferecimento residiria a carnalidade de seu corpo. Nesse sentido, Reverón eviscera a carnalidade da imagem e problematiza esses encontros de superfície. Trazendo para o corpo da pintura um movimento da visão, o limite de sua potência, seu iminente fracasso, a presença de sua impossibilidade. Numa percepção anacrônica, pensando no encontro como uma dobra atemporal, podemos localizar no processo de Reverón ressonâncias de um procedimento Romântico, movimento artístico europeu surgido nas últimas décadas do século XVIII que propunha uma transgressão ao Neo-Classicismo, caracterizando-se por uma intensa incursão em direção à subjetividade humana. O estilo Romântico permeia o sublime e empreende um profundo mergulho no eu. Mas, diferente do antropocentrismo clássico, que valoriza o ser enquanto medida de perfeição, o eu-romântico é o eu que erra, que se perde, que não tem lugar. William Turner (1775 – 1851) foi um pintor de não-lugares. Expoente do movimento Romântico, William Turner passou sua vida pintando paisagens, investigando o visível como contato entre olhar e aparência, tratando-o como sintoma do ser, revestindo a paisagem de tudo aquilo que é próprio da alma. William Turner (1775 – 1851) Chuva, vapor e velocidade - The Great Western Railway (1844) Óleo sobre tela, 90,8 x 122 cm Sobre “belezas meteorológicas”, Baudelaire2 escreve: “Todas essas nuvens de formas fantásticas e luminosas, essas trevas caóticas, essas imensidades verdes e rosadas, suspensas e reunidas umas às outras, essas fornalhas escancaradas, esses firmamentos de cetim negro ou violeta, amarfanhado, enrolado ou rasgado, esses horizontes em luto ou murmurantes de metal fundido, todos esses esplendores subiram-me à cabeça como uma bebida capitosa, ou como uma eloqüência do ópio”. O escritor continua: “Coisa curiosa, não me ocorreu uma só vez, diante dessas magias líquidas ou aéreas, queixar-me da ausência do homem”. Estas ausências propostas por Turner são abrigos para o corpo errante do Romantismo. Aquele que é extraviado, que não cabe, não pertence, encontra aqui um local para a contemplação sublimada da ausência de si. 2 Baudelaire, Curiosités esthétiques, Ed. Calmann-Lévy, p. 334 As telas nebulosas de Turner, assim como as de Reverón, não empreendem esforços no sentido de retratar, não contam, não narram. São antes sugestões, possibilidades, ruído. A pintura, carregada de uma tradição retratista e mimética, aqui é desafio para o olhar. As pinturas nebulosas de Turner e de Reverón parecem nos ofertar o mundo enxergado pela primeira vez, repleto de susto e arrebatamento. O olhar é convidado a um passeio pela imagem, movendo, orientando, desviando. Bachelard 3 escreve: “Poderíamos dizer que a contemplação das nuvens nos coloca diante de um mundo em que há tantas formas quanto movimentos; os movimentos produzem formas, as formas estão em movimento, e o movimento sempre as deforma. É um universo de formas em contínua transformação.” As paisagens-névoa de Reverón são instantes suspensos no tempo, captam brevidades da luz, congelam sopros de vento. Quanto mais se tenta compreender o que foi pintado, mais a pintura se dissolve. Quanto mais o olhar se fixa na imagem, mais lhe escapa aquilo que pensou ter apreendido. É nessa dialética entre compreensão e imprecisão que a obra de Reverón acontece. Nesse espaço onde o que é percebido não nos aponta fatos, mas inicia suspeitas, inaugura impressões. A matéria de sonho é sempre uma matéria nebulosa. As representações mais pueris do ambiente onírico freqüentemente vêm envoltas por uma espessa camada esbranquiçada. O sonhador tem a cabeça “nas nuvens”. O sonho não tem cor. É branco. É luz. Ao mesmo tempo em que a névoa pode representa esse alheamento ao mundo concreto, ela também configura uma intangibilidade real. Pode-se ver a neblina muito de perto, mas nunca no exato lugar onde se está. Dando um passo à frente, a neblina se desfaz. Não cabe no toque, não responde ao gesto. A neblina nunca está. Goethe4 diz que “a coisa mais sublime não pode existir sem um elemento de mistério”. Em suas pinturas, Reverón trabalha com esse sublime: não as coisas, mas o caminho até elas. Não a matéria, mas os reflexos. A coisa em si não interessa ao artista, ele busca um espaço até ela, um ante-lugar. Clarice Lispector 5escreve: "O nome é um acréscimo, e impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a 3 Bachelard, O ar e os Sonhos, Martins Fontes, p. 198 Goethe, Teoria das Cores, HA, vol. 13, p.495 5 Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., p.140 4 coisa. A vontade do acréscimo é grande - porque a coisa nua é tão tediosa." Reverón não deixa coisa nua, reveste-a de imprecisão. Armando Reverón (1889 - 1954) Amanhecer no Poço Ramiro (1938) Óleo sobre tela - 116 x 128 A materialização da leveza dos vapores. Reverón educando sua mão para pintar o ar, imprimindo camadas de cerração, para compor cenas de vento. Nesse ponto, a poética do artista passa pela beleza daquilo que não tem peso, que se equilibra no espaço. Sabemos que tudo o que é terreno ocupa um lugar, tem margens, cai. Reverón, nesse sentido, esmiúça o fascínio da imagem revestida de imaterialidade, disso que existe de maneira tão avessa à nossa, que não pisa, que não quebra, que quase não é. Tal potência imagética se revela justamente no limiar de sua impossibilidade, fazendo emergir, dessa maneira, potencialidades outras, feitas da força do ruir, do desvanecer. Esta potencialidade da perda, esse retrato do não-encontrar está entrelaçado com uma idéia melancólica de relacionar-se com o mundo. O prefixo “mela” (do grego melas) significa “lacuna em uma escritura”, nos possibilitando pensar em uma escritura da ausência, traçados de silêncio, prolixo de sua própria mudez. O silêncio das imagens de Reverón nos faz pensar no olhar do melancólico em seu estado de contemplação. Não se trata de passividade e mudez, mas antes do contato sigiloso com própria densidade, possibilitando ao olhar melancólico se estranhar, se repensar, ouvir o próprio silêncio, aceitando o vazio existencial como espaço de possibilidade infinita para a criatividade de si. Revisitando o pensamento clássico, encontramos uma idéia de melancolia vinculada a conceitos de genialidade e loucura, sobretudo na visão aristotélica, na qual a melancolia se revelava como uma capacidade profética. Na Idade Média, a melancolia começa a ser localizada no corpo. Neste período, a escola médica de Salerno associava o humor melancólico à existência de um elemento seco e frio, fabricado no baço, denominado bílis negra. Esse elemento seria o responsável pela tristeza, pela inveja e pela ganância, próprias da melancolia, que então era vista como um aspecto depreciador. Márcia Tiburi 6escreve sobre o corpo como lugar da melancolia: “ A melancolia se define, portanto, na influência do corpo sobre a alma, dos humores corporais sobre os pensamentos tramados no signo da tristeza. (...) Diferente de um não-ter-causa, a melancolia é a causa, posta que está como idéia fantasmagoricamente elevada sobre o sujeito, fenômeno, estigma que é, ao mesmo tempo, verdade irredutível e ancestral. (...) Essa atenção ao que está fora é o que está comprometido no melancólico que, como o paranóico, vê o estranho e o alheio como ameaça. Mas diferentemente do paranóico, o melancólico tem a si mesmo como estranho de si, sabendo estrangeiro em si mesmo na duplicidade que o anima.” Os lugares intocáveis de Reverón, nesse sentido, são mais lugares do corpo do que locais do mundo. Já que nos falam de um sintoma orgânico, seja ele próprio da visão ou do humor. A paisagem é aqui estranhamento e distância, justamente por ser reflexo desse corpo que se vê como alheio de si mesmo. É relevante também ressaltar o fato de a melancolia ter assumido um caráter essencialmente poético somente após o Renascimento, já que até então a melancolia vinha sendo significada através do discurso médico e científico. Passa então a ser considerada um aspecto transitório e não constitutivo. Era possível “estar” melancólico, bem como aplicar o predicado melancólico a objetos externos, tais como espaços melancólicos, melodias melancólicas e paisagens melancólicas. 6 Márcia Tiburi. Filosofia Cinza: A melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto Alegre: Editora Escritos, 2004 , p. 55 Armando Reverón (1889 - 1954) Luz atrás de minha ramada (1926) Óleo sobre tela - 48 x 64 cm Do corpo à paisagem, a melancolia se distende nessas cenas de ausência, nas quais vazio se abre como cenário e a luz se dá como ocupação. São imagens da suspensão, da inconclusão, da espera. Feitas de um tempo estacionando, momentosentre. Falam-nos de caminhos-desvios, espaços da transitoriedade, desprovidas do apontamento de destino qualquer. As figuras elevam-se do chão, flutuam e quase imergem. Não são retratadas em sua potência, mas na plenitude de seu descanso, em seu fracasso. Dialogam com a imensidão e o infinito, reafirmam o espaço, convivendo com a deriva. São figuras da inquietação silenciosa, tensão irresoluta entre o permanecer e o partir. Em relação a esse luto da imagem, esse instante entre perda e apreensão, podemos nos reportar a Agamben7 quando escreve que a melancolia apropria-se do objeto “só na medida em que afirma a sua perda”. Diz ainda que “Cobrindo o seu objeto com os enfeites fúnebres do luto, a melancolia lhes confere a fantasmagórica realidade do perdido; mas enquanto ela é o luto por um objeto inapreensível, a sua estratégia abre um espaço à existência do irreal e delimita um cenário em que o eu pode entrar em relação com ele, tentando uma apropriação que posse alguma poderia igualar e perda alguma poderia ameaçar.” 7 Giorgio Agamben. Estâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 45 Armando Reverón (1889 - 1954) Coqueiros (1931) Óleo sobre tela - 59 x 77 cm As imagens de Reverón, nesse sentido, são como o fundo opaco do olhar do corpo melancólico que encontra na paisagem a fantasmagoria de sua perda essencial. Perda sem objeto, sem matéria, feita de reflexo e suspensão. Esses contatos entre retina e superfície, corpo e paisagem, são contatos impossíveis, feitos apenas da certeza de que tudo que se ergue está a caminho do naufrágio e tudo aquilo que podemos atingir está sempre se aproximando de sua morte e seu sumiço. REFERÊNCIAS AGAMBEM, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação do movimento. Martins Fontes, 1990 BAUDELAIRE, Charles. Curiosités esthétiques. Ed. Calmann-Lévy BOCKEMÜHL, Michel. Turner: O mundo da luz e da cor. Taschen GOETHE, Johann Wolfgang von, Teoria das Cores, HÁ, vol. 13 GOMBRICH, E.H., A História da Arte. Editora Guanabara, 1988 LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rocco, 1998 BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. e apres.: Sergio Paulo Rouanet. São Paulo:Brasiliense, 1984. KONDER, Leandro,. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. TIBURI, Márcia. Filosofia Cinza: A melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto Alegre: Editora Escritos, 2004 INFÂNCIA E MELANCOLIA, UMA ABORDAGEM EM TRÊS ESTAÇÕES Academicismo e Modernismo na América Latina. [1] Rosângela Cherem[2] e Letícia Weiduschadt[3] Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo[4] RESUMO: Através de rostos infantis que remetem a sentimentos de melancolia, vazio e solidão, os pintores Isaías Cabezón Acevedo, Fídolo Alfonso González, Ramon Cornet Gomez e Raul Soldi problematizam a infância menos pela abordagem biográfica ou pelo retrato e mais como uma experiência recôndita e distante que se assemelha a uma doença da alma, da qual cada um se aproxima de modo muito singular, tangenciando uma espécie de cena muito intima que guarda as sensibilidades e percepções do artista em sua relação com a sua própria criação. PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; Teoria e Crítica de Arte; Arte LatinoAmericana; História da Arte. Na mitologia grega, Perséfone, filha de Zeus e Demeter, era uma bela jovem que vivia num lugar tranqüilo e agradável. Certo dia estava a colher flores num bosque quando, vindo à cavalo, Hades irrompeu do chão e enlaçou seu braço subitamente ao redor da cintura da jovem puxado-a para o interior de sua carruagem. Estava decidido a levar Perséfone para torná-la a nova rainha do sombrio mundo dos mortos. Assim, com o desaparecimento da filha, a mãe deu início a uma busca incansável e desesperada, embora ninguém soubesse seu paradeiro e os que soubessem não quisessem enfrentar a ira do poderoso raptor. Zeus sabia onde estava sua filha, entretanto, não queria enfrentar seu irmão, pois caso obrigasse o deus [1] Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina. Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC. [3] Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC. [4] Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis, bolsista voluntária, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas. [2] do mundo dos mortos a devolver sua filha à mãe, poderia desencadear uma fúria incontrolável. Com o passar dos dias e meses os cereais começaram a faltar, o povo começou a ter fome e o mundo em que viviam passou rapidamente a um inverno amargo e rigoroso. Com esta decadência no mundo em que viviam, Zeus decide que Perséfone deveria regressar ou toda a população estava condenada. Ocorre que ela só poderia regressar caso não tivesse comido nada no mundo dos mortos, mas isto era impossível já que passara meses neste mundo obscuro, tendo comido quatro grãos de romãs. O deus do Olimpo ficou numa posição difícil, pois se a filha não voltasse o mundo pereceria. Decidiu-se então que ela retornaria aos braços da mãe, mas teria que regressar todos os anos pela mesma quantidade de meses tal qual o número de grãos de romãs que comera. Assim, o mundo tinha suas variações climáticas de acordo com a presença de Perséfone junto à mãe (quente e úmido), junto ao ambiente terreno (morno, insosso e seco) ou junto ao reino de Hades (gélido e chuvoso). Considerando estas variações atmosféricas como complexidades emocionais familiares ao artista e cujas sensações foram trabalhadas através dos temas, cores, linhas e formas, o presente artigo aborda algumas pinturas latino-americanas onde os retratos infantis comparecem não apenas como tema, mas também como sensibilidades e percepções relacionadas ao extravio e à solidão, à distância e ao isolamento na relação do artista com o mundo. Assim sobrepõem-se duas situações: a de Perséfone, cujo destino não lhe pertence, sendo seu tempo decidido alhures e a da criança, cujas escolhas e desejos constantemente lhe escapam pelo turbilhão das decisões do mundo adulto. 1. Quando o mundo se faz quente e úmido. Consideremos as cores quentes e o contraste com os olhos e lábios chorosos de uma criança como ecos que se reproduzem e vibram no vácuo. Observemos o olhar distante e esvaziado de Perséfone junto à mãe satisfeita da qual a filha logo se afastará novamente para seguir no destino cíclico e sem fim contra o qual nada pode fazer, direcionado a um nada, para um lugar que apenas ressoa e não alcançamos. No rosto sombrio que guarda um inalcançável desconsolo, nesse esquecimento de si mesmo, no contraste com os tons rosáceos do plano de fundo com o vermelho da blusa de um menino, Isaías Cabezón Acevedo (1891 – 1963), artista Figura 1 chileno retrata “Niño de la naranja”. Muitas das obras do pintor se destacam pelo colorido e relações tonais que utiliza, essa paleta utilizada pelo artista foi construída paralelamente com o constante aperfeiçoamento de sua técnica, principalmente quando permanece na Europa entre 1929 e 1936. Na tela, o descolar da face do plano de fundo e de seu próprio corpo faz com que o deslocamento de suas feições se encontre perpendicularmente na pureza de uma infância que está para além de felicidade de brincadeiras e hábitos infantis. Essa melancolia presente na obra foi uma temática presente nos grupos que participou. “Generación del '13” e “Montparnasse”, foram responsáveis pelo anti-academicismo e anti-naturalismo que o artista passa a pontuar em suas telas em temáticas melancólicas, de intrigas, amor e morte. Esses grupos foram fundamentais para o desenvolvimento do pós-impressionismo presente em suas obras. Esta infância a qual se retorna, não em caráter de representar uma criança chilena melancólica, nem a infância do artista que a retrata, mas sim, certa sensação sobre esta idade infantil, familiar e distante, perdida e por vezes lembrada, está, portanto, para além de possuir uma fruta em sua mão. O menino se interioriza em seu eu, levando o espectador a este mesmo lugar, num clima quente úmido de sentimentos tediosos que se misturam com a l’acedia: a ausência de vontade. Este sentimento que se aproxima ao enlutado, mas não se equivale. Longe de um não saber para aonde ir, mas um não querer andar até ali nem conhecer os cantos mais distantes de um armário de uma despensa cheia de guloseimas. É sim, um não querer partir, é gozar de uma amargura interior, é sentir até as raízes de todo campo sensorial humano a dor da perda, o tédio de uma vida não vivida num estupor. Neste estado letárgico de uma bílis negra, conceito atribuído na Idade Média e que mais tarde derivou-se para melancolia, patologicamente estava ligado ao baço e ao sangue grosso e seco que fluía deste órgão quando um ser que amava a aflição expelia no momento antecedente a sua morte uma bílis negra, um negrume. É nesta melancolia que se pode observar o deslocamento desta infância retratada, uma infância que normalmente não olhamos, mas que um dia sentimos e ao qual podemos retornar através dos olhos destas crianças, num sentimento de voltar para si mesmo como reconhecimento de algo que ficou retido em si próprio sobre um não pertencimento ao corpo cuja posse lhe escapa. O cineasta iraquiano Abas Kiarostani (1940 -) , em 1987, produziu o filme “Onde é a casa do meu melhor amigo?”, onde Ahmad é um jovem garoto que estuda numa escola para meninos cujo regime rígido do professor desvela-se na obrigatoriedade de fazer a lição no caderno e não no livro ou em qualquer outro lugar. Seu amigo é ameaçado pelo mestre de ser expulso do colégio caso não faça as tarefas no lugar apropriado, já que era a terceira vez que o professor solicitava isto a ele. Retornando da aula Ahmad se depara com o caderno do seu amigo, o qual trouxe para casa por engano. Espantado e amedrontado com a possibilidade de seu amigo ser expulso, o menino solicita a mãe para poder ir devolvê-lo ao seu amigo. Esta, desgostosa, nega e diz para o filho ir fazer a sua lição e brincar. O menino contra a vontade da mãe sai em busca da casa do seu amigo, ao qual a única referência que obtém é que fica na vila vizinha. Passado o dia todo procurando, já tarde da noite ele acaba voltando pra casa e então resolve fazer a lição para o seu amigo. Kiarostani reproduz o infortúnio de uma busca incansável, um correr atrás do que não é alcançado na constante busca tediosa e ansiosa de Ahman e é nas crianças que o cineasta vê uma resposta à difícil política do país. Vítimas do autoritarismo de uma sociedade repressora ele observa o otimismo e certa sagacidade na busca por uma almejada justiça, ou amenização de sua difícil situação social no Irã. Nas feições contorcidas e amarguradas da personagem ultrapassadas pelos tons terrosos do clima úmido do filme podemos também nos remeter a figura de “El chino”, pintura do artista colombiano Fídolo Alfonso González (1883 – 1941). A infância deste artista esteve marcada pela morte de seu pai e pela luta que sua mãe enfrenta pela sobrevivência da família. É impossível ignorar a tristeza e as marcas profundas que esse trauma representou na vida do pintor. “El chino” é uma das obras que salienta a dor da perda, não sendo uma autorepresentação de si em sua infância, mas está atrelado a um retorno ao mundo infantil pelo artista demarcado por traços Figura 2 dolorosos. Tanto a personagem do filme, como o garoto retratado na pintura se unem numa alienação com o próprio corpo. Numa drenagem onde se projetam para um mundo exterior, num amortecimento de seus próprios afetos, num recair-se sobre si mesmo, virando-se do avesso em esquecimento. Na pintura de González, um menino caminha vagarosamente sem destino segurando seu chapéu, da mesma forma no filme de Kiarostani o garoto caminhava com rumo incerto imerso em si, neste mundo exterior, que é o mesmo espaço aonde o enlutado mergulha em meditação, entretanto uma diferença pontua-se: a melancolia dos enlutados difere-se da melancolia observada nas telas. Walter Benjamin (1892 – 1940) afirma que “O luto é um estado de espírito em que o sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse mundo uma satisfação enigmática” 1. É um sentimento que se debruça sobre esse mundo melancólico, vazio, interiorizado, paralelo de alguém que não está mais ali. O enlutado passou pelo trauma da perda e todo o processo que se desencadeia após esta perda manifesta-se sintomaticamente através da melancolia. De forma contrária, as crianças apresentadas, em sua maioria, manifestam uma melancolia desprovida de tal trauma, de tal perda irremediável. O cerne do luto não está atrelado a qualquer afetividade do artista, nem a do expectador, mas a um sentimento que se dissocia desse sujeito que é o retratado, por algo interno a ele que é o objeto, ou seja, o que ou quem ele perdeu. E nesse esvaziamento do sujeito, nesta projeção para um mundo exterior que ambos, crianças e enlutados se unem, aproximando-se nesse mundo vazio, exterior, fora do próprio ser. É na mesma medida em que se exterioriza do ser ele se introjeta e penetra dentro deste ser, pois este mundo exterior está dentro do próprio ser humano, portanto interiorizado. Em outras palavras, se considerarmos as sensações guardadas na obra de arte como algo familiar a Perséfone em sua temporada junto a Deméter, então será possível compreender que coube a Isaías Cabezón e a Fídolo Gonzalez problematizar nestas duas pinturas aqui tratadas a infância não como retrato, mas como cena onde o artista estranha seu próprio corpo, desterritorializando-se de si, vendo-se não como senhor de seu destino, mas como estrangeiro dês-possuído de si. Assim, embora Gonzalez tenha marcas desde sua infância de uma perda irremediável, ele não a retrata nesta tela, mas sim, estabelece um jogo onde este artista enlutado volta-se para si mesmo e para o cerne que é a própria perda manifestada na melancolia que se une à tela de Cabezón, ambos assim, se projetam para si e unem-se no vazio do esquecimento de si próprios. 2. Quando o mundo se faz gélido e chuvoso Agora tentemos imaginar o ambiente gélido do submundo das trevas ao qual Perséfone esteve presa. Neste clima rigoroso a frieza e tristeza que a jovem teve que enfrentar se aproxima da melancolia como uma doença da alma, onde ela não via, nem ouvia o mundo ao seu redor. O sentimento solitário que esteve presente durante todo o tempo em que permaneceu presa, resultando num próprio esquecimento de si. Envolta por tons terrosos e sobre chão batido, a menina da tela “La Urpila” fica presa em si da mesma forma que Perséfone, numa doença da alma. A obra pintada pelo artista pioneiro da pintura moderna na 1 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. 162. Argentina, Ramón Cornet Gomez (1868 – 1964), demonstra o isolamento para com o mundo e é responsável pela escolha de como estará daqui a um segundo. Este mesmo esquecer é também apontado por Luigi Pirandello (1867 – 1936), literato italiano no livro “Um, nenhum e cem mil” através do personagem Moscarda. Defendendo que a solidão nunca está presente conosco, mas ela só é possível na presença de um outro alguém, num estar só sem si mesmo e num não poder-se ver vivendo, este personagem reflete um não se ver em si, mas sim, ser visto por si, deste modo também Perséfone se vê de fora quando presa num mundo gélido e chuvoso junto a Hades, não olha para si através de um espelho, pois assim como Moscarda, ambos Figura 3 acreditam que há um abismo entre eles e todos os seres ao seu redor, já que ele nunca são o mesma pessoa para esta ou para aquela pessoa. Tanto a menina apresentada na tela, como Moscarda nunca eram o que eram pra si próprios e assim somos nós que definimos o nosso perfil de amanhã. “Há um minuto atrás você era outro não só um, mas cem outros, cem mil outros. Hoje vocês se fixam de um modo e amanhã de outro” 2. Neste jogo de decisões esta jovem menina que pode ser vista como uma só, nenhuma e cem mil. Nesta equivalência, assim como Ramón Gomes volta a sua infância para pintar a tela, Benjamin no texto “A infância em Berlim” escreve um conto intitulado “A despensa” onde através de uma estreita fresta do armário da despensa, uma mão penetra silenciosamente e começa a apalpar as delícias ali presentes, desde frutas cristalizadas, até amêndoas e passas, entrevistando-as uma a uma sentindo o gosto na boca de tudo o que tocavam, assim também em outro conto “Armários” ele revela a sensação de apalpar até os cantos mais recônditos de uma gaveta até encontrar, meias e outras peças macias para sentir o calor da lã. Gozando destes sentidos tácteis e olfativos das crianças a que Benjamin se refere acaba levando a um mundo de imaginação e de conforto, de forma semelhante Gomes o faz sobre a tela, retornando aos sentidos infantis apurados ele procura explorar através das pinceladas sobre a tela, deparamo-nos para além de qualquer semelhança biográfica, mas sim, nos aproxima desse desvio rebatido sobre as crianças com nossa melancolia. A tela está para além de uma representação melancólica ou biográfica, estando, portanto, no abismo do 2 PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 56. encontro entre todas as personagens das obras aqui citadas, bem como dos artistas e dos espectadores, num jogo de equivalência onde todos são um, nenhum e cem mil. Este estar sem corpo que é problematizado na tela de Gomes é também a sensação que da mesma maneira aflige e perturba o filósofo Sartre (1905 – 1980), que no livro “A náusea” pontua o salivar como um voltar a si, “ela desliza por minha garganta, me acaricia – e eis que renasce em minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água esbranquiçada – discreta – que roça minha língua” 3. Com esta sensação acaba afirmando que a língua, garganta e saliva é ele próprio. Através do salivar que o autor sente-se volta a si e sai do esquecimento, da náusea, da sensação de não possuir sangue, estar sem corpo, a qual lhe afligia e lhe perturbava. Esta sensação de relembrar que é um ser humano que vive, porém, se dá ao contato com a tela citada, pois imergindo nos olhos dessa criança, sobretudo dos olhos que se perdem como algo mole, seco, bem como escamas de peixe, entramos em sua angústia, sua solidão e ao nos depararmos com a imagem como um todo feito de tecido, tinta, volume, luz e sombra nos projetamos a um desvio, na qual saímos desse abismo entre representação e representado. Nessa curva, Pirandello descreve uma análise da imagem de Moscarda contra o espelho na tentativa de que seus olhos não tocassem seu reflexo: “Eu me sentia aqueles olhos. Via-os na minha frente, mas os sentia também aqui, em mim, sentia-os meus – aqueles olhos que já não estavam fixados em mim, mas em si mesmos. E, se quase não conseguia mais senti-los em mim, não mais os via”. 4 O personagem desvela o esquecimento de si e o modo com que via seu olho nele mesmo, porém com o decorrer do tempo passou a não sentir mais seus olhos em si e nessa passagem de voltar a sentir seu corpo, quando nós, ao olharmos “La urpila” incansavelmente, nos fixamos em sua melancolia, nesta doença da alma que Gomes explorou em si mesmo, nos prendemos então a ela, e, entretanto, com o decorrer do tempo deparamos-nos em sua tinta, cor, volume e sombra: sendo, portanto uma tela. Esta passagem do interior para o exterior da tela, rebate com a volta de Perséfone para junto de Demeter e seu sofrimento e angústia então cessam, numa melancolia que acaba se diluindo, num processo de imersão e consecutiva emersão deste sentimento presente na tela e em nosso próprio corpo. 3 4 SARTRE. Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 126-127. PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 36. 3. Quando o mundo se faz morno, insonso e seco. Com o retorno de Perséfone à terra para junto de sua mãe, o mundo volta ao estado de florescência e fertilidade. Num jardim de clima ameno e morno onde os sujeitos voltaram a viver em harmonia nesta idade primaveril, neste mesmo acalanto do quintal de sua casa encontra-se “Nina Campesina”, menina pintada pelo colombiano Fídolo Alfonso Gonzáles (1883 – 1941) onde ela permanece reservada da presença de pessoas e imerge em suas próprias brincadeiras solitárias. Semelhante solidão infantil foi discutida por Freud (1856 – 1939) no texto “Além do princípio do prazer” onde ele aponta uma criança de dezoito meses que sozinha num canto da sala, também longe de sua mãe e da proximidade de qualquer pessoa, ela penetrava nos objetos que estavam ao seu redor da mesma forma que Gonzáles apresenta a criança na pintura observada. Sempre agarrando estes objetos e os atirando para longe, dentre estes brinquedos havia um carretel de madeira com linha preso a ele. Da mesma forma o agarrava e o atirava para longe, simultaneamente resmungava Figura 4 expressões a qual sua mãe equiparou com a palavra “fort” de origem alemã que representava o “ir embora”, já que o carretel fugia de seu campo de visão e quando o puxava para seu encontro, no momento em que o via, saudava-o com um “da”, ou seja: “ali”. Esses brinquedos fazem com que o desejo desses indivíduos se pontue. É no lançar para longe que tudo se contrai em desaparecimento, em sístole e em seu reaparecimento e repouso, a diástole, ocorre o retorno. É na verbalização deste desaparecer e re-aparecer que ocorre a simbolização deste jogo de “fort-da”. Entre o “fort”, o lançar do objeto e perdê-lo de seu campo de vista e o “da”, reencontro com este objeto, é que se encontra a pintura de Gonzáles. Neste entre, neste quase, no fio que se desenrola de maneira sutil sendo o elo de um movimento num ritmo anadiômeno de um ir e vir, no fluir e refluir deste objeto presente com esta criança que se interioriza em si mesma é que se encontra também “Sarita”, menina apresentada na tela de Raul Soldi (1905-1994) aonde os traçados marcantes não impedem que as oposições cromáticas deixem de dialogar com o conjunto de toda a tela. Nas telas, ambas as meninas olham para um nada, para um lugar além e independente da sua presença, e nesse mergulho está presente o que as duas seguram com as mãos: bola e arco. Estas são então esse quase, esse objeto que produz este ritmo anadiômeno e nesta perda, no momento que o carretel desaparece do campo de visão da criança, algo resta: uma ausência, uma perda interior destas crianças, que é semelhante a uma construção abandonada, onde nesta ruína só restam, portanto, lembranças ao qual mergulhamos nas imagens que escapam como fogos de artifício. Nesta imersão melancólica para com os objetos, as telas problematizam para além de um desvelar de uma simples perda, mas a destrincham para com algo ou também de tudo, inclusive de nós mesmos. Assim como somos olhados pelo trauma destas crianças e estamos ameaçados a perder tudo, o personagem Werther do escritor Goethe, também vive neste limiar encontrando-se imerso na sua solidão causada por um amor não correspondido, fato este que o leva a cometer suicídio e o tédio que pairava a vida deste personagem refletia-se nas cartas que escrevia com estupor. Neste limítrofe de estar fora de si que as telas evidenciam, Figura 5 acabou-se refletindo na solidão que Goethe descreve com romantismo. Gozando muitas vezes desta sua vida paralela estando num certo limite entre sanidade e loucura, podemos equipar este sentimento com a náusea da qual nos apresenta Sartre numa ruminação dolorosa que alimentava. Afirmando que não conseguia parar de pensar reivindicando uma perturbação contínua, pois “se pelo menos pudesse parar de pensar, já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda do que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito. Será que isso não termina nunca?”. 5 Assim, num esquecimento de si mesmo é que se encontram “Sarita”, uma jovem menina que em contraposição com as outras crianças que se encontram no plano de fundo, ela pára de brincar, e assim estática em meio aos verdes pontuais e sutis da tela, ela se aproxima do personagem Werther, e da infortúnia náusea de Sartre. “Sarita” está no ritmo anadiômeno do fluir e refluir, prestes a lançar a qualquer momento seu arco para um além na qual a gravidade se assemelhará ao fio do carretel da criança descrita por Freud. No esquecimento de si mesmo é que Soldi se retém e se desenvolve numa operação até a um anacronismo e assim: Torna a operação mesma de um desejo, isto é, um repor em jogo perpétuo, como o Fort-Da podia oferecer a repetição rítmica de um “ponto zero do desejo”, e podia de certo modo fixar o infixável: ou seja, um laço de abandono que se torna jogo, que se torna uma alegria de ébano – que se torna obra. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 115). 5 SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 127. A melancolia e todo o sentimento responsável pela introjeção dentro de seus próprios pensamentos, este abandono de si mesmo pode então se assemelhar ao momento da própria criação artística. E assim, na solidão de uma experiência exterior, no gozo de desfrutar desta doença da alma que o artista cria para além de uma representação. As imagens pictóricas aqui apresentadas parecem situar-se para além da representação da infância embora reivindiquem este momento tão sutil onde se projetam para além de seu corpo provocando um abismo entre o mundo terreno, morno, insosso e seco em que vivem os mortais e o mundo da criação, o qual de tão particular e próximo a si mesmo está tão distante e fora de si, exterior ao próprio corpo do pintor. Talvez porque a distância da criança para o mundo dos adultos seja parecida com a do artista para o mundo dos simples mortais? REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. 2 BENJAMIN, Walter; BARBOSA, Jose Carlos Martins. Rua de mão única. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1995. 3 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia – História de deuses e Heróis. 9 ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000. 4 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998. FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. ESB., vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1946. 5 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Werther. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1971. 6 PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001. 7 PRIGENT, Hélène. Melancolie – Lês métamorphoses de la dépression. Paris : Gallimard, 2005. 8 SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 127. REFERÊNCIA DAS IMAGENS 1 Isaías Cabezón Acevedo. Nino de la naranja, s/ data. Óleo s/ tela. Museu Nacional de Bellas Artes do Chile. Disponível em: <http://www.artistasplasticoschilenos.cl/artistas.nsf/560c3d14905ab7eb04256bfa006b70a1/31 aacd45191de9a2042569a90056f672?> Acesso em 21/03/2008. 2 Fídolo Alfonso González. El Chino, s/ data. Óleo s/ tela, 35x25 cm. Disponível em: <http://www.colarte.arts.co/colarte/conspintores.asp?idartista=490> Acesso em 24/04/2008. 3 Ramon Cornet Gomez. ‘La Urpila’, 1946. Óleo s/ tela, 130 x 89 cm. Colección Museo Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires. Disponível em: <http://www.fundacionkonex.org/ingles/bienales_del_arte/cornet_ramon_gomez.asp> Acesso em 17/05/2008. 4 Fídolo Alfonso González. Nina Campesina, 1917. Óleo sobre cartão, 23 x 17.5 cm. Disponível em: < http://www.museonacional.gov.co/body_nina_campesina.html> Acesso em 24/04/2008. 5 Raul Soldi. Sarita, 1947. Óleo s/ tela, 70 x 123 cm. Disponível em: <http://www.allsa.com/ArtistaRaulSoldi.htm> Acesso em: 2/02/2008. ÀS VOLTAS COM O VAZIO – ORNAMENTO COMO PREENCHIMENTO J.W.Kielwagen1 Figura 1. Félix Parra (1845 – 1919) Frei Bartolomeu Das Casas (1875) Em frente a um templo asteca, Frei Bartolomeu das Casas cruza os braços sobre o peito, enquanto uma mulher agarra suas pernas e chora, talvez, pelo ameríndio que jaz 1 Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais CEART – UDESC, linha de Teoria e História da Arte, sob orientação de Rosângela Miranda Cherem. morto ao lado (Figura 1). Não parece ser o caso de uma morte natural; alguma ação se passou ali, e por toda parte, vê-se vestígios de violência: objetos espalhados pelo chão, um desarranjo floral, uma coluna castrada e, é claro, sangue. O próprio templo está em ruínas. Por certo, essa imagem conta uma estória – pode ser a de Bartolomeu ou a da humilhação do ameríndio. A obra contém uma narrativa, e é o drama humano que ali se desenrola, em cores e emoções. Abaixo dessa primeira camada, porém, o drama toma outras formas, e mesmo que ainda seja humano, nada tem a ver com Bartolomeu ou com a conquista das Américas. Voltemos o olhar pra o segundo plano, para o cenário onde se desenrola a ação: a superfície do templo está coberta por padrões ornamentais geométricos, esculpidos na própria pedra. Na parede, séries de espirais justapostas - num esquema semelhante ao do ornamento egípcio – e nos degraus da escada, combinações aparentemente aleatórias de motivos geométricos. Um motivo recorrente é a espiral quadrada e achatada, usada nos degraus e sobre a porta que serve a Bartolomeu de moldura. Ora, um rápido olhar sobre a arte asteca revela que tais formas e padrões não constam no repertório dessa cultura; que o ornamento asteca é, ao contrário, predominantemente figurativo De onde, então, o artista2 tirou tais formas, e porquê cobriu com elas as paredes do templo? Difícil dizer; é possível que ele tenha se baseado em um repertório clássico, como o ornamento espiral utilizado no Egito e Grécia antigos. Independente de onde tenha tirado sua inspiração, o fato é que para o artista, mais importante que conferir à obra um certo valor documental, reproduzindo fielmente os padrões ornamentais criados pelos astecas, é preencher – oferecendo ao olhar uma superfície repleta de formas. Como pensar esse imperativo da forma ornamental que, de tão pungente, sobrepõe-se à dimensão narrativa da imagem? O anseio por preencher é algo com que a maior parte das pessoas consegue se identificar sem grandes dificuldades. Imagine-se por um momento imerso na austeridade de um monastério, onde quase não há mobília e as paredes estão todas nuas, com exceção de um ou outro crucifixo simples de madeira. Não há aconchego nesse lugar; quem gostaria viver numa casa onde todos os quartos são vazios, e todas as paredes, nuas? Talvez uns 2 Felix Parra (1845-1919), natural da cidade de Morelia, México, pintou Fray Bartolomé de las Casas quando ainda estudava sob a tutela de Santiago Rebull. Viajou à Europa em janeiro de 1878, onde permaneceu durante cinco anos. Quando regressou ao México, tornou-se professor na Academia de San Carlos. Entre seus alunos, figura o célebre Diego Rivera. Suas principais obras são Galileo, El Cazador, Fray Bartolomé de las Casas e Una Escena de la Conquista. poucos indivíduos de temperamento peculiar, mas para a maior parte das pessoas, urge mobiliar, decorar, pendurar cortinas e quadros - cobrir os vãos. Diante de uma superfície vazia somos por vezes compelidos a preenchê-la com formas, cores, signos, padrões ou fotografias - enfim, qualquer coisa. O vazio só se deixa ver quando se procura, conscientemente, tornar presente uma ausência - como em prisões e monastérios. No conforto de nossos espaços cotidianos – e na arte em que o olhar e o pensamento buscam uma dispersão relaxante - preferimos cobri-lo com formas e cores; preferimos a ausência ausente, mesmo. Superfícies vazias remetem a um vazio interior, com as dimensões e profundidade de um abismo – abismos superficiais que, quando olhados, parecem devolver o olhar: esse vazio quer preencher-nos,e de fato o faz. Que é essa experiência? Imagine-se agora diante do a profusão ornamental de um retábulo barroco – como, por exemplo, o da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Recife. Tais superfícies e ambientes, quando repletos de formas e cores, convidam o olhar à uma dispersão relaxante. O ornamento então é como um banquete que devoramos com os olhos e, se isso fosse possível, nos engordaria. Não se trata apenas de um desejo de gratificar o olhar; exigimos também gratificação contínua para os outros sentidos: sabores para a língua, odores para as narinas, música para os ouvidos e carícias para a pele. Na despudorada extração de prazer dos sentidos que promovemos cotidianamente parece haver um elemento de oportunismo sensorial, e a sinestesia - assalto simultâneo aos sentidos - quer nada menos que preencher certos vazios sensoriais, a saber: o branco, o silêncio, o inodoro, o insípido e o insensível. Há no vazio algo de incômodo que, quando examinado de perto, parece devolver o olhar. Uma superfície repleta de ornamento pretende ocultar seu vazio, mas não obstante termina remetendo novamente a ele. Pois mesmo sob o mais denso ornamento vegetal, lá estará o vazio à espreita – é como se, quanto mais denso o ornamento, e mais obsessivo seu uso como preenchimento, mais pungente fosse o desejo – ou necessidade – de ocultar um vazio que não nos interessa ver. Trata-se naturalmente de uma tarefa vã. O vazio é inelutável: papéis de parede desbotam e mesmo os baixo-relevos em pedra, encontrados em templos antigos - como os egípcios e astecas – desaparecem ao longo dos séculos, corroídos pela areia do tempo que não cessa de correr - revelando enfim paredes que sempre foram nuas. A expressão latina horror vacui, significando literalmente horror ao vácuo, aparece pela primeira vez nos escritos de Aristóteles - Physicae Auscultationes - referindo-se ao que ele acreditava ser um fenômeno físico, em que os espaços vazios estariam sempre tentando sugar gazes ou líquidos para dentro si de modo a preencher-se. Tal teoria foi aceita por muito tempo no campo da termodinâmica - chegando a ser defendida por Galileu - até que finalmente caiu em descrédito, em meados de 1650. Mas, apesar de descartado pelas ciências naturais, para a filosofia e as artes a idéia de horror vacui continua significativa, apontando para uma tendência – ou anseio, ou compulsão - a preencher espaços vazios onde quer que eles se apresentem. Das ferramentas cotidianas à arquitetura monumental, passando pelas artes visuais, urge preencher. O horror vacui é tido por Alois Riegl3 como a inspiração primeira das artes, algo que teria compelido os homens à ornamentação desde tempos imemoriais. No capítulo inicial de Stilfragen, ao tratar da gênese do ornamento geométrico, Riegl deita as bases para o conceito de kunstwollen – termo intraduzível para o português, significando algo próximo a “aquilo que anseia por arte”. Esse anseio seria uma resposta ao horror vacui, e ambos remontariam à pré-história da arte: muito antes da obsessão fitomórfica do art nouveau, do arabesco oriental ou mesmo do lótus egípcio, tais princípios já se aplicam ao ornamento puramente geométrico dos primeiros agrupamentos humanos. Diferente dos demais historiadores da arte de sua época - que em sua maioria consideravam o ornamento geométrico como mera imitação de padrões que surgem acidentalmente, a partir de técnicas como a costura ou a construção de cercas – Riegl acreditava que tais formas podem nascer diretamente da imaginação humana. De acordo com a teoria técnico-materialista do ornamento – que Riegl tenta negar - ao se costurar um pedaço de pele em outro, a linha forma naturalmente um zigue-zague, e em algum momento os antigos teriam se interessado pelas propriedades rítmicas desse padrão, passando a reproduzi-lo em pintura e entalhes. O mesmo teria se passado em relação a outras técnicas, como a construção de cercas, o trançado ou a cestaria. De acordo com essa teoria os padrões geométricos resultariam de uma mimese semelhante à que teria motivado as primeiras representações animais e vegetais nas paredes das cavernas. Riegl rejeita essa hipótese e, em seu lugar, sugere que o 3 Aloïs Riegl (1850-1905), historiador da arte vienense, que em 1893 publicou Stilfragen - uma extensa pesquisa sobre a difusão de padrões ornamentais da pré-história à arte islâmica medieval, passando por Egito, Mesopotâmia, Fenícia, Pérsia, e Grécia. ornamento geométrico pode ter surgido naturalmente, não como imitação ou abstração de técnicas, mas como um impulso legitimamente humano, produto da mais pura imaginação. O argumento é construído a partir da pré-história da arte, usando como exemplos as ferramentas e artefatos criados por homens das cavernas, bem como os de culturas primitivas contemporâneas – contemporâneas dele, lembrando que Stilfragen foi publicado em pela primeira vez em 1893. Dentre os artefatos pré-históricos examinados por Riegl, destacam-se aqueles encontrados, a partir de 1863, nas cavernas de Laugerie-Basse, ao sul da França: objetos feitos de ossos, em sua maioria cobertos de entalhes ou esculpidos em forma de animais. Algumas centenas de peças foram encontradas naquelas cavernas desde então, e a idade média das peças é avaliada entre 10.000 e 15.000 anos. Entre elas, constam alguns dos mais antigos exemplos de ornamentação conhecidos; além das bem conhecidas representações de animais, os antigos também cobriam suas ferramentas com padrões geométricos. Algumas ferramentas parecem não ter nenhuma função além de servir como suporte para o ornamento, cujos temas variam entre animais, folhas e padrões puramente geométricos. Riegl destaca uma adaga de osso, com o punhal esculpido em forma de rena - como tal forma no cabo de uma ferramenta não a torna exatamente mais fácil de manusear, parece que, para quem quer que tenha vivido naquelas cavernas, a forma nem sempre estava subjugada à função - que a funcionalidade já se encontrava ameaçada por um kitsch préhistórico. A não se que se considere um possível uso religioso para tais objetos – hipótese que não pode ser descartada de imediato, mas que ao mesmo tempo, dificilmente poderá ser provada – constata-se que a prioridade era dar forma para produzir visualidade. Ora, se o ornamento é criado para preencher o vazio, que dizer do vazio que é criado especialmente para conter o ornamento? O meio tornou-se seu próprio fim. Os habitantes das cavernas de Laugerie-Basse não dispunham de um repertório muito grande de técnicas de onde pudessem copiar padrões. Sequer dominavam o fogo: após as caçadas, desmembravam os animais, sugavam o tutano dos ossos e deixavam a carne apodrecer. A julgar pela grande quantidade de agulhas de osso encontradas no local, deduz-se que eram capazes de costurar peles de animais umas nas outras, e é tentador. Figura 2 . Antônio Salas Aviles (1784 – 1860) Virgem de Mercedes Óleo sobre tela - 95 x 77 cm considerar o ornamento em zigue-zague como um produto espontâneo da costura. Riegl afasta essa hipótese recorrendo às tribos polinésias contemporênas (dele) que, desconhecendo a mais simples costura, não obstante cobrem seus corpos com tatuagens que são composições geométricas intrincadas, incluindo paralelas, espirais e o próprio ziguezague.4 Padrões semelhantes são encontrados na decoração de canoas Maori. Evocando o ornamento Maori, Riegl quis minimizar ou mesmo excluir a influência de fatores externos na concepção do ornamento, de modo que as mudanças de estilo possam ser explicadas em termos de uma evolução orgânica, como um desenvolvimento relativamente autônomo.5 Em Stilfragen, Riegl paciente e meticulosamente traça uma genealogia do ornamento, da pré-história à arte islâmica medieval, passando por Egito, Assíria, Fenícia, Pérsia, e Grécia. Ao longo da trajetória – que compreende a transformação dos motivos puramente geométricos em padrões fitomórficos - nota-se a recorrência de uma operação que Riegl chama de “postulado de preenchimento dos eixos”: onde quer que duas curvas ou espirais se toquem, forma-se entre elas um vão triangular, que pede um preenchimento adequado - linhas para os maoris, lótus para os egípcios, folhas de acanto para os gregos, e assim por diante. Não se trata de uma operação exclusiva da antiguidade. Em “Virgem de Mercedes” (Figura 2), Maria segura o menino Jesus enquanto recebe, das mãos de dois querubins, uma coroa dourada. Não interessam aqui os ícones religiosos - os discursos que contêm ou narrativas que evocam – mas o que se encontra fora da imagem: a pintura, de formato ovalado - como muitas outras imagens religiosas de sua época – é inserida em um retângulo negro, de modo a criar quatro espaços triangulares nas extremidades. Esses vãos são preenchidos por um mesmo motivo floral: uma rosa no centro com três possíveis margaridas de cada lado, num total de sete flores, e alguma folhagem em volta. Vê-se aqui o mesmo postulado de preenchimento dos eixos que teria levado os egípcios a inserir o lótus nos vãos entre suas espirais. Pode-se perguntar porque o artista6 teria escolhido um motivo tão trivial para emoldurar uma imagem consideravelmente rica em significação, pensada, como a maioria esmagadora da arte religiosa, para evocar sentimentos de devoção nos fiéis. Independente das razões do artista, constata-se novamente a necessidade de preencher o vazio. O preencher, então, é uma operação que ultrapassa contextos históricos e 4 RIEGL, pgs. 26 e 27. PÄCHT, pg.189. 6 mini-bio 5 culturais, estando presente tanto nos ossos esculpidos de Laugerie-Basse quanto nas artes moderna e contemporânea. O horror vacui, então, é atemporal e anacrônico. A filosofia oferece mais de uma via para pensar as questões do vazio. Na psicanálise, é tratado por buraco, falta ou ausência, remetendo – conforme Lacan - à experiência mais importante da vida do sujeito, aquilo que o torna humano: seu encontro com a linguagem. Quando o sujeito entra no campo da representação, que é o da própria linguagem, sua relação com o mundo deixa de ser direta e passa a ser mediada por signos. É a primeira castração - ocasião em que se perde aquela experiência primeira, onde alguém – pois ainda não existe a noção de sujeito - se relaciona diretamente com algo – inominável, já que a linguagem ainda não se encontra disponível. Pensando, como Ferreira Gullar, todas as formas de arte como linguagem - seu exercício ou delírio - encontra-se na relação com a psicanálise um forte indício de que essa falta, de que o horror vacui é um eco, seja de fato a inspiração primeira das artes. Seguindo por uma trilha semelhante, Georges Didi-Huberman propõe a leitura de uma dimensão invisível da arte – certas qualidades perceptíveis ainda que invisíveis ou mesmo totalmente inacessíveis aos sentidos. Em O que vemos, o que nos olha, Huberman reflete sobre o evitamento do vazio7 a partir da ausência tornada presente pela visão de um túmulo, sugerindo um vazio que é uma cisão interna, aberta em nós pelo que nos olha no que vemos - entenda-se “o que vemos” por um objeto ou imagem, e “o que nos olha” como as questões inconscientes que tal coisa evoca, trazendo-as à consciência. Retornando a Lacan, entre o que vemos e o que nos olha interpõe-se a intransponível barreira da linguagem, que cria o vazio ao mesmo tempo em que o preenche. Se o vazio remete, em última instância, à angústia diante da inevitabilidade da morte, seu evitamento constitui uma vitória miserável da linguagem sobre o olhar. Huberman sugere ainda que essa vitória da linguagem pode se dar de duas formas: via tautologia – o que vejo é o que vejo é o que vejo, ad infinitum – ou via crença – onde se procura ultrapassar, através da imaginação, tanto o que vemos quanto o que nos olha, um princípio que abarcaria desde a religiosidade comum à boa-vontade em se considerar, por exemplo, nas narrativas contidas nas artes. A tautologia estaria aquém da cognição, e a crença, além. 7 O que vemos, o que nos olha, capítulos 1 e 2. Pensando o horror vacui como inspiração primeira das artes - toda imagem como mecanismo de evitamento do vazio - pode-se então depreender que a dimensão narrativa das imagens – no caso de Frei Bartolomeu das Casas, a estória que ali está ilustrada, suas implicações históricas, os personagens e seus dramas – evita o vazio pela via da crença, enquanto o ornamento geométrico – sobre as paredes do templo asteca, ao fundo - o faz pela via da tautologia, na medida em que não implica em crença, afirmando-se repetidamente como sendo apenas aquilo que aparenta ser; assim, todo padrão ornamental que repete os mesmos motivos, criando ritmos de efeito hipnótico análogo ao de um mantra pode ser pensado como uma espécie de tautologia do olhar: o que vejo é o que vejo é o que vejo... REFERÊNCIAS DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. SP: Editora 34, 1998. KIELWAGEN, Jefferson W. Kitsch & Design Gráfico. Joinville : edição do autor, 2004. LACAN, Jacques. O seminário, Livro 11, os quatro conceitos da psicanálise. RJ : Zahar, 1998. LACAN, J. O Seminário, Livro 20, Mais, ainda. RJ : Zahar, 1985. PÄCHT, Otto; Art Historians and Art Critics - vi: Alois Riegl. The Burlington Magazine, Vol. 105, No. 722. (Maio, 1963), pp. 188-193. RIEGL, Aloïs; Problems of Style: Foundations for a History of Ornament. Princeton, Princeton UP, 1992. PINTURA E ALEGORIA - OS VÉUS DA IMAGEM Deborah Alice Bruel Gemin1 Alguns conceitos usados para definir estilos, gêneros ou formas de expressão artísticas, em determinados períodos da história da arte acabam perdendo o sentido ou sendo suprimidos em detrimento de novas terminologias. Porém, ocorre que inexoravelmente por ordem da necessidade muitas vezes eles retornam à superfície e voltam a figurar na retórica da arte, fazendo ressurgir questões e possibilitando uma renovação do olhar sobre o passado, ressignificando estes conceitos, dando-lhes outra roupagem e resgatando a antiga dignidade. Verifica-se esta dinâmica especialmente em relação à alegoria na história e teoria das artes. Conceito emprestado da literatura e filosofia, que perdurou por alguns séculos inclusive como gênero plástico de elevada consideração num viés academicista. A alegoria permitiu por séculos que a arte tratasse com extrema beleza estética, de acordo com os padrões acadêmicos, temas religiosos e míticos, salvaguardando assim uma história calcada em grandes acontecimentos heróicos e/ou milagrosos, condizente com espíritos românticos e esperançosos da grandeza e divindade humanas. Esta vocação grandiloquente que a alegoria delega à imagem, de maneira alguma desmerece seu potencial sensível e poético, o enfatiza; e justamente por explorar ao máximo essas características é que foi por vezes sufocada junto com os aspectos espirituais nos momentos históricos onde a razão predominou. Uma das singularidades da alegoria é operar na fenda entre presente e passado, por procedimentos que resgatam antigos discursos visuais para pensar o presente, o procedimento alegórico permite ao artista uma reinterpretação do passado para que este não seja esquecido e para que o presente se relacione historicamente. A faceta anacrônica e a vocação de ressignificação são características da alegoria apontadas por Walter Benjamin quando investigava o potencial alegórico do Drama Barroco Alemão, estudo que resulta 1 Mestra pelo PPGAV - CEART UDESC, linha de Teoria e História da Arte, orientada por Rosângela Miranda Cherem. num discurso também alegórico da modernidade à qual este teórico era contemporâneo. Etimologicamente alegoria é “dizer o outro”, uma representação figurativa que transmite um outro significado em adição ao literal. Ou seja, dizer ou representar uma coisa para significar outra. A partir deste sentido, Sergio Paulo Rouanet na apresentação da Origem do Drama Barroco Alemão, formula uma pergunta central: “...qual a outra coisa significada pela alegoria barroca?” A que ele responde como sendo a “concepção barroca da história”.2 Transportando esta mesma pergunta a outros contextos, pode-se discutir: Qual a outra coisa significada pela alegoria na pintura clássica ou romântica? Qual a concepção de arte apresentada na alegoria moderna ou até mesmo na sua negação? Quais os conceitos estão implícitos pelos procedimentos contemporâneos, que se podem chamar de alegóricos? Se portanto é uma figura de linguagem, que usa de algo dado para reverter-lhe o sentido, o faz usando citações e apropriações de formas, palavras, símbolos e imagens já dadas, o que lhe dá um caráter de permanência e sobrevivência, e não de renovação e ruptura. A pintura enquanto linguagem clássica usufruiu seu potencial alegórico explorando os temas religiosos a serviço da igreja, os ideais de moralidade e ética a serviço de ideologias, e prosseguiu alternando entre momentos mais ou menos alegóricos devido a uma maior racionalidade ou espiritualidade. A alegoria paradoxalmente é o recurso usado de maneira explícita que abriga outro discurso sob seu véu, num jogo poético da forma que assume que oculta. Apresentar os véus, esconder e revelar, é a vocação essencial da imagem, que nunca se torna naquilo que alega3, e desvendar estes véus alegóricos é o desígnio sem fim daquele que olha. Referindo-se a esta capacidade Orígenes (185-253 d.C.), erudito da igreja antiga, descreveu três níveis de leitura para a escritura bíblica: um literal, um moral e um místico ou alegórico. Para justificar essa classificação recorre a uma metáfora: o sentido literal corresponde ao corpo, o sentido moral à alma, e o sentido místico ao espírito da escrita, pois a escrita é composta pelos mesmos elementos que o ser humano, corpo, alma e espírito.4 Somente os mais preparados espiritualmente chegariam ao último nível, o 2 Texto de Apresentação de Sérgio Paulo Rouanet para Origem do Drama Barroco Alemão de Walter Benjamin. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1984. p 37. 3 Didi-Hubermann, 1998. p.87. 4 GAGNEBIN, 1994, p 38 alegórico. Portanto, a alegoria ocupa um lugar privilegiado na religião cristã: “ela não é somente uma forma de interpretação, ela determina a compreensão da História da Salvação”.5 Isso também demonstra que desvendar os véus da alegoria requer uma leitura intertextual que permita identificar sentidos abstratos e profundos. Mas, para o Renascimento e o pensamento iluminista a interpretação alegórica não oferecia nenhum fundamento seguro por ser pautada em aspectos subjetivos de interpretação, e, portanto, foi deixada de lado em favor de uma interpretação mais literal, como o uso do símbolo. Nos séculos XVII e XVIII o conceito de símbolo é muito mais aceito em detrimento da alegoria, por ser mais imediato e corresponder a uma “feliz coincidência do sentido” enquanto a alegoria é mais hermética. No entanto para Walter Benjamin estes dois conceitos às vezes se confundem, e por isso tenta restabelecer o conceito equivocado de símbolo da arte clássica e romântica, na mesma medida em que restaura a alegoria, quando esta nem era mais considerada uma categoria estética. Benjamin propõe a alegoria “como a categoria crítica indispensável para a compreensão de fenômenos estéticos pra os quais o conceito de símbolo já não teria eficácia teórica”.6 Portanto a teoria da alegoria de Benjamin “muito mais do que constituir a categoria-chave para a compreensão do barroco literário alemão do século XVII, quer constituir-se como uma categoria estética capaz de dar conta das características da sua contemporaneidade artística”.7 “O símbolo é, a alegoria significa; o primeiro faz fundir-se significante e significado, a segunda os separa”. A alegoria possibilita a reabilitação da temporalidade e da historicidade em oposição ao símbolo que encarna um ideal de eternidade. 8 5 ibid, p 39 MURICY, op cit. p 160 7 ibid p159 8 BENJAMIN, op cit. p 205-206 6 Figura 1. Walter de Navazio (1887 - 1921) A árvore (1913) Óleo - 55 x 78 cm Nas vanguardas da era moderna todo o saber científico indica o conhecimento específico das diversas ciências, e, a arte do final do século XIX e início do século XX se debruça em suas especificidades, desvenda cada linguagem artística, nega a representação e conseqüentemente qualquer possibilidade alegórica. No entanto, essa tautologia defendida por teóricos não se verifica numa pesquisa mais detalhada, como aponta Rosalind Krauss, a forma abstrata e reticular das vanguardas está a serviço de um desejo de espiritualidade e subjetividade, de uma linguagem universal. Portanto, a auto-referência se dá sempre de maneira incompleta, ou melhor, fragmentada, cada trabalho diz um aspecto desse outro – a sua categoria artística – que é muito maior e mais complexo, mas também está relacionado às questões abstratas e subjetivas, muitas vezes de cunho moral, que possibilitam um viés alegórico. Nesse sentido pode-se pensar que a alegoria das vanguardas modernistas é a vontade da arte em ser original e universal. Uma alegoria da própria linguagem artística como meio de expressão moral e espiritual, que tropeça no paradoxo colocado pela retícula, que multiplica indefinidamente, impedindo a concretização do mito da originalidade. Figura 2. Maria Luisa Pacheco (1919 -1982) Abstrato (1961) Óleo Figura 3. Maria Luisa Pacheco (1919 -1982) Composição (1960) 120 x 152,5 cm O homem moderno é pragmático, ele aceita o símbolo, que é direto, fixo e imutável, mas não aceita a alegoria, que separa significante do significado, é obscura e indireta. As vanguardas pedem ruptura, e tudo que seja um resquício da história não é aceito, seu discurso é auto-referente, no entanto, poderíamos dizer que dialeticamente a alegoria ali se instala, de maneira diversa, não mais pela representação ou narrativa, mas pelo discurso. Os artistas modernistas discutem as linguagens e categorias: o plano da pintura, o espaço da escultura, problematizando a si mesmos, mas principalmente a uma estrutura maior, porém, específica da arte, gostaria de chamar essa atitude de alegoria do corpo da arte, um discurso coerente ao pensamento moderno. O artista moderno entende que a pintura não é uma janela aberta revelando o mundo, mas um espaço que percebe as relações entre as coisas do mundo, que reverte o vivido das percepções em propostas estéticas. A configuração do espaço moderno busca encerrar em si as questões percebidas no mundo. Um movimento cíclico entre fatura e pensamento, é o impulso que permite aos artistas escaparem à rigidez de regras, a buscar novas percepções e significações, e este mesmo impulso possibilita perscrutar a alegoria como uma noção que trata da possibilidade de significação da arte e sua relação com o alhures. O momento do olhar é o momento da alegoria, ao dizer o outro a obra moderna o faz via às escolhas operatórias dos artistas. Dentre as características da alegoria encontra-se a apropriação, entendida em muitos textos teóricos como um procedimento genuinamente moderno e por conseqüência, contemporâneo. Mesmo concordando que a atitude do artista é sempre de alguma maneira apropriativa, a forma e o objeto de sua apropriação é que determinam o quanto esse procedimento dita o trabalho, ou seja, aparece como chave para seu entendimento. A apropriação é um dado formal, assim como a escolha do tipo de pincel, cor e gesto determinam a estrutura em uma pintura. Para além da mera utilização de procedimentos e técnicas de pintura, tem-se de maneira mais consistente a construção de um corpo pictórico que carrega em si, as marcas e os processos utilizados pelo artista. E é justamente esta construção este corpo, que se reveste dos véus da sua superfície que encerra em si a outra fala, a alegoria. A alegoria da carne aparece, portanto, de maneira distintas nas pinturas que têm em comum a discussão do corpo da pintura. O procedimento pictórico serve para a configuração da carne de seu trabalho revelada sob o véu da superfície/pele. Figura 04. Juan Francisco Escobar Carretas na Veja Óleo sobre tela - 32 x 41 cm A carne é entendida como a constituição do corpo da pintura que discute a materialidade da arte na estruturação deste corpo. A alegoria pensada não apenas como procedimento, mas como corpo da arte, como aquilo que funda o fazer artístico, a carne como matéria e espírito da pintura. Neste sentido pode-se perceber, ainda que muito distintas, as pinturas de artistas sul-americanos que ilustram este texto apresentam uma construção pictórica que remete a esta fatura, à sua materialidade, que além de dar a aparência dá também um corpo, que alega para dentro e para fora de sua superfície. O corpo da pintura que se estabelece na trama como carne e na superfície como pele, que remete às questões da superfície pictórica cujas dobras e rasgos convidam ao atravessamento do olhar, para que este enxergue seu verdadeiro corpo. Didi-Huberman no livro La Pintura Encarnada propõe a superfície da pintura como a pele que contém seu corpo, e enfim, o corpo da arte, numa vocação alegórica que perpassa os procedimentos e se instala além da trama, e neste jogo da mirada revela que existem sempre dois caminhos, um, do olhar que observa, rasga a pele e ao expor a carne revela o corpo, o outro da mirada que volta das entranhas do trabalho, que se abre para além do visível. Este potencial dialético da imagem requer do observador percepção e olhar ativos que reflitam para além da sua visibilidade, e por isso uma das possibilidades de abordagem alegórica, para além dos procedimentos e que considera o corpo pictórico e não como representação mas como constituição matérica e visual deve considerar o espaço que se estabelece com o espectador, como o outro que acontece a partir da obra como dispositivo, quando ela só se completa nessa relação. Momento onde a alegoria se apresenta e manifesta seu enigma, revela o que se esconde através de seu véu, ponto em que a obra pensa e faz pensar. Figura 05. Fernando Fader Paisagem Tormentosa (1906) Óleo sobre tela - 70x50cm Figura 06. Fernando Fader O Estábulo (1905) Óleo sobre tela - 49 x 60,5 cm REFERÊNCIAS DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo.Traducción Oscar Antonio Oviedo Funes. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006. ___________. La pintura Encarnada. Trad. Manuel Arranz. Valência: Correspondências Pré-textos – Universidade Politécnica de Valência. 2007. ___________. O que vemos e o que nos olha. Trad. Paulo Neves, São Paulo: 34, 1998. GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo: Perspectiva/FAPESP. 1994 KRAUSS, R. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Trad. Adolfo Gómes Cedillo. Madrid: Alianza, 1996. OWENS, C. O Impulso Alegórico: sobre uma teoria do pós-modernismo. Revista do Mestrado de História da Arte EBA UFRJ, Rio de Janeiro, 2º semestre. 2004. BENJAMIN, Walter.Origem do Drama Barroco Alemão. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1984. O VIÉS CONSTRUTIVO DA ARTE LATINO-AMERICANA Alice de Oliveira Viana1 RESUMO Este artigo pretende trazer considerações sobre um traço comum na arte latinoamericana, sua tendência construtiva. Na América Latina de uma forma geral percebemos muitos artistas, em determinado período de suas produções, optando pelo abandono da utilização de formas diretamente associadas à realidade exterior, primando pelas formas puras da geometria, ou já anunciando em seus quadros uma leve tendência a elas. Um geométrico que em grande medida diferiu daquele europeu por seu aspecto não rigoroso, muitas vezes apresentando sensível ligação com a realidade. Para isto, analisa parte da produção de artistas que pintavam nas primeiras décadas do século vinte como Joaquin Torres-Garcia, Petrona Vieira e Rafael Barradas, assim como faz um paralelo com as expressões arquitetônicas produzidas na época. PALAVRAS - CHAVE: arte latino-americana, geometria, tendência construtiva. ABSTRACT This paper intends to bring some considerations about a common trace in Latin American art, its constructive tendency. In Latin America, in a general way, we realize many artists, in some period of its productions, choosing for the abandonment of the exterior reality directly associated forms use, prioritizing the pure forms of geometry, or already announcing in its pictures a slight tendency to them. A geometrical that greatly differed from the European one for its non rigorous aspect, many times presenting sensitive connection to reality. For this, it analyzes part of the production of artists who painted in the first decades of the XXth century, as Joaquim Torres-Garcia, Petrona Vieira and Rafael Barradas, just as makes a parallel to architectonical expressions produced in the time. KEYWORDS: Latin American art; geometry; constructive tendency. 1 Mestra pelo PPGAV – CEART UDESC da linha Teoria e História da Arte orientada por Sandra Makowiecky. A primeira metade do século vinte foi marcada, de uma forma geral, pela busca, nos países latino-americanos, de uma identidade própria, pela necessidade de construção da nação, situação que de certa forma também marcou a produção artística nestes países. Entretanto, para além desta necessidade assumida de se construir um caráter nacional, de distinção do particular em meio ao universal em cada país, pode-se deduzir um traço comum que permanece e acaba tecendo uma linha única entre as diversas nações latino-americanas: uma tendência construtiva que marcou grande parte da produção de muitos artistas nestes países, tendo reverberado em outras áreas também como, por exemplo, na arquitetura, e tendo se estendido até as produções das décadas de cinqüenta e sessenta. Desta forma, na arte latino-americana de uma forma geral percebemos muitos artistas, em determinado período de suas produções, optando pelo abandono da utilização de formas associadas à realidade exterior, primando pelas formas puras da geometria ou já anunciando em seus quadros uma leve tendência a elas. Acerca disto, Frederico Morais (MORAIS IN PONTUAL, 1978) afirma que importamos, em diferentes épocas, teorias de arte construtiva, em muitos casos tendo assimilado-as antes mesmo do restante da Europa, e defende assim, a existência comum na América Latina, de uma vontade construtiva, o que, de acordo com ele, talvez explicaria a ampla aceitação das teorias construtivas de Joaquin Torres-Garcia e das idéias de Le Corbusier em sua primeira vinda ao Brasil em 1929, por exemplo. Entretanto, como muito da nossa arte moderna possui esse aspecto de apropriação e adaptação, nosso geométrico difere daquele vindo da Europa. Podemos falar talvez de uma “geometria sensível” 2, não rigorosa, em oposição ao geometrismo programado, rigoroso, calculado, do construtivismo das vanguardas européias. Nossos elementos em grande parte são construídos mais em um diálogo com a realidade do que contra ela. 2 Esse termo foi cunhado a partir da exposição Arte Agora III /América Latina: Geometria Sensível, realizada de junho a julho de 1978, no MAM- RJ, que foi a terceira de uma série de mostras cujo objetivo acabou sendo o de manifestar um aspecto saliente da arte da América Latina, que seria sua vocação construtiva, o que resultou na organização de um livro que acompanhou a mostra: América Latina, geometria sensível,coordenado por Roberto Pontual. Na arquitetura esta tendência construtiva é percebida pela recorrência de formas geométricas e puras encontradas, por exemplo, na estética art déco, em voga na época. Uma estética das primeiras décadas da modernidade do século vinte, que teria surgido na França no período do entre-guerras e que foi em grande medida apropriada pelos países latino-americanos, assim como pelos Estados Unidos. Sendo caracterizada por linhas simples, com quase ausência de ornamentos e formas geométricas, marcou, dentre outros, o desenho dos novos espaços de sociabilidade que se desenvolviam na época. Cinemas, cafés, estações de rádio, dentre muitos outros espaços característicos desta sociedade de massas que se desenvolvia, muitas vezes diferenciados por cores alegres em tons pastéis, reforçando a associação desta estética a uma época de “prazeres efêmeros” (SEGAWA, 2002, p.54), associação justificada especialmente por ter se desenvolvido entre as duas guerras mundiais. Entretanto, é através das expressões mais modestas desta estética, como casas de porta-e-janela e sobrados, recorrentes em cidades do interior ou no subúrbio das grandes metrópoles latinas, que podemos perceber certa ligação sensível neste geometrismo construtivo. Casas de porta-e-janela ou sobrados, caracterizados por uma estética repetitiva, padronizada, distribuídos por diversas cidades da América Latina e trazendo em sua face um geométrico moderno, em concordância com a moderna arquitetura pública que surgia nestes países. Entretanto, são casas que mantém sua ligação com o passado, com a tradição, através da manutenção da configuração de um traçado urbano barroco, por sua intenção em ser o desenho das ruas, em enquadrar o céu e buscando nesta configuração a visão dos monumentos religiosos, reforçando sua relação com o sagrado. Casas sem afastamentos laterais, contrariando as diretrizes sanitaristas modernas, casas que se apresentavam através de todo um colorido vibrante – diferentemente das cores sóbrias e austeras da arquitetura pública da época -, um colorido muitas vezes semelhante ao das festas religiosas populares do interior, das bandeirinhas comemorativas. Disfarçadas por um geométrico moderno, revelam a persistência de um passado barroco, nossa tradição emocionalista, que persiste multiplicada por muitas cidades latinas. E nesta gramática percebemos uma relação entre a arte e arquitetura, atentando para os elementos que sobrevivem e reverberam entre ambas, podendo-se citar a obra dos artistas uruguaios Petrona Vieira e Rafael Barradas. A primeira, tendo realizado temáticas variadas em seus quadros, já apresenta em grande número deles certa tendência geométrica, construída através de grandes pinceladas quase homogêneas, formando contornos bem definidos. Nas cenas que pintou (figuras 01 e 02), percebe-se a ausência de identificação dos rostos, a repetição e padronização das mesmas figuras femininas, figuras cujas formas são quase geométricas, diferenciadas somente pelo alegre cromatismo de seus vestidos, um cromatismo encontrado nas fachadas art déco coloridas e padronizadas. Uma celebração a esta sociedade de massas que se desenvolvia, uma sociedade marcada pela entrada do capital norte-americano nos países latinos. É o art déco de Miami que Petrona Vieira pinta, esse art déco colorido e ensolarado da costa sudeste dos Estados Unidos, um art déco que tem um quê de frivolidade latina. Figura 1. Petrona Vieira (1895 - 1960) Meninas (1921) Óleo sobre tela - 114 x 118 cm Figura 02. Petrona Vieira (1895 - 1960) Recreio (1924) Óleo sobre tela - 86 x 90 cm Já o pintor Rafael Barradas (figuras 03 e 04) optou por pintar temas ligados a esta sociedade de massas, uma sociedade que vivia estes “prazeres efêmeros” e freqüentava os cafés, os cinemas e os jogos de bares. Da mesma forma lança mão de um cromatismo peculiar, em tons mais fortes do que os pastéis de Petrona Vieira, um colorido que muitas vezes apresenta certa alegria vibrante e que é expresso também em formas quase geométricas. Figura 03. Rafael Barradas (1890 - 1929) Cena de café (1913) Óleo sobre cartão - 36,5 x 36,5 cm Figura 04. Rafael Barradas (1890 - 1929) Jogadores de cartas (1917) Témpera sobre cartão - 49 x 59 cm Entretanto, um artista cuja obra possibilita perceber claramente esta ligação sensível em suas composições é o também uruguaio Joaquin Torres-Garcia. TorresGarcia possui como marca também esta construção geométrica que define seus antecedentes no neoplasticismo de Mondrian. Assim como este, os quadros de TorresGarcia (figuras 05 e 06) são formados por linhas horizontais e verticais que constroem formas geométricas, retângulos e quadrados. As linhas em Mondrian, grossas e bem definidas, aparecem em Torres-Garcia como que um rasgo na tela, ora engrossando de um lado, ora afinando de outro, denunciam a pincelada, afirmando a participação da mão, do sensível na fatura da obra. Em Mondrian a participação da mão do artista é praticamente anulada, tanto no desenho das linhas grossas e bem definidas, que rigidamente subdividem os planos, como na pintura destes mesmos planos, onde não há indícios das marcas das pinceladas. Ele busca o equilíbrio total, tanto de cores, através da quantidade que usa de cada cor primária, quanto das linhas que se cruzam rigidamente em formato ortogonal. Figura 05. Torres-Garcia Composição simétrica universal em branco e preto (1931) Óleo sobre tela - 122 x 63,2 cm Figura 06. Torres-Garcia Composição construtivista (1943) Óleo sobre tela - 65 x 75cm Em Torres-Garcia, ao contrário, o equilíbrio não é previsto, a cor ultrapassa a linha ou não preenche totalmente a forma gerada por esta, o que provoca certo grau de dinamismo à imagem. Nestes planos gerados pelas linhas da estrutura de Torres-Garcia, ele coloca figuras que funcionam como símbolos, muitos retirados da tradição dos povos pré-colombianos, assim como símbolos contemporâneos, como, por exemplo, o relógio e o trem, formados pela justaposição de formas geométricas. É através da montagem e composição destes símbolos na estrutura gerada pelas linhas que podemos compreender o sentido da obra, uma vez que o barco não é o barco literal, mas é entendido em sua proximidade ao coração, que também não é o coração simplesmente. Torres-Garcia recusa a figuração, mas também não opta pela abstração máxima, aquela do construtivismo europeu, cria uma linguagem própria, particular, inovadora para a época, mas em sensível ligação com a realidade exterior. Como explicar esta recorrência da geometria na produção latino-americana de uma forma geral? No começo do século vinte, o filósofo Wilheim Worringer em sua tese “Abstração e Empatia” afirmava que a história da arte deveria ser abordada a partir da intenção do sujeito, a partir de uma vontade de fazer, em contraposição a um poder fazer. Sendo assim, a abstração seria resultado de uma forte inquietação interior do homem, de uma angústia perante o mundo ou referente a algum momento de crise e de mudança, desviando-o de qualquer ligação com o real. Desta forma, a arte abstrata teria o caráter transcendental, de ultrapassar a mera realidade (VALLIER, 1980). Ao longo da história da cultura podemos perceber esse aspecto, por exemplo, durante a revolução do neolítico, e durante o próprio surgimento da arte abstrata, um momento de profundas mudanças na sociedade, com o advento da máquina, das novas tecnologias e, principalmente, com a situação de proximidade à guerra. O construtivismo russo, tendo adquirido identificação com os pressupostos da revolução russa, trazia essa idéia de construir uma nova realidade, a qual seria atingida principalmente através do retorno da arte a suas bases primeiras, como a cor, a linha, o ponto e as formas puras geométricas. O momento de surgimento dessa tendência na arte foi concomitante a uma situação particular de fortes transformações na sociedade russa, que vivia então uma mudança de regime político. É sintomático que as primeiras manifestações em direção à abstração tenham surgido nos países da América Latina a partir da segunda década do século vinte, momento em que vivenciavam um período de amplas transformações, como a modernização das cidades e da economia, a instauração de uma racionalidade administrativa com a consolidação do regime republicano moderno e a procura por uma identidade nacional, sonhos de uma burguesia em ascensão, assimilado pelas vanguardas artísticas. Construir uma nova sociedade através de uma geometria feita com esmero, rigor, porém, não rigorosa, fria. Um geométrico mais orgânico que viesse talvez para ordenar, como afirmou Frederico Morais, nossa cultura de “tradição emocionalista barroca” (MORAIS IN PONTUAL, p.18). REFERÊNCIAS PONTUAL, Roberto. (coord) América Latina, geometria sensível. RJ: Edições Jornal do Brasil/GBM, 1978. SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. 2.ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70,1986. 1 A MODERNIDADE, A ARTE MODERNA E O PARANISMO1 Luciana Estevam Barone Bueno2 Sandra Makowiecky 3 Em se tratando de Artes Plásticas, o final do século XIX e o século XX podem ser caracterizados como períodos de experimentação. Várias foram as contribuições sociais e científicas para que caminhos tão distintos e muitas vezes tão similares fossem escolhidos pelos artistas e também por escritores. O estudo do inconsciente, as guerras, as revoluções, a comunicação em massa e a tecnologia, entre outros fatores, acabaram por influenciar a produção artística propondo novos pensamentos e ideologias. Uma série de “ismos” começa a aparecer no final do século XIX e se estende ao século XX, apresentando novidades como romantismo, futurismo, dadaísmo, Minimalismo, expressionismo, dentre tantos outros. Muitas vezes, tendências já vistas anteriormente aparecem com uma nova roupagem, recebendo então um novo nome para o sobrenome “ismo”, como neoclassicismo e neoexpressionismo, por exemplo. No Brasil e, de uma maneira geral em outros países, podemos constatar movimentos considerados modernistas e, as aspirações para tais, podem ser relacionadas aos aspectos econômicos, sociais, políticos, expansão de determinados produtos agrícolas, relações ligadas à industrialização bem como à urbanização. Mas afinal, o que podemos chamar de arte moderna? Que características devemos considerar peculiares para classificar uma determinada obra de arte de arte moderna? Poderíamos talvez, começar definindo a palavra “moderno” para associar, de maneira imprecisa, o que seria atual, algo que não pertence ao passado, chegando muitas vezes à condição de contemporâneo. Na arte, o termo “moderno” pode ser relacionado a um 1 Ensaio escrito para participação na pesquisa sobre America Latina e Santa Catarina - Academicismo e Modernismo orientado pelas Profas. Dra. Sandra Makowiecky e Dra Rosângela Miranda Cherem, no PPGAV, CEART-UDESC. 2 Mestranda do PPGAV, CEART-UDESC linha de Teoria e História da Arte 3 Orientadora 2 determinado período da história, ou seja, para catalogar nesse período, determinados tipos de arte, pertencendo a interpretações diferentes o começo de tal período. Para Franscina, “Na linguagem da crítica de arte, portanto, também é usado seletivamente. ‘Arte Moderna’ não significa necessariamente o mesmo que ‘arte no período moderno’, pois nem toda arte produzida nesse período é julgada ‘moderna’ – considera-se que só certos tipos de arte fazem jus ao título”. (FRANSCINA, 1998 p. 07). Neste sentido, nem todas as obras realizadas em um determinado período considerado moderno, recebem a catalogação de obras modernas. Uma pintura acadêmica, por exemplo, realizada no mesmo período do desenvolvimento do impressionismo não poderia, neste caso, ser considerada moderna, mesmo que sua execução tenha sido exatamente simultânea a outra pintura com traços constituídos de uma certa “diferença”. Baudelaire aplicou o termo “modernité” num ensaio publicado em 1863, em um jornal francês Lê Figaro, para, segundo Franscina, “articular um senso de diferença com relação ao passado e descrever uma identidade peculiarmente moderna”. Assim sendo, no contexto apresentado, o moderno “(...) não significa apenas “do” presente, mas representa uma atitude específica para com o presente. Baudelaire relaciona essa atitude a uma experiência particular de modernidade, que é característica do período moderno enquanto distinto de outros períodos”. (FRANSCINA, 1998 p. 09). A autora ressalta que este experimento sobre modernidade só desenvolveu-se quando Baudelaire o aplicou na arte, isto em meados do século XIX, onde o mesmo a definiu nas seguintes palavras: “Por ‘modernidade’ entendo o transitório, o fugidio, o contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável” (The Painter of Moderna Life and other Essays, p.13 In FRANSCINA, 1998 p.09). Portanto, para Baudelaire a modernidade estava relacionada tanto ao efêmero como ao duradouro, e esta relação interferia na produção artística. Frascina afirma ter Baudelaire argumentado que “(...) os pintores deviam pintar figuras em roupas contemporâneas e não em vestimentas arcaicas do passado, e que o contemporâneo, em todas as suas facetas diversas e fugidias, possuía uma dimensão épica ou heróica”. (FRANSCINA, 1998 p. 09). Para Walter Benjamin (1975), “A modernidade caracteriza uma época; caracteriza simultaneamente a força que age nesta época e que faz com que ela seja parecida com a antiguidade”. Para o autor, em se tratando de modernidade, a teoria da arte 3 moderna não seria o ponto forte de Baudelaire, pois esta teoria se apresenta com pretextos modernos e, o foco principal para ela poderia talvez ser “uma discussão sobre a arte antiga”, segundo Benjamin, Baudelaire nunca havia tentado algo semelhante. Segundo Franscina, Baudelaire “Afirmava que o moderno na arte estava relacionado a uma experiência de modernidade – ou seja, a uma experiência que está sempre mudando, que não permanece estática, e que é sentida com maior clareza no centro metropolitano da cidade”. (FRANSCINA, 1998 p. 10). Portanto, se tentarmos resolver modernidade ou moderno com uma definição comum, poderemos de maneira simplista deixar de lado o efeito de que a modernidade, bem como o moderno, estão em constante mudança, fazendo parte de um planeta em movimento. A autora afirma ainda que “Os termos ‘moderno’ e ‘modernidade’ não são passíveis de definição fixa; pelo contrário, são relativos e sujeitos a mudança histórica”. (FRANSCINA, 1998 p. 10). No Brasil, a arte moderna está principalmente ligada ao movimento de vanguarda associado à Semana de Arte Moderna de 1922 que aconteceu na capital paulista. A SAM4 não foi o Modernismo, mas teve a intenção de remexer em antigas concepções estéticas propondo novas opções artísticas para, quem sabe, suprir necessidades e sanar a insatisfação ligada ao tradicional e aos padrões artísticos. O modernismo no Brasil, mesmo com assimilações vanguardistas e com forte tendência ao Expressionismo, Cubismo e Fauvismo, esforçou-se em repensar a realidade brasileira utilizando como fonte principal, as artes. Deste modo, a liberdade criativa na poesia tentou por em terra a métrica e a rima; na música, a melodia e a tonalidade sofreram intervenções anormais, e nas artes visuais o intuito era o academicismo ceder espaço para novas cores, temas e formas. O fato é que o modernismo brasileiro, pelo menos aparentemente, tinha a finalidade de utilizar as artes para explorar características apreciadas como bem brasileiras para expor um panorama artístico com cara de Brasil, tentando fugir das influências européias e ao mesmo tempo, buscando inspirações nas mesmas. Este seria o discurso apresentado pelos intelectuais considerados ‘modernistas brasileiros’. Porém, para Sergio Miceli, em seu livro Nacional Estrangeiro, “O movimento modernista paulista constituiu, pois, a reação possível da geração emergente de artistas às novas condições de operação em âmbito interno num quadro radicalmente alterado de 4 Semana de Arte Moderna 4 relações de dependência externa”. (MICELI, 2003 p. 19). Segundo o autor, as obras apresentadas eram carregadas de relações entre as experiências vividas dos grupos inseridos e os visíveis retornos implantados pela influência mútua dos mestres por meio das vanguardas, caminhando ainda em direção à tendência de “retorno à ordem”. Tal ordem se refere à inclusão de citações de padrões clássicos em história da arte, retornando muitas vezes à iconografia greco-romana e aos protótipos renascentistas. Este “retorno à ordem” teve no início da década de 1920 com a aceitação inclusive dos chamados mestres cubistas mais arraigados, onde apresentaram extrações do vocabulário dos maneiristas, ou mesmo de artistas como Ingres e David. De qualquer modo, de uma maneira geral, os artistas da América Latina sempre tiveram inspirações em pensamentos europeus. A tendência em apresentar ligações como o Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, não se trata de uma exclusividade dos artistas brasileiros. Podemos observar em outros latinos, como é o caso de Rufino Tamayo, Oaxaca (26.08.1899 – 24.06.1991), onde fazendo oposição à linha estabelecida pelos muralistas mexicanos, significou uma brusca mudança aos padrões pré- estabelecidos da pintura mexicana da dec. de 30. Nas obras abaixo, podemos observar claramente uma ligação com o Fauvismo de Matisse, bem com, uma tendência ao Cubismo de Braque. Figura 1. Rufino Tamayo (26.08.1899 – 24.06.1991) Natureza morta com alcatrazes (1924) Óleo sobre tela - 39,1 x 40 cm 5 Figura 2. Rufino Tamayo (26.08.1899 – 24.06.1991) Natureza morta com pé (1928) Óleo sobre tela - 58,1 x 51 cm O paraguayo Carlos Colombino (20.10.1937, Concepción), considerado um dos artistas mais significativos para o modernismo de seu país, na obra abaixo, torna explícita a relação com a obra Senhora do Arminho do clássico Leonardo Da Vinci, comungando com os pensamentos de Sergio Miceli, onde afirma que as obras modernistas eram carregadas de influencias dos “mestres” levando a produção, ao um declarado “retorno à ordem”. Figura 3. Carlos Colombino (1937) Mão e Ferro Xilopintura 6 Rafael Monasterio (1884, – 02/11/1961) Barquisimeto – Venezuela, deixa evidente uma aproximação como o Expressionismo. As obras deste artista, que podem ser observadas abaixo, mantêm ainda uma certa afinidade com as obras da modernista brasileira Anita Malfatti em sua obra O Farol, principalmente em relação a primeira obra de Monasterio, podemos perceber analogia às cores e pinceladas bruscas e acentuadas. Figura 4. Rafael Monasterio (1834 - 1961) A torre de Caricuao (1930) Óleo sobre tela - 53,6 x 75,5 cm Figura 5. Rafael Monasterio (1834 - 1961) Paisagem de Catia (1932) Óleo sobre tela - 56,5 x 81 cm 7 De modo geral os movimentos modernistas nasciam identificados com um projeto e adotaram caso a caso, códigos únicos que os diferenciavam. Isso também aconteceu com outros grupos que surgiram nos séculos XIX e XX. Revolucionários, republicanos, ONDE utilizaram as artes plásticas com a intenção de elucidar algo que através de meros discursos não atingiria o imaginário popular, interesse principal para os mesmos. No Estado Paraná alguns grupos de escritores e artistas começaram a questionar peculiaridades existentes no Estado que o diferenciavam de outros Estados Brasileiros. É o caso dos Simbolistas, que, mesmo com representantes em outros Estados, no Paraná, tiveram uma atuação singular e original, pois, se apegaram ao clima da cidade de Curitiba, considerado frio como o clima europeu, destacando ainda, as montanhas e relevos que alguns escritores caracterizaram com particularidades parisienses. A grande projeção do Movimento Simbolista de vertente neo-pitagórica, no Paraná republicano, ocorreu devido à convergência deste movimento com a aura construída pela República, no que tange à ciência e ao ensino laico. A ciência e o ensino laico foram considerados elementos modernizantes da sociedade, em oposição a uma visão mística do mundo dada pela Igreja Católica, fato que foi considerado pelos anti-clericais como uma das falências do regime monárquico. Outra aspiração modernizante que surgiu no Paraná na década de vinte, expressou-se a partir de uma reflexão da intelectualidade curitibana sobre o fato do Paraná não possuir traços específicos regionais por meio de lendas, tradições e vultos históricos. Então, foi através do Movimento denominado Paranista que as Artes Plásticas tiveram um espaço privilegiado, atingindo as metas cobiçadas. Os paranistas aguçavam o desejo de construir uma história regional que mostrasse o Paraná como um local que possuía uma tradição e uma história, tendo a intenção de inventar uma tradição para um Estado considerado até então, sem características próprias. Revestido de um caráter de antiguidade, o discurso histórico dos paranistas tinha uma forte ligação com as instituições republicanas, onde acreditavam que o imaginário popular carecia de retorno às antiguidades. Partiram então para um retrocesso nas artes visuais. Enquanto em São Paulo em plena década de 20, os assim considerados modernistas, aparentemente tentavam oferecer novidades nos “ismos” europeus para através das artes, apresentarem um Brasil, que no julgamento dos 8 mesmos, era desconhecido pelos próprios brasileiros, os paranistas, também com um intuito de modernidade, no mesmo período, buscavam no neoclassicismo as inspirações para desenvolverem obras que atingissem o imaginário popular, acreditando que a antiguidade fosse o melhor alicerce para a identidade que estava sendo criada para o Estado do Paraná. Os paranistas utilizaram produções já conhecidas da História da Arte e, como uma apropriação de algo já inventado, adornaram objetos artísticos com símbolos que seriam característicos do movimento. Escolheram a pinha, o pinhão e o pinheiro, surgindo da junção desses elementos, a coluna paranista5. A idéia, além de se criar uma diferenciação para o Paraná, era na verdade, uma necessidade de mostrar que o Estado tinha uma cultura, um símbolo. Utilizaram a velha coluna grega com cara nova com a intenção de reforçar um alicerce histórico, ou seja, com o recurso das artes plásticas almejavam atingir a meta que propunham no projeto do movimento paranista. Apesar de não ser considerado um movimento artístico e sim político, através das artes, o paranismo atingiu consideravelmente seu objetivo. Para Miceli, no modernismo paulista com seu “retorno à ordem”, os artistas apresentaram muitas vezes fases menos criativas que os mestres onde se espelhavam. O paranismo também com a idéia de retorno ao clássico, como não poderia ser diferente, não superou as tradicionais obras adornando-as com seus pinhões. Diferentes são os motivos que levaram muitos artistas a buscarem alternativas para apresentarem obras com características modernas.O fato é que, não há uma receita pronta para classificarmos uma ou outra obra “moderna”, o espectador também deve estar atento a todos os movimentos que são característicos da modernidade. O homem que vagueia pela multidão deve ser um observador também moderno. O vaivém da metrópole, a mudança constante nos propõe duas alternativas, a primeira é de olharmos a cidade, bem como as obras de arte, como um flâneur, ou seja, um apaixonado observador, que segundo Baudelaire, é o observador que encontra prazer no efêmero e na circunstância, encanta-se pela multidão, pelo mundo e por viagens. A segunda é o olhar do dândi para Baudelaire, que George Simmel denominou blasé. É aquele olhar do sujeito que não se deixa comover, não se surpreende, entediado por natureza um verdadeiro autista urbano. Para este último, Makowiecky (2003 p.9) nos alerta, só a arte pode despertá-lo. 5 Imagem (3) - Colunas Paranistas: João Turin – Fonte: Elisabete Turin, 1998. 9 REFERÊNCIAS BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1975. FRANSCINA, Francis...[et alii] Modernidade e Modernismo – Pintura Francesa no século XIX. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998. GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993. MAKOWIECKY, Sandra. Construções imaginárias: Florianópolis e as influências bruxólicas. In: XIV Encontro da Associação Nacional de Pesquisadoes em Artes Plásticas, 2005, Goiânia. XIV Encontro da Associação Nacional de Pesquisadoes em Artes Plásticas Cultura Visual e desafios da pesquisa em artes. Goiânia : Editora da Universidade federal de Goiás, 2005. v. 1. p. 418-429. ________, Sandra. A cidade, o flanêur, o dândi, o blasé, o zappeur e você.. Revista Multitemática da Fean, Florianópolis, v. 1, 2003., 80 p. MICELI, Sergio. Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico em São Paulo. São Paulo: Companhia da Letras, 2003. MORAES, FREDERICO, 1936 – Panorama das Artes Plásticas, Séculos XIX e XX. São Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1991. TURIN, Elizabete. A arte de João Turin. Campo Largo, PR: INGRA, 1998. PRESENÇA DO LUXO – DIMENSÕES DO SAGRADO E PROFANO NA ARTE. Luciane Ruschel Nascimento Garcez 1 Sandra Makowiecky 2 RESUMO Este artigo pretende abordar aspectos do luxo na arte, buscando pensar os sentidos que este conceito agrega às obras, particularmente em relação aos revestimentos, tecidos e ornamentos presentes na pintura latino-americana. PALAVRAS-CHAVE: arte; luxo; sagrado; profano. ABSTRACT This paper intends to approach aspects of the luxury in art, trying to think the senses that this concept incorporates in the works, especially in relation to revetments, fabrics and ornaments present in the Latin American painting. KEYWORDS: art; luxury; sacred; profane. A contextualização da palavra luxo convida a uma retrospectiva. Neste texto, aborda-se o assunto utilizando como motivação algumas imagens de obras de autores latino-americanos. O impulso contra tudo o que se chama luxo tem, de fato, um longo e venerável passado. Infindável é a série de filósofos e legisladores, de pregadores e demagogos que se declararam contra a opulência, a ostentação e o desperdício. A exemplo do objeto de seu zelo, também seus argumentos mudaram no correr do tempo. O poeta e ensaísta alemão, Hans-Magnus Enzensberger reflete sobre esta polêmica de quase 2000 anos. Para o autor, o luxo passará a ser, no século XXI, o tempo, a atenção, o espaço, o meio ambiente, o sossego e a segurança. Curiosa inversão de uma lógica dos desejos: o luxo do futuro despede-se do supérfluo e aspira ao necessário, do qual se deve temer que fique à disposição tão somente das minorias. No passado, diz o autor, o luxo estava ligado 1 Mestranda do PPGAV – CEART, UDESC linha de Teoria e História da Arte 2 Orientadora; professora do curso de Mestrado no PPGAV – CEART, UDESC. ao supérfluo (jóias, ornatos, enfeites, vestuário, carruagens, cavalos, louças, criadagem, etc.), hoje "aspira ao necessário", tanto que "o que realmente importa nenhum Duty Free Shop tem para oferecer". O tempo é o mais importante de todos. "Vive com luxo quem sempre tem tempo de se ocupar com o que deseja e quem pode decidir por si próprio o que fazer com o seu tempo, bem como o quanto, quando e onde fazê-lo” (ENZENSBERGER, 1997, p. 6). Estas conjecturas sobre o luxo resultam numa reviravolta rica em ironia. Se elas têm algum cabimento, o futuro do luxo não reside mais, como antes, na multiplicação, mas na redução, não na confluência, mas na evasão. A abundância ingressa num novo estágio, na medida em que se nega. A resposta ao paradoxo: minimalismo e renúncia poderiam mostrar-se tão raros, dispendiosos e cobiçados como, outrora, o esbanjamento excessivo. Porém, com isso, o luxo perderia completamente seu papel representativo. Ele não precisaria mais de observadores, pois os excluiria. Sua lógica consistiria, justamente, em fazer-se invisível. Com tal retraimento em face da realidade, o luxo permaneceria, no entanto, fiel à sua origem; pois desde sempre, ele esteve em pé de guerra com o princípio da realidade. Talvez, aliás, ele nunca tenha sido senão uma tentativa de fuga da fadiga e da monotonia da vida. A exemplo do passado, não se poderá cogitar de justiça quando o assunto é luxo. Ao menos quanto a isso ele permanecerá, também no futuro, o que sempre foi: um adversário ferrenho da igualdade. E nas artes, como esta polêmica se consubstancia? O que leva um artista a escolher um material e não outro em sua operação poética? O que faz com que este material remeta a um ou outro significado, trazendo simbolismos para a obra que independem de sua forma estética? A matéria tem memória, vem constituída de outros olhares, conceitos estão agregados ao material antes mesmo da definição de seu uso. Aliás, pode-se pensar que, em muitos casos, seu uso é definido em função destes conceitos, o artista se apropria desta memória para agregar significado ao seu trabalho. Faz parte de suas reflexões, de sua operação poética. A teórica Maria Celeste de Almeida Wanner (1998), comentando sobre o uso dos materiais na arte, fala do significado por eles adquirido, diz que o artista busca no material um meio de expressar “seu conteúdo psicológico, ritualístico, mágico, emocional, histórico e político. Uma linguagem que abrange desde o sagrado ao ‘não-simbólico’ dentro de um amplo conceito de contemporaneidade” (p. 57). Mas a simbologia dos materiais não se resume ao significado por eles adquirido na contemporaneidade, alguns trazem esta carga simbólica há milênios, estão impregnados de outros olhares, outros usos, outras simbologias. “Cada material possui sua origem vinculada a tradições culturais” (WANNER, 1998, p. 58), desta maneira a teórica está afirmando que os significados intrínsecos a cada material variam de acordo com a cultura na qual estão inseridos, variam de acordo com os cultos aos quais estão associados, variam de acordo com os olhares pelos quais são formados. Reforçando este raciocínio, Wanner complementa: Ligados à natureza, à indústria ou à tecnologia, vários artistas desde a préhistória têm transformado materiais em objetos de grande complexidade simbólica. Assim podemos dizer que cada objeto chega até nós impregnado de histórias e de um sistema sígnico que ilustram partes da vida de cada artista, parte de sua personalidade, cultura e identidade, parte de si (WANNER, 1998, p. 58 - Figura 1). Figura 1. Júlio Ruelas (1870 – 1907) Margarita Ruelas Suarez pronta para sair. Assim como o material tem sua linguagem própria, a forma como o artista faz uso dele se apropria ou transforma esta linguagem, de acordo com sua própria poética. Na pintura, muitas vezes o luxo se traduz na forma como o artista retrata seu objeto, no modelo escolhido, ou na proposta artística do pintor. Um retrato tratado como uma preciosidade é um exemplo de luxo, um vestido de seda ou de veludo, com detalhes ricos e sofisticados também traduzem o luxo que o retratado inspira. Um bordado, uma renda, uma jóia, a postura da figura representada, até mesmo o ambiente pode dar a idéia de sofisticação pretendida pelo artista (figuras 1 e 2). Figura 2. Daniel Hernández (1856 – 1932) Sra. Luisa de Mesones (1883) Figura 3. Juan Cordero (1824 – 1884) Dona Leonor Rivas Mercado Óleo sobre tela. Em diversos períodos da história da arte podem-se encontrar artistas que usaram dos recursos que certos materiais ofereciam para agregar significado às suas obras, o luxo é um destes conceitos, ao qual o material está diretamente relacionado (figura 3). Desde a arte antiga que se encontram obras que remetem a esta ordem, materiais como ouro, pedras preciosas, mármore, entre outros, materiais que foram manipulados a fim de traduzirem plasticamente um pensamento, uma idéia, um conceito. “É importante também pontuar os conceitos de ‘sagrado’ e ‘nobre’ como não universais, pois ambos estão diretamente ligados a diversos fatores que tornam um material especial e precioso” (WANNER, 1998, p. 59). Muitas vezes são estes conceitos que caracterizam a matéria como preciosa, e isto se desdobra na arte. Assim também se pode ler o luxo. É recorrente na história da arte a associação do luxuoso, do precioso, ao sagrado. No Egito antigo as peças feitas para o uso do faraó e da família real eram de cedro, ouro, lápis-lazúli, prata. Nos desenhos, repletos de simbolismos, a existência do rei é descrita como parte do universo criado e mantido pelo supremo deus sol, o que, de certa forma, justifica o luxo e a sofisticação que rodeava o soberano, afinal, este não era um ser terreno, mas descendente direto dos deuses. As jóias imbuíam às mulheres da família real poderes sobrenaturais, e assim lhes habilitavam a apoiar o rei no dever de manter a ordem divina sobre a terra, somente o rei se beneficiava dos poderes mágicos inerentes às jóias usadas pelas mulheres de sua família. Para os egípcios, a cor do ouro e o brilho de sua superfície eram associados ao sol, e a pele dos deuses supostamente era feita de ouro. Algumas peças que explicitam esta prática antiga fazem parte do tesouro encontrado na tumba do rei Tutankhamon, em 1922. A esplêndida máscara de ouro maciço do faraó Tutankhamon, que se encontrava na cabeça da múmia, é incrustada de pedras preciosas e pasta de vidro colorido, este é um exemplo precioso de máscara mortuária que costumava ser enterrada junto com o corpo; o esquife interno, também confeccionado em ouro maciço e ricamente ornamentado; o segundo esquife externo, confeccionado em madeira coberto de ouro. Nestes sarcófagos foram encontradas 143 jóias de ouro distribuídas sobre o corpo do rei, quase todas teriam sido produzidas especialmente para os ritos funerários do rei. A miniatura do sarcófago de Tutankhamon, peça feita de ouro, dividida em quatro compartimentos, cada qual contendo uma miniatura do sarcófago de ouro com as vísceras do rei enroladas em bandagens. Aqui o luxo está diretamente ligado ao sagrado, os materiais preciosos fazem parte de um ritual que legitima a prática desta cultura. Os artefatos feitos para uso litúrgico, em diversos momentos e diferentes culturas, eram também feitos em materiais preciosos, peças ricamente ornamentadas que traduziam o esplendor de sua fé. Retratos de representantes da igreja são freqüentemente suntuosos, não sendo somente o material usado o responsável pelo teor da obra, mas também a maneira como a figura é tratada, uma imagem dá um sentido de poder (figura 4). A arte barroca fez uso corrente do ouro como material plástico; no Brasil, retábulos e o interior de igrejas eram recobertos deste metal reluzente. Uma sensação de irrealidade, ou de miragem, é provocada por esta profusão de ornatos reluzentes na “igreja toda de ouro”. O barroco foi a arte do excesso, da ostentação e especialmente do luxo. Deste modo pode-se ver que o sagrado muitas vezes é representado pelo material utilizado em certas práticas. Não se celebra uma missa católica, ainda hoje, com uma taça plástica, por exemplo. A matéria tem lugar importante nas culturas, desde os tempos mais remotos. Figura 4. Rafael Troya Jaramillo Retrato de Monsenõr Marriott (1898) Óleo sobre tela - 96 x 86 cm Mas o que diz que certo material é sagrado? A cultura onde está inserido, a forma como foi utilizado por este povo, os usos que fizeram dele. Mircea Eliade no texto O Sagrado e o Profano, diz que: Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e, contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se numa realidade sobrenatural (1995, p. 18). Uma pedra sagrada é venerada porque é sagrada e não porque é pedra; é a sacralidade manifestada pelo modo de ser da pedra que revela sua verdadeira essência. O que revela esta sacralidade é o uso desta pedra, o olhar que se dá para ela. E este olhar varia em diferentes culturas, diferentes reflexões. Mas os olhares variam, e alguns teóricos tecem outras considerações a respeito do luxo. Para alguns autores, o luxo tem outra conotação, que não a de sagrado, defendem que o luxo está na ordem do dispêndio, da despesa, da perda. No texto A Noção de Despesa (1975), Georges Bataille reflete sobre o homem no mundo, sobre o consumo e sobre o que ele chama de “despesa improdutiva”. Bataille levanta a idéia de que um mundo pacífico que seria ordenado pela necessidade primordial de adquirir, de produzir e conservar seria apenas uma ilusão cômoda, uma vez que o mundo em que vivemos está consagrado à perda, e que a sobrevivência das sociedades só se faz possível devido ao preço de despesas improdutivas consideráveis e crescentes. O que seriam para este autor as “despesas improdutivas”? Segundo ele, um grande número de fenômenos sociais, políticos, econômicos, estéticos, entre eles o luxo, os jogos, os espetáculos, os cultos, a atividade sexual desviada da finalidade genital, as artes, a poesia no sentido estrito do termo são manifestações de despesas improdutivas. É sempre a noção de excesso que está na base dessa construção; complementa ainda sua reflexão dizendo que sempre há excesso, porque a irradiação solar, que se encontra na origem de todo crescimento, é dada sem retorno: “O sol dá sem nunca receber”; existe, então, um acúmulo de energia que só pode ser desperdiçada na exuberância, no exagero, na ebulição. O homem desempenha um papel eminente nesta cadeia de consumo; ele abre caminho para novas possibilidades, e, por outro lado, é o homem, de todos os seres vivos, o “mais apto a consumir, intensamente, luxuosamente, o excedente de energia” (figura 5). Ao passo que a indústria que ele cria traz múltiplas possibilidades de crescimento, também traz uma “facilidade infinita de consumo inútil”. Mas dentro destas duas funções, é no consumo que permite o homem estar em acordo com o mundo: uma vez que o destino do universo é “uma realização inútil e infinita”, o destino do homem é levar adiante esta realização. Bataille inova o pensamento econômico vigente no período pós Segunda Guerra Mundial. Ele percebe a diferença fundamental entre a economia de um sistema separado (onde há o sentimento de necessidade e onde surgem problemas relativos ao lucro, mas o crescimento parece possível) e a de uma economia que é a da massa viva em seu conjunto – onde a energia está sempre em excesso, existe sempre o acúmulo. O problema levantado então, é saber como, no seio dessa economia geral, é utilizado o excedente, seu uso “que é a causa das mudanças de estrutura”. Figura 5. Federico Del Campo (1837 – 1923) Rosina (1887) Óleo sobre tela 18,5 X 11,5 cm Neste rumo de seu pensamento, o prazer estaria associado à concessão, não à regra. O consumo estaria dividido em duas partes: uma representada pelo uso do mínimo necessário à sobrevivência, situação relativa a certa parte da sociedade; a outra seria representada pelas ditas “despesas improdutivas”, acima mencionadas, que representariam atividades que teriam em si mesmas seu fim. O fato é que em cada caso citado, “a ênfase é colocada na perda, que deve ser a maior possível para que a atividade adquira seu verdadeiro sentido” (BATAILLE, 1975, p. 30); esta despesa ainda é destinada a adquirir ou manter uma posição, posição esta que está diretamente vinculada a uma riqueza, à posse de uma fortuna, com a condição de que esta fortuna seja parcialmente sacrificada por despesas sociais improdutivas, tais como festas, jogos, objetos de arte, jóias, luxos e espetáculos. Por exemplo: Não basta que as jóias sejam belas e deslumbrantes, o que tornaria possível a substituição pelas falsas: o sacrifício de uma fortuna, à qual se preferiu um rio de diamantes, é necessário para a constituição do caráter fascinante desse rio. Esse fato deve ser relacionado com o valor simbólico das jóias (...). Quando em um sonho diamante tem uma significação excrementícia, não se trata apenas de associação por contraste: no inconsciente, tanto as jóias como os excrementos são matérias malditas que saem de um ferimento, partes da própria pessoa destinadas a um sacrifício ostensivo (...). O caráter funcional das jóias exige seu imenso valor material e explica sozinho o pouco caso que se faz das mais belas imitações, que são quase inutilizáveis. (...) Antes de tudo, fica claro que as coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda (BATAILLE, 1975, p. 30 – 31). O sacrifício é compensado pelo prazer de adquirir uma peça “original”, não uma simples cópia, “imitação barata” que não alimenta os sentidos nem aplaca o desejo de possuir algo valioso e único. Quanto maior a perda, maior o prazer em possuir tal objeto, pois, como se lê acima, “é somente pela perda que a glória e a honra lhe são vinculadas”. A festa e o jogo, que também entram nesta ordem de despesas improdutivas, significam para o homem o momento onde ele pode ser e fazer tudo aquilo que não é possível na vida diária, tudo o que a sociedade não permite. Na festa o excesso é justificado, e até celebrado, uma pessoa pode inclusive se transformar, personificar outra criatura, liberar sua fantasia, agir de maneira completamente diversa da sua, e assim tem sido desde a antiguidade, quando o homem se fantasiava, personificava animais e celebrava as estações, as colheitas, a natureza. É neste momento que o homem deixa sua natureza fluir e atitudes antes impensadas, agora são passíveis de acontecer, liberando instintos socialmente controlados. Para Hans-Georg Gadamer (1985), arte também se situa no espaço do jogo e da festa. Este autor parte do conceito de jogo enquanto fenômeno essencial da vida e da cultura humanas, ele diz que o jogo é um movimento que pressupõe interação, não serve a um fim específico. “A primeira coisa que precisamos levar em conta é que o jogo é uma função elementar da vida do homem, de tal sorte que a cultura humana, sem um elemento de jogo, é impensável” (pág. 38). O autor enfatiza que não há jogo que esteja reduzido ao comportamento do jogador, a condição é justamente ultrapassar pontos de vista singulares, pois o jogo tem suas próprias regras e salienta que seus significados metafóricos referem a uma forma de movimento: Certamente de início o ir e vir de um movimento que se repete constantemente - pense-se em certos ditos como “o jogo de luz” ou “o jogar das ondas”, em que há um constante ir e vir, ou seja, um movimento que não está ligado a uma finalidade última. Isso é notadamente o que caracteriza o ir e vir – que nem um nem outro extremo é o alvo do movimento, o ponto no qual ele descansa. Além disso é claro que a tal movimento condiz um espaço de jogo. Isso nos dará bastante a pensar quanto à questão da arte. A liberdade de movimento aventada aqui inclui ainda que este movimento tem que ter a forma do auto-mover-se (1985, p. 38). É um movimento que se desenrola em um incessante ir e vir, uma troca simbólica que permite a situação acontecer. Continua o autor: “O jogo aparece então como automover-se que por seu movimento não pretende fins nem objetivos, mas o movimento como movimento, que quer dizer um fenômeno de redundância, de auto-representação do estarvivo” (1985, p. 38). A verdadeira finalidade do jogo está no próprio jogo que, por sua vez, nada é sem as suas encenações. Isto é, enquanto é um movimento em que se cumpre uma tarefa que, não implicando uma solução, ou resolução, retira o seu sentido da coparticipação dos jogadores na forma de auto-apresentação inerente ao movimento lúdico. Assim deixa de ter qualquer sentido a contraposição habitual entre a vida e a arte. Pelo contrário, a experiência da arte confronta o existir com uma forma concreta da sua autocompreensão. Sobre este movimento existente no jogo, que pode-se transpor para o âmbito da arte, cita-se Gadamer: “[...] tal definição do movimento do jogo significa ao mesmo tempo que o jogar exige sempre aquele que vai jogar junto” (1985, p. 39), onde sem o movimento do espectador a obra não se completa. O instinto do jogo promove as realizações humanas todas: a política, a filosofia, a ciência, a arte. O jogo nasce na área do culto e daí se desdobra em diversas instâncias. Percebe-se que o jogo, assim como o culto ou a arte, não se efetua sem o participante, porém, em momento algum, pode-se atribuir a existência do jogo, ou da arte, ao participante, este simplesmente joga, permitindo que o jogo se desenrole em si mesmo. Cita-se Gadamer neste sentido, quando ele diz que: “[...] Ou às artes plásticas, cuja função decorativa e expressiva procede no todo de um contexto vital religioso. Um vai dar no outro” (1985, p. 40). Além da importância das regras prévias à construção da obra artística, outro ponto importante na reflexão que este teórico realiza sobre a arte é o valor que ele concede ao apreciador, continuando seu raciocínio sobre a questão do fluxo, onde a arte, ou o jogo, não se completa sem este movimento. Toda sua exposição mostra que sem o apreciador a arte não se realiza como tal. “A predestinação da obra como ponto de identificação do reconhecimento, da compreensão, inclui além disso que tal identidade está ligada a variação e a diferenças. Cada obra deixa como que para cada um que a assimila um espaço de jogo que ele tem que preencher” (GADAMER, 1985, p. 43). Para este autor a apreciação é um momento de co-criação, Gadamer exemplifica isso com a necessidade de concentração e de tempo para se fruir a arte. Apesar de situar a obra de arte na esfera do jogo, Gadamer lhe confere certa aura, e seu pensamento vai em caminho diverso de teóricos como Georges Bataille, citado anteriormente. Gadamer diz que: [...] a obra de arte é insubstituível. Mesmo na era da reprodutibilidade, em que vivemos, em que obras de arte superior chegam a nosso encontro em excelente qualidade de cópia, isso continua verdade. Há uma resposta antiga à questão que apenas se tem que entender de novo corretamente. Numa obra de arte há algo como [...] imitatio. Mimese, não quer dizer aqui imitar algo já conhecido anteriormente, mas levar algo à representação, de modo que, desta maneira, ele se torne presente em plenitude sensória (1985, p. 56). Talvez esta plenitude sensória de que fala o autor possa ser considerada como a sensação frente à obra que tem no luxo sua linguagem, sua poética. O luxo que remete ao sagrado, ou ao profano, dependendo do olhar que se dá e da cultura onde se vive. Quando o teórico situa a arte no âmbito da festa, o faz para mostrar sua concepção de representação, a festa celebra, e ao fazê-lo reatualiza a celebração. Nesse sentido, ela se reatualiza a cada ocasião em que é festejada, assim como a obra se reatualiza a cada olhar, em cada espectador. A reatualização implica tanto sua transformação histórica quanto a continuidade da tradição. Assim, a representação que ocorre na festa não é espelho de alguma idéia de festa, é a própria experiência que se dá neste momento, a exemplo do apreciador frente à obra, ou ao jogador no momento do jogo. Sobre a participação no momento, o autor comenta: “Se há algo relacionado com toda a experiência da festa, este algo é o que impede todo isolamento de alguém frente a outrem. Festa é coletividade e é a representação da própria coletividade, em sua forma acabada” (1985, p. 61). Neste sentido pode-se compreender como este autor relaciona festa à arte, no sentido da co-participação, do não isolamento, uma vez que a obra é incompleta sem o apreciador. E ele segue em sua reflexão que vai em sentido oposto ao que Bataille coloca sobre o mesmo assunto. Gadamer fala que: “Se arte, de fato, tem algo a ver com festa, então isso quer dizer que ela tem que ultrapassar o limite desta definição, [...] e com isso também os limites do privilégio cultural, do mesmo modo como se deve ficar imune às estruturas comerciais de nossa vida social” (1985, p. 75). Nesta citação o autor situa a arte longe do sentido da perda, mas como algo inerente à vida, não há separações. O luxo na arte (figura 6) pode ser compreendido e considerado em diversas instâncias, cabe ao leitor da obra apreender seus significados em sua própria experiência. Não regras e não há limites, a simbologia varia de acordo com o tempo e lugar onde ela é lida. Um retrato pode ser uma mera imagem, pode ser um cânone, pode ser uma relíquia, depende de quem o vê. Assim como a pedra só é sagrada para quem a entende desta maneira, apesar de ser sempre uma pedra, o luxo na arte tem a mesma conotação, depende de quem o olha. Figura 6. Alberto Lynch (1851 – 1936) Retrato de Garota (1890) Óleo sobre tela, 55 X 38cm REFERÊNCIAS BATAILLE, Georges. A Noção de Despesa – A Parte Maldita. Rio de Janeiro: Imago, 1975. ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 1995. GADAMER, Hans-Georg. A atualidade do belo – A arte como jogo, símbolo e festa. Rio de Janeiro: tempo brasileiro, 1985. GROSS, Eduardo. A arte em Gadamer e a religião. In: Revista Ética & Filosofia Política (Volume 8, Número 1, junho/2005), disponível em : http://www.eticaefilosofia.ufjf.br/8_1_gross.html, acessado em 21 de julho de 2008. ENZENSBERGER, Hans-Magnus. “Zickzack autätze”. Copyright Suhukamp Verlag Frankfurt am main 1997. (tradução de Marcos Macedo). In: Jornal Folha de São Paulo, Caderno 5, pag. 6, 30 mar. 1997. SCHUCK, Rogério José. O jogo como fio condutor da explicação ontológica em Gadamer: subjetividade e compreensão. Disponível em: http://www.dialetica-brasil.org/Schucksite.htm, com acesso em 22 de julho de 2008. SILVA, Maria Luísa Portocarrero F. E-Dicionário de Termos Literários – Edição e Organização de Carlos Ceia. Disponível em: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/index.htm, com acesso em 23 de julho de 2008. WANNER, Maria Celeste de Almeida. A questão do simbólico na linguagem dos materiais. In: Cultura Visual – Revista do Curso de Pós-Graduação da Escola de Belas Artes. Universidade Federal da Bahia. Salvador: EDUFBa, 1998. CALEIDOSCÓPIO, MONTAGEM E SINTOMA. Academicismo e Modernismo na América Latina. [1] Rosângela Cherem[2] e Rachel Reis de Araújo[3] Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo[4] RESUMO Através de quatro pinturas de artistas latino-americanos que privilegiam cenas de interior e tematizam o banal, observa-se que as mesmas se constituem como uma recorrência bastante cara ao modernismo, antes mesmo do que se convencionou demarcar como advento das vanguardas. Interrogando a noção de ordinário e extraordinário, trata-se de sensibilidades e percepções que, vindas especialmente de temáticas pictóricas setentrionais e francesas deslizaram para o romantismo, sobrevivendo mais adiante de forma caleidoscópica e anacrônica como lapso que se repete. PALAVRAS-CHAVE: História da Arte; pintura; sensibilidades e percepções; AméricaLatina. Entre as abordagens privilegiadas pelo modernismo situa-se a inclusão do banal e do ordinário, possivelmente como parte de uma sensibilidade anterior ao romantismo e que se visibiliza com o advento da vida privada, da intimidade e do psicológico, acabando por se desdobrar e potencializar na mesma proporção em que a tradição pictórica é posta em xeque em proveito das acentuadas experimentações artísticas verificadas especialmente a partir da segunda metade dos século XIX. Por sua vez, em Walter Benjamin vamos encontrar certos fenomenos cotidianos e inscritos na ordem [1] Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina. Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC. [3] Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC. [4] Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Bacharelado em Artes Plásticas e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária, acadêmica do curso de Bacharelado em Artes Plásticas. [2] 1 rotineira do homem comum e sem qualquer notoriedade alçados à condição de acontecimento extra-ordinário através da memória e da imaginação criativa: Quem faz com que lhe sirvam o café da manhã num quarto de hotel em París, em pequenas bandejas prateadas, guarnecidas com bolas de manteiga e geléia, nada sabe sobre ele”1 Fascinado pelos efeitos de cintilação que se escondem na vida moderna encobertos sob o manto do banal, Benjamin construiu um campo onde a imagem pôde ser problematizada recorrendo aos recursos de montagem que lhe permitiam pensar em des-tempos. Interessado em abordar menos os deslumbramentos da última novidade ou conceder a última palavra ao presente e mais em arriscar-se pelo campo da teoria e crítica de arte, procurava conjugar as plausibilidades e evidências do cotidiano vivido aos afetos explicativos e derivas ficcionais em que ele mesmo podia se situar como herdeiro e tributário das sensibilidades e percepções de seu tempo: “O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cómoda. […] Nada superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto possível. E não era apenas pelo calor da lã. Era “tradição “enrolada naquele interior que eu sentía em minha mão e que, desse modo me atraía para aquela profundeza. […] Pois agora me punha a desenrolar a ‘’tradição” de sua bolsa de lã […] ao ser totalmente extraída de sua bolsa a “tradição” deixava de existir. Não me cansava de provar aquela verdade enigmática:que a forma e o conteúdo, que o invólucro e o interior, que a “tradição” e a bolsa, eram uma única coisa” 2 Este artigo é parte integrante da pesquisa sobre Academicismo e Modernismo na América Latina e está voltado para uma relação entre algumas imagens pictóricas e a problemática da banalidade como operação anacrônica que sobrevive e se materializa no interior do prório pensamento plástico. Os artistas que aqui comparecem são Fídolo Alfonso González (Bogotá, 1883 – Sibaté, 1941), Francisco Antonio Cano Cardona (Yarumal, 1865 – Bogotá, 1935), Eladio Vélez (Itagui, Antioquia, 1897 – Medellin, 1967), Cristóbal Rojas (Cúa 1858 - 1890, Caracas). 1 BENJAMIN, Walter Benjamin. Imagens do Pensamento. In: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas, vl. II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 214. 2 ___________. Infância em Berlim. In: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas II, vl.. São Paulo: Brasiliense, 1995, p.122. 2 1- O CALEIDOSCÓPIO E AS CINTILAÇÕES DO ORDINÁRIO. Diversos textos de Walter Benjamin registram os novos recursos técnicos e sensibilidades estéticas que atingiam os acontecimentos cotidianos e afetavam percepções do homem moderno. Mas o que se pretende destacar aqui, e conforme assinala o historiador Georges Didi-Hubermann3, é uma maneira de apreensão do tempo-espaço tal como um caleidoscópio. Nesta perspectiva Benjamin não apenas tinha conhecimento do objeto inventado em 1817 por Alphonse Giroux, como recorreu ao caleidoscópio como um modelo teórico para abordar as variedades e combinações da modernidade. Assim como no tubo de imagem polido ficavam guardados pedaços desfiados de tecido, pequenas conchas, plumas, poeiras e cacos de vidro, a passagem do século XIX ao XX poderia ser lida pela moda, os panoramas, a fotografia, as exposições, o ambiente privado, os reclames, o cinema. Do mesmo modo que aquele objeto é constituido por pequenos fragmentos de coisas ordinárias e comuns que se combinam e recombinam, formando a cada vez que é manuseado uma imagem diferente da anterior, também a própria modernidade não mais poderia ser constituída pelo objeto único da pintura feita somente por quem tivesse o dom e um repertório erudito repleto de simbologia, advindo da tradição onde o belo e o estilo eram balizas que não podiam ser deixadas de lado. Em outras palavras, nesta estreita relação com o extraordinário e o fabuloso como efeito, Benjamin voltou-se para os acontecimentos da modernidade. Sua abordagem corresponde a um tempo que colhia os frutos da sociedade industrial e da vida urbana, quando as viagens eram facilitadas pela locomotiva, quando emergia um novo patamar de conforto facilitado pelo acesso aos novos produtos para os lares, quando a noção de consumo e diversão se redefiniam e a reprodutibilidade técnica, notadamente através da fotografia e do cinema, ressignifica as imagens. Tratase de uma época onde a linearidade e a continuidade estava sendo substituída pelo intermitente, pelo que cintila num momento e logo desaparece num movimento fugaz e incessante. Dispensando a memória e a experiência em prol das vivências, o caleidoscópio continha por princípio o movimento constante e o reembaralhamento infinito 3 das formas cujas semelhanças seriam mantidas um processo de DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Córdoba: Adriana Hidalgo, 2006, p. 125. 3 reprodutibilidade, sendo assimiladas com sentidos semelhantes aos das novidades pelas crianças, ou seja, sem vínculos de temporalidade contínua com o passado. Tal entendimento permite que se possa considerar a temática do ordinário no modernismo como uma espécie de potência imagética advinda de um pretérito. Pensando esta espécie de sobrevivência póstuma que emerge nas imagens artísticas é possível considerar o exemplo de telas como A Leiteira de Vermeer e O Trapaceiro de Georges de La Tour. Num caso, sua cenografia registra um cotidiano suspenso na banalidade espontânea de um gesto através do qual uma mulher derrama comedidamente o leite de uma jarra e com o qual parece preparar um alimento. No outro caso, pessoas comuns se divertem, enganam e seguem jogando desavisadamente. Apesar do forte sentido moral, nada nelas remete ao fabuloso ou ao excepcional, tudo parece se passar num instante de silêncio e anonimato. Mais de dois séculos adiante, uma mulher arruma a mesa, enquanto noutra tela pessoas se divertem numa taberna. O que incide em ambas as cenas e permite estabelecer uma relação com as anteriores é a noção de sintoma como aquilo que interroga a imagem em sua relação com o tempo, interrompendo o fluxo regular das coisas e tornando-se uma espécie de lei avariada e subterrânea que persiste como retorno de uma enfermidade. Nem conceito semiológico, nem conceito clínico, trata-se de uma noção operatória que recusa submissão ao tempo eucrônico, destacando-se como aparição de uma latência que conjuga diferença e repetição, proximidade e distância, interior e exterior, imobilidade e aceleração4. Figura 1. Jan Vermeer A Leiteira (1660-1661) Óleo sobre tela. 45,5 x 41 cm. 4 DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., pág. 119 e seg. 4 Figura 2. Georges de La Tour O Trapaceiro (1630) Óleo sobre tela, 106 x 146 cm Figura 3 Fídolo Alfonso González Pondo a Mesa (1910) Óleo s/ madeira, 27,5x35 cm Figura 4. Cristóbal Rojas A Taberna (1887) Óleo s/ tela, 212 x 272 cm. 5 2-MONTAGEM, EMPILHAMENTO E ANACRONISMO. Problematizando o manuseio do caleidoscópio através de um movimento incessante que produz tanto o sobressalto e a queda de formas como os choques e as recomposições, a imagem surge como uma remontagem visual ou reconfiguração que testemunha um tempo de perturbações e turbulências, variações e alterações. Eis uma espécie de noção operatória pela qual Benjamin esboçava não apenas um modelo ótico mas um novo modo de conceber a História da Arte, voltada para a leitura da catástrofe insidiosa do mundo, sendo o passado um arsenal de escombros e fragmentos. Recusando a retenção temporal, a transformação progressiva e historicista, bem como as tramas hierarquizadas com pretensões à objetividade, para ele os acontecimentos como as imagens, só poderiam ser pensados pelos procedimentos de recombinação e montagem. A este respeito é importante lembrar que, interrogando os regimes de verdade que sustentam a história da arte como disciplina, Aby Warburg e Walter Benjamin não apenas comparecem como interlocutores favoráveis ao recurso da montagem, como caminham na contra-mão dos manuais que simplificam a relação vida e obra ou que tomam a obra de arte como mera expressão de sintomas culturais e políticos ou meros componentes de contextos históricos e econômicos, bem como os catálogos que reduzem a obra aos estilos e escolas: La imagen no es ni um simple acontecimiento em el devenir histórico ni um bloque de eternidade insensible a las condiciones de esse devenir. Posee –o más bien produce- uma temporalidad de doble faz [...]. esta temporalidad de doble faz fue dada por Warburg, luegfo por Benjamin – cada uno com su próprio vocabulario-, como la condición mínima para no reducir la imagen a um simple documento de la historia y, simetricamente, para no idealizar la obra de arte em um puro mmomento de lo absoluto. Pero las consecuencias eran graves: esta temporalidad de doble faz debía ser reconocida sólo como productora de uma historicidad anacronica y de uma significacíon sintomática5. Trata-se de considerar a permanência das formas menos como o herdado e que foi mais os desdobramentos das possibilidades resultantes. Interrogando a estrutura do tempo, sob a variedade iridescente do caleidoscópio encontra-se a própria 5 DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., pág. 119. 6 modernidade em seus procedimentos intempestivos, extemporâneos e anacrônicos, ainda que arriscando-se num dado momento a cair e partir-se como se fora o próprio objeto deixado na mão da criança. O que emerge são as formas tornassoladas e o elevado poder de configuração dos detritos e da cintilância dos resíduos. No movimento errático das dessimetrias multiplicadas, a estrutura inesgotável da imagem moderna é dada pelo caráter ilusório da novidade e pela constante desmontagem interior das coisas conjugada com elementos díspares. Caso bastante emblemático se apresenta numa cena onde se reconhece um ferro elétrico para passar roupas, um entre os muitos utensílios propalados como parte das facilidades oferecidas pela modernidade: Sobre o ferro elétrico surgido em 1882, a história registra que na época do seu lançamento ele não obteve o sucesso que seu inventor esperava, chegando mesmo a ser quase esquecido pelas donas de casa. O motivo desse fracasso comercial deveu-se ao fato de que a maioria das residências daquela época não dispunha de rede elétrica... Dez anos mais tarde (1892) apareceram os ferros de passar com resistência. Eles eram mais práticos, eficientes e seguros; aliavam limpeza ao controle de temperatura, permitindo que sua elevação ou diminuição fosse feita sem perda de tempo; podiam ser usados em qualquer local que dispusesse de eletricidade; e, sobretudo, eram oferecidos aos interessados a preço acessível. 6 6 Fernando Kitzinger DANNEMANN http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br 7 Figura 5. Eladio Vélez A Passadeira, 1938 Óleo s/ tela, 99x79 cm Figura 6. Edgard Degas A Passadeira. 3- O SINTOMA COMO LAPSO QUE SE REPETE. Abordando a repetição das imagens artísticas na lógica do movimento constante, Didi-Huberman considera que a obra é sempre portadora de algo já visto que volta subterraneamente como fantasma, atravessando e mesclando diferentes temporalidades pelos arremessos fragmentários da memória. Suspensa entre dois começos, a imagem se refere tanto aquilo que se faz 8 bloco de afecções e sensações num dado momento, como também aquilo que é trazido pelas forças pretéritas que não cessam de retornar como sobrevivência póstuma ou potência associada ao rebatimento do passado no presente, questão que confere à imagem um caráter de espectralidade. Assim, na contradança da cronologia, as imagens podem ser pensadas como portadoras de impurezas e descontinuidades temporais, sendo que para alcançá-las é preciso recorrer aos procedimentos de montagem, construindo séries capazes de revelar a sobrevivência de um recalque. Pelos efeitos de cintilação e em ocasiões de proximidade empática acontece uma espécie de dobra temporal, através da qual surge o sintoma. Desdobrando esta abordagem parece conveniente considerar o conceito psicanalítico de alteração, através do qual a criança como o artista elaboram o assassinato da coisa e constroem sua simbolização através da metamorfose das formas, sendo esta mesma simbolização inerente à mudança de um estado para outro e equivalente a um signo lingüístico constantemente esvaziado e ressignificado7. Na relação próximo-distante, o recalque é aquilo que, não podendo calar, retorna como desvio e faz despontar a criação como elaboração da perda e do luto, ou seja um trabalho de esquecimento que se mantém como derivação infinita da matéria. Por sua vez, em clave pós-estruturalista, repetir não tem equivalente nem semelhante, pois repetir é sempre um irrecomeçável. Assim, Deleuze8 assinala que a diferença se constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua negação, nem se refere à oposição nem se constitui como contradição, visto que se trata de preservar a potência como poder do diverso. Distinguindo a repetição da simples generalidade, considera que enquanto uma obedece leis com permanências e variáveis, possibilitando que um termo possa ser traduzido por outro e o particular possa ser reposto e substituído, posto que é indeterminado e indiferenciado, a outra se coloca como vibração secreta. 7 FREUD, Sigmund. Além do Princípio do prazer. Coleção Obras completas, vl XXVIII. R.J.:Ed. Imago,1976. 8 DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. R.J.: Graal, 2006 9 Figura 7. Francisco Antonio Cano Cardona A Costureira, 1891 Óleo s/ tela, 50x35 cm Figura 8. Jean Baptiste Chardin A dama que prepara o chá Óleo sobre tela, 80 x 101 cm Quando a repetição e o retorno tornam-se potência, gravitações e saltos são inventados para agir em função daquilo que não se é e nem se tem. Se não se pode trocar a alma e se os duplos como os ecos não possuem equivalência ou semelhança, do mesmo modo não existe acréscimo numa segunda ou terceira vez, elevando-se a primeira vez à enésima potência. Sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições coexistem, a repetição é diferença sem conceito, não porque se constitui como reprodução do mesmo e sim porque é arremesso em direção ao outro. Assim, os 10 disfarces revelam sintomas que operam por deslocamento, potencializando uma realidade mais profunda, impossível tanto de reter como de alcançar. 11