CHEREM, R. M. ; MAKOWIECKY, S. . Academicismo e
Modernismo na América Latina. 1ª. ed. Florianópolis: UDESC,
2008. v. 1000.
Rosangela M.Cherem e Sandra Makowiecky
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8
ARQUIVOS: SOBRE OS LIMITES E DESTINOS DE UMA PESQUISA
Academicismo e modernismo em Santa Catarina1
Sandra Makowiecky 2 Giorgio Vicenzo Filomeno e3
Participantes do Grupo de Pesquisa (SC):Marina Rieck Borck4
Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia
Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5
Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os
principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina e
América Latina. Seu início foi assinalado pela escassez de um arsenal imagético e
bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Apresenta-se
aqui uma parte deste percurso ocorrido durante o manuseio de arquivos e a elaboração de
um mais amplo, bem como as reflexões teórico-metodológicas daí decorrentes.
Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina; América Latina;
arquivos;museu.
1- OS CONTORNOS DA PESQUISA. A partir da disciplina História da Arte III,
ministrada pela professora Rosangela Miranda Cherem, cuja ementa contempla um
conteúdo plástico latino-americano, verificou-se a escassez de um arsenal imagético e
bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Entre 2004-2
e 2005-2 teve inicio um levantamento preliminar que contou com envolvimento discente e
foi devidamente explorado, mas que ratificava a necessidade de um aprofundamento do
1
Academicismo e modernismo em Santa Catarina – UDESC, Centro de Artes
Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC.
3
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina.
4
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC
5
Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de
pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (Coordenadora do projeto SC) e Rosangela Miranda Cherem
( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas;
Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista
PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também
acadêmica do curso de Artes Plásticas.
2
material, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Neste sentido, fez-se
necessário prosseguir o estudo, procurando identificar as principais características artísticas
entre os países da América Latina, bem como considerando a relação de proximidadedistância, semelhança-diferença de sua produção, destinada tanto à geração e
potencialização de novas abordagens e reflexões sobre as artes plásticas no âmbito da
modernidade, como em especial, abordando o modernismo para além de leituras auto centradas ou que registram apenas os vínculos europeus ou norte-americanos.
Como um projeto de pesquisa formulado com fins institucionais foi previsto uma
investigação para ser desenvolvida entre fevereiro de 2006 a fevereiro de 2008. Porém a
extensão documental e a dificuldade de localização das fontes levaram à prorrogação de
mais um semestre, ou seja, até julho de 2008, para finalizar a parte de América Latina.
Utilizando os acervos bibliográficos disponíveis na Internet e conforme os países da
América Latina, os principais objetivos da pesquisa ficaram definidos no sentido de mapear
os artistas e sua produção no âmbito das Academias de Arte e dos movimentos
identificados com o modernismo, permitindo reconhecê-los conforme suas percepções
estéticas e sensibilidades temáticas, condições de trabalho, expectativas, sociabilidades e
demais critérios apontados pelo levantamento empírico; além de indicar possibilidades de
estudo e desdobramento de problemas a serem desenvolvidos em investigações posteriores.
Em outras palavras, constatada uma escassez de estudos e pesquisas sobre as artes
plásticas neste continente, buscou-se um caminho capaz de permitir tanto um entendimento
mais abrangente e rico da produção artística como favorecer avanços para além dos
catálogos e estudos sobre acervos privados e/ou monotemáticos, bem como ampliar as
articulações das particularidades em relação ao conjunto de questões mais abrangente,
permitindo análises mais consistentes acerca de certas contaminações e desdobramentos
plásticos. O recorte cronológico definido envolvia desde o nascimento da mais antiga
academia de artes latino-americana (1785 no México) até a segunda guerra mundial, uma
vez que depois daqueles anos instalou-se um outro contexto de rupturas, relacionado ao
concretismo e neo-concretismo até a morte das vanguardas, configurando-se num outro
objeto de estudo. Em função da amplitude do objeto a ser estudado e da inegável ausência
de estudos mais abrangentes e sistematizados sobre o assunto, a pesquisa se configura como
2
uma espécie de cartografia de problemas relativos à História da Arte na América Latina.
Contudo seu foco principal não pretende reconhecer ou definir questões meramente
relativas às identidades estéticas, mas compreender como as imagens pictóricas comportam
e compartilham sensibilidades e percepções artísticas próprias à modernidade, bem como
suas contradições e paradoxos.
A opção por um CD ROM com um levantamento de artistas, obras e biografias
conforme os países, além de uma parte incluindo artigos, pareceu um caminho viável,
devendo o mesmo instrumento ser destinado à divulgação e manuseio de outros
interessados em ampliar seu repertório sobre o assunto. Na organização desta espécie
singular de arsenal imagético foram incorporados artistas e obras pouco conhecidos,
acolhidos como parte de um arquivo destinado ao domínio público, contribuindo para que o
virtual engendre uma afinidade com a memória compartilhada e considerando que este tipo
de fonte como estrutura de memória não é novidade. O arquivo, externo, diretamente no
suporte, atual ou virtual, tem sua democratização medida pela participação e acesso e pela
sua constante apropriação e interpretação. Embora o arquivista deva levar em conta a
incompletude do arquivo e o mesmo possua inúmeras possibilidades de armazenamento,
também deve saber que não haveria o desejo de arquivo sem a noção de finitude e sem a
possibilidade de esquecimento. Se o arquivo não se reduz à memória e nem à mneme ou à
anamnesis, é especialmente possibilitado pela pulsão de morte, de agressão e de destruição,
também pela finitude e expropriação originárias: “[...] Não, a estrutura técnica do arquivo
arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio
surgimento e em relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o
evento. É também nossa experiência política dos meios de informação.”( DERRIDA, 2001,
p. 28)
2- AS DECORRÊNCIAS DO PERCURSO. Entre as tarefas realizadas destacam-se a
divisão dos países, seus respectivos artistas e levantamento de produção plástica conforme
os pesquisadores e seguindo uma padronização definida previamente no que diz respeito
aos dados a serem obtidos e sua sistematização. Levantamento dos endereços de museus,
galerias e instituições de arte, bem como de possíveis endereços para pesquisa via internet,
além de catálogos, folders e livros. Envio de correspondências na tentativa de encontrar
3
material bibliográfico destinado a complementar as informações. Através da disciplina de
História da Arte III e das leituras realizadas semanalmente pelo grupo de pesquisa em
2007-2 tiveram início as análises do material coletado, seguido posteriormente pela redação
e discussão dos textos destinados à composição do CD ROM. Assim, o presente estudo se
desenvolveu especialmente a partir da constituição de séries e agrupamentos imagéticos,
considerando afinidades e diferenças artísticas, além de levantamento de problemas e
desdobramentos analíticos indicados a partir das imagens; bem como da problematização
das injunções temporais contidas nas obras, em termos de eucronias e anacronismos da
modernidade.
Entre as dificuldades encontradas destaca-se o fato de que o material visual
levantado nem sempre disponibilizava os dados necessários à pesquisa, como por exemplo,
título, tamanho e técnica da obra ou localização do acervo ao qual pertence. Outra
dificuldade apontada refere-se ao fato de que as biografias de alguns artistas, bem como
local e data de nascimento e falecimento, eram bastante imprecisas, incompletas e, por
vezes, inexistentes. Alguns países não só apresentaram insuficiência de dados como a
maioria dos artistas que os representam está situado apenas a partir da segunda metade do
século XX. A aquisição de catálogos e textos específicos de cada país também foi
dificultada devido a entraves de acesso, manuseio e distribuição dos mesmos, além de
entraves financeiros e de transporte.
Nos meses em que os pesquisadores se fizeram valer de diversos meios para
enriquecer seu repertório mergulhando nos mais recônditos corredores em busca de novos
dados e imagens, foram debatendo e compreendendo a extensão da reflexão sobre a
tradução como sendo não uma mera repetição, mas como espécie de sobrevida da obra pela
mutação, considerando seu caráter fugidio e de deslizamento constante. Assim, a obra não
vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor, acima dos meios de seu autor. Sua
sobrevida da obra excede a vida e morte biológica e ultrapassa a condição orgânica,
fazendo nascer a tarefa de compreender a vida para além dela mesma como forma que
ultrapassa a história. Devendo a tradução ser da obra e não do autor, não tem a ver com o
receptor ou com comunicação, não é imagem, cópia ou representação, sendo que “Ele
nomeia o sujeito da tradução como sujeito endividado, obrigado por um dever, já em
4
situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como
sobrevivente ou agente de sobrevida” (DERRIDA, 2002, p.33).
É preciso ainda reconhecer que entre as advertências desta empreitada encontramse os riscos proporcionados pelas atribuições errôneas e apócrifas, todavia este é um perigo
do qual não escapam nem mesmo os museus e os colecionadores, freqüentemente às voltas
com obras falsificadas ou com autoria atribuída equivocadamente. Igualmente os dados
desta pesquisa guardam sua fragilidade. Em sua qualidade de arquivo, são débeis e
irresolutos e, certamente na grande maioria, apenas um sopro do que são seus originais,
apresentando-se frequentemente distorcidas em forma e cor e desprovidas de detalhes
importantes, como tamanho e data das obras. Filtradas as imagens, foram adotados os
critérios de melhor resolução para a reprodução em um cd rom, reduzindo em cerca de um
terço as quase cinco mil imagens capturadas dos quinze países pesquisados. Neste rol não
estão incluídas as imagens e Santa Catarina e Brasil, que formará outro CD ROM. Por sua
vez, convém ressaltar que a sobrevida das obras no espaço virtual pode se dar com mais
facilidade e por mais tempo do que a dos trabalhos nas suas materialidades originais, pela
infinita reprodução e perpetuação nos discos rígidos do mundo. Por pior que seja a
qualidade do original, se ele estiver digitalizado e disponibilizado, através dele será
possível entrar em contato com uma parte daquilo que de outro modo seria inacessível ou
acabaria perdido, em outras palavras:
A reprodução não rivaliza com a obra-prima presente: evoca-a e sugere-a... Levanos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis, não a esquecê-las; e,
sendo inacessíveis, que conheceríamos nós sem a reprodução? Ora, a história da
arte nos últimos cem anos, desde que escapa aos especialistas, é a história do que
é fotografável (MALRAUX, 1965, p.108).
Ao longo da pesquisa os organizadores deste arsenal imagético iam se reconhecendo
na posição de criadores do arquivo, curadores de um museu cujas obras nunca chegaram
perto nem viram. Recolhendo e organizando criteriosamente milhares de trabalhos,
catalogando centenas de artistas e biografias foram deslindando novos critérios de reunião e
agrupamento, separação e ordenação, procedimento que permitia reconhecer a presença das
contingências relacionadas à localização e qualidade documental, bem como da
arbitrariedade relacionada por vezes à quantidade das obras selecionadas. Eis os gestos que
5
contemplam o anarquivável, tal como abordado em O mal de arquivo:
[...] estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um
mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de
paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o
arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante,
alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo,
repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da
pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do
começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma
compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum “mal-de”, nenhuma febre
surgirá para aquele que, de um modo ou de outro, não está com mal de arquivo (
DERRIDA, 2001, p.118)
3- CONSIDERAÇÕES ESPECÍFICAS SOBRE O ARSENAL IMAGÉTICO. Como
construir um arsenal imagético, cujos arquivos enquanto fontes principais e registros
complementares se apresentam escassos ou dispersos, inacessíveis ou pouco pensados em
seu conjunto? Quais os caminhos possíveis para dar conta deste desafio sem perder-se
diante das meras generalidades a que remetem, incorrer nas leituras simplificadoras e
banalizantes que confundem imagem com ilustração ou então extraviar-se em meio a
peculiaridades absolutizantes? Para responder tal inquietação parece conveniente primeiro
problematizar o próprio arquivo construindo um campo situado entre a série concebida
como repetição com diferença e o museu imaginário considerado como arsenal infinito e
único de afecções. Refletindo sobre o fato de que a falência da representação no
pensamento moderno faz com que todas as identidades sejam simuladas e produzidas como
efeito ótico sob o jogo da diferença e repetição, Deleuze ( 2006) destaca que a diferença se
constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua negação, nem se
refere à oposição nem se constitui como contradição.
Considerando as imagens a serem estudadas, postula-se a sobrevivência das formas,
menos como o que foi herdado e mais os desdobramentos e as possibilidades resultantes,
sendo que os acontecimentos como as imagens, só podem ser pensados pelos
procedimentos de recombinação e montagem. Eis porque as obras, como os artistas, devem
ser considerados na relação com as séries que procuram menos a generalidade e mais os
vestígios da diferença e do retorno, sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições
coexistem, não porque se constitui como reprodução do mesmo e sim porque é arremesso
em direção ao outro, nos diz Deleuze, em Diferença e repetição( 2006).
Por sua vez, André Malraux (1965) aborda o nascimento de um arsenal imagético a
6
partir da reprodutibilidade técnica, resultando complexas metamorfoses no que diz respeito
aos usos e sentidos da obra de arte, permitindo que cada um possa constituir seu próprio
acervo ou museu imaginário. O museu imaginário é de todos, sendo formado pelas
recordações particulares de cada um e não dependendo de um local. Num mundo de
esquecimento, é assim que as obras ressuscitam, sobrevivendo não pelo que foi dito sobre
elas mas pelo que ainda nos dizem. Enfim, o autor lembra que o museu imaginário é um
fenômeno do mundo moderno, particularmente ampliado com a reprodutibilidade técnica,
permitindo não só acessar diferentes acervos como também estabelecer novas comparações,
agrupamentos e classificações. Neste sentido, trata-se de encarar a difícil tarefa de pensar
ao mesmo tempo as imagens e seus arquivos, não só para evitar os meros relatos e
classificações, como também para pensar as novas combinações e destinos possíveis para
as obras de arte.
4- IMPLICAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA E A TEMPORALIDADE. Uma vez
acessado o arsenal e constituída a série de imagens, com quais fios é possível tecer a trama?
Como produzir um campo fértil de reflexões no âmbito da história da arte, contornando
tanto uma abordagem mais cronológico- evolutiva ou contextualizante como outra
meramente formalista porém considerando as questões que reverberam no tempo e no
espaço? Em que medida pode a obra de artistas pouco conhecidos e de reduzida fortuna
crítica tornar-se objeto de reflexão e leitura? Como evitar a armadilha da diluição das
singularidades em contextos homogeinizadores e extrínsecos e/ou das particularidades
isoladoras e desconectadas que ignoram a formulação-armação de problemas? Como
construir um campo de análise onde o que prevalece e ainda pode ser dito incide sobre o
estranho que escapa e surpreende bem ali onde uma luz já posta parece apenas indicar o já
conhecido? Como reincidir o periférico e o pouco qualificado sem cair na visada monótona
e exaustiva das abordagens já feitas? É possível pensar a relação entre os artistas e suas
obras sem tornar ambas as instâncias como meros equivalentes, evitando tanto a lógica da
salvação pela exaltação do injustamente esquecido como o veredito do merecidamente
ignorado?
No seio das obras acadêmicas reconhecemos certas investigações plásticas mais
pela sua concomitância do que como simples ecos europeus. Os recortes modernistas
7
situados depois da primeira grande guerra em vários países latino americanos podem ser
lidos como uma construção discursiva associada muito mais aos seus protagonistas e suas
memórias, decorrendo daí certas posturas antagônicas às academias de belas artes. Então se
as chamadas vanguardas latino-americanas adotaram freqüentemente bandeiras antiacadêmicas como parte de seu desejo de aggiornamento é porque ignoravam ou esqueciam
os choques produzidos intencionalmente por participantes de ambientes oficiais, mesmo na
Europa. Ou seja, mesmo dentro de certos circuitos institucionais as posturas inquietas e
chocantes, disfarçadas ou não já se deixavam deslindar. Mesmo cumprindo certas
expectativas em termos de reconhecimento nos circuitos existentes ou simplesmente
atendendo às encomendas, observa-se que alguns artistas conseguiram ultrapassar não só as
questões de território e nação, como também buscaram superar o caráter ilustrativo e/ou
narrativo, guardando na superfície pictórica todo um universo de inquietações e
investigações plásticas.
A este respeito convém lembrar a publicação intitulada Arte na América Latina ,
organizada pela professora Dawn Ades ( 1997) de História e Teoria da Arte da
Universidade de Essex, Inglaterra cuja obra apresenta em seu conjunto a idéia não apenas
de que as artes plásticas estiveram diretamente vinculadas às experimentações literárias,
como o fato de que em diversos países o modernismo foi engendrado no âmbito acadêmico.
Raciocínio complementar a este fenômeno é apresentado no livro Arte Internacional
Brasileira, escrito por Tadeu Chiarelli ( 2002). O autor parte do pressuposto não só de que
o local se articula com o circuito internacional de modo reelaborado e muito peculiar como
também que o modernismo antecede a Semana de 22, registrando a incorporação sem
confinamento de uma tradição erudita e artesanal e somando-se a um localismo antiacadêmico, advindo das percepções estéticas surgidas a partir do último quartel do século
XIX e dos influxos do novecentos.
Todavia, se pensar é armar problemas, este procedimento parece se tornar
particularmente interessante quando as obras enfocadas não pertencem ao repertório
canônico mas podem ser abordadas pelo seu caráter de recorrência e sobrevivência, levando
a pensar, de um lado, como se operavam, mesmo para artistas inseridos num circuito
periférico, as referências e renitências que resultaram na incorporação de certas
8
perspectivas, enquanto que de outro lado, cabe pensar a mescla de tempos atravessados
pelos arremessos fragmentários da memória contidos nas imagens e que as tornam resíduo
e rastro de outras imagens ou espectralidade de outras temporalidades. Conforme Rosalind
Krauss (1996) ao tratar o mito da originalidade como preceito vanguardista, se no
século XIX as cópias tiveram um importante papel pedagógico na formação do gosto, o
culto da originalidade e da espontaneidade serviu para confirmar o mito da genialidade
artística. Em tempos de revolução industrial e de reprodutibilidade técnica, as artes
plásticas insistiram em confirmar seu estatuto romântico, associado ao espontâneo e ao
irrepetível.
Problematizando a história da arte e encarando a questão da temporalidade contida
na obra Ante el Tiempo: de DIDI-HUBERMAN (2006), assinala que toda ela possui mais
memória do que história, pois o tempo não se reduz à história, sendo que a memória é feita
de tempos descontínuos e heterogêneos, daí que ela é sempre anacrônica e ocorre na
contradança da cronologia. Dito de outro modo, a relação tempo- imagem pressupõe
uma constante articulação com a memória, uma vez que toda obra carrega consigo um
pretérito e também uma projeção em direção à posteridade, sendo que nela está contida
uma fagulha explosiva que permanece naquilo que um dia foi, fazendo com que o passado
não cesse de se reconfigurar como abertura. Cada época traz consigo infinitas
possibilidades de encontros com o passado, bem como prefigura e guarda potencialidades
futuras. Concepção que por sua vez guarda familiaridade com a concepção warburguiana
de que algo do que um dia foi fica retido, persiste e insiste nas imagens, atravessando os
tempos e voltando como ondas mnemônicas.
Nem simples continuidade, nem arquétipos, trata-se de problematizar as imagens
como persistência de lapsos e anacronismos, irresoluções e resíduos do tempo que nos
alcançam em nossas inquietações. Assim, não se trata de um humanismo à maneira de
Vasari, Kant ou Panofsky, os quais não questionam nem a representação nem o regime de
saberes da disciplina de história da arte, mas de um procedimento crítico que considera
menos a série das regras e convenções como verdades definitivas e mais a série das
exceções que fazem as imagens cintilarem como desvios ou de-tempos, tornando-se aquilo
que interrompe o fluxo regular das coisas, pois não parece jamais caber num momento
9
perfeitamente adequado, tal como uma lei subterrânea que persiste no retorno de uma
enfermidade, aparição que conjuga diferente- semelhante, imobilidade-aceleração, recalque
e retorno de uma latência. Eis o conceito de sintoma, não conforme o entendimento
semiológico ou clínico, mas como a potência imagética que recusa tanto conceder a última
palavra ao presente como se submeter ao tempo cronológico.
Referências bibliográficas:
ADES, Dawn. Arte na América latina. S.P., Cosac & Naify, 1.997.
CHIARELLI, Tadeu. A Arte Internacional Brasileira. S.P., Lemos, 2002.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 2ª edição.
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CONTAMINAÇÕES E DESVIOS NAS PINTURAS DA AMÉRICA LATINA
Academicismo e Modernismo na América Latina. [1]
Rosângela Cherem[2] e Ana Lúcia Oliveira Fernandez Gil[3]
Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes,
Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo[4]
RESUMO: Este artigo se apresenta como um breve levantamento de problemáticas próprias a
História da Arte, particularmente no que diz respeito ao pensamento plástico e sua relação
com as rupturas e desvios encontrados na produção pictórica da América Latina. Aborda duas
questões que reverberam, destacando em Cândido Portinari e Oswaldo Guayasamin uma
assimilação que advém como repetição das experimentações vanguardistas, e salientando em
Raquel Forner e José Silveira D’Ávilla certas renitências barrocas.
PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; História da Arte; pintura; América.
Latina.
Questão I – A Sombra de Picasso
As reflexões que aqui seguem destinam-se a buscar uma ultrapassagem dos
enquadramentos estilísticos, problematizando certas referências e contaminações da cultura
européia em relação aos países da América Latina e abordando como os artistas incorporam
na sua produção combinações entre os códigos estilísticos aprendidos na Europa e certas
particularidades do repertório imagético de clave local. Adotando um repertório considerado
de vanguarda, particularmente no que diz respeito aos compromissos artísticos com as causas
de transformação de seus meios, muitos destes protagonistas se empenharam em abordar
[1]
Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina.
Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC.
[3]
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC.
[4]
Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de
pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente
participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas;
Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil,
bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis, bolsista voluntária,
acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas.
[2]
plasticamente os impasses e dramas nacionais, problematizando questões sociais e políticas
nas cenas pictóricas.
Todavia, enquanto alguns artistas seguiam uma vertente mais voltada para a
problemática da cor e a temática da natureza da pintura, outros representantes, como o
Portinari (N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro, 1962) no Brasil, utilizavam o
expressionismo social como uma ferramenta de denúncia, assim como o Oswaldo
Guayassamín (N. Quito, 1919 – M. Quito 1999) do Equador. É notório observar como as
obras destes dois pintores assemelham-se, tanto no que diz respeito às cronologias, bem como
às experiências no percurso acadêmico, opções estilísticas como em relação ao temas
abordados. Também é interessante salientar outros paralelos encontrados. Portinari, assim
como Gayassamín, estudou na Escola de Belas Artes, um no Rio de Janeiro e outro em Quito,
ambos receberam bolsas para estudar na Europa e pertenceram ao mesmo período acadêmico,
recebendo as mesmas bagagens consideradas vanguardistas para a época.
A produção de Portinari foi muitas vezes comparada a dos muralistas mexicanos, não
só quanto ao suporte, mas também pela temática através do interesse pela questão social, a
narração eloqüente e a monumentalidade. Em suas obras, os retirantes nordestinos, os
trabalhadores rurais de membros deformados, os tons de marrom e os de roxo dos campos
cultivados, expressam a força da terra. Sofre forte influência das obras de Picasso,
principalmente no período que está na França, a exemplo da Guernica e seu uso de cores
sombrias, cujo mural apresenta-se como um protesto à invasão dos nazistas na cidade de
Guernica, na Espanha. Como Portinari, Guayassamín, na sua obra humanista indianista,
considerada pelos críticos como expressionista, também reflete a dor e a miséria que suporta o
seu país, bem como a maior parte da humanidade, enunciando a violência e retratando as
guerras do início do século XX. Também produz murais em instituições do governo e
privadas, como Portinari. Ambos retratam o cotidiano do seu povo, os seus costumes, mas são
influenciados pela estética do movimento ao qual aderiram. Essas pinturas por sua vez,
carregam uma dramaticidade das expressões, mas os planos de fundo inseridos não denotam
as batalhas e acontecimentos de maneira clássica, como representados na Europa, com suas
conquistas e tragédias (geralmente são fundos chapados e com cores sombrias ou neutras,
característica muito pertinente nas obras latino-americanas).
Diferentemente das gerações precedentes, delimitadas pela realidade imperial e da
vida cujo centro era a corte do Rio de Janeiro, é notório salientar também que muitos artistas
da primeira metade do século XX se preocupavam com a busca pictórica de uma nova
identidade nacional, reelaborada em tempos de imigração e trabalho livre. É assim que nas
suas telas surgem novas cenas e paisagens como as de Portinari e Volpi, descendentes
italianos e do lituano Lasar Segall. Nas figuras 1 e 2, por exemplo, a cena denota um contexto
típico do Brasil, que retrata o êxodo das famílias nordestinas e as dificuldades e sofrimentos
enfrentados pela fome e pobreza. Salientam-se aqui os tons de roxo, azul e bege que insistem
em se repetirem num contraste sombrio, além da presença de ossos no chão, fazendo alusão à
seca que castiga esta terra pobre, as famílias mestiças com os olhos a saltados e pés descalços,
característica muito usada na corrente expressionista, com o intuito de salientar a condição
humana.
Outros detalhes dão sutileza a esta nova realidade, como a composição das famílias,
sempre numerosa, com faces desbotadas e rostos desacreditados, vagando num espaço vazio,
denota a sensação das incertezas. Inclusive, percebe-se a construção de sutis planos de fundo
como a representação de montanhas ao fundo da figura 2, mas difusa, e nublada, dando a idéia
de uma superficialidade pictórica e não possuindo uma densidade como nas representações
paisagísticas européias.
Vale lembrar que o uso das distorções e cores utilizadas para
expressar o contexto, apesar de ficar claro que trata-se de uma realidade nacional, continua
arraigada a valores estéticos europeus, no uso de técnicas e estilos de correntes vanguardistas.
Fig. 1: CANDIDO PORTINARI
(N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro,
1962), Criança Morta (Criatura muerta), 1944
Óleo s/ tela, 176 x 190 cm.
Col. Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand São Paulo, Brasil
Fonte: http://www.iejusa.org.br/artes/index.php
Fig. 2: CANDIDO PORTINARI
(N. Brodósqui, São Paulo, 1903 – M. Rio de Janeiro,
1962), Retirantes (Retirantes), 1944
Óleo s/ tela 190 x 180 cm.
Col. Museu de Arte de São Paulo Assis
Chateaubriand São Paulo, Brasil
Fonte: http://masp.uol.com.br/exposicoes/
2006/portinari/
Fig. 3: OSWALDO GUAYASAMÍN
(N. Quito, 1919 – M. Quito 1999)
Os Desesperados nº 1 –
A Idade da Ira – 1966
Óleo sobre tela, 100 X 200 cm
Localização: Quito – Equador
Fonte: http://en.wikipedia.org/
wiki/Oswaldo_Guayasamin
Fig. 4: OSWALDO GUAYASAMÍN
(N. Quito, 1919 – M. Quito 1999)
O Grito III, 1983
Óleo sobre tela, 130 x 90 cm
Localização: Quito – Equador
Fonte: http://www.guayasamin.com/
pages/2_obra_edad_ira.htm
Nas figuras 3 e 4 também são conservados os usos das cores sombrias, que são
características do movimento e as figuras representadas fora de proporção, principalmente as
mãos; mas Oswaldo Guayassamín não se preocupa tanto com a cena, preferindo enfatizar a
expressão humana, contudo permanece as características acadêmicas aliadas ao indianismo
que representa o seu povo e sua história. O plano de fundo, como uma característica moderna
observada nos países latinos, também aqui, nas obras do Guayassamín, não têm a densidade e
a força das vanguardas, mas retrata a condição social e econômica ao qual seu país se
encontra como também o Portinari fez.
De acordo com o crítico Rodrigo Naves, crítico de arte e editor da revista Novos
Estudos (Cebrap), a pintura moderna afastara as relações mais ou menos serenas entre espaço
e objeto, entre figura e fundo. Afinal, como manter uma única dinâmica, que a todos impõe à
lógica do mercado? Com o cubismo o espaço adquire um tanto da solidez das coisas, ao passo
que elas recebem algo da plasticidade espacial. Assim, a unidade das telas obtinha uma nova
configuração na em medida que este intercâmbio propiciava uma interação mais estreita entre
ambos. Fragmentadas, recortadas por diferentes pontos de vista, as pinturas analíticas de
Picasso e Braque estabelecem também uma continuidade entre as figuras e seu ambiente, sem
as antigas imunidades recíprocas. Daí decorre a força estrutural dos quadros cubistas, pois é
justamente aquela trama de relações que constitui o verdadeiro conteúdo das telas. O mesmo
autor levanta críticas ao artista dizendo que ele não conseguia se libertar de um estilo
marcadamente sentimental e não resistia a apelar para as emoções derramadas, ainda que
socialmente inócuas com o intuito de obter ampla difusão e reconhecimento, por meio do que
chama de “empatia áspera” 1. 1
Todavia, como colocado por Annateresa Fabris (1977), “o veio realista de Portinari
ganha reforço na Europa na época em que um Picasso neoclássico era o grande modelo, e
Portinari, é moderno dentro das peculiaridades do modernismo no Brasil, que não teve
sincronia com os movimentos estéticos do Velho Mundo”2. Importante perceber ainda, que o
cubismo, mesmo exercendo muitas influências, foi transformado por Portinari: seu trabalho é
marcado mais como um jogo de iluminação sem prejudicar a imagem natural. Quanto ao
engajamento social do artista, muitos o avaliaram como sendo superficial ao mostrar o
operário com uma expressão serena e tranqüila, afastando a idéia de sofrimento causado pelo
trabalho. Quando interrogado sobre o fato de não criar um estilo novo, respondia que seu
traço era seu estilo e a forma como realizava seus trabalhos, era única3. Para ele, não havia
sentido em buscar um estilo novo em cada artista.
Tanto na América Latina, como no Brasil, as pinturas apresentam características muito
peculiares, no que diz respeito às reproduções pictóricas, pois conseguem aliar as influências
européias e o artesanato local vindo de outras etnias trazidas para o Brasil. Tal situação gerou
no século passado uma produção de caráter oficial e sem-oficial que, absorvendo apenas a
sofisticação das técnicas artísticas introduzidas pela Academia – e não erudição com que ela
teoricamente poderia contribuir -, manteve em grande parte o caráter preponderantemente
artesanal da produção anterior à instalação daquela instituição. Naquele período, a produção
artística ou repetia soluções já institucionalizadas pela tradição acadêmica, ou então
mantinha-se alheia àquela influência, preservando valores estéticos híbridos, constituídos
pelas experiências populares mescladas, muitas vezes, pela tradição barroca do lugar, já
enraizada. De acordo com esta afirmativa, explica o crítico de arte, Tadeu Chiarelli:
A contribuição do imigrante para a arte brasileira foi justamente seu saber
artesanal, sua intimidade com os meios técnicos adquiridos em seu país
natal e/ou em suas colônias no Brasil. Um saber artesanal que,
diferentemente daquele já existente no país, dera as bases para que em
1
www.estado.estadao.com.br, entrevista da edição de 23 de junho de 1993.
http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2005/humanas2005/o_engajamento.PDF
3
www.estado.estadao.com.br
2
nações como a Itália, por exemplo, fosse formulada uma arte erudita
sofisticada, fato que a herança portuguesa parece não nos ter cegado. Pela
origem social da maioria desses artistas imigrantes, porém, sua presença no
Brasil reforçou na produção local seu caráter fundamentalmente popular,
existente como substrato da arte aqui realizada, uma vez que, como foi
visto, esta era produzida em grande parte por artistas de baixa extração
social. Eles trouxeram um aprimoramento técnico maior, uma intimidade
mais aguda com os processos do fazer artesanal, reforçando assim uma
produção menos voltada para a severidade grandiloqüente e distante da arte
erudita, e mais afeita à possibilidade de uma convivência menos
hierarquizada com o público. (CHIARELLI, Tadeu, 2002, pg.19)
Para Pablo Neruda, Guayasamín forma, ao lado do brasileiro Portinari e dos pintores
mexicanos José Clemente Orozco, Diego Rivera e Rufino Tamayo, a “estrutura andina do
continente”. “São importantes e exuberantes, crispados e ferruginosos”. “Eu o coloco
(Guayasamín) em meu santuário de santos militares e aguerridos, arriscando-se sempre por
inteiro na pintura. Como pequenas nuvens, as modas passam por cima de sua cabeça sem
nunca o amedrontarem” 4, afirmou o grande poeta chileno, em 1969.
Para complementar este item indo a uma questão teórica sobre a familiaridade das
imagens entre Portinari e Guayasamin, cabe destacar que suas obras guardam as
particularidades artísticas que as constituem como diferença. Segundo Deleuze a obra de arte
se repete como singularidade sem conceito e uma perseverança não faz uma repetição. Se a
repetição existe, ela exprime, ao mesmo tempo, uma singularidade contra o geral, uma
universalidade contra o particular, um notável contra o ordinário, uma instantaneidade contra
a variação, uma eternidade contra a permanência:
Repetir é comportar-se, mas em relação a algo único ou singular, algo que
não tem semelhante ou equivalente. Como conduta externa, esta repetição
talvez seja o eco de uma vibração mais secreta, de uma repetição interior e
mais profunda no singular que a anima. A festa não tem outro paradoxo
aparente: repetir um “irrecomeçável”. Não acrescentar uma segunda e uma
terceira vez à primeira, ma elevar a primeira vez à “enésima” potência. Sob
esta relação da potência, a repetição inverte-se, interiorizando-se
(DELEUZE, 1988, p. 6)
4
Fragmento do texto retirado do site: http://www.revistamuseu.com.br/galeria.asp?id=11067
Sob todos os aspectos, a repetição só aparece na passagem de uma ordem de
generalidade à outra, aflorando por ocasião desta passagem e graças a ela. Esta fórmula
significa: em totalidades semelhantes, poder-se-á sempre reter e selecionar fatores idênticos
que representam o ser-igual do fenômeno. Assim procedendo, não nos damos conta, porém,
daquilo que instaura a repetição, nem daquilo que há de categórico ou é de direito na
repetição, sendo que o que é de direito é “n” vezes como potência de uma só vez, sem que
haja necessidade de se passar por uma segunda, por uma terceira vez. Na sua essência, a
repetição remete para uma potência singular que difere por natureza da generalidade, mesmo
quando ela, para aparecer, se aproveita da passagem artificial de uma ordem geral a outra.
Questão II – As renitências do barroco
Este item problematiza a repetição de questões pictóricas, que sendo mais explicitadas
na pintura barroca acabam persistindo e retornando no século XX, reafirmando a constatação
de que certos rótulos não são suficientes para reconhecer as particularidades de uma obra. Em
especial, trata-se das pinturas de Raquel Forner (N. 22/04/1902, Buenos Aires – M. 1988) e
de José Silveira D’Ávila (N. Florianópolis, 1924 – M.1985), artistas pertencentes ao assim
chamado período modernista na América Latina e de Santa Catarina. Como os artistas
anteriormente abordados, estes possuem formação acadêmica. José Silveira D’Ávila estudou
na Escola de Belas Artes do Rio de Janeiro e Raquel Forner, da mesma forma, estudou na
Academia de Belas Artes de Buenos Aires.
Chama atenção certos elementos encontrados nas suas pinturas que não se ajustam
plenamente e nem se encontram em conformidade com nenhum padrão ou estilo pictórico
especificamente, remetendo a uma variedade de contradições implicadas nos detalhes e
aspectos de outras temporalidades, quebrando um estado de familiaridade e estabilidade
visual. E se sobressaíram justamente por não seguirem fielmente padrões estilísticos exigidos.
Neste sentido, Raquel Forner trabalha com elementos periféricos e características surreais, sua
obra possui uma atmosfera densa, onde comparecem geralmente figuras centrais mórbidas e
ao seu redor, muitos detalhes e figuras sombrias e soturnas que preenchem todo o campo
periférico de suas pinturas. Seu trabalho denota dor e sofrimento, apresentando-se também
como denúncia da guerra civil espanhola e fazendo alusão a Segunda Guerra Mundial.
Mulheres com véus, acompanhadas de jovens com expressões sombrias e criaturas fantásticas,
cuja caveira é presença constante. O mistério permanece com a tela, que vira fundo ao parecer
rasgada. Como se fosse um “buraco-negro”; parece existir um outro lugar que aos olhos,
permanece oculto. Apesar de Forner estar classificada na corrente surrealista, suas obras
denotam um “ar barroco”, pelo uso de cores sombrias e como exemplo, na figura 10, a
representação de um Cristo numa espécie de papel ou pergaminho, sendo puxado pela jovem.
A maioria das figuras humanas representadas nos quadros estão de lenço.
José D’Ávila trabalha com as contradições tonais e com os excessos de arabescos e
ornamentos, comuns tanto ao barroco como ao rococó, mas deixando transparecer suas
inquietações religiosas e transcendentais, reafirma um olhar cristão mesmo no uso dos seus
títulos. Sua obra apresenta-se dividida em duas atmosferas: uma mais pesada, na parte inferior
e outra mais leve, na parte superior, o que causa uma diferença de superfícies e traz uma
leveza à parte superior da composição. Destaque-se o efeito aqüarelado na parte superior de
seus quadros, possivelmente decorrente de sua experiência com vidro. Como Forner, seu
trabalho também possui muitos detalhes que instigam, pois geralmente as imagens que são
representadas conflitam com a composição figura-fundo. Eis uma semelhança entre os dois
artistas: a peculiaridade dos detalhes e expressões. Porém a diferença está na orientação que
cada um toma em relação à composição, ou seja, como estes dois artistas trabalham os
elementos da cor, luz, sombra e formas. Outra característica que merece ressaltar são as
figuras zoomórficas do José Silveira D’Ávila, evidenciando ainda mais esta atmosfera do
fantástico, mas sempre com nuvens, com a presença da caveira em um dos planos, como
também explora a Raquel Forner, só que na periferia ou no centro dos seus quadros.
Se o trabalho de Forner é mais sombrio e fantasmagórico, o de D’Ávila vem misturado
com o transcendental. Em ambos os pintores registra-se um anacronismo evidenciado nas
imagens aqui apresentadas, singularidade que parece situá-los fora de sua época.
Relacionados a certas características modernistas, especialmente ao surrealismo, suas obras
têm uma carga ideológica muito forte, com a presença constante desses signos e pelo uso de
muitos detalhes. As características que denotam as peculiaridades nas obras destes dois
artistas é como eles trabalham com diferentes temporalidades, juntando elementos
anacrônicos, que estão latentes em suas obras, ou seja, são as caveiras, os homenzinhos, as
figuras zoomórficas, os planos, as diferenças tonais, são estes elementos que dão força,
potência a este conjunto de obras. Não estão preocupados em estar representando fielmente
uma época ou estilo, com suas características formais consagradas. Justamente o que intriga é
essa miscelânea de elementos que configuram estas pinturas, dando-lhes potência.
É interessante fazer uma analogia com estes planos (céu, inferno, limbo) nas obras
destes dois artistas. No caso das obras do D’Ávila, é como se as figuras estivessem à caminho
da redenção, da salvação, ao passo que, nas obras da Raquel Forner, suas criaturas estivessem
no plano do limbo, como os católicos denominam o local reservado para os suicidas, pessoas
em conflito. Por sua vez, as obras da pintora salientam as dicotomias e antíteses do barroco,
com signos surrealistas, como a mão que está abaixo da circunferência que simboliza a terra
(ver fig. 10). Como se as almas boas tivessem direito à salvação e as almas perdidas ficassem
no purgatório, em busca da redenção, criando essa relação de valores, com o intuito de
evidenciar estas virtudes ou pecados pela representação tonal e luminosa de seus quadros.
O interessante é pensar que “o anacronismo atravessa todas as
contemporaneidades. Não existe – quase – a concordância entre os tempos.
Reconhecer no anacronismo uma riqueza, pois tentamos explicar algo que
retorna, que volta, que está latente na história da arte e que permanece em
muitas produções, e o mais interessante: em diferentes contextos e
civilizações, mas que se repetem, com inúmeras variáveis de acordo com as
mais diversas possibilidades que estas obras possam causar em diferentes
culturas, provocando diferentes olhares e indagações. ” (HUBERMAN,
DIDI, Arte ante el Tiempo, pág. 13).
Fig. 6 JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA
(N. Florianópolis, 1924 – M.1985)
Renovação, 1963
Acrílico s/ papel, 40 x 32, cdi “d’Ávila”
Doação Marion d’Ávila.
Fonte: arquivo de imagens do MASC –
Museu de Santa Catarina
Fig. 7 JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA
(N. Florianópolis, 1924 – M.1985)
Apocalipse, s.d
Aquarela s/ fórmica, 38,5 x 47 c.d.i “d’Ávila”
Aquisição MAS C
Fonte: arquivo de imagens do MASC –
Museu de Santa Catarina
Fig. 8 - JOSÉ SILVEIRA D’ÁVILA
(N. Florianópolis, 1924 – M.1985)
Antífona, s.d – Ilustração para olivro “Poesia
Completa de Cruz e Souza”
Carvão s/ papel, 23 x 16 c.d.i “d’ávila”
Doação Edições FCC
Fonte: arquivo de imagens do MASC –
Museu de Santa Catarina
Fig. 9 - RAQUEL FORNER
(N. 22/04/1902, Buenos Aires – 1988)
“Retábulo da dor”, 1942
Óleo s/ tela, 152,5 x 87 cm
Fonte: http://www.mnba.org.ar/obras_
autor.php?autor=125&opcion=1
Fig. 10 - RAQUEL FORNER (22/04/1902, Buenos Aires, - 1988)
“Drama”, 1942, Óleo s/ tela, 126 x 178 cm
Coleção do Museu Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires.
Fonte: http://www.fundacionkonex.com.ar/bienales_del_arte/forner_raquel.asp
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 NAVES, Rodrigo. A forma difícil, ensaios sobre arte brasileira, São Paulo. Ed. Ática, 2ª
edição, 1996
2 CHIARELLI, Tadeu, Arte Internacional Brasileira, 2ª edição – São Paulo: Lemos
Editorial, 2002.
3 Novecento sudamericano, (Relazioni artistiche tra Italiae Argentina, Brasil, Uruguai)
Relações artísticas entre Itália, Argentina, Brasil e Uruguai, Pinacoteca, Ed. Palazzareale.
4 DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. R.J: Graal, 1988, cap. I e II.
5 DELEUZE, Gilles. A lógica da sensação. R.J: Zahar, 2007, p. 123 e seg.
6 DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo. Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006, cap.
I
REFERÊNCIAS INTERNET
1 http://www.revistamuseu.com.br/galeria.asp?id=11067 - Acesso em 4 de junho de 2008
2 http://www.culturabrasil.org/portinari.htm - Acesso em 4 de junho de 2008
3 http://www.guayasamin.com/pages/1_og_biografia_2.htm - Acesso em 4 de junho de 2008
4 www.estado.estadao.com.br – Acesso em 25 de maio de 2008
5 www.culturabrasil.pro.br/portinari - Acesso em 25 de maio de 2008
6 http://www.propp.ufu.br/revistaeletronica/edicao2005/humanas2005/o_engajamento.PDF Acesso em 20 de maio de 2008
Retratos negros e buracos
Academicismo e modernismo em Santa Catarina1
Sandra Makowiecky 2 e Marina Rieck Borck3
Participantes do Grupo de Pesquisa (SC): Giorgio Vicenzo Filomeno4
Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia
Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5
RESUMO: Desde as primeiras manifestações culturais do homem a representação da
figura humana é tentativa recorrente. As pinturas rupestres já tratavam desta questão, da
busca de uma identidade, de um rosto para aquele ser desconhecido – uma imagem para
o próprio homem. Este artigo parte deste começo para tratar de retratos produzidos por
artistas modernos latino-americanos – pensando o retrato como noção operatória, e por
isso mesmo descolado de discursos como o da regionalidade ou o da biografia como
explicação da obra, apesar de respeitar o recorte proposto.
PALAVRAS-CHAVE: academicismo, modernismo, teoria e crítica de arte, arte
brasileira, arte latino-americana, história da arte.
O RECORTE: As imagens de que trata este artigo foram escolhidas dentre milhares de
pinturas modernas latino-americanas, compreendidas no período que vai do início do
século XX até meados de 1950, variável, conforme as peculiaridades de cada país em
relação à arte e ao moderno, pesquisadas pelo grupo “Academicismo e modernismo em
Artes Plásticas em Santa Catarina”. O procedimento para o recorte do olhar proposto
aqui procurou uma inquietação não nova, ao contrário, talvez das mais antigas da
história da pintura universal: o rosto e sua ausência quando da representação do homem.
Devido à aproximação entre os grupos de pesquisa, um responsável pelo academicismo
1
Academicismo e modernismo em Santa Catarina– UDESC, Centro de Artes
Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC.
3
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC.
4
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina.
5
Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo
de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky e Rosangela Miranda Cherem. Ana Lúcia Gil, bolsista
PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso
de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e
Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também acadêmica do curso de Artes Plásticas.
2
e modernismo em Santa Catarina e o outro pelo mesmo recorte temporal na América
Latina, e pela participação do procedimento por ambos os grupos – esboçamos a
problemática sobre o arsenal imagético e suas possibilidades de abordagem,
particularmente no que se refere a questões relacionadas à cronologia e anacronismo,
semelhança e dessemelhança, proximidade e distância, superfície e profundidade –
achamos por bem concentrarmos nas imagens e nos problemas que a seleção feita
acarreta para a História da Arte, dentro de todo nosso arsenal imagético, sem nos
concentrarmos na questão do território onde foram feitas as imagens, dentro de nosso
amplo espectro de interesse. Por isso, vamos nos deter neste artigo em particular em
artistas latino-americanos, ao invés dos artistas catarinenses. O que nos interessa é a
reflexão possível na leitura de imagens e as possibilidades de estudar a história da arte,
no âmbito do grande grupo de pesquisa, do qual participa com alto grau de importância
o grupo sobre Academicismo e Modernismo na América Latina.
O PROBLEMA: Pode-se mesmo questionar que pessoas são estas, cujos rostos não se
mostram nos quadros onde pousam retratadas. De que modo o rosto serve ao homem –
que emoções pedem que o rosto seja retirado da cena; quando é retirado da idéia de
homem? Este artigo procurará relacionar as imagens latino-americanas selecionadas
com questões universais acerca do rosto e do retrato, pensando-o como noção operatória
mais que como uma forma de representação tradicional a serviço de discursos que vão
para além da própria questão humana. Em última instância, o que se pretende neste
artigo é libertar o retrato de sua função tradicional, que visa reconhecer no homem um
rosto já recheado de significados. Nestas imagens o rosto não aparece, mesmo quando
se mostra. Os olhos são vazios, vazados, quando existem. No percurso da narrativa
proposta pelas imagens latinas, seguindo o recorte de imagens proposto, será possível
perceber o quanto o ato de esconder o rosto com as mãos talvez seja mais recheado de
significados para além do próprio homem do que o rosto e os olhos desenhados – que
muitas vezes representam o abismo, na linha de Blanchot e Bataille, dois autores
fundamentais para este raciocínio. Das camadas de Didi-Huberman, o presente artigo
retira sua noção de retrato, do retrato como ausência, falta, como buraco. O problema,
aqui, são os rostos que não se representam, ao contrário, mostram o quanto descoincidentes são consigo mesmos; o problema é o corpo como bloco, como caixa, como
espaço. O problema, aqui, é a semelhança – não a semelhança a alguma coisa, positiva,
mas segundo o raciocínio de Roger Callois, em sua Psicastenia Legendária –
“simplesmente semelhança”6
A MÁSCARA: O rosto não é um assunto novo, sabe-se das antigas representações do
homem pelo homem, quando ainda talvez não se soubessem já determinados pelos
gestos humanos. Neste tempo remoto, em meio a pinturas de animais e caças feitas em
paredes, aquele homem propunha para si uma imagem – um rosto: um rosto não
humano, mas daquela caça que confrontavam. O rosto do homem era o pássaro; o da
mulher era o corpo, as ancas, os seios. Mas que forma teria o olho que refletia tais
absorções?
Ao longo da História da Arte, a representação que o homem faz de si – e o uso
que faz de sua própria imagem em função de um dizer qualquer – sempre foi assunto
recorrente. Talvez haja questões regionais que diferenciam o uso da figura humana a
serviço de uma idéia estruturada e sistematizada, em função de um discurso implicado
com um determinado contexto histórico, por exemplo. No entanto, parece precipitado
afirmar o uso da figura humana – do rosto – apenas como um veículo político partidário
de causas alheias à própria condição humana. Nem sempre ele representa alguma coisa
para além do que esconde. Seja na pré-história, nas pinturas das cavernas, onde aparece
a figura humana pelas primeiras vezes, seja nas imagens feitas por pintores modernos da
América Latina de diversos países, em maior ou em menor grau de comprometimento
com questões exteriores, percebe-se a retirada do rosto quando se pretende acessar o
máximo da condição humana: a angústia gerada pela falta – de vida, de olhos, de força.
Quando o rosto sai da cena é a pergunta. O que aparece quando ele sai. Quando ele é
retirado – e quando deve ser retirado?
Essa superfície nervosa que se chama rosto. Nas pinturas latino-americanas ele é
representado de diversas formas e recebe vários significados a partir delas. Os primeiros
Fig. 1 – Chile. Alfredo Valenzuela Puelma. 'Meu filho Rafael'. S/ dados
6
Callois, p. 63
exemplos desta série, numa clave impressionista, os rostos sustentam olhos
melancólicos, tristes, como o rosto da criança do chileno Alfredo Valenzuela ( Fig. 1).
De rosto inerte, parado, os olhos da criança transbordam tristeza, porém uma tristeza
contida, já um pouco distanciada do momento máximo do encontro com a dor, como
quem apenas narra através do olhar um evento passado. O clima impressionista de Mary
Cassatt e James McNeill Whistler aparece muito forte nesses olhos fundos e distantes.
Também o clima dado pela influência das grandes pinturas realistas espanhóis sobre o
olhar de Alfredo Valenzuela.
fig. 2 – Chile. Camilo Mori Serrano. 'Mulher de azul'. S/ dados
Também na outra imagem, na ‘Mulher de Azul’( Fig. 2) , cuja melancolia do corpo fala
no lugar dos olhos, os olhos são opacos, buracos. A vaporosidade da carne,
inapreensível, é reforçada pelo negrume dos olhos que se voltam para quem a olha, a
quem ela se oferece. A moça de Camilo Mori não parece mais que um corpo, um
invólucro capaz ao sexo, cujos olhos vazados ausentam-se da oferta: seu rosto sorri
fraco, seus olhos ameaçam e não se mostram, ao contrário de seu busto, que se mostra e
insinua abrir-se para quem quiser. Há uma espécie de resignação débil no sorriso, neste
seio em meio a frutas. Há a resignação da condição de um corpo que não pertence ao
rosto – e este remete ao corpo; o sorriso é forçado, aparecido de traz do buraco dos
olhos, das uvas, e das maçãs. Um quadro cujo estilo dialoga com o que havia de
vanguarda na Europa do início do século. Camilo Mori esteve por duas vezes na
Europa. Da França trouxe as primeiras insertivas modernas, quando abandonou o
realismo popular. Entre as estadas nesses lugares todos, era o Chile quem o abrigava e
respondia a suas perguntas.
São todos rostos: mostram-se ao mesmo tempo em que se velam. Ao se velarem, por
contrário, sugerem uma série de possibilidades. As imagens que seguem ( Fig. 3, 4 e 5)
são de rostos escondidos por mãos expressivas.
Fig. 3 – México. David Alafaros Siqueiros 'Angústia (mãe do artista)' 94x76 cm
Em três imagens seus pintores trocaram a face pelas mãos, pelos ombros. Nesta série,
quem os representou foram os artistas David Alafaros Siqueiros e o equatoriano
Eduardo Kingman. O mexicano adotou as causas populares e se engajou na luta em
favor da revolução com ideais comunistas e do povo mexicano. Chegou a fazer pintura
de cavalete, mas destacou-se pelos murais. Compunha o grupo de muralistas mexicanos,
entre Orozco e Rivera. Eduardo Kingman adota a semelhança dos muralistas
mexicanos, adota a retórica deles; expressa-se com um desenho grosseiro, fortemente
delineado, a linha rica de expressividade. Constrói as figuras com um realismo rigoroso,
a serviço do discurso da carne que é capaz de identificar nos corpos que representa em
seus quadros.
Fig. 4 – Equador. Eduardo Kingman. S/ dados
Aquilo que estamos habituados a perceber nas feições do rosto, no olhar, é passado
neste contexto pela expressão das mãos. Elas escondem os rostos, o acento é transferido
do sensível da pessoa através de seu olhar, interno, privado, para as mãos, expostas,
destinadas ao trabalho – estas falam sob o viés do drama humano, da dor ostensiva e do
sofrimento. São imagens, como foi dito, bastante trabalhadas pelos muralistas, que
assumiram a causa do povo e se valeram da arte para construir mensagens em favor da
minimização do sofrimento humano – cunho social. Mas percebe-se uma diferença de
estilo bastante grande no traço de Kingman e de Siqueiros. Kingman parece ultrapassar
Fig. 5 – Equador. Eduardo Kingman. ‘Agobio’. S/ dados
a causa populista, apesar de usar a forma do corpo comumente usada em favor deste
discurso. Especialmente este, retratou o cansaço, mesmo que um cansaço social, quando
abandona o corpo de suas figuras às mãos e ao chão, à descrença. É como se fossem
seus corpos apenas carne e desilusão, tristeza. Para não cair, apóiam-se nas juntas do
próprio corpo, apegados à matéria como tábua de salvação. As mãos são apoios da
alma. Os ombros se elevam acima da cabeça. O gesto das figuras, na superfície,
representa a dor humana e faz referência às questões sociais da latino-américa, ao estilo
criado no México, consagrado como latino-americano. No entanto, ressalta-se o cansaço
representado pelas costas altas, pois é isto que as imagens tratam. O abandono do corpo
a sua própria sorte deixando apenas um bloco de significados formado por carne. Uma
carne segura nos ossos, no quanto eles puderem estender-se; o resto é mole, derramado.
Tamanho abandono cria limites finos com o do corpo estendido no chão – com o corpo
da morte, o corpo do sono.
Fig. 6 – Equador. Oswaldo Guayasamin. 'O grito I', 1983. Óleo s. tela, 130 x 90 cm
O horror acompanha certos limites, o grito é alto na história da arte. Guayasamin (fig. 6)
mostra o horror em parte, a boca aberta, o buraco do olho, o rosto metade coberto,
metade grito. Este pintor equatoriano trata do tema em vários de seus quadros. Ele
mostra o rosto do medo, de quem viu o medo – o horror apenas pode ser visto pelos
olhos que o viram. Guayasamin retrata o rosto de quem presenciou o inominável, o
indizível, que só pode ser registrado se registrado deste rosto que o vivenciou. Sua vida
artística foi tradicional, burguesa, recheada de exposições individuais em importantes
museus pelo mundo. Gradua-se como Pintor e Escultor na Escola de Belas Artes de
Quito; pensar que tal mistura de faturas tenha resultado em tamanha expressão do grito,
que é a parte que cabe a este texto. Percebe-se no quadro em questão a dramaticidade
cênica, dada pela materialidade, pela densidade escultórica da pintura.
O rosto é fino, a pele é fina, capaz de rasgar-se. É nervosa bem na superfície,
treme quando faltam noites dormidas e sobram vidas conturbadas, quando desdobra-se
do horror. César Aira fala da impressão de Krause sobre o rosto do amigo Rugendas
depois de descrever para o leitor o estado deste rosto atingido por um raio, melhor, Aira
fala de impressões sobre um rosto que vivenciou o horror: “Krause estremecia só de
pensar como era frágil um rosto. Basta um golpe e já está destruído para sempre, como
um vaso de porcelana. Em compensação, um caráter era algo mais durável e uma
disposição psicológica parecia eterna.”7 Rugendas escondeu o horror de seu rosto com
uma mantilha preta, rendada. Guaysamin escondeu parte do horror com as mãos. Estes
rostos ainda representam algo para além de si, mas ainda existe um objeto a que se
destina a expressão deste rosto que se esconde.
Em artigo publicado numa revista de cultura, Augusto Contado Borges analisa
umas imagens que acompanharam as inquietações de Bataille sobre a condição humana,
sobre a dor; fotos de um supliciado chinês – um infrator chinês no início do século cuja
pena foi ser esquartejado em cem pedaços, tendo sua pele retalhada e seu corpo
despedaçado, ainda vivo, em praça pública. Ainda em relação à Rugendas, sob efeito do
ópio, esta droga tinha sob o supliciado função oposta à morfina usada pelo pintor
viajante: “Afinal, o ópio lhe havia sido ministrado para isso: prolongar seu sofrimento a
fim de forçá-lo a viver na própria pele seu maior e derradeiro papel.”8 O rosto do êxtase
é ausente do próprio corpo, abandona seu corpo para suportá-lo, ainda, depois. Nas
palavras do artigo:
“(...) vemos porções de seu corpo arrancadas,
membros decepados, a pele em carne viva, o
sangue escorrendo das chagas multiplicadas por
toda a superfície. A despeito de tudo, seu rosto
conserva uma expressão bizarra, desafiadora,
como se não fizesse parte da cena: um rosto fora
7
8
Aira, 2006. p. 60
Borges, 2001.
de
cena,
de
lugar,
de
sentido.
Na
mais
contraditória das imagens, a jovem vítima parece
não sentir o que sente. A aparência do supliciado
numa das fotos é a de um sujeito que não se
coaduna com o corpo. No entanto, era justamente
esse
corpo
que
impiedosamente
ia
aos
retalhado
poucos
pelos
sendo
carrascos
imperiais.(BORGES, 2001).
Eis o problema. Na medida em que o rosto se ausenta da cena, quando a expressão não
coincide com a representação simbólica de expressão adequada a cada experiência de
que se possa falar; quando o rosto se depara com o absurdo e não responde mais à
consciência, o que se vê? Na medida em que a presença do corpo é mais solicitada,
através da dor, do suplício, onde se encontra o ser a quem pertenceria aquele corpo? É
possível atribuir o rosto do supliciado ao corpo sob tortura? É puro corpo – e ausência.
Na pré-história a figura humana não tinha um rosto seu que não fosse roubado
das aves ou de outros bichos. Usavam máscaras e escondiam seus rostos – atrás das
mãos. Quando gravavam a palma da mão nas paredes das cavernas, ainda quando
representava o mundo abstratamente, através de risco e pontos repetidamente dispostos
em cavernas anteriores à Lascaux. Didi-Huberman sugere um “lugar humano” a partir
destes “primeiríssimos traços de humanidade”9 em texto que trata do retrato. O homem
da caverna estava já ensaiando um rosto seu, apesar de escondê-lo. Segundo o autor, o
rosto teve suas primeiras inscrições no mundo quando algum homem ritualizou a
ausência, o buraco, deixada pela morte do outro. Ritualizou o outro através de algum
gesto: este é o retrato: ritualização do outro ausente. Antes mesmo de representar-se a si
enquanto figura distanciada do meio, ainda os primeiros homens usavam características
alienígenas a eles para se representarem, a ausência de seu próprio rosto foi preenchida
pelo rosto do outro: o pássaro emprestou-se ao homem, que não se sabia distinto dele. A
cabeça do pássaro substituiu a cabeça do homem, quando para este ainda não havia
rosto, apenas buraco, ausência, intuição e dessemelhança. Hoje a cabeça do pássaro
acompanha o animal a que se destina por semelhança positiva, não segundo a
semelhança defendida por Callois, ou a do homem pré-histórico. Hoje crê-se em uma
9
DIDI-HUBERMAN, 1998. p. 66
imagem humana, e pretende-se lugares certos para as coisas. No entanto, este
deslocamento de objeto acontecido nas cavernas continua havendo. Hoje acontece sob
outra perspectiva, de acordo com nosso tempo, através do suporte e do discurso atuais,
porém, cujo significado atribuído pode ser exatamente o mesmo que atribuímos aos
deslocamentos pré-históricos. Ou seja, houve um segundo deslocamento, deslocou-se,
ao contrário de nossos antepassados, o objeto permanece – a cabeça é a mesma, e
novamente restitui-se o buraco – desloca-se o lugar do rosto. Agora vemos a ausência
por semelhança, um rosto assemelhando-se ao rosto ausente.
Depois de tanto tempo, ainda na modernidade, os pintores latinos – como outros
tantos, a começar por Francis Bacon e seus infinitos ensaios sobre a condição humana e
seu retrato – retiram seu rosto da figura. Ausentam os rosto de expressão. Retiram do
homem o que o difere de outros animais, devolvendo-lhe seu maior traço distintivo, o
Fig. 7 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Estudo', 1914. Óleo s. cartão, 46 x 54 cm
profundo do humano. Rafael Barradas, uruguaio, torna suas figuras desanimadas( Figs.
7, 8, 9, 10). Os olhos são buracos resignados, semelhantes a nada, cegos, quase ausentes
do corpo e da cena, ainda quando estão esboçados. As figuras perdem o movimento para
a paralisia do corpo inerte, estático, parado. O pintor teve uma carreira consistente, de
cujo intelectual, convivendo com pensadores ao freqüentar saraus e deixar-se
contaminar pelos pensamentos filosóficos e literários. Desenhista, fez cartazes e
ilustrações para revistas.
Fig. 8 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73
Fig. 9 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73 cm
Fig. 10 – Uruguai. Rafael Barradas. 'Pilar e Antoninha', 1922. Óleo s. tela, 114 x 73 cm
Esta última série de imagens representa o corpo visto por Rafael Barradas, o corpo
confundido com bloco, coincidente com o vazio de sentido. Os rostos mal esboçam
traços reconhecíveis – se há, têm olhos opacos ou inexistentes. Só sombra. As figuras
são contidas no corpo e se lançam ao observador através de olhos obliterados, são
ocelos; os blocos são mimetizados em corpos – cabeças imitam rostos, buracos imitam
olhos e blocos imitam corpos. Pura semelhança sem objeto. Olhos de vidro, olhos
apagados, rostos inexistentes e expressão nenhuma de humanidade no corpo. Os retratos
são formais e tradicionais, enganando solenemente o vidente desavisado: meio corpo
estendido virado para frente. Barradas parece enxergar o mesmo que Callois, a partir de
outro lugar. Callois se espanta com a mimetização de uns animais em especial com o
meio; Barradas sugere o espanto da coincidência do corpo do homem consigo próprio.
Ambos tocam na questão da semelhança – semelhança com nada. Através de um
procedimento metonímico, o pintor latino faz uma série de retratos com mesma forma.
Repete várias vezes o bloco com significação humana – pois nomeia os quadros com
nomes próprios, como se fossem os nomes das pessoas retratadas. Figuras que se
assemelham aos nomes, sem rostos ou gestos. No entanto, as figuras marcam um lugar:
elas estão ali, ocupando um espaço, como ocupa o corpo que dorme, para Blanchot.
A CONCLUSÃO: A questão maior tratada neste artigo, portanto, vem a ser o retrato e
seus desdobramentos em imagens modernas da América Latina, confirmada através
especialmente das imagens do uruguaio Rafael Barradas, que trouxe em seus quadros a
discussão iminente sobre o retrato feita por grandes teóricos, em acordo e concordância
direta com questões universais que atravessaram o tempo, chegando aos dias de hoje
tratando destas questões tão enigmáticas como o eram em tempos passados. Seu retrato,
apesar de intentar mostrar o retrato tradicional, foge a ele. Os olhos incisivos e vazios
retratados por Barradas não remetem a outras questões que não sua existência mesma, o
seu próprio vazio. Seriam suas imagens, portanto, o retrato como noção operatória, ao
invés de simples representação de pessoas.
Abaixo, outro retrato, de Franscisco Goitia ( Fig. 11), como mais uma tentativa
de esclarecer e confirmar a tese aqui proposta. Em sua vida, além de passar mais de 5
anos na Europa, ao voltar para o México, aliou-se a um general de guerra, como seu
pintor oficial, por isso acompanhando-o e aos seu exército por todas as partes que
fossem. Acompanhou muita guerra e muita morte. Goitia mostrou os estragos e
sofrimentos que estes também significaram para o povo do México. O ‘povo’ de Goitia
parece desiludido da salvação, estão mais próximos, mais uma vez, do real da condição
humana – não é mais o sofrimento cênico anterior à morte. Também retirou-se
novamente da “civilização” ao morar em meio a índios ao lado de um antropólogo
amigo, onde atuou como mestre e promotor. O quadro ‘Tata jesus Cristo’, abaixo, é um
de seus mais conhecidos, e traz o rosto ausente e o rosto da dor extrema.
Fig. 11 – México. Francisco Goitia. 'Tata Jesucristo', 1926.
O rosto e sua ausência nos serviram de motivo para pensar questões relacionadas
em especial ao anacronismo, através de uma possível reflexão sobre a leitura de
imagens – e as possibilidades de estudos da história da arte. A série proposta pretendeu
libertar o retrato de sua função tradicional e reconhecida, que crê haver nos rostos
apenas certas e determinadas interpretações, que não vê no rosto mais que superfície
recheada de significados.
A PRESENÇA DOS VÉUS NO OLHAR ARTÍSTICO
Ana Emília Jung1
RESUMO
O presente artigo visa, através de um breve panorama histórico, explicitar a relação
olho/olhar presente no discurso de filósofos e pensadores desde a antiguidade. Dando
ênfase ao argumento fenomenológico e psicanalítico sobre este assunto, trataremos de
fazer compreender o conceito de olho-sujeito presente na obra do historiador e crítico
de arte Georges Didi-Huberman, a partir do qual todo olho contem sua névoa, ou
seus véus.
O que constitui a visibilidade? Quais mecanismos a visão e o olhar
engendram? Se todo olho é um olho-sujeito, como afirma Didi-Huberman, o que é
ver? Quais são os véus que se interpõem entre olho, sujeito e mundo? Para pensar
estas questões faz-se necessário compreender que a questão relacionada à natureza do
olhar está presente desde a antiguidade no discurso dos pensadores. Naquele
momento os filósofos não faziam a distinção entre a sensação subjetiva da visão e o
processo físico da luz. Platão por exemplo, na obra Timeu, descreve os olhos como
porta-luzes onde o raio visual tratava de conectar luz e visão e o olhar iluminava os
objetos de sua visibilidade. Para ele, os olhos serviriam para contemplar as coisas
divinas e fazê-las matéria da própria filosofia, a visão funcionaria como apreensão
visual e o olhar estaria no universo de domínio das idéias - da theoria2. Aristóteles,
por sua vez, descreve a contemplação como a busca da felicidade e do prazer, em
oposição a busca de saber, e nesse viés São Tomás de Aquino formula a “visão da
essência divina” ou a beatitude. Se até então o olho e o olhar se complementavam e
fundamentavam a busca da verdade e do saber, em Sócrates essas funções separamse. O filósofo introduz a distinção entre o olho que vê a evidência da luz e o olho que
possui inteligência, o olho da alma. E com o avanço do estudo da ótica,
metodicamente explorada por Euclides, o olho separa-se definitivamente do olhar no
aspecto que faz dele um puro órgão anatômico.
É a fenomenologia inaugurada por Husserl e fundamentada por Merleau-Ponty
que, no campo da filosofia, retomará o debate do binômio olho-olhar como
1
Mestranda pelo PPGAV – CEART UDESC linha de Teoria e História da Arte,
orientada por Rosângela Miranda Cherem.
2
Ação de ver e contemplar, pura intelecção.
experiência ligada ao desejo3 e reintegrará o olhar subjetivo à ciência. Criticando
Descartes, seu império da evidência e o olho da razão, Merleau-Ponty propõe uma
reflexão que rompa com a dicotomia sujeito/objeto para assumir o entrelaçamento de
ambos a partir da noção de visibilidade. No livro “Um olhar a mais, ver e ser visto na
psicanálise” Antonio Quinet traça um panorama da problemática do olho/olhar que
circunda a filosofia e fundamenta o campo analítico, a percepção visual inclui o gozo,
apesar de velado, que se manifesta na afetação do sujeito mais do que como um ser
que vê como um ser visto. O binômio visível e invisível de Merleau-Ponty se desdobra
para a psicanálise em visão e olhar, imaginário e real pulsional sustentados em sua
antinomia pelo simbólico da linguagem. 4
1. Visível e Invisível em Merleau-Ponty
Para Merleau-Ponty é o olhar que toca as coisas do mundo providenciando a
aproximação entre vidente e visível5. Ambos, objeto e sujeito, entrelaçam-se fazendo
parte do mesmo elemento carne e estão contidos no mundo, é que a espessura da
carne entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade para ela, como de
sua corporeidade para ele; não é um obstáculo entre ambos mas o meio de se
comunicarem6. À visibilidade deste campo incorpóreo de atração mútua o autor
chama de “carne do visível”, sobre isto ele comenta:
Este campo é o lugar em que reflexão e intuição ainda não se distinguem,
oferecendo-nos juntos a existência e a essência, o visível e o vidente. O olhar apalpa as
coisas: interação do visível e do tangível. Essa “espessura da carne”- este campo denso entre o vidente e a coisa é constitutiva de sua visibilidade. As coisas não são achatadas, de
duas dimensões, mas seres dotados de profundidade, só acessíveis a aquele que com elas
coexiste num mesmo mundo.7
Entendendo que todo o olhar possui o que olha, Merleau-Ponty se pergunta
qual a relação de princípio entre vidente e visível, e ainda, se o vidente se inclui como
carne do mundo, ele próprio passa a ser visto como visível, supondo um outro vidente
que o olha, qual seria então o jogo de reflexão que sucede entre dois pontos da mesma
3
No campo da psicanálise, Freud é o articulador da função do olho em relação ao desejo,
campo denominado por ele de pulsão escópica e que serve como base para os estudos de
Lacan. Lacan é um dos principais interlocutores de Merleau-Ponty.
4
QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro:Jorge Zahar,
2004, 2ed, p.33
5
Merleau-Ponty situa o visível como a coisa passível de ser vista e o vidente como aquele que vê.
6
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 2003, p.132
7
Id., ibid., p.132
carne? O que o anima? A pergunta nas palavras do autor: O que é esta pré-posse do
visível, esta arte de interrogá-lo segundo seus desejos, esta exegese inspirada?8
Vidente e visível reciprocamente inseridos e entrelaçados numa rede de
interações tal como dois espelhos postos um diante do outro criam duas séries
indefinidas de imagens encaixadas, que verdadeiramente não pertencem a nenhuma
das duas superfícies, já que cada uma é a réplica da outra, constituindo ambas,
portanto, um par mais real que cada uma delas9. Assim, na atração entre vidente e
visível não há hierarquias, no grande espetáculo do mundo, vejo de onde também sou
visto. Quiasma é o que figura esta constituição da coisa, a relação que permeia o jogo
de olhares, de sorte que vidente e visível se mutuem reciprocamente, e não mais se
saiba quem vê e quem é visto10.
Figura 01. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951)
Vasos (1949)
Óleo sobre hardboard - 77,5 x 47,5 cm
Figura 02. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951)
A Natureza Morta com Maçã e Janela (1942)
Óleo sobre madeira - 77,5 x 55,4 cm
8
Id., ibid., p.130
Id., ibid., p.135
10
Id., ibid., p.135
9
Figura 03. Fortunato Lacámera (05.10.1887 - 26.02.1951)
Merenda
Óleo sobre cartão - 50 x 70 cm
Nas imagens do pintor argentino Fortunato Lacámera (Buenos Aires, 18871951) algo além da superfície pictórica parece estar sugerido através do efeito de
translucidez que o jogo de luz aponta. É como se os elementos pintados, copo, maça,
pão, jornal, etc. estivessem numa sintonia tal que se assemelhassem mais do que se
diferenciassem. Mas o que faz com que uma maça cintile numa mesma densidade que
um copo de água ou um jornal amassado senão a maneira que provocam um olhar?
Nessas três pinturas que usamos como exemplo, não somos tomados pela função dos
objetos representados, entramos num estado de espírito que nos conecta sem
hierarquia para com as figuras e nos deparamos com a possibilidade de inverter o
senso comum onde o eu vidente é o que olha primeiro. Aqui, como concebido por
Merleau-Ponty, já não sabemos mais se vemos ou somos vistos, de qualquer modo
estamos diante de algo que apreendemos e também através do qual somos
apreendidos. Fortunato Lacámera consegue nos oferecer em imagem a possibilidade
de vislumbrar a estrutura incorpórea de atração que Merleau-Ponty denomina carne
do visível.
2. Campo escópico em Lacan
Também para a psicanálise, assim como vimos acima na fenomenologia de
Merleau-Ponty, o olhar não é um olhar do sujeito e sim um olhar que incide sobre o
sujeito, é um olhar que o visa: olhar inapreensível, invisível, pulsional11. Em Lacan o
espaço de relações fundado na imbricação quiasmática entre olhares é chamado de
11
QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2004, 2ed, p.41
campo escópico, nesse espaço não é o vidente quem em princípio dirige o olhar mas
aquele que responde secundariamente a preexistência de um olhar outro, primordial:
eu só vejo de um ponto, mas em minha existência sou olhado de toda parte.12 Esse
dado-a-ver determina o empuxo daquele que vê algo anterior a seu olho. Nesse
sentido visão e olhar são de ordens distintas, enquanto a visão apreende o universo
tangível, é o olhar que posiciona o sujeito no sentido do Ser.
Figura 04. Marcelo Pogolotti (1902 - 1988)
Evasão (1937)
600 x 479 cm
No quadro “Evasão” do pintor cubano Marcelo Pogolotti (1902-1980) há um
jogo que poderia nos remeter ao campo escópico lacaniano. Nessa imagem a figura
feminina se encontra diante de um espelho e a imagem refletida na superfície
espelhada não corresponde ao que seria essa reprodução. O que está refletido é uma
outra cena que sugere algo alhures e onírico. Não seria a imagem do espelho uma
tentativa de figurar o lugar do empuxo?
3. Olho-sujeito em Didi-Huberman
A partir da reflexão iniciada na fenomenologia, em Freud e em Lacan,
Georges Didi-Huberman elabora o conceito de olho-sujeito. O lugar de onde vemos é,
em sua concepção, o lugar de onde somos constituídos, de modo que são as nossas
faltas as que nos apontam o mundo. No jogo do olhar, entre mundo e objeto, é
12
LACAN, Jacques. O seminário, os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de janeiro:
Jorge Zahar, 1998, p.73
impossível supor um olho nu pois todo olho é um olho-sujeito que traz consigo sua
experiência, como ele nos mostra:
O ato de ver não é o ato de uma máquina de perceber o real enquanto
composto de evidências tautológicas. O ato de dar a ver não é o ato de dar
evidências visíveis a pares de olhos que se apoderam unilateralmente do “dom
visual” para se satisfazer unilateralmente com ele. Dar a ver é sempre inquietar o
ver, em seu ato, em seu sujeito. Ver é sempre uma operação de sujeito, portanto uma
operação fendida, inquieta, agitada, aberta. Todo olho traz consigo sua névoa, além
das informações de que poderia num certo momento julgar-se o detentor13
O olhar cindido do qual nos fala Didi-Huberman não se apóia nem na
evidência do visível, tautológico, nem no alhures da dimensão da crença mística. É
constituído no momento de fratura e sustenta sua posição de entremeio na dialética
dessas forças. No momento de cisão é que o que vemos justamente começa a ser
atingido pelo que nos olha e somos então atravessados pela dimensão capaz de nos
desestabilizar. Diante das imagens artísticas o olho-sujeito, de efeito singular, deixase ser provocado pela descontinuidade. Esse é o viés dos véus do olhar artístico,
principalmente nas imagens que sabem apresentar a dialética visual desse jogo no
qual soubemos (mas esquecemos de) inquietar nossa visão e inventar lugares para
essa inquietude.14
Figura 05. Horácio March (1889 - 1978)
Paisagem
Óleo sobre cartão - 60 x 50 cm
13
14
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998, p.77
Id., ibid., p.97
Na pintura “Paisagem” do argentino Horácio March (1889-1978), o
caminho não cumpre sua promessa de levar-nos até o horizonte, pois a rua termina e
diante do oceano só podemos contemplar a paisagem. Insinuando a vastidão que está
alhures na condição de ser oceano, somos impedidos do todo, temos que nos contentar
com o fragmento da promessa. E talvez justo por isso a promessa não se desfaça. Essa
é uma obra capaz de provocar um encontro do espectador com a noção de
desestabilização. Dando e tirando, oferecendo e não entregando a possibilidade do
encontro, Horácio March nos coloca na própria experiência a qual nos aponta DidiHuberman, a de inquietar nossa visão diante do véu.
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998
LACAN, Jacques. O seminário, os quatros conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1998
MERLEAU-PONTY, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo, ed. Perspectiva, 2003
QUINET, Antonio. Um olhar a mais, ver se ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2004, 2ed
1
O DETALHE ANACRÔNICO
Elke Otte Hülse1
RESUMO
Três recortes de tapeçarias de tempos distintos podem proporcionar ao tapeceiro da
atualidade, várias reflexões. Inicialmente o cartão a ser usado como referência para a trama,
depois o urdimento adequado a esse cartão e finalmente a trama de material conveniente
que através das cores, texturas e escolha adequada dos recursos técnicos, transforme esse
conteúdo em uma tapeçaria. Ainda assim pode uma tapeçaria contemporânea ser só cópia
do cartão? E ao observar outras manifestações artísticas como, por exemplo, a pintura, esta
muitas vezes poderia ser a fonte para criação de um novo cartão.
PALAVRAS-CHAVE: cartão, urdume, tapeçaria, pintura, recursos técnicos.
Ao observar um detalhe da tapeçaria “A Mon Seul Désir”2 e em seguida outro da tapeçaria
“Arvore da Vida com Salamandra”3, percebem-se muitas informações em comum. Reportome a Lacan, quando ele denomina compulsão da repetição, ao ato de olhar sempre a
mesma coisa em obras distintas. Ao olhar do tapeceiro, inicialmente o que chama a atenção
é o processo técnico, especificamente os recursos utilizados como hachura, interpenetrações
mínimas, degrades, emendas, enfim como os recursos técnicos foram utilizados para
melhor explorar o cartão. Num segundo momento é o conjunto de cores que atrai o olhar,
ainda a textura dos materiais e finalmente a tapeçaria, a criação como um todo. Essas
mesmas considerações provavelmente podem ser feitas pelo tapeceiro quando busca na
história da pintura montar sua constelação de imagens.
Na tapeçaria essa reflexão me leva ao início, especificamente ao urdimento. No tear,
sempre iniciamos com o urdimento e é surpreendente como esse fazer se assemelha ao
escrever de uma partitura musical. Nas duas situações, existe o silêncio entre os fios do
urdume e entre as notas musicais. Esse intervalo entre os fios do urdume para o tapeceiro
experiente pode ser facilmente resolvido, mas em todas as situações esse é o ponto
1
Mestranda do PPGAV-CEART, UDESC, linha de Teoria e História da Arte, orientada por Profa. Dra.
Sandra Makowiecky.
2
Detalhe da tapeçaria ao final do texto
3
Detalhe da tapeçaria ao final do texto
2
essencial para uma resolução adequada da trama. Pode ser considerado um simples
exercício técnico, mas envolve estabelecer um espaço vazio do tamanho apropriado entre
os fios de urdume. O ponto crítico para a qualidade da tapeçaria é uma relação entre o
número de fios do urdume e sua espessura. Assim o intervalo por si só determina a
espessura da trama, tal qual o urdume faz. Contudo as variações dessas relações são muitas
vezes negligenciadas. Precisamos observar o espaço entre os fios do urdume, a espessura
desse fio, sua torção porque tudo isso define o macio ou o duro da trama. Existem algumas
regras básicas nessa escolha, mas um compasso adequado e que mantém um ritmo
constante da trama é urdir com um espaçamento entre fios da espessura de um fio e um
quarto. Esse detalhamento pareça um tanto mecânico e segue um ritual muito metódico e
hoje em dia como os teares são simples de serem urdidos também é um trabalho solitário.
Na Idade Média os fios do urdume eram mais grossos do que os da trama. Acho que esses
fios são parecidos com as esposas, porque a função deles não aparece, só se vêem os
sulcos sob a trama colorida. Mas se não fossem eles, não haveria tapeçaria. (Chevalier,
2006, p.134) Assim existe a relação de espessura entre urdume e trama que proporciona
uma tapeçaria mais dura quando temos mais fios e mais macia quando temos menos fios
por centímetro no urdume. Essas regras são flexíveis e cabe ao tapeceiro ajustar seu urdume
às necessidades que seu desenho exige. Quando um urdume é de um fio mais fino,
conseqüentemente a trama também será de fios mais finos que resultam num tecer mais
lento, demorado como exemplifica o detalhe da tapeçaria “A Mon Seul Désir” e também no
detalhe, “Árvore da Vida com Salamandra”. Discutir essa questão do espaçamento entre os
fios do urdume parece obvia para o tapeceiro experiente, mas tem implicações em outros
aspectos da confecção da tapeçaria. O urdume só se justifica na tapeçaria quando a trama
atua sobre ele, assim como as notas musicais só se justificam quando um instrumento
musical as interpreta.
Na tapeçaria o intervalo entre os elementos, a relação figura/fundo também é de grande
preocupação. O tecer de uma tapeçaria é semelhante ao montar de um quebra-cabeça.
Muitas vezes o fundo precisa ser tecido primeiro e é a forma do fundo que determina muito
da real forma do objeto, ou figura. Um exercício que exemplifica muito bem é quando
temos uma fileira de círculos para serem tecidos. Os intervalos entre os vários círculos
precisam ser tecidos primeiro, é o suporte para então tecer os círculos e completar a área
3
em volta deles. Não é possível tecer a parte de baixo dos círculos sem antes construir o
suporte, isso para um tapeceiro experiente é sabido, mas na tapeçaria diferente da música o
intervalo entre os fios do urdume pode sim provocar desvios na forma. Para Deleuze, na
tecelagem como espaço estriado as formas organizam uma matéria, o estriado é o que
entrecruza fixos e variáveis, ordena e faz sucederem-se formas distintas, organiza as linhas
melódicas horizontais e os planos harmônicos verticais. E ainda no espaço estriado, as
linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a
outro. (Deleuze,2002, p.184) Portanto quanto mais fios no urdume mais próximo a
tapeçaria poderá seguir o cartão.
Tanto na música como na tapeçaria, temos tempos de execução marcados por ritmos,
intervalos e pela composição. Na música é possível improvisar, na tapeçaria algumas
decisões também acontecem no ato de tecer, mas o cartão representa praticamente toda
criação que é planejada antecipadamente. Talvez a música clássica possa ser comparada à
tapeçaria Medieval, mas a tapeçaria contemporânea ainda segue partituras e ritmos muito
próximos da tapeçaria medieval. Provavelmente o melhor companheiro do tapeceiro seja
um fundo musical.
Na tapeçaria contemporânea devido as pequenas dimensões, o tapeceiro às vezes
desenvolve cartões que podem ser tecidos da parte inferior à superior como exemplifica
“As Meninas da Guerra”4. Na tapeçaria tradicional da Europa, o desenho é tecido da direita
para a esquerda, equilibrando o peso da trama na vertical com o urdume na horizontal. No
detalhe de “As Meninas da Guerra”, percebe-se que na trama o destaque está na textura dos
fios e não no uso de técnicas minuciosas. Existe uma indefinição, uma rugosidade que
dificulta a percepção visual da técnica usada, mas por outro lado é a textura que instiga o
olhar do observador.
Nas duas tapeçarias tecidas com fios tradicionais a ênfase dada pelos tapeceiros é
justamente no uso das interpenetrações e hachuras. Nesse sentido, o eterno retorno é bem a
conseqüência de uma diferença originária, pura, sintética, em si. Se a diferença é o em si,
a repetição, no eterno retorno, é o para si da diferença. (Deleuze, 2006, p 183) Em “As
Meninas da Guerra”, o urdume de fio mais grosso e espaçado, ou seja, dois fios por
centímetro, permitindo assim o uso de materiais mais grossos, como tiras que dificultam o
4
Detalhe do fundo tapeçaria ao final do texto.
4
uso da técnica tradicional, mas por outro lado a solução encontrada é harmoniosa com o
material explorado. A textura está diretamente relacionada aos materiais usados e Deleuze
considera o tecido como um espaço estriado que pode ser infinito em comprimento, mas
não na sua largura, definida pelo quadro da urdidura, a necessidade de um vai e vem,
implica um espaço fechado. (...) um tal espaço parece apresentar necessariamente um
avesso e um direito; mesmo quando os fios da urdidura e os da trama tem exatamente a
mesma natureza, o mesmo número e a mesma densidade.(Deleuze, 2002 p.181) A tapeçaria
tradicional francesa era e continua sendo tecida pelo avesso onde os tapeceiros só vêem
uma pequena parte do que estão tecendo. Todas as emendas e os arremates ficam no avesso
e dificultam a visualização do trabalho em execução.
Lendo Michel Leiris, em “Espelho da Tauromaquia”, ouso relacionar o cartão ao touro, os
fios do urdume à capa usada pelo toureiro e a tapeçaria representando o toureiro. O espaço
do ateliê é a arena onde acontece todo o espetáculo, repleto de fios coloridos, texturas
variadas e o próprio tear instiga o tapeceiro e quem tem acesso ao espaço. O cartão é a
referência, o que move o tapeceiro a tecer e fica preso por trás dos fios do urdume. Esse por
sua vez, assim como a capa do toureiro é frágil e serve para que o tapeceiro use como apoio
onde cria sua trama. O urdume vai ficar entre a intenção do tapeceiro e o cartão. Mesmo
que o tapeceiro crie seu próprio cartão, esse deverá ser só um instrumento porque ao final a
tapeçaria deve triunfar. Na tapeçaria contemporânea existe uma preocupação especial da
tapeçaria não ser mera cópia do cartão, mas ter identidade própria. O tapeceiro precisa do
cartão para executar a tapeçaria, mas depois de finalizar, do “Olé”, no instante entre o além
e o aquém, acontece a rachadura da beleza, onde a tapeçaria não mais quer estar associada
ao cartão. São muitas horas, dias, meses de convivência, conivência e cumplicidade em que
o cartão provoca o tapeceiro a trabalhar em sua tapeçaria. Como antes da crise final do ato
amoroso, ficamos todos em suspenso, na angústia de que tudo termine, no êxtase
maravilhado de que tudo continue. (Leiris, 2001, p47) Quando depois de horas tecendo o
tapeceiro se afasta e olha o executado, deixa que o mundo exterior interfira, desfaz-se a
quase tangência entre o cartão e a tapeçaria que mantém o tapeceiro atado a sua trama.
Entretanto, veremos que mesmo essa figura da tangência não é senão um limite ideal,
praticamente jamais atingido, (...) incompletude obrigatória, abismo que buscamos
inutilmente transpor, brecha aberta à nossa perdição. (Leiris,2001,p29) É justamente ao
5
finalizar no instante do “Olé”, do “Bravo”, quando depois de muitas horas de total
comunhão entre o tapeceiro e sua trama, esse termina sua tapeçaria e como em uma
primeira forma de rachadura, suficiente por si só para que, da plenitude do amor,
passamos à dilaceração, reconhecendo nossa deficiência uma vez que, aplacados,
seguimos vivos e não há nada mais a fazer senão contemplar o objeto amado como um
objeto, passada a identidade ofuscante. (Leiris,2001 p50) A tapeçaria finalizada não mais
depende do cartão, acontece então por um lado o provável sacrifício do cartão e pelo outro
lado as glórias da tapeçaria. Na medida em que se pode dizer que, ao menos
simbolicamente, qualquer atividade estética legítima traz consigo, refletida ou não na
obra, sua porção trágica. (Leiris,2001,p19) Para o tapeceiro a maior tragédia é a tapeçaria
ser mera cópia ou transposição do cartão. Como evitar a vitória do cartão sobre a tapeçaria?
Completa-se o ciclo onde o tapeceiro, deve perceber na técnica o sintoma. Esse volta na
confecção da tapeçaria, onde o tapeceiro só entende o sintoma quando ele constrói a
constelação, quando faz as montagens. Neste caso, o antigo presente desempenharia o
papel de um ponto complexo, como de um termo último ou original que permaneceria em
seu lugar e exerceria um poder de atração: ele forneceria a coisa a ser repetida,
condicionaria todo o processo da repetição, mas, neste sentido, ele seria independente
desse processo. (Deleuze,2006, p153)
6
Figura 1. Autor desconhecido.
detalhe de A Mon Seul Désir
Tapeçaria (1480 /90)
.
Figura 2. José Diego Rivera (1886 – 1957) - México
A história do México
7
Figura 3. José Diego Rivera (1886 – 1957)
Indústria de Detroit, North Wall - detalhe (1932-33)
Figura 4 Jean Pierre Larochette
detalhe de Arvore da Vida com Salamandra (1.50 x 1.50) Tapeçaria (1995)
Figura 5.Henrique Schucman,
detalhe de Meninas da Guerra (1998)
8
Tapeçaria (1.80 x 2.80m)
Figura 6. Carmelo de Arzardun (1888 - 1968)
Partida de Futebol (1919)
Óleo sobre tela - 87 x 116 cm
9
Figura 7. Fray Guillermo Butler (14.12.1880 - 17.07.1961)
Sem dados
Figura 8. Leonora Carrington (06.04.1917)
As distrações de Dagobert (1945)
Óleo sobre tela - 74,9 x 86,7 cm
Assim como as grandes tapeçarias medievais partiram de uma pequena pintura, a pintura
mural dos mexicanos, Diego Rivera; e Leonora Carrington, tem elementos técnicos muito
usados pelos tapeceiros contemporâneos na composição de seus cartões. A cena do pintor
uruguaio, Carmelo de Arzadun, poderia ser desenvolvida na tapeçaria, usando a hachura na
parte superior, técnica essa muito próxima do que o pintor ali desenvolveu. O retrato do
pintor argentino, Fray Guillermo Butler, da mesma forma poderia ser desenhado em um
cartão e tramado como uma tapeçaria. A escolha dessas pinturas especificamente, só se
justifica no olhar de um tapeceiro.
CONCLUSÀO
O historiador francês, George Didi-Huberman, entende as diferenças do tempo como
semelhanças, quando escreve que toda obra é anacrônica. A constelação de detalhes das
1
tapeçarias apresentadas, assim como das pinturas dos artistas latino-americanos, reforça que
a técnica utilizada nos diversos períodos da história, sempre volta e se renova. Na tapeçaria,
os materiais não convencionais, misturados aos fios tradicionais como os usados em “As
Meninas da Guerra”, são exemplos de reaproveitamento de restos de tecidos já tramados
industrialmente e transformados novamente em tiras. Diante de uma imagem, tão recente,
tão contemporânea, o passado sempre reaparece. Enfim diante de uma imagem temos
humildemente que reconhecer, que provavelmente ela nos sobreviverá, que diante dela
somos um elemento frágil, o elemento do passado, e que diante de nós ela é um elemento
do futuro, o elemento da duração. (DIDI-HUBERMAN, 2005, p12)
REFERÊNCIAS
CHEVALIER, Tracy. A Dama e o Unicórnio. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil,2003.
DELEUZE, Giles. Diferença e Repetição. São Paulo, Graal, 2006.
DELEUZE, Giles, GUATTARI, Félix. Mil Platôs. São Paulo, Editora 34, 2002.
DIDI-HUBERMAN,Georges. Ante el Tiempo. Buenos Aires, Adriana Hidalgo, 2005.
LEIRIS, Michel. Espelho da tauromaquia. São Paulo, Cosac & Naify, 2001.
ARQUIVOS: SOBRE OS LIMITES E DESTINOS DE UMA PESQUISA
Academicismo e modernismo em Santa Catarina1
Sandra Makowiecky 2 Giorgio Vicenzo Filomeno e3
Participantes do Grupo de Pesquisa (SC):Marina Rieck Borck4
Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia
Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5
Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os
principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina e
América Latina. Seu início foi assinalado pela escassez de um arsenal imagético e
bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Apresenta-se
aqui uma parte deste percurso ocorrido durante o manuseio de arquivos e a elaboração de
um mais amplo, bem como as reflexões teórico-metodológicas daí decorrentes.
Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina; América Latina;
arquivos;museu.
1- OS CONTORNOS DA PESQUISA. A partir da disciplina História da Arte III,
ministrada pela professora Rosangela Miranda Cherem, cuja ementa contempla um
conteúdo plástico latino-americano, verificou-se a escassez de um arsenal imagético e
bibliográfico capaz de ampliar o repertório visual e crítico sobre este assunto. Entre 2004-2
e 2005-2 teve inicio um levantamento preliminar que contou com envolvimento discente e
foi devidamente explorado, mas que ratificava a necessidade de um aprofundamento do
1
Academicismo e modernismo em Santa Catarina – UDESC, Centro de Artes
Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC.
3
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina.
4
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC
5
Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de
pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (Coordenadora do projeto SC) e Rosangela Miranda Cherem
( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas;
Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista
PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária e também
acadêmica do curso de Artes Plásticas.
2
material, tanto do ponto de vista quantitativo como qualitativo. Neste sentido, fez-se
necessário prosseguir o estudo, procurando identificar as principais características artísticas
entre os países da América Latina, bem como considerando a relação de proximidadedistância, semelhança-diferença de sua produção, destinada tanto à geração e
potencialização de novas abordagens e reflexões sobre as artes plásticas no âmbito da
modernidade, como em especial, abordando o modernismo para além de leituras auto centradas ou que registram apenas os vínculos europeus ou norte-americanos.
Como um projeto de pesquisa formulado com fins institucionais foi previsto uma
investigação para ser desenvolvida entre fevereiro de 2006 a fevereiro de 2008. Porém a
extensão documental e a dificuldade de localização das fontes levaram à prorrogação de
mais um semestre, ou seja, até julho de 2008, para finalizar a parte de América Latina.
Utilizando os acervos bibliográficos disponíveis na Internet e conforme os países da
América Latina, os principais objetivos da pesquisa ficaram definidos no sentido de mapear
os artistas e sua produção no âmbito das Academias de Arte e dos movimentos
identificados com o modernismo, permitindo reconhecê-los conforme suas percepções
estéticas e sensibilidades temáticas, condições de trabalho, expectativas, sociabilidades e
demais critérios apontados pelo levantamento empírico; além de indicar possibilidades de
estudo e desdobramento de problemas a serem desenvolvidos em investigações posteriores.
Em outras palavras, constatada uma escassez de estudos e pesquisas sobre as artes
plásticas neste continente, buscou-se um caminho capaz de permitir tanto um entendimento
mais abrangente e rico da produção artística como favorecer avanços para além dos
catálogos e estudos sobre acervos privados e/ou monotemáticos, bem como ampliar as
articulações das particularidades em relação ao conjunto de questões mais abrangente,
permitindo análises mais consistentes acerca de certas contaminações e desdobramentos
plásticos. O recorte cronológico definido envolvia desde o nascimento da mais antiga
academia de artes latino-americana (1785 no México) até a segunda guerra mundial, uma
vez que depois daqueles anos instalou-se um outro contexto de rupturas, relacionado ao
concretismo e neo-concretismo até a morte das vanguardas, configurando-se num outro
objeto de estudo. Em função da amplitude do objeto a ser estudado e da inegável ausência
de estudos mais abrangentes e sistematizados sobre o assunto, a pesquisa se configura como
2
uma espécie de cartografia de problemas relativos à História da Arte na América Latina.
Contudo seu foco principal não pretende reconhecer ou definir questões meramente
relativas às identidades estéticas, mas compreender como as imagens pictóricas comportam
e compartilham sensibilidades e percepções artísticas próprias à modernidade, bem como
suas contradições e paradoxos.
A opção por um CD ROM com um levantamento de artistas, obras e biografias
conforme os países, além de uma parte incluindo artigos, pareceu um caminho viável,
devendo o mesmo instrumento ser destinado à divulgação e manuseio de outros
interessados em ampliar seu repertório sobre o assunto. Na organização desta espécie
singular de arsenal imagético foram incorporados artistas e obras pouco conhecidos,
acolhidos como parte de um arquivo destinado ao domínio público, contribuindo para que o
virtual engendre uma afinidade com a memória compartilhada e considerando que este tipo
de fonte como estrutura de memória não é novidade. O arquivo, externo, diretamente no
suporte, atual ou virtual, tem sua democratização medida pela participação e acesso e pela
sua constante apropriação e interpretação. Embora o arquivista deva levar em conta a
incompletude do arquivo e o mesmo possua inúmeras possibilidades de armazenamento,
também deve saber que não haveria o desejo de arquivo sem a noção de finitude e sem a
possibilidade de esquecimento. Se o arquivo não se reduz à memória e nem à mneme ou à
anamnesis, é especialmente possibilitado pela pulsão de morte, de agressão e de destruição,
também pela finitude e expropriação originárias: “[...] Não, a estrutura técnica do arquivo
arquivante determina também a estrutura do conteúdo arquivável em seu próprio
surgimento e em relação com o futuro. O arquivamento tanto produz quanto registra o
evento. É também nossa experiência política dos meios de informação.”( DERRIDA, 2001,
p. 28)
2- AS DECORRÊNCIAS DO PERCURSO. Entre as tarefas realizadas destacam-se a
divisão dos países, seus respectivos artistas e levantamento de produção plástica conforme
os pesquisadores e seguindo uma padronização definida previamente no que diz respeito
aos dados a serem obtidos e sua sistematização. Levantamento dos endereços de museus,
galerias e instituições de arte, bem como de possíveis endereços para pesquisa via internet,
além de catálogos, folders e livros. Envio de correspondências na tentativa de encontrar
3
material bibliográfico destinado a complementar as informações. Através da disciplina de
História da Arte III e das leituras realizadas semanalmente pelo grupo de pesquisa em
2007-2 tiveram início as análises do material coletado, seguido posteriormente pela redação
e discussão dos textos destinados à composição do CD ROM. Assim, o presente estudo se
desenvolveu especialmente a partir da constituição de séries e agrupamentos imagéticos,
considerando afinidades e diferenças artísticas, além de levantamento de problemas e
desdobramentos analíticos indicados a partir das imagens; bem como da problematização
das injunções temporais contidas nas obras, em termos de eucronias e anacronismos da
modernidade.
Entre as dificuldades encontradas destaca-se o fato de que o material visual
levantado nem sempre disponibilizava os dados necessários à pesquisa, como por exemplo,
título, tamanho e técnica da obra ou localização do acervo ao qual pertence. Outra
dificuldade apontada refere-se ao fato de que as biografias de alguns artistas, bem como
local e data de nascimento e falecimento, eram bastante imprecisas, incompletas e, por
vezes, inexistentes. Alguns países não só apresentaram insuficiência de dados como a
maioria dos artistas que os representam está situado apenas a partir da segunda metade do
século XX. A aquisição de catálogos e textos específicos de cada país também foi
dificultada devido a entraves de acesso, manuseio e distribuição dos mesmos, além de
entraves financeiros e de transporte.
Nos meses em que os pesquisadores se fizeram valer de diversos meios para
enriquecer seu repertório mergulhando nos mais recônditos corredores em busca de novos
dados e imagens, foram debatendo e compreendendo a extensão da reflexão sobre a
tradução como sendo não uma mera repetição, mas como espécie de sobrevida da obra pela
mutação, considerando seu caráter fugidio e de deslizamento constante. Assim, a obra não
vive apenas mais tempo, ela vive mais e melhor, acima dos meios de seu autor. Sua
sobrevida da obra excede a vida e morte biológica e ultrapassa a condição orgânica,
fazendo nascer a tarefa de compreender a vida para além dela mesma como forma que
ultrapassa a história. Devendo a tradução ser da obra e não do autor, não tem a ver com o
receptor ou com comunicação, não é imagem, cópia ou representação, sendo que “Ele
nomeia o sujeito da tradução como sujeito endividado, obrigado por um dever, já em
4
situação de herdeiro, inscrito como sobrevivente dentro de uma genealogia, como
sobrevivente ou agente de sobrevida” (DERRIDA, 2002, p.33).
É preciso ainda reconhecer que entre as advertências desta empreitada encontramse os riscos proporcionados pelas atribuições errôneas e apócrifas, todavia este é um perigo
do qual não escapam nem mesmo os museus e os colecionadores, freqüentemente às voltas
com obras falsificadas ou com autoria atribuída equivocadamente. Igualmente os dados
desta pesquisa guardam sua fragilidade. Em sua qualidade de arquivo, são débeis e
irresolutos e, certamente na grande maioria, apenas um sopro do que são seus originais,
apresentando-se frequentemente distorcidas em forma e cor e desprovidas de detalhes
importantes, como tamanho e data das obras. Filtradas as imagens, foram adotados os
critérios de melhor resolução para a reprodução em um cd rom, reduzindo em cerca de um
terço as quase cinco mil imagens capturadas dos quinze países pesquisados. Neste rol não
estão incluídas as imagens e Santa Catarina e Brasil, que formará outro CD ROM. Por sua
vez, convém ressaltar que a sobrevida das obras no espaço virtual pode se dar com mais
facilidade e por mais tempo do que a dos trabalhos nas suas materialidades originais, pela
infinita reprodução e perpetuação nos discos rígidos do mundo. Por pior que seja a
qualidade do original, se ele estiver digitalizado e disponibilizado, através dele será
possível entrar em contato com uma parte daquilo que de outro modo seria inacessível ou
acabaria perdido, em outras palavras:
A reprodução não rivaliza com a obra-prima presente: evoca-a e sugere-a... Levanos a contemplar as obras-primas que nos são acessíveis, não a esquecê-las; e,
sendo inacessíveis, que conheceríamos nós sem a reprodução? Ora, a história da
arte nos últimos cem anos, desde que escapa aos especialistas, é a história do que
é fotografável (MALRAUX, 1965, p.108).
Ao longo da pesquisa os organizadores deste arsenal imagético iam se reconhecendo
na posição de criadores do arquivo, curadores de um museu cujas obras nunca chegaram
perto nem viram. Recolhendo e organizando criteriosamente milhares de trabalhos,
catalogando centenas de artistas e biografias foram deslindando novos critérios de reunião e
agrupamento, separação e ordenação, procedimento que permitia reconhecer a presença das
contingências relacionadas à localização e qualidade documental, bem como da
arbitrariedade relacionada por vezes à quantidade das obras selecionadas. Eis os gestos que
5
contemplam o anarquivável, tal como abordado em O mal de arquivo:
[...] estar com mal de arquivo, pode significar outra coisa que não sofrer de um
mal, de uma perturbação ou disso que o nome “mal” poderia nomear. É arder de
paixão. É não ter sossego, é incessantemente, interminavelmente procurar o
arquivo onde ele se esconde. É correr atrás dele ali onde, mesmo se há bastante,
alguma coisa nele se anarquiva. É dirigir-se a ele com um desejo compulsivo,
repetitivo e nostálgico, um desejo irreprimível de retorno à origem, uma dor da
pátria, uma saudade de casa, uma nostalgia do retorno ao lugar mais arcaico do
começo absoluto. Nenhum desejo, nenhuma paixão, nenhuma pulsão, nenhuma
compulsão, nem compulsão de repetição, nenhum “mal-de”, nenhuma febre
surgirá para aquele que, de um modo ou de outro, não está com mal de arquivo (
DERRIDA, 2001, p.118)
3- CONSIDERAÇÕES ESPECÍFICAS SOBRE O ARSENAL IMAGÉTICO. Como
construir um arsenal imagético, cujos arquivos enquanto fontes principais e registros
complementares se apresentam escassos ou dispersos, inacessíveis ou pouco pensados em
seu conjunto? Quais os caminhos possíveis para dar conta deste desafio sem perder-se
diante das meras generalidades a que remetem, incorrer nas leituras simplificadoras e
banalizantes que confundem imagem com ilustração ou então extraviar-se em meio a
peculiaridades absolutizantes? Para responder tal inquietação parece conveniente primeiro
problematizar o próprio arquivo construindo um campo situado entre a série concebida
como repetição com diferença e o museu imaginário considerado como arsenal infinito e
único de afecções. Refletindo sobre o fato de que a falência da representação no
pensamento moderno faz com que todas as identidades sejam simuladas e produzidas como
efeito ótico sob o jogo da diferença e repetição, Deleuze ( 2006) destaca que a diferença se
constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua negação, nem se
refere à oposição nem se constitui como contradição.
Considerando as imagens a serem estudadas, postula-se a sobrevivência das formas,
menos como o que foi herdado e mais os desdobramentos e as possibilidades resultantes,
sendo que os acontecimentos como as imagens, só podem ser pensados pelos
procedimentos de recombinação e montagem. Eis porque as obras, como os artistas, devem
ser considerados na relação com as séries que procuram menos a generalidade e mais os
vestígios da diferença e do retorno, sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições
coexistem, não porque se constitui como reprodução do mesmo e sim porque é arremesso
em direção ao outro, nos diz Deleuze, em Diferença e repetição( 2006).
Por sua vez, André Malraux (1965) aborda o nascimento de um arsenal imagético a
6
partir da reprodutibilidade técnica, resultando complexas metamorfoses no que diz respeito
aos usos e sentidos da obra de arte, permitindo que cada um possa constituir seu próprio
acervo ou museu imaginário. O museu imaginário é de todos, sendo formado pelas
recordações particulares de cada um e não dependendo de um local. Num mundo de
esquecimento, é assim que as obras ressuscitam, sobrevivendo não pelo que foi dito sobre
elas mas pelo que ainda nos dizem. Enfim, o autor lembra que o museu imaginário é um
fenômeno do mundo moderno, particularmente ampliado com a reprodutibilidade técnica,
permitindo não só acessar diferentes acervos como também estabelecer novas comparações,
agrupamentos e classificações. Neste sentido, trata-se de encarar a difícil tarefa de pensar
ao mesmo tempo as imagens e seus arquivos, não só para evitar os meros relatos e
classificações, como também para pensar as novas combinações e destinos possíveis para
as obras de arte.
4- IMPLICAÇÕES SOBRE A MEMÓRIA E A TEMPORALIDADE. Uma vez
acessado o arsenal e constituída a série de imagens, com quais fios é possível tecer a trama?
Como produzir um campo fértil de reflexões no âmbito da história da arte, contornando
tanto uma abordagem mais cronológico- evolutiva ou contextualizante como outra
meramente formalista porém considerando as questões que reverberam no tempo e no
espaço? Em que medida pode a obra de artistas pouco conhecidos e de reduzida fortuna
crítica tornar-se objeto de reflexão e leitura? Como evitar a armadilha da diluição das
singularidades em contextos homogeinizadores e extrínsecos e/ou das particularidades
isoladoras e desconectadas que ignoram a formulação-armação de problemas? Como
construir um campo de análise onde o que prevalece e ainda pode ser dito incide sobre o
estranho que escapa e surpreende bem ali onde uma luz já posta parece apenas indicar o já
conhecido? Como reincidir o periférico e o pouco qualificado sem cair na visada monótona
e exaustiva das abordagens já feitas? É possível pensar a relação entre os artistas e suas
obras sem tornar ambas as instâncias como meros equivalentes, evitando tanto a lógica da
salvação pela exaltação do injustamente esquecido como o veredito do merecidamente
ignorado?
No seio das obras acadêmicas reconhecemos certas investigações plásticas mais
pela sua concomitância do que como simples ecos europeus. Os recortes modernistas
7
situados depois da primeira grande guerra em vários países latino americanos podem ser
lidos como uma construção discursiva associada muito mais aos seus protagonistas e suas
memórias, decorrendo daí certas posturas antagônicas às academias de belas artes. Então se
as chamadas vanguardas latino-americanas adotaram freqüentemente bandeiras antiacadêmicas como parte de seu desejo de aggiornamento é porque ignoravam ou esqueciam
os choques produzidos intencionalmente por participantes de ambientes oficiais, mesmo na
Europa. Ou seja, mesmo dentro de certos circuitos institucionais as posturas inquietas e
chocantes, disfarçadas ou não já se deixavam deslindar. Mesmo cumprindo certas
expectativas em termos de reconhecimento nos circuitos existentes ou simplesmente
atendendo às encomendas, observa-se que alguns artistas conseguiram ultrapassar não só as
questões de território e nação, como também buscaram superar o caráter ilustrativo e/ou
narrativo, guardando na superfície pictórica todo um universo de inquietações e
investigações plásticas.
A este respeito convém lembrar a publicação intitulada Arte na América Latina ,
organizada pela professora Dawn Ades ( 1997) de História e Teoria da Arte da
Universidade de Essex, Inglaterra cuja obra apresenta em seu conjunto a idéia não apenas
de que as artes plásticas estiveram diretamente vinculadas às experimentações literárias,
como o fato de que em diversos países o modernismo foi engendrado no âmbito acadêmico.
Raciocínio complementar a este fenômeno é apresentado no livro Arte Internacional
Brasileira, escrito por Tadeu Chiarelli ( 2002). O autor parte do pressuposto não só de que
o local se articula com o circuito internacional de modo reelaborado e muito peculiar como
também que o modernismo antecede a Semana de 22, registrando a incorporação sem
confinamento de uma tradição erudita e artesanal e somando-se a um localismo antiacadêmico, advindo das percepções estéticas surgidas a partir do último quartel do século
XIX e dos influxos do novecentos.
Todavia, se pensar é armar problemas, este procedimento parece se tornar
particularmente interessante quando as obras enfocadas não pertencem ao repertório
canônico mas podem ser abordadas pelo seu caráter de recorrência e sobrevivência, levando
a pensar, de um lado, como se operavam, mesmo para artistas inseridos num circuito
periférico, as referências e renitências que resultaram na incorporação de certas
8
perspectivas, enquanto que de outro lado, cabe pensar a mescla de tempos atravessados
pelos arremessos fragmentários da memória contidos nas imagens e que as tornam resíduo
e rastro de outras imagens ou espectralidade de outras temporalidades. Conforme Rosalind
Krauss (1996) ao tratar o mito da originalidade como preceito vanguardista, se no
século XIX as cópias tiveram um importante papel pedagógico na formação do gosto, o
culto da originalidade e da espontaneidade serviu para confirmar o mito da genialidade
artística. Em tempos de revolução industrial e de reprodutibilidade técnica, as artes
plásticas insistiram em confirmar seu estatuto romântico, associado ao espontâneo e ao
irrepetível.
Problematizando a história da arte e encarando a questão da temporalidade contida
na obra Ante el Tiempo: de DIDI-HUBERMAN (2006), assinala que toda ela possui mais
memória do que história, pois o tempo não se reduz à história, sendo que a memória é feita
de tempos descontínuos e heterogêneos, daí que ela é sempre anacrônica e ocorre na
contradança da cronologia. Dito de outro modo, a relação tempo- imagem pressupõe
uma constante articulação com a memória, uma vez que toda obra carrega consigo um
pretérito e também uma projeção em direção à posteridade, sendo que nela está contida
uma fagulha explosiva que permanece naquilo que um dia foi, fazendo com que o passado
não cesse de se reconfigurar como abertura. Cada época traz consigo infinitas
possibilidades de encontros com o passado, bem como prefigura e guarda potencialidades
futuras. Concepção que por sua vez guarda familiaridade com a concepção warburguiana
de que algo do que um dia foi fica retido, persiste e insiste nas imagens, atravessando os
tempos e voltando como ondas mnemônicas.
Nem simples continuidade, nem arquétipos, trata-se de problematizar as imagens
como persistência de lapsos e anacronismos, irresoluções e resíduos do tempo que nos
alcançam em nossas inquietações. Assim, não se trata de um humanismo à maneira de
Vasari, Kant ou Panofsky, os quais não questionam nem a representação nem o regime de
saberes da disciplina de história da arte, mas de um procedimento crítico que considera
menos a série das regras e convenções como verdades definitivas e mais a série das
exceções que fazem as imagens cintilarem como desvios ou de-tempos, tornando-se aquilo
que interrompe o fluxo regular das coisas, pois não parece jamais caber num momento
9
perfeitamente adequado, tal como uma lei subterrânea que persiste no retorno de uma
enfermidade, aparição que conjuga diferente- semelhante, imobilidade-aceleração, recalque
e retorno de uma latência. Eis o conceito de sintoma, não conforme o entendimento
semiológico ou clínico, mas como a potência imagética que recusa tanto conceder a última
palavra ao presente como se submeter ao tempo cronológico.
Referências bibliográficas:
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CHIARELLI, Tadeu. A Arte Internacional Brasileira. S.P., Lemos, 2002.
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Rio de Janeiro: Graal, 2006. 2ª edição.
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FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
KRAUSS, R. La originalidad de la Vanguardia. Madrid, Alianza Editorial, 1996
MALRAUX, André. O museu imaginário. Lisboa, Edições.70, 1965.
10
FIGURAÇÕES DA MORTE NA OBRA DE FRANCISCO GOITIA
Academicismo e modernismo na América Latina [1]
Rosângela Cherem
[2]
e Kamilla Nunes [3]
Participantes do Grupo de Pesquisa América Latina: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes,
Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo [4]
Participantes do Grupo de Pesquisa Santa Catarina: Giorgio Vicenzo Filomeno e
Marina Rieck Borck[5]
RESUMO: Dentro do arsenal imagético dos artistas latino americanos selecionados nesta
pesquisa, escolhemos escrever sobre Francisco Goitia que, assombrado pelos horrores
provocados pela Revolução Mexicana em toda a década de 1910, guardou numa série
pictórica imagens de enforcados e cadáveres. O presente artigo é composto por três blocos
que se desdobram como problemáticas relacionadas à morte enquanto dissimulação do Ser, à
paisagem enquanto antemundo e à guerra como fenda que possibilita a criação artística,
decorrente da consciência da completa obscuridade do homem, da arte e do cadáver.
PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; Teoria e Crítica de Arte; Arte LatinoAmericana; História da Arte.
[1]
Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina.
Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC.
[3]
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC.
[4]
Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de
pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente
participante). Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia
Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista
PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis de Araújo, bolsista voluntária,
acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas.
[5]
Acadêmicos do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - participante da pesquisa Academicismo e
Modernismo em Santa Catarina, Giorgio Vicenzo Filomeno, Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC, Marina
Rieck Borck , acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC,
UDESC.
[2]
I – Numa tentativa de intensificar o sofrimento, a dor, a barbárie e os horrores massificados
causados pela guerra, num tempo em que a televisão não a tornava um espetáculo, como
aconteceu em 1990 na Guerra do Golfo, com a invasão do Kuwait pelas tropas iraquianas,
Francisco Goitia (1882-1980) pintou duas telas de cadáveres enforcados em árvores, já em
fase decomposição. Uma delas, intitulada Paisagem
de Zacatecas com enforcados II, feita em 1914, ano
que a revolução estava acabando, com cerca de um
milhão de mexicanos mortos, o que significa 10% da
população total daquela época, apresenta dois corpos
suspensos em árvores, um em primeiro, outro em
segundo plano, quase suprimido pelas bordas da tela.
Essa duplicação de enforcados engolidos pela
FIGURA 1
paisagem, com a pele junto ao osso, cuja cor é a
mesma da vegetação seca e informe, remete à
aparição daquilo que deixou de ser e no entanto ainda é enquanto dissimulação. Ou seja,
“quando tudo desapareceu ainda existe alguma coisa, quando tudo falta a falta faz aparecer a
essência do ser que é de ser ainda onde falta” (BLANCHOT, 2001, p. 255).
As biografias do artista registram que ele pendurava os cadáveres nas árvores pelo
pescoço, simulando um suicídio por enforcamento, para observar os estágios de
decomposição do corpo. Este ato pode ser considerado uma tentativa obscena (aquilo que está
fora de cena) de exagerar as perturbações causadas pela guerra, com o intuito de causar
impacto e/ou repulsa na sociedade que viria a olhar a imagem como se esta fosse uma
representação dos desastres da guerra. Tal falta de correspondência do artista com a verdade
torna ainda maior o silêncio enigmático da obra de arte, que para Maurice Blanchot (1907 –
2003) é um não se dar a conhecer pela impossibilidade do acontecimento, ou seja, da
penetração no objeto artístico. Quando nos damos conta de que a verdade dessas pinturas não
é exterior a elas, compreendemos que as verdades não passam de ilusões, elas podem se tornar
tão reais quanto é para o protagonista do romance a Invenção de Morel1, sua amada Faustine,
ou para Marco Pólo, em As Cidades Invisíveis, os lugares que descreve para o Grande Khan2.
Eis, portanto, a associação paradigmática entre o cadáver e a obra de arte. Ambos, em
suas particularidades, provocam sensações semelhantes à que experimentou Jacques Derrida
(1930 -) em seu banheiro sendo olhado nu por um gato, se vendo visto nu, impotente diante
1
2
BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. 3. ed. – São Paulo: Cosac Naify, 2006.
CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2. ed. - São Paulo: Companhia da Letras, 2006.
da situação lúdica criada por ele, a ponto de sentir vergonha do animal, que não reagia a seus
movimentos, mas o observava com constância na fixidez de um olhar impenetrável. Enquanto
o filósofo encontra no animal, que é para ele o completamente
outro, a semelhança consigo mesmo, percebendo “o limite
abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do
homem, ou seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o
homem ousa anunciar a si mesmo” (DERRIDA, 2002, p. 31), o
artista, percebendo o inorgânico, o inestético e o informe de um
corpo em decomposição, ainda que reconhecível enquanto
corpo-humano, atenta para a completa obscuridade, o vazio e o
silêncio que não só sucede como faz parte do humano.
Na segunda pintura que Goitia realizou durante a
FIGURA 2
revolução, agora com giz pastel e intitulada O enforcado, o
artista mostra descobertos os ossos do corpo, revelando um
estágio avançado de decomposição. Ainda que o primeiro e segundo plano da composição
possam ser distinguidos, ambos sofrem de uma interdependência
rítmica, de forma que o isolamento da figura em primeiro plano
implica na sua própria desfiguração. Ao contrário, por exemplo,
de Francis Bacon (1909 – 1992), que costumava isolar suas
figuras para “romper com a representação, interromper a
narração, impedir a ilustração, liberar a figura: para ater-se ao
fato” (DELEUZE, 2007, p. 12). Duas maneiras opostas de operar
para chegar ao mesmo resultado: ater-se ao fato. Ao tornar o
fundo tão importante quanto a figura, projeta-se uma suspensão
temporal e espacial que remete ao antemundo, àquilo que não
FIGURA 3
pertence mais ao mundo, “embora esteja aqui, melhor dizendo, atrás do mundo”
(BLANCHOT, 2001, p. 258). O cadáver e a paisagem se dissolvem no sombrio dos tons
dourados e ocres, na euforia das pinceladas verticais, que tornam análogos os planos, fazendo
da paisagem um espaço que denota o Aqui Jaz, pressuposto de um sepultamento.
Essa paisagem que acolhe o cadáver é também a paisagem dos campos de batalha,
manchados de sangue e providos de armadilhas para provocar a morte do inimigo, como as
minas enterradas aos milhares a espera de um desavisado. Logo, o cadáver que se tornou
vítima da paisagem, nas pinturas de Goitia, nela repousa até seu total desaparecimento.
Sabendo que seria impossível transmitir, comunicar ou mesmo fazer o outro sentir
parcialmente a experiência de estar na guerra, com ameaças constantes de morte, mutilações e
o que resta de esperança em meio a tanta brutalidade, Goitia ultrapassou os limites da mera
representação e/ou registro da guerra, assumindo a liberdade pictórica própria de uma artista
que conhece as fronteiras abissais entre arte e realidade, entre sentir e expressar, entre falar e
ouvir.
II – Após estudar em Barcelona com o mesmo professor de Juan Miró, Francisco Gali,
e na Itália, reproduzindo em pintura as arquiteturas clássicas, Goitia regressou ao México e
pouco depois serviu ao General Felipe Ángeles na Revolução Mexicana, citada no início do
artigo. Anos depois, recordando a experiência, relatou: “Fui a todas as partes com seu
exército, observando. Nunca portei armas porque sabia que
minha missão não era matar” 3. Sabemos, portanto, que a
única munição de que dispunha era lápis, giz pastel, tintas,
folhas e telas. Percorrendo o tema do cadáver em
decomposição, e não propriamente as ações de guerra, o
combate em si, ele pintou a tela intitulada pelo Museo
Francisco Goitia, A Bruxa, único retrato desse período. De
acordo com o diretor desse museu, apenas à Tata
Jesuscristo ele deu nome, todas as outras obras foram
intituladas posteriormente para fins de organização do
FIGURA 4
acervo e estratégia de discernimento.
A Bruxa, pintada em 1916, reflete não apenas a completa obscuridade de daquilo que
se tornou o outro de si mesmo, mas também o instante inapreensível do dar-se conta da morte.
Sua cabeça se liquefaz, desfaz, escapa de si mesma, transformando-se numa máscara que
encobre a face da morte. Máscara não enquanto Imago, que se dá pela semelhança com o
morto, portanto com o outro daquilo que já não é, mas que ainda guarda pela forma
particularidades que fazem remanescer suas características físicas, mas enquanto um objeto
que o oculta pela expressividade (aquilo que significa e é significada) exterior àquele do qual
faz parte, ou seja, a máscara faz reviver o humano naquilo que deixou de ter a consciência de
si. Percebemos então que A Bruxa suscita problemáticas referentes ao que faz de um serhumano um humano, posto que como Ser se compreende todas as coisas que são. Assim, se
um cadáver é, se ele existe, ele é Ser. Mas, o que está implicado quando dizemos que ele não
3
Citação retirada da biografia de Francisco Goitia cedida pelo Museo Francisco Goitia.
é mais um humano? Pergunta que permeou o pensamento de grandes filósofos como
Aristóteles e Heiddeger, que gerou e ainda gera debates na área da ciência com relação à
eutanásia, a experimentos com células tronco, entre outros e que Goitia não se atreveu a
responder, mas não cessou de se indagar.
Sabemos que A Bruxa é uma imagem advinda do olhar do pintor para um cadáver em
decomposição, mas ela também remete ao informe dos corpos que sobreviveram à guerra.
Pessoas cuja carne foi estraçalhada por granadas, balas, e tantas outras armas fatais. Cujo
rosto se tornou irreconhecível e o corpo, pelas mutilações, não mais assumiu as funções a que
era qualificado. A imagem da guerra é, então, também a imagem do disforme, da mutilação e
auto-mutilação, da morte entrelaçada ao erotismo que aparece em Georges Bataille (1897 –
1962). Em busca do limite da literatura, num tempo do absurdo e sem esperança de futuro, da
falta de coerência da realidade passada com a vida cotidiana, ele escreve o texto História do
Olho, publicado originalmente em 1928. Para expressar seu desejo de apagamento, Bataille
utiliza o pseudônimo de Lord Auch, que serve como máscara por trás da qual o autor pode
revelar seus traumas no que diz respeito à relação com seu pai. No decorrer do romance
percebemos que os personagens se arrostam com a morte de maneiras diferentes, ora com
pesar, ora com perversidade, como quando, depois da atordoada morte de Marcela, Lord Aush
diz:
Marcela pertencia-nos a tal ponto, em nosso isolamento, que não a víamos como
uma morta qualquer. Os impulsos antagônicos que se apossaram de nós naquele dia
se neutralizavam, deixando-nos cegos. Afastavam-nos para longe, para um mundo
em que os gestos não têm alcance, como vozes num espaço que não é sonoro.
(BATAILLE, 2003, p. 60)
Nessa perspectiva, captar o instante único e
permanente daquilo que não foi, nem será, mas daquilo
que é e sobrevive apenas como imagem, torna-se o maior
desafio para esses artistas
interessados em pensar a
morte, a guerra, o informe
FIGURA 5
e todas essas abordagens
que se fazem presentes
também na obra de alguns pintores latino-americanos. As
telas da pintora mexicana María Izquierdo (1902 – 1955),
FIGURA 6
por exemplo, se caracterizam pelos tons sombrios e objetos que referenciam a morte e/ou o
morto que, sempre na presença de cavalos, ou uma corda pende de uma árvore seca num lugar
deserto, ou um caixão aparece ocultando o cadáver. Onde Goitia evidencia o corpo em
decomposição, Izquierdo o solapa. Nas cenas de enterros e enfermos, a morte está nas
relações taciturnas entre o cadáver oculto pelo caixão que o envolve e as pessoas que o
acompanham para a última despedida. Pedro Figari (1861 – 1938), no Uruguai do início do
século XX, com uma produção de caráter dramático, pintou uma série de velórios, que assim
como os de Izquierdo estão imersos num ambiente melancólico, por assim dizer, lúgubre,
evidenciado pelas cores terrosas, sombras indefinidas, postura dos personagens e, em alguns
momentos, elementos sombrios como a lua cheia. Não obstante, em Juan Manuel Blanes
(1830 – 1901), mais impactante que uma mulher esparramada no chão, vítima da febre
amarela, é notar as mãos inocentes de um bebê que agarra seu vestido, no local que cobre os
seios, a espera de uma resposta aos seus atos.
Essas
diversidades
de
experimentos
artísticos
provenientes de sensibilidades e experiências intrínsecas, tanto
nas artes plásticas quanto na literatura, cinema, música e
teatro, abrem leques para reflexões acerca dos problemas
culturais, sociais e também políticos, no âmbito da descrença e
falta de esperança de um presente capaz de superar as
barbáries do passado e consequentemente, de um futuro
promissor, sem marcas de sangue e memórias acinzentadas. É
assim o ambiente criado por Samuel Beckett (1906 – 1989),
FIGURA 7
em Fim de Partida e Esperando
Godot:
acinzentado.
Seus
personagens, concebidos na época turbulenta da pós-segunda guerra
mundial tentam, através dos diálogos e da inércia a que se dispõe
dar sentido a um mundo desprovido de sentido. Em Fim de Partida,
os pais de HAMM, com as pernas amputadas, moram dentro de
latões de lixo, enquanto HAMM, cego e impossibilitado de mover
as penas, ocupa numa cadeira de rodas exatamente o centro da sala
(BECKETT, 2002). Podemos perceber, portanto, a forte influência
do surrealismo no teatro de Beckett e como o diretor enfatiza, com
elementos cênicos pós-dramáticos, os restos humanos e a ruína.
FIGURA 8
III – Em A Idade Viril, obra autobiográfica que não obedece a uma ordem meramente
cronológica dos fatos, Michel Leiris (1901 – 1990) descreve suas impressões diante dos
acontecimentos das atividades cotidianas, como ir ao teatro. Ainda que o autor tenha escrito
esse livro depois de romper com os surrealistas, ele continua exprimindo através da literatura,
seu descontentamento com relação à guerra, como quando relata que foi tomado por um
acesso de pânico depois de assistir à peça Volta ao Mundo em 80 dias, por achar que o barco
ia afundar e estourar com o vapor. Ao sair do teatro, começou a berrar: “Não quero que
estoure... Não quero que estoure...” Depois do ocorrido, ele enuncia relacionando os fatos:
“Ainda hoje sou tentado a lançar semelhantes gritos para tentar deter a marcha dos elementos:
‘Não quero que haja guerra!’ eu diria, mas os elementos, como outrora, não parecem
dispostos a me obedecer” (LEIRIS, 2003, p. 45). Temos aqui a impotência do homem diante
da tentativa de realizar seus desejos e os meios que ele utiliza para mostrar seu
descontentamento. Como reagir à beleza convulsiva, repulsiva e ao mesmo tempo atraente da
guerra? Para Leiris, bem como para Goitia, a reação está diretamente vinculada à criação a
partir de metáforas, dissimulações e jogos de tangência entre a ilusão da verdade e da mentira.
Foi assim que depois de aproximadamente três décadas passadas do fim da Revolução
Mexicana, Francisco Goitia continuou pintando enforcados como fazia quando serviu ao
general
Felipe
Ángeles.
As
duas
telas
posteriores à guerra contêm nuances de azul,
como se fossem imagens retidas na memória,
tal qual acontece nos filmes quando as
lembranças dos personagens aparecem em
preto e branco. A obra Paisagem de Zacatecas
com enforcados II, realizada entre 1938 e
FIGURA 9
1942, apresenta semelhança e principalmente diferenças
marcantes com a que Goitia pintou no ano de 1914,
mostrada no início desse artigo. Ambas exibem dois
enforcados na árvore em meio à paisagem. Mas enquanto a
primeira denota seriedade, a segunda remete ao lúdico que
se manifesta nos esqueletos caricaturais de animais
espalhados, a priori, aleatórios na paisagem. Os cadáveres
pendurados, já decompostos, parecem volúveis e leves,
FIGURA 10
como folhas secas que pendem inclinadas nas árvores, prestes a serem carregadas por uma
corrente de ar. Assim como María Izquierdo e Pedro Figari, Goitia acrescenta à cena símbolos
mórbidos que aludem à morte, como a coruja e o morcego. Se olharmos atentamente,
percebemos também que toda a composição está em diagonal, ora curvada para esquerda, ora
para a direita, de forma que nem mesmo as cordas que suspendem os cadáveres se encontram
na vertical.
Relativamente a essa instabilidade pictórica advinda de infortúnios causados por
projeções imaginárias, Augusto Contador Borges (1954 -) escreve um artigo sobre o
Supliciado Chinês aos olhos de Georges Bataille. No decorrer do texto o autor descreve como
as imagens do supliciado afetaram e causaram vertigem em Bataille, para então entrar na
discrepância entre os pontos de vista do carrasco e da vítima, até concluir que “o que temos
em comum – com o carrasco – é a conseqüência das possibilidades do horror, em que
cruzamentos súbitos, arrepios momentâneos, que vez por outra nos atingem no extremo de
nós mesmos com a descarga elétrica de uma idéia absurda” (BORGES, 2001). Isso nos leva a
pensar até que ponto os cadáveres que Goitia enforcou nas árvores para observar sua
decomposição foram vítimas da guerra. Fou Li recusa a dor
que o dilacera, ele a nega como Goitia negou a dor de matar
o outro. Não se trata, é claro, da mesma sensação de dor, mas
da mesma negação a ela. Na guerra os papéis de carrasco e
vítima se alternam constantemente, ou seja, se o inimigo
atira, é preciso deixar a piedade de lado e revidar o ataque,
pois essa é a única maneira de escapar da morte.
Em 1958-60 Goitia pintou a tela chamada Cabeça de
enforcado. Assim como Théodore Gericault (1791 – 1824),
cujas naturezas-mortas compostas por cabeças decepadas
FIGURA 11
referenciam os desastres
em tempos de sombra,
após a queda do Império de Napoleão em 1815, Goitia
acrescentou a essa pintura um caráter trágico e catastrófico
outrora inexistente. Não temos mais a imagem do horror
diante da morte, como na Bruxa, mas do horror diante da
crueldade do homem. Enquanto José Maria Velasco,
professor de Goitia no México, olhava para a ausência do
FIGURA 12
homem na paisagem, Goitia olhava para a ausência do humano no homem. Sigmund Freud
(1856 – 1939) em O Mal-Estar na Civilização fala da relação entre o instinto de vida e o
instinto de destruição relacionado à disputa entre Eros e a Morte. Para Freud, a agressividade
é um instinto do homem que se opõe ao programa de civilização e é também “derivado e o
principal representante do instinto de morte, que descobrimos lado a lado de Eros e que com
este divide o domínio do mundo.” (FREUD, 1997, p. 81).
Desde criança somos condicionados a regras sociais e aprendemos a diferenciar o bem
do mal, mas para Bataille “ser carrasco ou vítima nos coloca acima de nossos limites”
(BATAILLE apud BORGES, 2001), de forma que é preciso que tenhamos a consciência da
violência e abjeção que existe em nós. Antes da religião se perpetuar pelo mundo pregando o
bem e condenando o mal, os contos mitológicos tratavam com naturalidade o instinto de
agressão definido por Freud. Como exemplo, podemos citar Mercúrio, que com um só golpe
decepou Argos, enviado por Juno para vigiar Io; Perseu, assim como Mercúrio, cortou a
cabeça da Medusa e a entregou à Minerva, que por sua vez fixou-a no meio de sua égide,
transformando o escudo numa arma mortal que petrificava todos que o olhassem; Juno enviou
uma praga à civilização governada por Éaco que devastou a terra e matou todos os seus
habitantes, só porque a ilha tinha o nome de uma das amantes de seu marido. Da naturalidade
à barbárie, do orgulho de lutar por uma causa à injustiça advinda dela, do carrasco à vítima –
instâncias da diversidade de olhares e comportamentos dos que viveram as experiências da
guerra e dos comprometidos a transmiti-la através da arte. A guerra é para esses artistas um
lapso que permite criar, gritar, explorar sensações e um motivo a mais para manipular o caos,
dando a ele forma, cor e vida. Mesmo que a forma seja informe, as cores sejam tristes e a vida
vista através do cadáver.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
1 BATAILLE, Georges. História do Olho. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
2 BECKETT, Samuel. Fim de Partida. São Paulo: Cosac Naify, 2002.
3 BIOY CASARES, Adolfo. A invenção de Morel. 3. ed. – São Paulo: Cosac Naify, 2006.
4 BLANCHOT, Maurice. O espaço literário. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
5 BORGES, Augusto Contador. Georges Bataille: Imagens do Êxtase, 2001. Disponível
em: <http://www.revista.agulha.nom.br/ag9bataille.htm> Acesso em 27 jan. 2007.
6 CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. 2. ed. - São Paulo: Companhia da Letras, 2006.
7 DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
2007.
8 DERRIDA, Jacques. O animal que logo sou. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
9 FREUD, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1997.
10 LEIRIS, Michel. A idade viril. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
REFERÊNCIA DAS FIGURAS
1 Francisco Goitia. Paisagem de Zacatecas com enforcados II. 1914. Óleo sobre tela, 95 x 100
cm. Imagem cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia.
2 Francisco Goitia. O enforcado. 1912 – 17. Pastel sobre papel. 53 x 42 cm. CONACULTA INBA / Museo Francisco Goitia. Imagem cedida gentilmente pelo Museo Francisco Goitia.
3 Francis Bacon. Figura Sentada. 1979. Disponível em: <http://www.ciudadpintura.com>.
Acesso em: 10. jun. 2008.
4 Francisco Goitia. A Bruxa. 1916. Óleo sobre tela; 30 x 33 cm. Imagem cedida gentilmente
pelo Museo Francisco Goitia.
5 María Izquierdo. A corda. 1947. Óleo s/ tela. 43 x 51 cm. Disponível em:
<http://www.museoblaisten.com/spanish.asp?myURL=%2F02asp%2Fspanish%2FpaintingSp
anish%2Easp&myVars=numID%3D655>. Acesso em: 10. jun. 2008.
6 Pedro Figari. Qui se charge du mort? Óleo s/ cartão. 62 x 80 cm. Coleção Museu Municipal
Juan Manuel Blanes. Montevideo, Uruguay. Disponível em
<http://pintura.aut.org/BU04?Autnum=14155&Empnum=0&Inicio=76>. Acesso em: 10. jun.
2008.
7 Juan Manuel Blanes. Um episódio da febre amarela em Buenos Aires. 1871. Óleo s/ tela.
230 x 180 cm. Coleção Museu Nacional de Artes Visuais. Montevidéu, Uruguay. Disponível
em: <http://revistapersona.8m.com/34DHowlin.htm>. Acesso em: 10. jun. 2008.
8 Perla Frenda em "Fim de Partida" de Samuel Beckett. Foto: Marcelo Kahn. Disponível em:
<http://digitandoteatro.blogspot.com/2008/02/de-dentro-do-lato-de-lixo.html>. Acesso em:
10. jun. 2008.
9 Francisco Goitia. Paisagem de Zacatecas com enforcados II. 1938- 1942. Óleo sobre tela. 58
x 96 cm. Colección: CONACULTA - INBA / Museo Francisco Goitia. Imagen cedida
gentilmente pelo Museo Francisco Goitia.
10 Fou Li. O supliciado Chinês. Disponível em:
<http://www.revista.agulha.nom.br/ag9bataille.htm> Acesso em: 10. jun. 2008.
11 Francisco Goitia. Cabeça de enforcado. 1958-60. Óleo sobre tela. 122 x 93 cm.
CONACULTA - INBA / Museo Francisco Gotilla. Imagen cedida gentilmente pelo Museo
Francisco Goitia.
12 Théodore Gericault. Cabeças Cortadas. 1818-1819. Óleo sobre tela, 50 x 61 cm. Coleção
National Museum, Estocolmo. Disponível em:
http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/edu/theodore_gericault_g1.htm. Acesso em: 10. jun.
2008.
As cidades e as narrativas plásticas modernistas
Academicismo e modernismo em Santa Catarina1
Sandra Makowiecky 2
Participantes do Grupo de Pesquisa (SC): Marina Rieck Borck3Giorgio Vicenzo
Filomeno4
Participantes do Grupo de Pesquisa ( AL): Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes, Letícia
Weiduschadt, Rachel Reis de Araújo5
Resumo: Este artigo é decorrente de uma pesquisa que deverá mapear e agrupar os
principais artistas identificados com o academicismo e modernismo em Santa Catarina,
entretanto, especificamente nesta abordagem comparece uma problemática sobre o
arsenal imagético, particularmente no que se refere às questões relacionadas à
cronologia e anacronismo, texto e contexto, cópia e original, proximidade e distância,
superfície e profundidade, problemática central da pesquisa, utilizando imagens das
cidades e modernismo como fio condutor.
Palavras – chave: Academicismo; Modernismo; Santa Catarina.
O contexto - A pesquisa proposta problematiza uma história da pintura em Santa
Catarina entre meados dos séculos XIX e XX, especialmente considerando como base
levantamentos feitos com imagens encontradas em sites e catálogos relacionados a este
assunto e que tematizam através de cenas, paisagens, objetos e retratos questões
próprias à linguagem pictórica. Serão privilegiados os diferentes aspectos e
interlocuções que se apresentam para tramar e delimitar uma análise das sensibilidades e
percepções artísticas, tais como, principalmente, proximidade e distância.
1. -O presente texto é parte integrante de uma pesquisa intitulada Academicismo e modernismo em Santa
Catarina– UDESC, Centro de Artes, cujo levantamento já conta com mais de 500 imagens e conta com a
participação de bolsistas de iniciação científica.
2 Orientadora, professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes - UDESC.
3 Acadêmica do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina.
4 Acadêmico do Curso de Bacharelado em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo em Santa Catarina.
5 Acadêmicas participantes do projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo
grupo de pesquisa das orientadoras Sandra Makowiecky (coordenadora do projeto SC) e Rosangela
Miranda Cherem ( coordenadora do projeto AL). Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso
de Artes Plásticas; Kamilla Nunes, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; Letícia
Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Artes Plásticas; e Rachel Reis de Araújo, bolsista
voluntária e acadêmica do curso de Artes Plásticas.
Neste sentido, temos que entender Santa Catarina na periferia de centros como
Rio de Janeiro e São Paulo e mais recentemente, além destes, com Porto Alegre e Belo
Horizonte. Entretanto esses centros estão na periferia de centros artísticos do mundo,
cada qual em seu momento histórico. No século XIX, por exemplo, o Rio de Janeiro era
centro para Florianópolis, mas periferia para Paris. Os centros irradiadores culturais vez
por outra mudam. De todo modo, continuamos periferia de alguma coisa. Muitas vezes
um tipo de representação proposto encontra terreno fértil para se enraizar, como foi o
caso do neoclassicismo no Brasil, no século XIX, uma vez que seu universo simbólico
supria os anseios políticos, sociais e culturais da classe dominante. Portanto, não há
como relegar o fato de que são as nossas próprias condições históricas, sociais e
econômicas, que também determinam nossa produção artística.
Segundo evidências do próprio campo artístico, a relação entre centro e periferia
não deve ser valorativa, não deve ser vista como uma relação entre avanço e atraso. Ao
contrário, é um jogo móvel, sujeito a acelerações e tensões repentinas, ligadas a
modificações não apenas do campo artístico como também do social e político. A
presença de referências de outras manifestações artísticas evidencia a existência de uma
circularidade de idéias percebidas na diacronia e sincronia dos acontecimentos. Se
fossemos nos levar pela suposta linha reta da história, tal perspectiva só levaria a
concluir que a produção em arte em Santa Catarina, que é o objeto desta pesquisa, está
algumas décadas atrasada na história. Mas este raciocínio de nada serve para o estudo
da nossa produção plástica. Como diz Annatereza Fabris: “A arte moderna produzida
no Brasil, pelo menos no caso das artes plásticas, é moderna numa acepção peculiar e
local, mas não se pensada no âmbito das propostas européias” (1994, p.20).
As cidades - As relações entre cidade e objeto artístico aparecem em autores como
Francastel e Argan, que introduzem aspectos subjetivos na análise das formas urbanas simbologia, imaginário – considerando-as como produto cultural. Dentro do processo
histórico das cidades, não cabe uma compreensão de temporalidade cronológica, isso
porque elas abrigam uma trama de tempos descompassados que se cruzam de formas
diferentes, gerando mudanças constantes.
A cidade [...] nunca é absolutamente sincrônica: o tecido urbano, o
comportamento dos citadinos, as políticas de planificação urbanística,
econômica ou social desenvolvem-se segundo cronologias diferentes. Mas ao
mesmo tempo, a cidade está inteira no presente (LEPETIT, 2001, p. 139).
2
Tanto a subjetividade do imaginário quanto a dimensão histórica da relação entre
forma urbana e sociedade estão presentes no conceito de paisagem. Ao mesmo tempo, a
paisagem é fruto da história pois em cada época o processo social imprime
materialidade ao tempo, produzindo formas/paisagens ( LUCHIARI, 2001, p.12). A
paisagem constitui-se assim na representação de diversos momentos históricos de um
grupo social, como observa Milton Santos: Considerando um ponto determinado no
tempo, uma paisagem representa diferentes momentos de desenvolvimento de uma
sociedade. A paisagem é o resultado de uma acumulação de tempos (SANTOS, 1992,
p.13).
A noção de cotidiano é desenvolvida por Michel de Certeau, para quem o espaço
é um lugar praticado. É um lugar percebido, ou seja, para a mesma forma urbana podem
corresponder experiências espaciais distintas (CERTEAU, 2003, p. 176-203) bem como
representações plásticas distintas. Na relação entre forma urbana, estrutura social e
tempo, deve-se levar em conta Lepetit quando este afirma que “as sociedades urbanas
procedem continuamente a uma reatualização e a uma mudança de sentido das formas
antigas, reinterpretando-as constantemente” ( LEPETIT, 2001, p.147).
No termo cidade [...] acumula-se uma grande soma de experiências
históricas.[...] As cidades desenvolveram-se de uma maneira que chamamos
espontânea, mas que, na realidade, era determinada pela evidência que a
figura histórica da cidade tinha na consciência individual e
coletiva.(ARGAN, 1998, p.240).
No conceito de paisagem urbana, enfatiza-se a sua dimensão simbólica enquanto
rede de significados e significantes; na sua dimensão histórica, é expressão dos laços
que ligam o presente à herança do passado. Se estudarmos a forma sem conteúdo,
iremos reduz a realidade a um simulacro, eliminando a subjetividade do cotidiano, nos
diz Certeau (2003). E então, o que podem nos dizer os artistas? Como as cidades, as
esquinas e praças aparecem na representação plástica modernista?
É nos anos de 1920, com a industrialização em curso, que se verificam processos
de urbanização mais nitidamente modernos, e os modernismos que tem lugar nesse
período se beneficiam da reconfiguração das principais cidades brasileiras, mas mesmo
assim são tímidos. Nos diz Peixoto( 2006), que basta lembrar que dois ensaístas do
modernismo paulista, Paulo Prado e Sérgio Milliet, diretamente envolvidos com a
renovação operada nas artes, como analistas da sociedade nacional, voltam-se ou para o
passado e para as raízes do Brasil ou para o universo rural.
3
Se para Beatriz Sarlo, o “desejo de cidade é mais forte na tradição argentina,
que as utopias rurais”( 1990), na tradição brasileira, mesmo nos anos 1920 –
que também aqui “ apresentam a mudança de modo espetacular”( p.32) – é
preciso, senão inverter, ao menos suavizar a assertiva: os universos rural e
tradicional competem de modo decidido com o desejo de cidade de nossos
modernistas. (PEIXOTO, 2006, P. 178-9).
Diz ainda a autora, que a dualidade sertão/litoral é também parte constitutiva da
imaginação social sobre o Brasil e se desdobra, em momentos variados, em outros
dualismos espaciais recorrentes nas interpretações sobre o país a partir do século XIX,
como campo/cidade, norte/sul e que os temas das oposições podem variar, mas remetem
sempre a um mesmo núcleo: todas tematizam as dramáticas relações entre tradição e
modernidade entre nós. Os discursos sobre as cidades implicam lidar com a ordem do
simbólico e também com a ordem física, com a realidade das ruas, praças e traçados,
embora as duas dimensões- a da “ cidade letrada” e da “cidade real”, como quer Angel
Rama ( 1985), jamais se confundam.
A literatura e a arte do modernismo experimental que surgiu nos últimos anos do
século XIX, se afirmou nos primeiros 40 anos do século XX e continua até hoje, podese dizer, foi uma arte das cidades, principalmente das cidades poliglotas, cosmopolitas.
Quando pensamos em modernismo, não podemos deixar de evocar cidades com cafés,
revistas e galerias de arte, locais onde se destilam as novas estéticas. Sempre existiu
uma ligação entre as artes, especialmente a literatura e as cidades. E se o modernismo é
uma arte especificamente urbana, em parte é porque o artista moderno foi capturado
pelo espírito da cidade moderna, que em si é o espírito de uma sociedade tecnológica
moderna. A tendência modernista está profundamente enraizada nas capitais culturais
da Europa e se espalha pelo mundo. Portanto, não é casual que o século XX seja o
grande século de urbanização ocidental. Sobre as cidades como centros ciclônicos de
civilização, diz Bradbury;
Ecos formais desse processo ressoam claramente na forma e na falta de
forma, na criação e na descriação da arte modernista. O caos cultural
alimentado pela cidade populosa em crescimento constante, Torrre de Babel
contingente e poliglota, é reproduzido como análogo caos, contingência e
pluralidade nos textos literários modernos, no desenho e na forma da pintura
modernista (1989, p.78)
Além de arte metropolitana, o modernismo é uma arte cosmopolita: uma cidade
leva a outra no típico percurso estético até a metamorfose da forma. Irradiavam
influência e mantinham contato, e em larga medida é devido a essa fecundidade nas
comunicações e contatos que o modernismo constitui um movimento internacional. O
4
modernismo no Brasil e no resto do mundo, teve nas cidades, seu habitat natural. É da
vida e da experiência urbanas que os artistas e intelectuais ligados aos diversos
modernismos surgidos no começo do século XX retiram a matéria prima de sua
produção ( Bradbury, 1989).
Os artistas e as imagens da cidade – No contexto da modernização, busca-se
evidenciar a relevância daquilo que é local e peculiar na vida da cidade. O cotidiano da
cidade surge do convívio do novo com o antigo. Voltar-se para a vida, o dia-a dia, falar
de temas corriqueiros, que, por estarem incorporados ao cotidiano, já não são
percebidos como elemento diferenciador da vida na cidade e do povo, são questões
recorrentes nos trabalhos dos artistas, que empenharam as suas sensibilidades na
valorização desses aspectos simples, populares, óbvios até. E procuraram transformar a
vida em arte para poder representar com a arte a vida das pessoas comuns.Temas que
antes eram experimentados na privacidade vieram a público, tornando-se capazes de
figurar num espaço destinado à arte.
A ambição do modernismo em querer exprimir o imaginário brasileiro, faz
com que procure reconstituir esse imaginário a partir de suas origens. Deste
modo, a imagem do modernismo não se limitará ao perímetro das cidades,
retomando como signos algumas características formais próprias à paisagem
interiorana, tais como as construções populares, ou ainda as casas-grandes e
as igrejas coloniais esquecidas no tempo (ZILIO, 1982, p.78).
Aparecem temas como: casas simples, quintais, esquinas, praças, festas
populares, os lugares da cidade, com as ruas, praças, morros, cais, as personagens
presentes no cotidiano. Muitos artistas tentavam dar conta da paisagem física e humana
das cidades, construindo uma iconografia local, nos diz Chiarelli ( 1994), lembrando
que os padrões do modernismo brasileiro já estão presentes no final do século XIX e
ganham importância com a transformação da Academia Imperial de belas Artes em
escola Nacional de Belas Artes. Surge daí um paisagismo nacionalista que vai servir de
parâmetro para a construção de uma arte nacional no início do século XX. Os artistas
assumem as condições locais caracterizando-as e tornando-as positivas. O modernismo
instaurou-se sob o signo do nacionalismo, projetando para o futuro o que tentava
resgatar do passado, estabelecendo alguns possíveis contornos para uma imagem
brasileira.
Há muito chegamos à conclusão de que a arte não é produzida num espaço
vazio, de que nenhum artista é independente de predecessores e modelos, de
que ele, tanto quanto o cientista ou o filósofo, é parte de uma tradição
específica e trabalha numa área estruturada de problemas. O grau de maestria
neste contexto e, pelo menos em certos períodos, a liberdade para modificar
5
esses rigores são, presumivelmente, parte da complexa escala pela qual o
êxito final é medido (GOMBRICH, 1986, p 24).
Ao falarmos de modernismo, podemos entender as características da nova
mentalidade
como
as
sintetizadas
por
Mário
Barata
(1983)
baseadas
no
anticonvencional, no antideclamatório, na liberdade de se inventar poéticas, linguagens,
sintaxes, de lidar com os sentidos, de colocar a composição subordinada a construção
mental, de tornar o colorido não um fato de representação, mas de uma opção estética,
desprezo aos padrões convencionais, necessidade de renovação, mas sobretudo, a
liberdade absoluta de espírito, considerada como elemento criador por excelência.
Alejandro Xul Solar (1887-1963), argentino, é um dos mais representativos
pintores da vanguarda latino americana. Em 1912 foi para a Europa onde ficou ate 1924.
Beatriz Sarlo ( 2005) diz que sempre considerou os quadros de Xou Solar um quebra –
cabeça de Buenos Aires, ficando impressionada com a paixão hierárquica e
geometrizante, a exterioridade de seu simbolismo. Em suas proposições, Xul Solar
antecipa-se ao Surrealismo, assim como tangencia o Maneirismo e o Dada.( Figuras. 1,
2, 3 ).
Figura 1
Figura 2
O que Xou mescla em seus quadros também se mescla na cultura dos
intelectuais: modernidade européia e diferença rioplatense, aceleração e
angústia, tradicionalismo e espírito renovador, crioulismo e vanguarda.
Buenos Aires: o grande cenário latino americano de uma cultura da mescla.
( SARLO, 2005, p. 201).
Antonio Berni Rosário (Argentina -1905-1981), em 1925 ganha bolsa de viagem
à Europa. Nesse momento, interessa-se por idéias socialistas, associa-se com os
surrealistas e começa a pintar nesse estilo. Em 1930, regressa à Argentina. Trabalha
com a temática social que permite compreender o cotidiano das cidades latinas, seus
6
costumes e mitos regionais. Berni cria um universo onde dois mundos aparentemente
antagônicos, se confrontam: o da arte culta e da cultura popular ( figura. 4 a figura. 7).
Figura 3
Figura 4
Figura 6
Figura 5
Figura 7
Jose Antonio Velasquez (Honduras -1906-1983). Fez uma arte ingênua e
primitivista. Foi minucioso em suas obras. Nos quadros de Velazquez, onde vemos as
telhas pintadas uma a uma, os cachorros urinando sobre as paredes ou os troncos e as
pessoas ocupadas em algo. O cotidiano das cidades expresso em sua singeleza. ( figura
8 e 9).
7
Figura 8
Figura 9
O venezuelano Rafael Monasterio (1884 -1961). Viaja à Espanha. Depois da
criação da Escola das Belas Artes, surgiu um movimento acadêmico de pintura,
impulsionado por pintores venezuelanos formados na Europa, a partir do qual a pintura
venezuelana foi virando-se, cada vez mais, para a abstração geométrica e a arte cinética.
Todavia, em Monasterio percebemos características modernistas de se voltar a um
regionalismo (figuras 10 e 11).
Figura 10
Figura 12
Figura 11
Figura 13
8
Bárbaro Rivas ( Venezuelano - 1893 -1967). Pintor autodidata é considerado
pela crítica como o mais notável dos ingênuos venezuelanos. As tipologias de suas
personagens e as ambientes de sua estranha obra estão, sem dúvidas, tomados de Petare,
cidade onde sempre viveu (figuras 12 e 13).
Alfredo Helsby Hazell ( Valparaíso -1862 -1933). Em 1906, lhe foi concedida
bolsa de estudos para a Europa, tendo se radicado em Paris. Regressou ao Chile em
1908. Herdeiro de uma sensibilidade inglesa para a cor, admirava os paisagistas
Whistler e Turner e, dessa maneira, interpretou as paisagens cordilheiras, campos,
marinhas, as cenas de Valparaíso e do sul de Chile ( figura 14).
Figura 14
Figura 15
Camilo Mori Serrano (Chile 1896 – 1973) .Em 1920, recebeu bolsa do governo
chileno para estudar na Europa por três anos. Foi para a Academia de Roma e,
finalmente, instalou-se em Paris no apogeu do movimento modernista. Retornando ao
Chile, uniu-se aos pintores do Grupo Montparnasse, o qual foi decisivo na difusão das
novas correntes pictóricas francesas no Chile.( figura 15).
Luis Herrera Guevara (Santiago 1891 -1945). Após uma viagem a Europa, na
qual percorreu os principais centros de artes, inscreveu-se nos ateliês da Sociedade de
Belas Artes de Santiago. Fazia uso de cores que ele mesmo chamava de artificiais e
desdenhava das tonalidades naturais das paisagens campestres, preferindo as cores
brilhantes da cidade, na qual retratou com um completo desapego as perspectivas e
proporções. Recriou a vida da cidade de Santiago. Criou um universo pessoal composto
por figuras humanas deformes e em atitudes irreais, ruas, edifícios, praças e igrejas
distorcidas.( figuras 16 e 17).
9
Figura 16
Figura 17
Pedro Figari ( Montevidéu-1861 -1938), em 1925 mudou-se para Paris. De lá,
projetou e organizou exposições na Europa e América. Regressou ao Uruguai em 1933.
Pedro Figari foi um pintor de manchas e não de linhas. Pintou o passado através de suas
lembranças. Povoou seus quadros com gaúchos, negros e crioulos com metáforas de um
ser presumidamente uruguaio.( figuras 18 e 19).
Figura 18
Figura 20
Figura 19
Figura 21
José Cuneo (Montevidéu -1887 -1977 –Alemanha). Em 1917 estudou em Paris
e se interessou pela pintura de Cézanne e Gauguin. De volta ao Uruguai, realizou uma
série de retratos e paisagens da cidade de Melo. Em 1927, de volta a Europa conheceu a
10
obra de Chaim Soutine atraindo-lhe as deformações expressionistas e o uso da diagonal,
o que marcará sua obra futura. A partir de 1930 começou uma série de ranchos, luas e
aquarelas do campo uruguaio. (Figura 20)
Rafael Barradas ( Montevidéu 1890 -1929). Durante sua estadia em Barcelona se
uniu a Joaquín Torres García Até 1920 viveu em Madrid Mudou-se para Hospitalet de
Llobregat, Barcelona, onde realizou uma série de paisagens da localidade. ( figura 21).
Joaquín Torres García (Montevidéu 1874-1949). Radicou-se na Europa por
quarenta e três anos. Em 1928, conheceu Theo Van Doesburg, artista que lhe apresentou
o neoplasticismo e também Mondrian, que será decisivo na pintura de Torres Garcia.
Inspirando-se no seu ambiente, Torres-García desenvolveu obras esquemáticas e
simbólicas que evocavam o desenho e o ritmo da cidade, onde registra as formas e as
cores das casas estreitas e das ruas vertiginosas de Montevidéu.( figuras 22 e 23).
Figura 22
Figura 24
Figura 23
Figura 25
11
Humberto Causa (Montevidéu -1890 – 1925). Através de uma bolsa de estudos
conheceu a Alemanha, Itália, França e Espanha. Em 1918, ao regressar ao Uruguai,
radicou-se na região de Maldonado, para se dedicar ao ensino e a pintura da paisagem
daquela localidade ( figuras24 e 25).
Em Santa Catarina, Eduardo Dias (Florianópolis, 1872 -1945) foi um dos
pintores que mais retratou Florianópolis em seu isolamento. As paisagens do Morro do
Antão, as da ponte Hercílio Luz e as da minúscula cidade adquirem um sentido quase
metafísico ao lado de uma atmosfera poética. Vemos um olhar mais livre e ingênuo da
paisagem e do belo casario da antiga Desterro. A pintura “Colégio de Jesuítas” mostra
em suas minúcias, as particularidades de um registro da vida cotidiana da cidade. (
figuras 26 e 27) )
Figura 26
Figura 27
Martinho de Haro (1907-1985) ganhou prêmio de viagem à Europa e estudou em
Paris. Não deu saltos para novas tendências, foi fiel as intenções construtivas da diretriz
moderna, rigoroso controlador dos meios expressivos, de sua fidelidade aos temas e “de
quebra, ajudou a criar a memória afetiva da cidade” ( ANDRADE FILHO, 2007, p. 37).
( figuras28 e 29).
Figura 28
Figura 29
12
Concluindo- Nesta seqüência de imagens de cidades feitas por artistas que mantiveram,
em sua maioria, contato com experiências européias, se percebe uma matriz discursiva
que não é européia tão somente, mas sim, particular de cada artista, impregnada de suas
vivências e pensamentos. E a rua aparece sempre. Para Fabris (2000), a rua é o lugar
tópico da modernidade: niveladora; transformadora das línguas; vitrine do conforto
humano, posto que proporciona ao animal civilizado coisas como luz, luxo, bem-estar,
comodidade; local de espreita da vida; criadora de tipos; inventora de novas formas de
comunicação. A cidade da memória coletiva descrita por Maurice Halbwachs ( 1990)
está sempre em transformação e o seu esquecimento significa que os grupos que dela
guardavam lembranças, desapareceram. Para Boyer ( 1994) as relações fundamentais
entre arquitetura, forma urbana e história devem ser questionadas, pois a cidade é a
expressão coletiva da arquitetura e carrega na sua trama e no desenredo de seu tecido os
traços de memória de formas arquitetônicas mais antigas, planos diretores e
monumentos públicos. As demandas e pressões da realidade social constantemente
afetam a ordem material da cidade, contudo ela permanece sendo o teatro de nossa
memória. Suas formas coletivas e reinos privados nos contam das mudanças que estão
acontecendo; nos lembram também de tradições que diferenciaram esta cidade de
outras. São nesses artefatos físicos e traços que nossas memórias da cidade jazem
enterradas, pois o passado é carregado até o presente através desses lugares.
Endereçados ao olho da visão e à alma da memória, as ruas de uma cidade, monumentos
e formas arquitetônicas constantemente contêm grandes discursos sobre a história. A
imagem da cidade é um conceito abstrato, uma forma construída imaginariamente.
Modelo, espacial, social e cultural, a cidade apresenta-se, não raras vezes,
como o território privilegiado da utopia. Em muitas “arquiteturas pintadas”,
como no caso do renascimento, configura-se o desejo utópico de construir
modelos ideais, projeções de uma visão de mundo, um pensamento
filosófico, que só em poucas ocasiões terão a oportunidade de transformar-se
em realidade ( FABRIS, 2000, p.9).
Mas a arquitetura na cidade não é somente um espetáculo moldado pela ordem
representacional dos planejadores e arquitetos, ela envolve também o público. Como
espectadores, nós viajamos através da cidade observando seus espaços arquitetônicos
construídos, mudando cenários contemporâneos e reflexões do passado até que eles se
condensem em uma visão personalizada. Nossa memória da cidade é especialmente
cênica e teatral: nós viajamos de volta no tempo através de imagens que lembram partes
13
e pedaços de uma cidade anterior, nós projetamos essas representações anteriores em
cenários recompostos unificados e nos apaixonamos por estes cenários infinitos.
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2- Figura 2. Argentina. Xul Solar. (1887, Buenos Aires – 1963).‘Ciuda Lagui’, 1939
Aquarela 37.5 x 50 cm.
3 Figura 3. Argentina. Xul Solar. (1887, Buenos Aires – 1963).‘Barrio’, 195Têmpera
40 x 56 cm
Xou Solar. Disponível em < http://www.zaz.com.br/bienal/xul.htm>. Acesso em 22
jul.2007.
4- Figura 4. Argentina. Antonio Berni. Sueño de uma noche de verano a orillas del lago
gardas – 1931
5- Figura 5.Argentina .Antonio Berni. ‘El tanque blanco’, 1956.
6- Figura 6.Argentina .Antonio Berni. ‘La calle’, 1955.
7- Figura 7.Argentina .Antonio Berni. ‘La gallina ciega’, 1974
Antônio
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Disponível em < http://en.wikipedia.org/wiki/Antonio_Berni.>Acesso em 13 jul.2007.
8-Figura 8. Honduras. Jose Antonio Velasquez .Santo Antonio do Oriente, 1949. Óleo
sobre tela. 52.07 x 76.2 cm.
9 Figura 9. Honduras.Jose Antonio Velásquez. Vila de Santo Antonio do Oriente.
José
Antônio
Velazques.
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10. Figura 10. Venezuela. Rafael Monasterio.Calle de Quíbor’, 1957 Óleo s/ masonite
60 x 80 cm.
11-Figura 11.Venezuela. Rafael Monasterio..Barrio de Duaca’, 1956 Óleo s/ tela 64 x
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Rafael
Monasterio.
Disponível
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http://www.morellajimenez.com.do/pinturamonasterios.htm> Acesso em 10 ago. 2007.
12-Figura 12.Venezuela. Bárbaro Rivas.Vista de Pueblo (Escenas Pueblerinas)’,1960
Óleo s/ masonite 46 x 46 cm .
13- Figura 13. Venezuela. Bárbaro Rivas. ‘Barrio Caruto’ (segunda versión),1925
Esmalte s/ masonite 52 x 68 cm
15
Bárbaro Rivas- Disponível em < http://www.galeriamuci.com/artistas/rivas.htm>
Acesso em 24 jul. 2007.
Disponível em < http://www.bcv.org.ve/BLANKSITE/c3/colecarte/rivas_index.htm>
Acesso em 24 jul. 2007.
14. Figura 14. Chile. - Alfredo Helsby Hazell, (n.Valparaíso - 1862 – f.Santiago 1933).Igreja Divina Providência, s/ data. Óleo s/tela, 55 x 76 cm. Coleção particular.
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http://www.mapocho.org/wpcontent/uploads/alfredo_helsby_providencia.jpg> Acesso em 19 jul. 2007.
15. Figura 15. Chile. Camilo Mori Serrano.Domingo em Valparaiso, s/ data.
Camilo Mori Serrano. Disponível em < www.artistasplasticoschilenos.cl>. Acesso em
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16- Figura 16. Chile. – Luis Herrera Guevara.. Cerro Bellavista, 1940. Óleo s/ tela.
Pinacoteca Banco Central de Chile, Santiago.
17. Figura 17. Chile – Luis Herrera Guevara. Igreja de São Francisco e Praça das Flores,
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Luis Herrera Guevara. Disponível em < www.artistasplasticoschilenos.cl> e disponível
em < www.mac.uchile.cl/virtual/h2/index.html>. Acesso em 24 mai.2007.
18- Figura 18. Uruguai. Pedro Figari, L'Ancien Montevideo: le vieux marché,
1890.Aquarela. 50 x 80 cm. Museo Histórico Nacional, Casa de Fructuoso Rivera.
Montevideo
19. Figura 19. Uruguai.– Pedro Figari, (Montevidéu - 1861 / Montevidéu - 1938) Toque
de oración, 1925, óleo s/ cartão, 69 x 99 cm. Coleção Museu Nacional de Artes Visuais
de Belas Artes.
Pedro Figari. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/figari.htm> Aceso em 10
abr.2007.
20. Figura 20. Uruguai – José Cuneo. Caserío de Cagnes, 1929. Óleo s/ tela. 74 x 92
cm. Coleção Museu de Arte Latino-americano de Buenos Aires - MALBA. Argentina
Jose Cuneo. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/cuneo.htm> e Disponível em
http://www.rau.edu.uy/uruguay/cultura/cuneo.htm Acesso em 12 mai.2007.
21.Figura 21. Uruguai – Rafael Barradas. Paisaje de Hospitalet. 1926. óleo s/ cartão. 48
x 64 cm.. Coleção Guillermo de Osma. Madrid. Espana.
Rafael Barradas. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/barradas.htm>. Acesso em
11
fev.2007.
Disponível
em
<
http://www.museopatioherreriano.org/MuseoPatioHerreriano/coleccion/catalogo_razona
do>. Acesso em 11 fev.20076.
22. Figura 22. Uruguai– Joaquím Torres Garcia.Escena Callejera, 1918
Torres Garcia. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/torres.htm> e Disponível em
< www.torresgarcia.org.uy.jpg>. Acesso em 02 fev.2007.
23. Figura 23. URUGUAI – Joaquím Torres Garcia, (Montevidéu - 1874/ Montevidéu 1949). Paisaje de ciudad, 1928.Óleo s/ cartão. 36 x 56 cm.
24. Figura 24. Uruguai – Humberto Causa. Palma de Mallorca, 1915 .óleo s/ tela. 119 x
135 cm.Coleção Museu Nacional de Artes Visuais, Montevidéu, Uruguay.
25. Figura 25. Uruguai – Humberto CausaPlaza de Pollenza, 1915.Coleção Museu
Nacional de Artes Visuais, Montevidéu, Uruguay.
Humberto Causa. Disponível em < http://www.mnav.gub.uy/causa.htm>Acesso em 20
mai.2007.
26. Figura 26. – Brasil. Eduardo Dias - “Colégio de Jesuítas”, s/d. Óleo sobre tela – 23,5
x 33 cm. Acervo do MASC, tombo nº 418.
27. Figura 27. Brasil. Eduardo Dias. “Netos do Diabo”, s/d. Óleo sobre tela Circa 1,50 x
80 cm. Coleção Edhy Francisco Mattos.
16
28. Figura 28.Brasil. Martinho de Haro. “Panorama de Florianópolis”. Óleo sobre
eucatex. 63 x 113cm. 1975. Acervo do MASC.
29. Figura 29. Martinho de Haro –“Porto”. Óleo sobre eucatex. 211 x 271cm. Acervo
Teatro Álvaro de Carvalho (TAC).
17
Danae, Maria e uma Jovem Burguesa
Roberto Freitas1
Figura1. Danae
925 AC.
Danae é uma importante personagem feminina da mitologia grega, mãe de um
herói, foi vítima de uma sucessão de crueldades humanas. Filha de Acrísio, rei de
Argos, e Euridice, viveu isolada do mundo trancada em uma torre de bronze e depois
jogada a própria sorte dentro de uma arca de madeira às águas agitada dos mares. Sua
desgraça começa quando seu pai é alertado oracularmente de que sua morte viria das
mãos de um neto, filho de Danae. No intuito de mudar o seu destino decidiu impedir
que sua filha ficasse grávida, para isso enclausura a filha, mantendo a vigia confiada a
seus mais fieis guardas. Infelizmente, para sua sorte de Acrísio, Zeus se enamora da
virgem e, usando de sua capacidade divina de se metamorfosear, se transforma em uma
1
Mestrando pelo PPGAV – CEART UDESC linha de Teoria e História da Arte, orientado por Rosângela
Miranda Cherem.
chuva de ouro, entra por um orifício no teto de sua prisão, fecundando a jovem de um
menino que se chamaria Perceu.
Figura 2. Tintoretto
Danae (1580)
Ao saber da gravidez de Danae, Acrísio manda matar mãe e filho. Enquanto a
arca navegava a deriva Zeus, com auxílio de Posseidon, acalma os mares e faz com que
os dois cheguem a salvo na ilha de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades, onde são
resgatados por pescadores e levados ao seu rei local, Polidectes. Com o tempo o
monarca se apaixona por Danae e resolve desposá-la. Com medo que Perceu
atrapalhasse seus planos manda o jovem para morte, delegando uma tarefa que julgava
impossível, matar a medusa, uma terrível besta mitológica que transforma todos que a
vissem em pedra. Para a surpresa de seu padrasto Perceu mata a medusa, na sua volta
jogos comemorativos são realizados com a presença dos monarcas das redondezas, é
neste momento que Perceu mata seu avô num acidente com um dardo, cumprindo-se a
profecia.
Figura 3. Gustav Klimt
Danae (1907-1908)
Maria é o personagem feminino mais importante da mitologia cristã, sua saga de
mãe é tão trágica que se equivale a de Danae. A virgem Maria é fecundada por um deus,
que emana suas forças através do espírito santo, a sua forma divina quando
experenciada pelos seres humanos, que se revela na forma de uma bola de fogo, raios
dourados de luz. Uma vez grávida teve que fugir porque o rei Herodes mandou matar a
criança que seria o “rei dos reis”, segundo uma profecia, o que provocou uma grande
chacina de crianças. O filho de Maria, Jesus, era um semideus, assim como Perceu
realizou grandes feitos proféticos, mas acabou tragicamente numa cruz, enquanto
Perceu morre de velho como rei de Argos e constrói a famosa cidade de Micenas.
Figura 4. Vercellio Tiziano
Danae with a Nurce (1553-54)
Figura 5. Jan Gossaert
A Fecundação de Danae (1527)
Figura 6. Rembrandt
Danae (1636-47)
O foco desta investigação não é nem um pouco a figura de um semideus, nem
Jesus nem Perceu interessam, mas a figura de uma mortal que em sua pureza é capaz de
fazer com que um deus desça dos céus para ter com ela um filho, figura que encantou os
mais diversos artistas nos mais diversos períodos, artistas que se encontravam diante do
desafio de representar uma personagem capaz de enamorar um deus.
Figura 7. Willian Blacke
O Sonho de Jacob
Ramon Frade foi um conhecido pintor caribenho da virada do século XIX para o
XX, atuou principalmente em Porto Rico, mesmo que tenha feito inúmeras viagens para
o Haiti e República Dominicana, onde fez estudou desenho com Adolphe Laglande.
Ainda freqüentou ateliê de pintura de Luis Desangles, onde se formou como pintor
acadêmico. Paralelo a seus estudos em artes estudou arquitetura por correspondência, o
que possibilitou para o artista trabalhar como agrimensor e engenheiro civil, o que o
levou a um trabalho de pintura muito voltado para paisagens e a vida simples do
trabalhador do campo de Porto Rico, isso o transformou em um pintor realista e um
artista humanista, voltado para o homem simples do campo.
Figura 8. Ramón Frade
Sonho de amor
De todas as pinturas do artista que vi, chamou muito a atenção uma que foge
muito do seu universo de atuação, se trata de uma pintura de caráter burguês e
romântico no que se refere ao tema. Trata uma jovem deitada preguiçosa, num lugar
excessivamente frio e escuro, aparenta estar confortável, entregue a um doce sonho. Seu
corpo caído sobre um divã, a parte baixa de seu ventre está sobre um tecido dourado, o
corpo está todo muito relaxado, parece reagir doce e prazerosamente aos seres
sonhados, pequenos cupidos quase invisíveis voando a sua volta, sendo que um segura
delicadamente a sua mão. Há uma pomba com as asas ainda semi abertas, como que
acabado de chegar, e flores sobre uma almofada de veludo que espontaneamente
colocadas reforçam a atmosfera de sonho. A pintura intitulada “Sonho de Amor” da
primeira década do século XX.
Figura 9. Jan van Eyck,
Anunciação (1432)
Figura 10. Chagall, Marc
O Sonho de Jacob
Os sonhos sempre estiveram presente no cotidiano das pessoas, desde a mais
remota antiguidade é possível encontrar relatos sobre interpretação de sonhos. Um
exemplo disso é a bíblia, repleta de imagens de sonhos. Nas artes visuais o sonho
sempre esteve presente como uma grande temática sempre associada ao seu lado
místico, da anunciação ou da revelação, eco da natureza divina que lhe era atribuída de
maneira incontestável.
Figura 11. Giovanni Battista Tiempolo
Jupter e Danae (1736)
Alguns sonhos foram amplamente explorado por artistas, principalmente os
sonhos que, narrados na bíblia, são tidos como um direto contato com algum ente
superior que dita regras ou dá pistas sobre o destino de determinada pessoa o mesmo de
toda a humanidade. Assim a idéia da revelação de uma verdade sagrada através de um
sonho místico ganha forma, se desdobra no que os teólogos da idade média chamavam
de interpretação dos quatro sentidos da escritura.
Figura 12. Dominico Beccafumi
A Anunciação (1545)
Figura 13. Richard Hamiltoni
A Anunciação (2004-05)
O Sonho de Jacob, por exemplo, foi pintado por inúmeros artistas, Willian Blake
o fez com a majestade de um visionário, como se o próprio o tivesse sonhado. Uma
escada em caracol sobe até o infinito iluminado como o sol, enquanto os anjos que
sobem e descem são mulheres que carregam ânforas, bandejas, e outros objetos
simbólicos. Esse mesmo sonho foi utilizado como tema por muitos outros artistas,
exemplo as imagens abaixo de Gustav Doré, de um anônimo do séc. XIV e, na pintura
extremamente comovente de Marc Chagall, onde a abertura de ligação entre esses dois
mundos, o do imaginário simbólico místico e o do cotidiano se encontram e trocam
influências se misturam criando novas configurações no universo cultural humano.
Figura 14. Paulos Bor
A anunciação
Figura 15. Jean Luc Godard
Je vous salue, Marie
fotogramas do filme no momento da anunciação
Figura 16. Orazio Gentileschi,
Danae (1621)
Mas se o tema do sonho bíblico assume uma grande importância simbólica não
apenas para quem sonha, mas para toda a cultura, o sonho da jovem adormecida de
Ramón Frade sonha em um outro universo, um espaço particular, idílico e sem
responsabilidade, construído pelo hedonismo de quem ama. Um sonho banal, mas que
ao mesmo tempo coloca a simples mulher representada no patamar simbólico de Danai
ou Maria, e essa é a articulação que dá força a pintura: ao mesmo tempo em que uma
jovem burguesa tem um sonho erótico, toda a icnografia usada pelo pintor aponta para
uma cena sagrada. Na pintura é possível ler uma versão do mito do ente sagrado que
fecunda uma virgem. Apesar de ser completamente impossível saber qual será a sina
heróica de seu filho semideus, poder-se-ia imaginar que para um homem que era pintor
e agrimensor, idealista, interessado pelo homem simples do campo, vivendo num dos
lugares mais injustos das Américas estivesse associada ao sonho de mudança e
revolução, ao martírio e a mudanças.
Figura 17. Fra Angelico
A Anunciação (1430-32)
PAISAGENS URBANAS: VISÕES DE ARCÁDIA
Aletea Hoffmeister Mattes*
Rosângela Cherem**
Resumo:
Analisando algumas pinturas latino-americanas do início do século XX, este artigo propõe
uma relação entre a pintura de paisagens urbanas e a idéia de Arcádia, considerando as paisagens
como resultado da relação com o espaço físico e, ao mesmo tempo, projeção individual e subjetiva. A
partir de escritos de Foucault, Schama e Deleuze desenvolve-se uma reflexão sobre as paisagens e seu
imaginário, considerando certos desdobramentos pertinentes a sensibilidades e percepções de cada
artista em relação à cidade.
Palavras-chave: pintura, paisagem, cidade, Arcádia.
* Mestranda do PPGAV – CEART, UDESC linha de Teoria e História da Arte
** Orientadora; professora do curso de Mestrado no PPGAV – CEART, UDESC.
No ritmo de nosso assombro, de nosso entusiasmo ou de nossa
desaprovação, construímos de forma imaginária uma cidade dentro da
cidade, que temos a oportunidade de ver ou de morar nela. A cidade permite
uma aventura da imaginação como essa somente, na medida em que o que
dela se exponha demonstre imediatamente ter a capacidade de absorver o
novo.
Henry-Pierre Jeudy1
A cidade existe independente do olhar do indivíduo, mas no momento em que ele a mira, a sua
imagem se compõe e uma nova configuração pode atravessá-la. Daí a particularidade da paisagem,
mesmo que seus elementos sejam coletivos e se deixem ver por todos. O olhar para a paisagem sempre
é parcial e carregado das impressões singulares do
observador, é por isso que um único lugar pode conter
infinitas paisagens.
Tal
compreensão
permite
pensar
certos
procedimentos pictóricos de Fortunaro Lacámera e
Onofrio Pacenza ao registrarem o bairro de La Boca, na
capital Argentina. Em obras como “Esquina de Rocha,
Figura 1. Fortunato Lacámera
Esquina de Rocha, La Boca
Óleo sobre tela
83 x 110 cm
La Boca” e “Esquina Boquense”, de Lacámera, a
arquitetura
detalhada
emerge
entre
as
formas,
impedindo-nos de ver o horizonte e destacando-se em
relação a alguns indivíduos silenciosos e imóveis. As
cenas são banhadas de luz, criando um jogo de
contraste com a projeção das sombras. Mais de um
caminho existe na cena, há opções para penetrar as
ruas, mas o movimento estará nos olhos do espectador,
pois toda paisagem está imóvel, silenciosa. Também
imóveis são as cenas de Pacenza ao retratar o mesmo
bairro em obras como “Canto de La Boca” e
“Paisagem Citadina”. Porém, o artista nos coloca em
Figura 2. Fortunato Lacámera
Esquina Boquense
Óleo sobre cartão
60 x 47 cm
outra realidade. A arquitetura é mais simples e plana,
suas paredes contínuas com cores manchadas revelam
uma estrutura menos meticulosa, num lugar carregado
do sentimento de abandono. No plano amplo das ruas vazias, sob um céu de azul denso, estas
1
JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2005, p.81.
paisagens nos impõem sua presença, levando-nos a partir de um canto sombrio e nos conduzindo até
um rio que encontra o horizonte.
Diante destas obras cabe salientar que se o
mesmo lugar é visto de maneiras tão distintas, talvez
isto se relacione ao fato de que a composição da
paisagem sempre se faz pelo pela subjetividade de
quem a vê, como potência que surge a partir de
projeções particulares. Tentemos pensar um pouco esta
questão a partir da Arcádia. Em termos geográficos, é
Figura 3. Onofrio Pacenza
Canto de La Boca
Têmpera
16 x 23 cm
uma área da península do Peloponeso, no sul da Grécia.
Nos textos mitológicos essa região era guardada por Pã,
uma divindade meio homem meio cabra, que jamais
ficava indiferente a quem entrasse em seus domínios.
Atemorizando aqueles com quem não simpatizava,
levava-os a uma angústia associada ao anseio de partir.
Já aqueles por quem Pã se afeiçoava, eram agradados
com os privilégios do lugar e seus prazeres, quase
enfeitiçados pela vontade de jamais sair.
Assim, a idéia de Arcádia pode ser associada a
Figura 4. Onofrio Pacenza
Paisagem citadina
Óleo sobre cartão
22 x 29 cm
de heterotopia, ou seja, como aquilo a que Foucault2
definiu como um espaço simultaneamente real e virtual,
pois funciona de forma dependente dos lugares físicos
pré-existentes, mas ao mesmo tempo sua existência não
está apenas contida neles. Como uma projeção no espelho, em que ao mesmo tempo se está e não está.
Como uma imagem do prédio refletido na poça de água, ela se relaciona à água e ao prédio, mas não é
nenhum deles. Ou ainda como a paisagem, que só pode ser concebida pelo olhar daquele que mira o
lugar a partir de um determinado ponto e distância, mas ela não está nos olhos do observador nem nas
entranhas do lugar.
Diante de tantos registros presentes nas artes, na filosofia, na história e na geografia, não é
difícil compreender as infinitas controvérsias que impedem uma única definição de Arcádia. Assim,
diferentes percepções e sensibilidades podem evocar este lugar, sendo por vezes um panorama suave e
pacífico, e em outros momentos traduzido como local de mistério e temor. Conforme Simon Schama:
2
FOUCAULT, Michael. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. R.J.: Forence Universitária,
2001.
Sempre houve dois tipos de Arcádia: tumultuada e tranqüila; sombria e luminosa; um lugar de ócio
bucólico e um lugar de pânico primitivo.3
O autor ressalta que, independente da ênfase que recebe, na medida em que Arcádia é
procurada e reconstruída, torna-se produto da mente organizada, e mesmo que seja uma idéia
abundante em subjetividade, é constituída de pensamento lógico. Talvez seja justamente por isso que
esse lugar não-físico, onde a idéia de paraíso convive
com a presença humana, inspirou urbanistas, artistas,
poetas e tantos outros. Esse mundo tão abrangente, de
regiões inalcançáveis, instiga a uma procura contínua
ao longo da História, especialmente através das obras
de artes visuais e da literatura.
Podemos pensar na busca por Arcádia através
Figura 5. Rafael Barradas
Paisagem de Sans, 1927
Óleo sobre tela
66 x 88,5 cm
das diferentes visões que os artistas têm das paisagens
citadinas, encontrando na arte condições privilegiadas
para explorar suas possibilidades e interpretações, e que
se apresentam em múltiplas formas: singular, universal,
banal,
surpreendente,
fragmentada,
funcional,
contemplativa, assombrosa.
Os artistas uruguaios Rafael Barradas e Alfredo
De Simone nos provocam com suas visões. Quando
olhamos, por exemplo, “Paisagem de Sans” ou a série
Figura 6. Rafael Barradas
Paisagem de Hospitalet, 1926
Óleo sobre cartão
41,2 x 56,5 cm
“Paisagem de Hospitalet” de Barradas, nos deparamos
com superfícies rasas, nas quais estão paisagens de
cidades monocromáticas, que nos lembram as ruínas, a
seca, o deserto. Os contornos destacam as formas
geométricas de ângulos em ponta, enquanto os
personagens sem rosto se confundem com a arquitetura.
Estamos em uma terra árida, quase inóspita. Que lugar
é este? Por que as personagens se conformam a ele?
Como posso fazer tais interpretações se nunca estive
lá?
Em outro extremo, temos De Simone. Ao
Figura 7. Alfredo De Simone
Rua do bairro sul
vermos “Rua do bairro sul” e “Vista da cidade” somos
envolvidos pela densidade que está na superfície. As
Óleo sobre cartão
3
Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 513.
marcas deixadas pela espátula trabalharam a tinta de
forma pastosa, criando volumes matéricos. Sem
contornos, não há limites e as áreas se misturam,
resultando em manchas de várias cores. Como
resultado,
a
imagem
envolve
as
formas
da
arquitetura, o ar, a água, e até os possíveis indivíduos,
como se todos fossem parte de um único todo
orgânico. É preciso se afastar para compreender a
Figura 8. Alfredo De Simone
Vista da cidade
Óleo sobre cartão
obra como uma paisagem. Que cidade é essa se torna
incompreensível se me aproximo? Por que é preciso
estar longe para decifrá-la? Se entrar, haverá opção
de retorno?
Eis as ressignificações
da Arcádia. A
paisagem da cidade é a elaboração de conteúdos reais
e imaginários, revelando o subjetivo através do corpo
da obra. Ao pintar uma cidade, o artista mostra o que
está no limite de seus olhos e na amplitude de seus
pensamentos e sentimentos. A imagem ganha forma a
Figura 9. Luis Herrera Guevara
Colina Bellavista, 1940
Óleo sobre tela
partir do contraponto entre o domínio do fato e o
domínio da ficção. E por isso uma tela nunca será
uma visão imparcial ou neutra.
Nesse contexto, podemos pensar nas obras do
chileno Luis Herrera Guevara. O artista pinta
espaços
distintos
com
elementos
que
os
assemelham, como se todos tivessem a mesma
morfologia, como se fossem perspectivas diferentes
de um só lugar. Essa análise pode ser feita usando
como
exemplo
“Colina
Bellavista”,
“Praça
Iquique”, “Diário A União de Valparaíso”,
Figura 10. Luis Herrera Guevara
Praça Iquique
referências às cidades de Santiago do Chile,
Óleo sobre tela
Iquique e Valparaíso respectivamente. Nas três
obras o colorido é intenso, com destaque para as
cores quentes e os contornos negros, marcados por
linhas
densas.
O
traço
simples,
sem
uma
preocupação com a rigidez da perspectiva, conduz o olhar
para uma paisagem repleta de detalhes; e as ruas em
diagonal, que ascendem ou descem, movimentam a cena
e revelam ao espectador que algo é instável: a cidade ou
aquele que a vê.
Na obra “Evocação a Paris”, a paisagem faz
referência a uma cidade não só de outro continente, mas
Figura 11. Luis Herrera Guevara
Diário A União de Valparaíso
Óleo sobre tela
60,2 x 70 cm
que possui também aspectos geográficos, urbanos e
sociais extremamente diferentes, mas, curiosamente,
encontramos nelas várias características semelhantes às
das obras já citadas. Guevara não está acessando
cidades utópicas, como Atlântida e Eldorado, sua produção é intrínseca a locais reais, contudo, ao
manipular as imagens através da pintura, aproximando espaços fisicamente independentes, revela as
visões de um lugar que não é exatamente aquele
indicado no título de cada tela. Ele nos convida a ver
aquela que, para ele, poderia se denominar Arcádia.
O âmbito da cidade torna-se assim o das
projeções pessoais, da carga subjetiva daqueles que com
ela se relacionam, sendo que o particular interfere na
paisagem do coletivo e retorna ao indivíduo novamente,
numa reelaboração contínua.
Figura 12. Luis Herrera Guevara
Evocação a Paris, 1942
Óleo sobre tela
50 x 58,7 cm
Tal leitura nos leva a problematizar o que faz
com que um pintor assemelhe cidades tão diferentes, ou,
como pode, em outro momento, construir tantas
paisagens diversas referenciando o mesmo lugar. A
questão também parece encontrar ressonância nas palavras de Armando Silva: a macrovisão do mundo
passa pelo microcosmo afetivo, a partir do qual aprendemos a denominar, a situar ou marcar o
mundo que compreendemos não só de fora para dentro mas originalmente ao contrário, de dentro, do
meu interior psicológico, ou ainda, dos interiores sociais do nosso território para o mundo como
resto.4
Ao olharmos as paisagens urbanas feitas por artistas que viveram em épocas concomitantes e
em locais semelhantes, vemos inúmeras paisagens distintas. Cenas de múltiplas cores ou planos
monocromáticos que se apagam gradualmente. Formas definidas e com contornos destacados ou
pinceladas disformes que se fundem em incontáveis manchas. Espaços cheios, ocupados por paredes,
4
SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001, p.XXIV.
portas e janelas, ou vazios que passam pelas ruas e se estendem ao céu. Áreas iluminadas ou grandes
sombras que sugam a luz. Movimento de linhas que agitam os olhos de quem as vê ou imagens
estáticas que parecem indiferentes ao espectador.
Contudo, no caso dos artistas que comparecem neste texto, a solidão aparece como um
sentimento constante. Talvez essa seja a linha que aproxima as obras e às remete ao mesmo
sentimento original que impulsiona o desejo de buscar algo ainda não plenamente compreendido,
bucólico ou perigoso. É a ausência do homem como personagem principal. Temos apenas seu vestígio
em vultos silenciosos ou em construções que evidenciam sua ação, mas não o louvam. Se algum dos
indivíduos aparecerá em uma das janelas, se um dos personagens ganhará destaque e atrairá a atenção
do observador, será um mistério, como o mito de Pã que poderá a qualquer instante seduzir ou afastar
o viajante que passa por seu território. O fato é que, se o espectador olhar para a obra e deixar seus
olhos percorrerem seu espaço, já não importa se será ou não encontrado por Pã, pois já foi levado a
entrar na Arcádia e não poderá voltar às costas para ela.
Segundo Deleuze5, a construção do sentido envolve o paradoxo da proposição, isso significa
que ao contemplar uma obra passamos por três pressupostos: a designação, a manifestação e a
significação. A obra existe a partir da designação, do estado individual que lhe foi escolhido e
determinado pelo artista; considerando esta primeira proposição, a análise é objetiva: são pinturas,
imagens bidimensionais produzidas pela mão do homem a fim de registrar paisagens. Porém, a obra
também é indissociável da segunda proposição: a manifestação. Nela implicam os desejos e as crenças
que são intrínsecos à sua designação inicial, e assim a leitura se amplia e se aprofunda: a composição e
a escolha das tonalidades de cor geram determinadas impressões e sentimentos.
A terceira proposição, a da significação, trata-se da relação das duas anteriores, ou seja,
entende-se que a obra apresenta uma imagem que desperta determinadas sensações e isso implica em
uma condição de verdade que está na obra. É difícil ficar indiferente a uma verdade colocada diante de
seus olhos, por isso, se fruir a obra e arriscar-se nessa região inicialmente enigmática, cedo ou tarde o
espectador pensará sobre a construção de sua própria Arcádia e não poderá mais olhar sua cidade de
origem com os mesmos olhos.
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo:Perspectiva, 2007.
FOUCAULT, Michael. Outros espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. R.J.: Forence
Universitária, 2001.
JEUDY, Henry-Pierre. Espelho das Cidades. Rio de Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2005.
SCHAMA, Simon. Paisagem e Memória. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
SILVA, Armando. Imaginários Urbanos. São Paulo: Editora Perspectiva, 2001.
5
DELEUZE, Gilles. Lógica do Sentido. São Paulo:Perspectiva, 2007.
OS LUGARES IMATERIAIS DE ARMANDO REVERÓN
Priscilla Menezes de Faria1
O silêncio branco da tela é recortado pelo ruído breve do gesto do pintor.
Através do leve caminhar de sua mão, uma figura se desvela. Aparição e ocultamento, a
imagem que surge parece proteger-se com a presença de um véu, sua diáfana armadura.
Armando Reverón (1889 - 1954), pintor Venezuelano, apresenta em suas pinturas
lugares de um mundo encoberto, feito de atmosferas adensadas, climas nebulosos. O
artista, nascido em Caracas, foi um dos expoentes na produção de um modernismo
Venezuelano, estudou na Academia de Belas-Artes de Caracas e completou seus
estudos artísticos na Espanha, vivendo em Barcelona e Madri a partir de 1911. Em
1920, Reverón se estabelece em Macuto, nas proximidades do mar do Caribe, onde vive
em reclusão. Em contato constante com a luz brilhante da região equatorial, o artista
pinta paisagens quase monocromáticas entre 1925 e 1936, fase conhecida como seu
Período Branco. Do contato de Reverón com a geografia do litoral caribenho surgem
obras que dialogam com procedimentos pictóricos do pós-impressionismo, numa
interpretação da intensa luz equatorial em pinturas quase monocromáticas, feitas de pura
impressão luminosa. Em suas imagens, o ar toma forma, é esbranquiçado e difuso, feito
de transparências opacas, sutilezas espessas. A economia de seus acúmulos formais
propõe a ilusão de um paradoxal adensamento nebuloso. O pintor, indicando a
percepção visual através de seu limite, nos convida ao exercício de tocar o mundo com
os olhos menos densos.
1
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas - Ceart/UDESC, bolsista PROBIC, UDESC,
participante da pesquisa Academicismo e Modernismo na América Latina sob a orientação de Rosângela
Miranda Cherem.
Figura 01. Armando Reverón (1889 - 1954)
O Playon (1942)
Óleo e têmpera sobre tela
A pintura de Reverón investiga os limites entre o material e o imatérico,
encontrando formas para o ar, buscando limites para substâncias rarefeitas. Valendo-se
da suavidade e do lirismo de imagens nebulosas, o pintor apresenta a imagem em seu
desaparecimento, propõe a forma em seu vestígio. Suas paisagens são murmúrios de si
mesmas, imagens de suas próprias desaparições. Se considerarmos que toda imagem
tem um corpo, que seria sua própria condição de artifício aparente, podemos pensar que
um corpo sempre se delineia por encontros de superfície; abismo entre pele e nada,
rasgo entre densidade e ausência, corte entre adensamento e dispersão. A imagem existe
por se oferecer a esse roçar de retinas que incide em sua superfície imagética e nesse
oferecimento residiria a carnalidade de seu corpo. Nesse sentido, Reverón eviscera a
carnalidade da imagem e problematiza esses encontros de superfície. Trazendo para o
corpo da pintura um movimento da visão, o limite de sua potência, seu iminente
fracasso, a presença de sua impossibilidade.
Numa percepção anacrônica, pensando no encontro como uma dobra
atemporal, podemos localizar no processo de Reverón ressonâncias de um procedimento
Romântico, movimento artístico europeu surgido nas últimas décadas do século XVIII
que propunha uma transgressão ao Neo-Classicismo, caracterizando-se por uma intensa
incursão em direção à subjetividade humana. O estilo Romântico permeia o sublime e
empreende um profundo mergulho no eu. Mas, diferente do antropocentrismo clássico,
que valoriza o ser enquanto medida de perfeição, o eu-romântico é o eu que erra, que se
perde, que não tem lugar. William Turner (1775 – 1851) foi um pintor de não-lugares.
Expoente do movimento Romântico, William Turner passou sua vida pintando
paisagens, investigando o visível como contato entre olhar e aparência, tratando-o como
sintoma do ser, revestindo a paisagem de tudo aquilo que é próprio da alma.
William Turner (1775 – 1851)
Chuva, vapor e velocidade - The Great Western Railway (1844)
Óleo sobre tela, 90,8 x 122 cm
Sobre “belezas meteorológicas”, Baudelaire2 escreve:
“Todas essas nuvens de formas fantásticas e luminosas, essas trevas
caóticas, essas imensidades verdes e rosadas, suspensas e reunidas
umas às outras, essas fornalhas escancaradas, esses firmamentos de
cetim negro ou violeta, amarfanhado, enrolado ou rasgado, esses
horizontes em luto ou murmurantes de metal fundido, todos esses
esplendores subiram-me à cabeça como uma bebida capitosa, ou
como uma eloqüência do ópio”.
O escritor continua: “Coisa curiosa, não me ocorreu uma só vez, diante dessas magias
líquidas ou aéreas, queixar-me da ausência do homem”. Estas ausências propostas por
Turner são abrigos para o corpo errante do Romantismo. Aquele que é extraviado, que
não cabe, não pertence, encontra aqui um local para a contemplação sublimada da
ausência de si.
2
Baudelaire, Curiosités esthétiques, Ed. Calmann-Lévy, p. 334
As telas nebulosas de Turner, assim como as de Reverón, não empreendem
esforços no sentido de retratar, não contam, não narram. São antes sugestões,
possibilidades, ruído. A pintura, carregada de uma tradição retratista e mimética, aqui é
desafio para o olhar. As pinturas nebulosas de Turner e de Reverón parecem nos ofertar
o mundo enxergado pela primeira vez, repleto de susto e arrebatamento. O olhar é
convidado a um passeio pela imagem, movendo, orientando, desviando. Bachelard 3
escreve:
“Poderíamos dizer que a contemplação das nuvens nos coloca diante
de um mundo em que há tantas formas quanto movimentos; os
movimentos produzem formas, as formas estão em movimento, e o
movimento sempre as deforma. É um universo de formas em contínua
transformação.”
As paisagens-névoa de Reverón são instantes suspensos no tempo, captam
brevidades da luz, congelam sopros de vento. Quanto mais se tenta compreender o que
foi pintado, mais a pintura se dissolve. Quanto mais o olhar se fixa na imagem, mais lhe
escapa aquilo que pensou ter apreendido. É nessa dialética entre compreensão e
imprecisão que a obra de Reverón acontece. Nesse espaço onde o que é percebido não
nos aponta fatos, mas inicia suspeitas, inaugura impressões.
A matéria de sonho é sempre uma matéria nebulosa. As representações mais
pueris do ambiente onírico freqüentemente vêm envoltas por uma espessa camada
esbranquiçada. O sonhador tem a cabeça “nas nuvens”. O sonho não tem cor. É branco.
É luz. Ao mesmo tempo em que a névoa pode representa esse alheamento ao mundo
concreto, ela também configura uma intangibilidade real. Pode-se ver a neblina muito
de perto, mas nunca no exato lugar onde se está. Dando um passo à frente, a neblina se
desfaz. Não cabe no toque, não responde ao gesto. A neblina nunca está.
Goethe4 diz que “a coisa mais sublime não pode existir sem um elemento de
mistério”. Em suas pinturas, Reverón trabalha com esse sublime: não as coisas, mas o
caminho até elas. Não a matéria, mas os reflexos. A coisa em si não interessa ao artista,
ele busca um espaço até ela, um ante-lugar. Clarice Lispector 5escreve: "O nome é um
acréscimo, e impede o contato com a coisa. O nome da coisa é um intervalo para a
3
Bachelard, O ar e os Sonhos, Martins Fontes, p. 198
Goethe, Teoria das Cores, HA, vol. 13, p.495
5
Clarice Lispector, A Paixão Segundo G.H., p.140
4
coisa. A vontade do acréscimo é grande - porque a coisa nua é tão tediosa." Reverón
não deixa coisa nua, reveste-a de imprecisão.
Armando Reverón (1889 - 1954)
Amanhecer no Poço Ramiro (1938)
Óleo sobre tela - 116 x 128
A materialização da leveza dos vapores. Reverón educando sua mão para
pintar o ar, imprimindo camadas de cerração, para compor cenas de vento. Nesse ponto,
a poética do artista passa pela beleza daquilo que não tem peso, que se equilibra no
espaço. Sabemos que tudo o que é terreno ocupa um lugar, tem margens, cai. Reverón,
nesse sentido, esmiúça o fascínio da imagem revestida de imaterialidade, disso que
existe de maneira tão avessa à nossa, que não pisa, que não quebra, que quase não é. Tal
potência imagética se revela justamente no limiar de sua impossibilidade, fazendo
emergir, dessa maneira, potencialidades outras, feitas da força do ruir, do desvanecer.
Esta potencialidade da perda, esse retrato do não-encontrar está entrelaçado com uma
idéia melancólica de relacionar-se com o mundo. O prefixo “mela” (do grego melas)
significa “lacuna em uma escritura”, nos possibilitando pensar em uma escritura da
ausência, traçados de silêncio, prolixo de sua própria mudez. O silêncio das imagens de
Reverón nos faz pensar no olhar do melancólico em seu estado de contemplação. Não se
trata de passividade e mudez, mas antes do contato sigiloso com própria densidade,
possibilitando ao olhar melancólico se estranhar, se repensar, ouvir o próprio silêncio,
aceitando o vazio existencial como espaço de possibilidade infinita para a criatividade
de si. Revisitando o pensamento clássico, encontramos uma idéia de melancolia
vinculada a conceitos de genialidade e loucura, sobretudo na visão aristotélica, na qual a
melancolia se revelava como uma capacidade profética. Na Idade Média, a melancolia
começa a ser localizada no corpo. Neste período, a escola médica de Salerno associava
o humor melancólico à existência de um elemento seco e frio, fabricado no baço,
denominado bílis negra. Esse elemento seria o responsável pela tristeza, pela inveja e
pela ganância, próprias da melancolia, que então era vista como um aspecto
depreciador. Márcia Tiburi 6escreve sobre o corpo como lugar da melancolia:
“ A melancolia se define, portanto, na influência do corpo sobre a
alma, dos humores corporais sobre os pensamentos tramados no signo
da tristeza. (...) Diferente de um não-ter-causa, a melancolia é a causa,
posta que está como idéia fantasmagoricamente elevada sobre o
sujeito, fenômeno, estigma que é, ao mesmo tempo, verdade
irredutível e ancestral. (...) Essa atenção ao que está fora é o que está
comprometido no melancólico que, como o paranóico, vê o estranho e
o alheio como ameaça. Mas diferentemente do paranóico, o
melancólico tem a si mesmo como estranho de si, sabendo estrangeiro
em si mesmo na duplicidade que o anima.”
Os lugares intocáveis de Reverón, nesse sentido, são mais lugares do corpo do que
locais do mundo. Já que nos falam de um sintoma orgânico, seja ele próprio da visão ou
do humor. A paisagem é aqui estranhamento e distância, justamente por ser reflexo
desse corpo que se vê como alheio de si mesmo.
É relevante também ressaltar o fato de a melancolia ter assumido um caráter
essencialmente poético somente após o Renascimento, já que até então a melancolia
vinha sendo significada através do discurso médico e científico. Passa então a ser
considerada um aspecto transitório e não constitutivo. Era possível “estar” melancólico,
bem como aplicar o predicado melancólico a objetos externos, tais como espaços
melancólicos, melodias melancólicas e paisagens melancólicas.
6
Márcia Tiburi. Filosofia Cinza: A melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto Alegre: Editora
Escritos, 2004 , p. 55
Armando Reverón (1889 - 1954)
Luz atrás de minha ramada (1926)
Óleo sobre tela - 48 x 64 cm
Do corpo à paisagem, a melancolia se distende nessas cenas de ausência, nas
quais vazio se abre como cenário e a luz se dá como ocupação. São imagens da
suspensão, da inconclusão, da espera. Feitas de um tempo estacionando, momentosentre. Falam-nos de caminhos-desvios, espaços da transitoriedade, desprovidas do
apontamento de destino qualquer. As figuras elevam-se do chão, flutuam e quase
imergem. Não são retratadas em sua potência, mas na plenitude de seu descanso, em seu
fracasso. Dialogam com a imensidão e o infinito, reafirmam o espaço, convivendo com
a deriva. São figuras da inquietação silenciosa, tensão irresoluta entre o permanecer e o
partir. Em relação a esse luto da imagem, esse instante entre perda e apreensão,
podemos nos reportar a Agamben7 quando escreve que a melancolia apropria-se do
objeto “só na medida em que afirma a sua perda”. Diz ainda que
“Cobrindo o seu objeto com os enfeites fúnebres do luto, a melancolia
lhes confere a fantasmagórica realidade do perdido; mas enquanto ela
é o luto por um objeto inapreensível, a sua estratégia abre um espaço
à existência do irreal e delimita um cenário em que o eu pode entrar
em relação com ele, tentando uma apropriação que posse alguma
poderia igualar e perda alguma poderia ameaçar.”
7
Giorgio Agamben. Estâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007. p. 45
Armando Reverón (1889 - 1954)
Coqueiros (1931)
Óleo sobre tela - 59 x 77 cm
As imagens de Reverón, nesse sentido, são como o fundo opaco do olhar do
corpo melancólico que encontra na paisagem a fantasmagoria de sua perda essencial.
Perda sem objeto, sem matéria, feita de reflexo e suspensão. Esses contatos entre retina
e superfície, corpo e paisagem, são contatos impossíveis, feitos apenas da certeza de que
tudo que se ergue está a caminho do naufrágio e tudo aquilo que podemos atingir está
sempre se aproximando de sua morte e seu sumiço.
REFERÊNCIAS
AGAMBEM, Giorgio. Estâncias. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007.
BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos: Ensaio sobre a imaginação do movimento.
Martins Fontes, 1990
BAUDELAIRE, Charles. Curiosités esthétiques. Ed. Calmann-Lévy
BOCKEMÜHL, Michel. Turner: O mundo da luz e da cor. Taschen
GOETHE, Johann Wolfgang von, Teoria das Cores, HÁ, vol. 13
GOMBRICH, E.H., A História da Arte. Editora Guanabara, 1988
LISPECTOR, Clarice. A Paixão Segundo G.H. Rocco, 1998
BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. Trad. e apres.: Sergio Paulo
Rouanet. São Paulo:Brasiliense, 1984.
KONDER, Leandro,. Walter Benjamin: o marxismo da melancolia. 3. ed. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1999.
TIBURI, Márcia. Filosofia Cinza: A melancolia e o corpo nas dobras da escrita. Porto
Alegre: Editora Escritos, 2004
INFÂNCIA E MELANCOLIA, UMA ABORDAGEM EM TRÊS ESTAÇÕES
Academicismo e Modernismo na América Latina. [1]
Rosângela Cherem[2] e Letícia Weiduschadt[3]
Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia Gil, Kamilla Nunes,
Letícia Weiduschadt e Rachel Reis de Araújo[4]
RESUMO: Através de rostos infantis que remetem a sentimentos de melancolia, vazio e
solidão, os pintores Isaías Cabezón Acevedo, Fídolo Alfonso González, Ramon Cornet
Gomez e Raul Soldi problematizam a infância menos pela abordagem biográfica ou pelo
retrato e mais como uma experiência recôndita e distante que se assemelha a uma doença da
alma, da qual cada um se aproxima de modo muito singular, tangenciando uma espécie de
cena muito intima que guarda as sensibilidades e percepções do artista em sua relação com a
sua própria criação.
PALAVRAS-CHAVE: Academicismo; Modernismo; Teoria e Crítica de Arte; Arte LatinoAmericana; História da Arte.
Na mitologia grega, Perséfone, filha de Zeus e Demeter, era uma bela jovem que vivia
num lugar tranqüilo e agradável. Certo dia estava a colher flores num bosque quando, vindo à
cavalo, Hades irrompeu do chão e enlaçou seu braço subitamente ao redor da cintura da
jovem puxado-a para o interior de sua carruagem. Estava decidido a levar Perséfone para
torná-la a nova rainha do sombrio mundo dos mortos. Assim, com o desaparecimento da filha,
a mãe deu início a uma busca incansável e desesperada, embora ninguém soubesse seu
paradeiro e os que soubessem não quisessem enfrentar a ira do poderoso raptor. Zeus sabia
onde estava sua filha, entretanto, não queria enfrentar seu irmão, pois caso obrigasse o deus
[1]
Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina.
Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes, UDESC.
[3]
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC.
[4]
Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo grupo de
pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra Makowiecky (docente
participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas;
Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil,
bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas e Raquel Reis, bolsista voluntária,
acadêmica do curso de Licenciatura em Artes Plásticas.
[2]
do mundo dos mortos a devolver sua filha à mãe, poderia desencadear uma fúria
incontrolável. Com o passar dos dias e meses os cereais começaram a faltar, o povo começou
a ter fome e o mundo em que viviam passou rapidamente a um inverno amargo e rigoroso.
Com esta decadência no mundo em que viviam, Zeus decide que Perséfone deveria
regressar ou toda a população estava condenada. Ocorre que ela só poderia regressar caso não
tivesse comido nada no mundo dos mortos, mas isto era impossível já que passara meses neste
mundo obscuro, tendo comido quatro grãos de romãs. O deus do Olimpo ficou numa posição
difícil, pois se a filha não voltasse o mundo pereceria. Decidiu-se então que ela retornaria aos
braços da mãe, mas teria que regressar todos os anos pela mesma quantidade de meses tal qual
o número de grãos de romãs que comera. Assim, o mundo tinha suas variações climáticas de
acordo com a presença de Perséfone junto à mãe (quente e úmido), junto ao ambiente terreno
(morno, insosso e seco) ou junto ao reino de Hades (gélido e chuvoso).
Considerando estas variações atmosféricas como complexidades emocionais
familiares ao artista e cujas sensações foram trabalhadas através dos temas, cores, linhas e
formas, o presente artigo aborda algumas pinturas latino-americanas onde os retratos infantis
comparecem não apenas como tema, mas também como sensibilidades e percepções
relacionadas ao extravio e à solidão, à distância e ao isolamento na relação do artista com o
mundo. Assim sobrepõem-se duas situações: a de Perséfone, cujo destino não lhe pertence,
sendo seu tempo decidido alhures e a da criança, cujas escolhas e desejos constantemente lhe
escapam pelo turbilhão das decisões do mundo adulto.
1. Quando o mundo se faz quente e úmido.
Consideremos as cores quentes e o contraste com os
olhos e lábios chorosos de uma criança como ecos que se
reproduzem e vibram no vácuo. Observemos o olhar distante
e esvaziado de Perséfone junto à mãe satisfeita da qual a filha
logo se afastará novamente para seguir no destino cíclico e
sem fim contra o qual nada pode fazer, direcionado a um
nada, para um lugar que apenas ressoa e não alcançamos. No
rosto sombrio que guarda um inalcançável desconsolo, nesse
esquecimento de si mesmo, no contraste com os tons
rosáceos do plano de fundo com o vermelho da blusa de um
menino, Isaías Cabezón Acevedo (1891 – 1963), artista
Figura 1
chileno retrata “Niño de la naranja”. Muitas das obras do pintor se destacam pelo colorido e
relações tonais que utiliza, essa paleta utilizada pelo artista foi construída paralelamente com
o constante aperfeiçoamento de sua técnica, principalmente quando permanece na Europa
entre 1929 e 1936.
Na tela, o descolar da face do plano de fundo e de seu próprio corpo faz com que o
deslocamento de suas feições se encontre perpendicularmente na pureza de uma infância que
está para além de felicidade de brincadeiras e hábitos infantis. Essa melancolia presente na
obra foi uma temática presente nos grupos que participou. “Generación del '13” e
“Montparnasse”, foram responsáveis pelo anti-academicismo e anti-naturalismo que o artista
passa a pontuar em suas telas em temáticas melancólicas, de intrigas, amor e morte. Esses
grupos foram fundamentais para o desenvolvimento do pós-impressionismo presente em suas
obras.
Esta infância a qual se retorna, não em caráter de representar uma criança chilena
melancólica, nem a infância do artista que a retrata, mas sim, certa sensação sobre esta idade
infantil, familiar e distante, perdida e por vezes lembrada, está, portanto, para além de possuir
uma fruta em sua mão. O menino se interioriza em seu eu, levando o espectador a este mesmo
lugar, num clima quente úmido de sentimentos tediosos que se misturam com a l’acedia: a
ausência de vontade. Este sentimento que se aproxima ao enlutado, mas não se equivale.
Longe de um não saber para aonde ir, mas um não querer andar até ali nem conhecer os
cantos mais distantes de um armário de uma despensa cheia de guloseimas. É sim, um não
querer partir, é gozar de uma amargura interior, é sentir até as raízes de todo campo sensorial
humano a dor da perda, o tédio de uma vida não vivida num estupor. Neste estado letárgico de
uma bílis negra, conceito atribuído na Idade Média e que mais tarde derivou-se para
melancolia, patologicamente estava ligado ao baço e ao sangue grosso e seco que fluía deste
órgão quando um ser que amava a aflição expelia no momento antecedente a sua morte uma
bílis negra, um negrume. É nesta melancolia que se pode observar o deslocamento desta
infância retratada, uma infância que normalmente não olhamos, mas que um dia sentimos e ao
qual podemos retornar através dos olhos destas crianças, num sentimento de voltar para si
mesmo como reconhecimento de algo que ficou retido em si próprio sobre um não
pertencimento ao corpo cuja posse lhe escapa.
O cineasta iraquiano Abas Kiarostani (1940 -) , em 1987, produziu o filme “Onde é a
casa do meu melhor amigo?”, onde Ahmad é um jovem garoto que estuda numa escola para
meninos cujo regime rígido do professor desvela-se na obrigatoriedade de fazer a lição no
caderno e não no livro ou em qualquer outro lugar. Seu amigo é ameaçado pelo mestre de ser
expulso do colégio caso não faça as tarefas no lugar apropriado, já que era a terceira vez que o
professor solicitava isto a ele. Retornando da aula Ahmad se depara com o caderno do seu
amigo, o qual trouxe para casa por engano. Espantado e amedrontado com a possibilidade de
seu amigo ser expulso, o menino solicita a mãe para poder ir devolvê-lo ao seu amigo. Esta,
desgostosa, nega e diz para o filho ir fazer a sua lição e brincar. O menino contra a vontade da
mãe sai em busca da casa do seu amigo, ao qual a única referência que obtém é que fica na
vila vizinha. Passado o dia todo procurando, já tarde da noite ele acaba voltando pra casa e
então resolve fazer a lição para o seu amigo. Kiarostani reproduz o infortúnio de uma busca
incansável, um correr atrás do que não é alcançado na constante busca tediosa e ansiosa de
Ahman e é nas crianças que o cineasta vê uma resposta à difícil política do país. Vítimas do
autoritarismo de uma sociedade repressora ele observa o otimismo e certa sagacidade na
busca por uma almejada justiça, ou amenização de sua difícil situação social no Irã.
Nas feições contorcidas e amarguradas da personagem
ultrapassadas pelos tons terrosos do clima úmido do filme
podemos também nos remeter a figura de “El chino”, pintura
do artista colombiano Fídolo Alfonso González (1883 – 1941).
A infância deste artista esteve marcada pela morte de seu pai e
pela luta que sua mãe enfrenta pela sobrevivência da família. É
impossível ignorar a tristeza e as marcas profundas que esse
trauma representou na vida do pintor. “El chino” é uma das
obras que salienta a dor da perda, não sendo uma autorepresentação de si em sua infância, mas está atrelado a um
retorno ao mundo infantil pelo artista demarcado por traços
Figura 2
dolorosos.
Tanto a personagem do filme, como o garoto retratado na pintura se unem numa
alienação com o próprio corpo. Numa drenagem onde se projetam para um mundo exterior,
num amortecimento de seus próprios afetos, num recair-se sobre si mesmo, virando-se do
avesso em esquecimento. Na pintura de González, um menino caminha vagarosamente sem
destino segurando seu chapéu, da mesma forma no filme de Kiarostani o garoto caminhava
com rumo incerto imerso em si, neste mundo exterior, que é o mesmo espaço aonde o
enlutado mergulha em meditação, entretanto uma diferença pontua-se: a melancolia dos
enlutados difere-se da melancolia observada nas telas.
Walter Benjamin (1892 – 1940) afirma que “O luto é um estado de espírito em que o
sentimento reanima o mundo vazio sob a forma de uma máscara, para obter da visão desse
mundo uma satisfação enigmática” 1. É um sentimento que se debruça sobre esse mundo
melancólico, vazio, interiorizado, paralelo de alguém que não está mais ali. O enlutado passou
pelo trauma da perda e todo o processo que se desencadeia após esta perda manifesta-se
sintomaticamente através da melancolia. De forma contrária, as crianças apresentadas, em sua
maioria, manifestam uma melancolia desprovida de tal trauma, de tal perda irremediável. O
cerne do luto não está atrelado a qualquer afetividade do artista, nem a do expectador, mas a
um sentimento que se dissocia desse sujeito que é o retratado, por algo interno a ele que é o
objeto, ou seja, o que ou quem ele perdeu. E nesse esvaziamento do sujeito, nesta projeção
para um mundo exterior que ambos, crianças e enlutados se unem, aproximando-se nesse
mundo vazio, exterior, fora do próprio ser. É na mesma medida em que se exterioriza do ser
ele se introjeta e penetra dentro deste ser, pois este mundo exterior está dentro do próprio ser
humano, portanto interiorizado.
Em outras palavras, se considerarmos as sensações guardadas na obra de arte como
algo familiar a Perséfone em sua temporada junto a Deméter, então será possível compreender
que coube a Isaías Cabezón e a Fídolo Gonzalez problematizar nestas duas pinturas aqui
tratadas a infância não como retrato, mas como cena onde o artista estranha seu próprio corpo,
desterritorializando-se de si, vendo-se não como senhor de seu destino, mas como estrangeiro
dês-possuído de si. Assim, embora Gonzalez tenha marcas desde sua infância de uma perda
irremediável, ele não a retrata nesta tela, mas sim, estabelece um jogo onde este artista
enlutado volta-se para si mesmo e para o cerne que é a própria perda manifestada na
melancolia que se une à tela de Cabezón, ambos assim, se projetam para si e unem-se no
vazio do esquecimento de si próprios.
2. Quando o mundo se faz gélido e chuvoso
Agora tentemos imaginar o ambiente gélido do submundo das trevas ao qual Perséfone
esteve presa. Neste clima rigoroso a frieza e tristeza que a jovem teve que enfrentar se
aproxima da melancolia como uma doença da alma, onde ela não via, nem ouvia o mundo ao
seu redor. O sentimento solitário que esteve presente durante todo o tempo em que
permaneceu presa, resultando num próprio esquecimento de si. Envolta por tons terrosos e
sobre chão batido, a menina da tela “La Urpila” fica presa em si da mesma forma que
Perséfone, numa doença da alma. A obra pintada pelo artista pioneiro da pintura moderna na
1
BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984. P. 162.
Argentina, Ramón Cornet Gomez (1868 – 1964), demonstra o isolamento para com o mundo
e é responsável pela escolha de como estará daqui a um segundo.
Este mesmo esquecer é também apontado por Luigi
Pirandello (1867 – 1936), literato italiano no livro “Um,
nenhum e cem mil” através do personagem Moscarda.
Defendendo que a solidão nunca está presente conosco, mas
ela só é possível na presença de um outro alguém, num estar só
sem si mesmo e num não poder-se ver vivendo, este
personagem reflete um não se ver em si, mas sim, ser visto por
si, deste modo também Perséfone se vê de fora quando presa
num mundo gélido e chuvoso junto a Hades, não olha para si
através de um espelho, pois assim como Moscarda, ambos
Figura 3
acreditam que há um abismo entre eles e todos os seres ao seu
redor, já que ele nunca são o mesma pessoa para esta ou para
aquela pessoa. Tanto a menina apresentada na tela, como Moscarda nunca eram o que eram
pra si próprios e assim somos nós que definimos o nosso perfil de amanhã. “Há um minuto
atrás você era outro não só um, mas cem outros, cem mil outros. Hoje vocês se fixam de um
modo e amanhã de outro” 2. Neste jogo de decisões esta jovem menina que pode ser vista
como uma só, nenhuma e cem mil.
Nesta equivalência, assim como Ramón Gomes volta a sua infância para pintar a tela,
Benjamin no texto “A infância em Berlim” escreve um conto intitulado “A despensa” onde
através de uma estreita fresta do armário da despensa, uma mão penetra silenciosamente e
começa a apalpar as delícias ali presentes, desde frutas cristalizadas, até amêndoas e passas,
entrevistando-as uma a uma sentindo o gosto na boca de tudo o que tocavam, assim também
em outro conto “Armários” ele revela a sensação de apalpar até os cantos mais recônditos de
uma gaveta até encontrar, meias e outras peças macias para sentir o calor da lã.
Gozando destes sentidos tácteis e olfativos das crianças a que Benjamin se refere
acaba levando a um mundo de imaginação e de conforto, de forma semelhante Gomes o faz
sobre a tela, retornando aos sentidos infantis apurados ele procura explorar através das
pinceladas sobre a tela, deparamo-nos para além de qualquer semelhança biográfica, mas sim,
nos aproxima desse desvio rebatido sobre as crianças com nossa melancolia. A tela está para
além de uma representação melancólica ou biográfica, estando, portanto, no abismo do
2
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 56.
encontro entre todas as personagens das obras aqui citadas, bem como dos artistas e dos
espectadores, num jogo de equivalência onde todos são um, nenhum e cem mil.
Este estar sem corpo que é problematizado na tela de Gomes é também a sensação que
da mesma maneira aflige e perturba o filósofo Sartre (1905 – 1980), que no livro “A náusea”
pontua o salivar como um voltar a si, “ela desliza por minha garganta, me acaricia – e eis
que renasce em minha boca, tenho perpetuamente na boca uma pequena poça de água
esbranquiçada – discreta – que roça minha língua” 3. Com esta sensação acaba afirmando
que a língua, garganta e saliva é ele próprio. Através do salivar que o autor sente-se volta a si
e sai do esquecimento, da náusea, da sensação de não possuir sangue, estar sem corpo, a qual
lhe afligia e lhe perturbava. Esta sensação de relembrar que é um ser humano que vive,
porém, se dá ao contato com a tela citada, pois imergindo nos olhos dessa criança, sobretudo
dos olhos que se perdem como algo mole, seco, bem como escamas de peixe, entramos em
sua angústia, sua solidão e ao nos depararmos com a imagem como um todo feito de tecido,
tinta, volume, luz e sombra nos projetamos a um desvio, na qual saímos desse abismo entre
representação e representado.
Nessa curva, Pirandello descreve uma análise da imagem de Moscarda contra o
espelho na tentativa de que seus olhos não tocassem seu reflexo: “Eu me sentia aqueles olhos.
Via-os na minha frente, mas os sentia também aqui, em mim, sentia-os meus – aqueles olhos
que já não estavam fixados em mim, mas em si mesmos. E, se quase não conseguia mais
senti-los em mim, não mais os via”. 4 O personagem desvela o esquecimento de si e o modo
com que via seu olho nele mesmo, porém com o decorrer do tempo passou a não sentir mais
seus olhos em si e nessa passagem de voltar a sentir seu corpo, quando nós, ao olharmos “La
urpila” incansavelmente, nos fixamos em sua melancolia, nesta doença da alma que Gomes
explorou em si mesmo, nos prendemos então a ela, e, entretanto, com o decorrer do tempo
deparamos-nos em sua tinta, cor, volume e sombra: sendo, portanto uma tela.
Esta passagem do interior para o exterior da tela, rebate com a volta de Perséfone para
junto de Demeter e seu sofrimento e angústia então cessam, numa melancolia que acaba se
diluindo, num processo de imersão e consecutiva emersão deste sentimento presente na tela e
em nosso próprio corpo.
3
4
SARTRE. Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. p. 126-127.
PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001. p. 36.
3. Quando o mundo se faz morno, insonso e seco.
Com o retorno de Perséfone à terra para junto de sua mãe, o mundo volta ao estado de
florescência e fertilidade. Num jardim de clima ameno e morno onde os sujeitos voltaram a
viver em harmonia nesta idade primaveril, neste mesmo acalanto do quintal de sua casa
encontra-se “Nina Campesina”, menina pintada pelo colombiano Fídolo Alfonso Gonzáles
(1883 – 1941) onde ela permanece reservada da presença de pessoas e imerge em suas
próprias brincadeiras solitárias.
Semelhante solidão infantil foi discutida por Freud
(1856 – 1939) no texto “Além do princípio do prazer” onde ele
aponta uma criança de dezoito meses que sozinha num canto
da sala, também longe de sua mãe e da proximidade de
qualquer pessoa, ela penetrava nos objetos que estavam ao seu
redor da mesma forma que Gonzáles apresenta a criança na
pintura observada. Sempre agarrando estes objetos e os
atirando para longe, dentre estes brinquedos havia um carretel
de madeira com linha preso a ele. Da mesma forma o agarrava
e o atirava para longe, simultaneamente resmungava
Figura 4
expressões a qual sua mãe equiparou com a palavra “fort” de
origem alemã que representava o “ir embora”, já que o
carretel fugia de seu campo de visão e quando o puxava para seu encontro, no momento em
que o via, saudava-o com um “da”, ou seja: “ali”. Esses brinquedos fazem com que o desejo
desses indivíduos se pontue. É no lançar para longe que tudo se contrai em desaparecimento,
em sístole e em seu reaparecimento e repouso, a diástole, ocorre o retorno. É na verbalização
deste desaparecer e re-aparecer que ocorre a simbolização deste jogo de “fort-da”.
Entre o “fort”, o lançar do objeto e perdê-lo de seu campo de vista e o “da”, reencontro
com este objeto, é que se encontra a pintura de Gonzáles. Neste entre, neste quase, no fio que
se desenrola de maneira sutil sendo o elo de um movimento num ritmo anadiômeno de um ir e
vir, no fluir e refluir deste objeto presente com esta criança que se interioriza em si mesma é
que se encontra também “Sarita”, menina apresentada na tela de Raul Soldi (1905-1994)
aonde os traçados marcantes não impedem que as oposições cromáticas deixem de dialogar
com o conjunto de toda a tela. Nas telas, ambas as meninas olham para um nada, para um
lugar além e independente da sua presença, e nesse mergulho está presente o que as duas
seguram com as mãos: bola e arco. Estas são então esse quase, esse objeto que produz este
ritmo anadiômeno e nesta perda, no momento que o carretel desaparece do campo de visão da
criança, algo resta: uma ausência, uma perda interior destas crianças, que é semelhante a uma
construção abandonada, onde nesta ruína só restam, portanto, lembranças ao qual
mergulhamos nas imagens que escapam como fogos de artifício.
Nesta imersão melancólica para com os objetos, as telas
problematizam para além de um desvelar de uma simples perda,
mas a destrincham para com algo ou também de tudo, inclusive de
nós mesmos. Assim como somos olhados pelo trauma destas
crianças e estamos ameaçados a perder tudo, o personagem
Werther
do
escritor Goethe,
também
vive
neste
limiar
encontrando-se imerso na sua solidão causada por um amor não
correspondido, fato este que o leva a cometer suicídio e o tédio
que pairava a vida deste personagem refletia-se nas cartas que
escrevia com estupor.
Neste limítrofe de estar fora de si que as telas evidenciam,
Figura 5
acabou-se refletindo na solidão que Goethe descreve com
romantismo. Gozando muitas vezes desta sua vida paralela estando num certo limite entre
sanidade e loucura, podemos equipar este sentimento com a náusea da qual nos apresenta
Sartre numa ruminação dolorosa que alimentava. Afirmando que não conseguia parar de
pensar reivindicando uma perturbação contínua, pois “se pelo menos pudesse parar de
pensar, já seria melhor. Os pensamentos são o que há de mais insípido. Mais insípido ainda
do que a carne. Prolongam-se interminavelmente e deixam um gosto esquisito. Será que isso
não termina nunca?”. 5 Assim, num esquecimento de si mesmo é que se encontram “Sarita”,
uma jovem menina que em contraposição com as outras crianças que se encontram no plano
de fundo, ela pára de brincar, e assim estática em meio aos verdes pontuais e sutis da tela, ela
se aproxima do personagem Werther, e da infortúnia náusea de Sartre. “Sarita” está no ritmo
anadiômeno do fluir e refluir, prestes a lançar a qualquer momento seu arco para um além na
qual a gravidade se assemelhará ao fio do carretel da criança descrita por Freud. No
esquecimento de si mesmo é que Soldi se retém e se desenvolve numa operação até a um
anacronismo e assim:
Torna a operação mesma de um desejo, isto é, um repor em jogo
perpétuo, como o Fort-Da podia oferecer a repetição rítmica de um
“ponto zero do desejo”, e podia de certo modo fixar o infixável: ou
seja, um laço de abandono que se torna jogo, que se torna uma alegria
de ébano – que se torna obra. (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 115).
5
SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 127.
A melancolia e todo o sentimento responsável pela introjeção dentro de seus próprios
pensamentos, este abandono de si mesmo pode então se assemelhar ao momento da própria
criação artística. E assim, na solidão de uma experiência exterior, no gozo de desfrutar desta
doença da alma que o artista cria para além de uma representação. As imagens pictóricas aqui
apresentadas parecem situar-se para além da representação da infância embora reivindiquem
este momento tão sutil onde se projetam para além de seu corpo provocando um abismo entre
o mundo terreno, morno, insosso e seco em que vivem os mortais e o mundo da criação, o
qual de tão particular e próximo a si mesmo está tão distante e fora de si, exterior ao próprio
corpo do pintor. Talvez porque a distância da criança para o mundo dos adultos seja parecida
com a do artista para o mundo dos simples mortais?
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1 BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.
2 BENJAMIN, Walter; BARBOSA, Jose Carlos Martins. Rua de mão única. 5. ed. São
Paulo: Brasiliense, 1995.
3 BULFINCH, Thomas. O livro de ouro da Mitologia – História de deuses e Heróis. 9 ed.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2000.
4 DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Ed. 34, 1998.
FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. ESB., vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago,
1946.
5 GOETHE, Johann Wolfgang Von. Werther. 2.ed. São Paulo: Abril Cultural, 1971.
6 PIRANDELLO, Luigi. Um, nenhum e cem mil. São Paulo: Cosac Naify, 2001.
7 PRIGENT, Hélène. Melancolie – Lês métamorphoses de la dépression. Paris : Gallimard,
2005.
8 SARTRE, Jean-Paul. A náusea. 1ªed., Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. P. 127.
REFERÊNCIA DAS IMAGENS
1 Isaías Cabezón Acevedo. Nino de la naranja, s/ data. Óleo s/ tela. Museu Nacional de Bellas
Artes do Chile. Disponível em:
<http://www.artistasplasticoschilenos.cl/artistas.nsf/560c3d14905ab7eb04256bfa006b70a1/31
aacd45191de9a2042569a90056f672?> Acesso em 21/03/2008.
2 Fídolo Alfonso González. El Chino, s/ data. Óleo s/ tela, 35x25 cm. Disponível em:
<http://www.colarte.arts.co/colarte/conspintores.asp?idartista=490> Acesso em 24/04/2008.
3 Ramon Cornet Gomez. ‘La Urpila’, 1946. Óleo s/ tela, 130 x 89 cm. Colección Museo
Nacional de Bellas Artes, Buenos Aires. Disponível em:
<http://www.fundacionkonex.org/ingles/bienales_del_arte/cornet_ramon_gomez.asp> Acesso
em 17/05/2008.
4 Fídolo Alfonso González. Nina Campesina, 1917. Óleo sobre cartão, 23 x 17.5 cm.
Disponível em: < http://www.museonacional.gov.co/body_nina_campesina.html> Acesso em
24/04/2008.
5 Raul Soldi. Sarita, 1947. Óleo s/ tela, 70 x 123 cm. Disponível em: <http://www.allsa.com/ArtistaRaulSoldi.htm> Acesso em: 2/02/2008.
ÀS VOLTAS COM O VAZIO – ORNAMENTO COMO PREENCHIMENTO
J.W.Kielwagen1
Figura 1. Félix Parra (1845 – 1919)
Frei Bartolomeu Das Casas (1875)
Em frente a um templo asteca, Frei Bartolomeu das Casas cruza os braços sobre o
peito, enquanto uma mulher agarra suas pernas e chora, talvez, pelo ameríndio que jaz
1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais CEART – UDESC, linha de Teoria e História
da Arte, sob orientação de Rosângela Miranda Cherem.
morto ao lado (Figura 1). Não parece ser o caso de uma morte natural; alguma ação se
passou ali, e por toda parte, vê-se vestígios de violência: objetos espalhados pelo chão, um
desarranjo floral, uma coluna castrada e, é claro, sangue. O próprio templo está em ruínas.
Por certo, essa imagem conta uma estória – pode ser a de Bartolomeu ou a da humilhação
do ameríndio. A obra contém uma narrativa, e é o drama humano que ali se desenrola, em
cores e emoções.
Abaixo dessa primeira camada, porém, o drama toma outras formas, e mesmo que
ainda seja humano, nada tem a ver com Bartolomeu ou com a conquista das Américas.
Voltemos o olhar pra o segundo plano, para o cenário onde se desenrola a ação: a superfície
do templo está coberta por padrões ornamentais geométricos, esculpidos na própria pedra.
Na parede, séries de espirais justapostas - num esquema semelhante ao do ornamento
egípcio – e nos degraus da escada, combinações aparentemente aleatórias de motivos
geométricos. Um motivo recorrente é a espiral quadrada e achatada, usada nos degraus e
sobre a porta que serve a Bartolomeu de moldura. Ora, um rápido olhar sobre a arte asteca
revela que tais formas e padrões não constam no repertório dessa cultura; que o ornamento
asteca é, ao contrário, predominantemente figurativo De onde, então, o artista2 tirou tais
formas, e porquê cobriu com elas as paredes do templo? Difícil dizer; é possível que ele
tenha se baseado em um repertório clássico, como o ornamento espiral utilizado no Egito e
Grécia antigos. Independente de onde tenha tirado sua inspiração, o fato é que para o
artista, mais importante que conferir à obra um certo valor documental, reproduzindo
fielmente os padrões ornamentais criados pelos astecas, é preencher – oferecendo ao olhar
uma superfície repleta de formas. Como pensar esse imperativo da forma ornamental que,
de tão pungente, sobrepõe-se à dimensão narrativa da imagem?
O anseio por preencher é algo com que a maior parte das pessoas consegue se
identificar sem grandes dificuldades. Imagine-se por um momento imerso na austeridade de
um monastério, onde quase não há mobília e as paredes estão todas nuas, com exceção de
um ou outro crucifixo simples de madeira. Não há aconchego nesse lugar; quem gostaria
viver numa casa onde todos os quartos são vazios, e todas as paredes, nuas? Talvez uns
2
Felix Parra (1845-1919), natural da cidade de Morelia, México, pintou Fray Bartolomé de las Casas
quando ainda estudava sob a tutela de Santiago Rebull. Viajou à Europa em janeiro de 1878, onde
permaneceu durante cinco anos. Quando regressou ao México, tornou-se professor na Academia de San
Carlos. Entre seus alunos, figura o célebre Diego Rivera. Suas principais obras são Galileo, El Cazador, Fray
Bartolomé de las Casas e Una Escena de la Conquista.
poucos indivíduos de temperamento peculiar, mas para a maior parte das pessoas, urge
mobiliar, decorar, pendurar cortinas e quadros - cobrir os vãos. Diante de uma superfície
vazia somos por vezes compelidos a preenchê-la com formas, cores, signos, padrões ou
fotografias - enfim, qualquer coisa. O vazio só se deixa ver quando se procura,
conscientemente, tornar presente uma ausência - como em prisões e monastérios. No
conforto de nossos espaços cotidianos – e na arte em que o olhar e o pensamento buscam
uma dispersão relaxante - preferimos cobri-lo com formas e cores; preferimos a ausência
ausente, mesmo. Superfícies vazias remetem a um vazio interior, com as dimensões e
profundidade de um abismo – abismos superficiais que, quando olhados, parecem devolver
o olhar: esse vazio quer preencher-nos,e de fato o faz. Que é essa experiência?
Imagine-se agora diante do a profusão ornamental de um retábulo barroco – como,
por exemplo, o da Basílica de Nossa Senhora do Carmo, em Recife. Tais superfícies e
ambientes, quando repletos de formas e cores, convidam o olhar à uma dispersão relaxante.
O ornamento então é como um banquete que devoramos com os olhos e, se isso fosse
possível, nos engordaria. Não se trata apenas de um desejo de gratificar o olhar; exigimos
também gratificação contínua para os outros sentidos: sabores para a língua, odores para as
narinas, música para os ouvidos e carícias para a pele. Na despudorada extração de prazer
dos sentidos que promovemos cotidianamente parece haver um elemento de oportunismo
sensorial, e a sinestesia - assalto simultâneo aos sentidos - quer nada menos que preencher
certos vazios sensoriais, a saber: o branco, o silêncio, o inodoro, o insípido e o insensível.
Há no vazio algo de incômodo que, quando examinado de perto, parece devolver o
olhar. Uma superfície repleta de ornamento pretende ocultar seu vazio, mas não obstante
termina remetendo novamente a ele. Pois mesmo sob o mais denso ornamento vegetal, lá
estará o vazio à espreita – é como se, quanto mais denso o ornamento, e mais obsessivo seu
uso como preenchimento, mais pungente fosse o desejo – ou necessidade – de ocultar um
vazio que não nos interessa ver. Trata-se naturalmente de uma tarefa vã. O vazio é
inelutável: papéis de parede desbotam e mesmo os baixo-relevos em pedra, encontrados em
templos antigos - como os egípcios e astecas – desaparecem ao longo dos séculos,
corroídos pela areia do tempo que não cessa de correr - revelando enfim paredes que
sempre foram nuas.
A expressão latina horror vacui, significando literalmente horror ao vácuo, aparece
pela primeira vez nos escritos de Aristóteles - Physicae Auscultationes - referindo-se ao que
ele acreditava ser um fenômeno físico, em que os espaços vazios estariam sempre tentando
sugar gazes ou líquidos para dentro si de modo a preencher-se. Tal teoria foi aceita por
muito tempo no campo da termodinâmica - chegando a ser defendida por Galileu - até que
finalmente caiu em descrédito, em meados de 1650. Mas, apesar de descartado pelas
ciências naturais, para a filosofia e as artes a idéia de horror vacui continua significativa,
apontando para uma tendência – ou anseio, ou compulsão - a preencher espaços vazios
onde quer que eles se apresentem. Das ferramentas cotidianas à arquitetura monumental,
passando pelas artes visuais, urge preencher.
O horror vacui é tido por Alois Riegl3 como a inspiração primeira das artes, algo
que teria compelido os homens à ornamentação desde tempos imemoriais. No capítulo
inicial de Stilfragen, ao tratar da gênese do ornamento geométrico, Riegl deita as bases para
o conceito de kunstwollen – termo intraduzível para o português, significando algo próximo
a “aquilo que anseia por arte”. Esse anseio seria uma resposta ao horror vacui, e ambos
remontariam à pré-história da arte: muito antes da obsessão fitomórfica do art nouveau, do
arabesco oriental ou mesmo do lótus egípcio, tais princípios já se aplicam ao ornamento
puramente geométrico dos primeiros agrupamentos humanos. Diferente dos demais
historiadores da arte de sua época - que em sua maioria consideravam o ornamento
geométrico como mera imitação de padrões que surgem acidentalmente, a partir de técnicas
como a costura ou a construção de cercas – Riegl acreditava que tais formas podem nascer
diretamente da imaginação humana. De acordo com a teoria técnico-materialista do
ornamento – que Riegl tenta negar - ao se costurar um pedaço de pele em outro, a linha
forma naturalmente um zigue-zague, e em algum momento os antigos teriam se interessado
pelas propriedades rítmicas desse padrão, passando a reproduzi-lo em pintura e entalhes. O
mesmo teria se passado em relação a outras técnicas, como a construção de cercas, o
trançado ou a cestaria. De acordo com essa teoria os padrões geométricos resultariam de
uma mimese semelhante à que teria motivado as primeiras representações animais e
vegetais nas paredes das cavernas. Riegl rejeita essa hipótese e, em seu lugar, sugere que o
3
Aloïs Riegl (1850-1905), historiador da arte vienense, que em 1893 publicou Stilfragen - uma extensa
pesquisa sobre a difusão de padrões ornamentais da pré-história à arte islâmica medieval, passando por Egito,
Mesopotâmia, Fenícia, Pérsia, e Grécia.
ornamento geométrico pode ter surgido naturalmente, não como imitação ou abstração de
técnicas, mas como um impulso legitimamente humano, produto da mais pura imaginação.
O argumento é construído a partir da pré-história da arte, usando como exemplos as
ferramentas e artefatos criados por homens das cavernas, bem como os de culturas
primitivas contemporâneas – contemporâneas dele, lembrando que Stilfragen foi publicado
em pela primeira vez em 1893.
Dentre os artefatos pré-históricos examinados por Riegl, destacam-se aqueles
encontrados, a partir de 1863, nas cavernas de Laugerie-Basse, ao sul da França: objetos
feitos de ossos, em sua maioria cobertos de entalhes ou esculpidos em forma de animais.
Algumas centenas de peças foram encontradas naquelas cavernas desde então, e a idade
média das peças é avaliada entre 10.000 e 15.000 anos. Entre elas, constam alguns dos mais
antigos exemplos de ornamentação conhecidos; além das bem conhecidas representações de
animais, os antigos também cobriam suas ferramentas com padrões geométricos. Algumas
ferramentas parecem não ter nenhuma função além de servir como suporte para o
ornamento, cujos temas variam entre animais, folhas e padrões puramente geométricos.
Riegl destaca uma adaga de osso, com o punhal esculpido em forma de rena - como tal
forma no cabo de uma ferramenta não a torna exatamente mais fácil de manusear, parece
que, para quem quer que tenha vivido naquelas cavernas, a forma nem sempre estava
subjugada à função - que a funcionalidade já se encontrava ameaçada por um kitsch préhistórico. A não se que se considere um possível uso religioso para tais objetos – hipótese
que não pode ser descartada de imediato, mas que ao mesmo tempo, dificilmente poderá ser
provada – constata-se que a prioridade era dar forma para produzir visualidade. Ora, se o
ornamento é criado para preencher o vazio, que dizer do vazio que é criado especialmente
para conter o ornamento? O meio tornou-se seu próprio fim.
Os habitantes das cavernas de Laugerie-Basse não dispunham de um repertório
muito grande de técnicas de onde pudessem copiar padrões. Sequer dominavam o fogo:
após as caçadas, desmembravam os animais, sugavam o tutano dos ossos e deixavam a
carne apodrecer. A julgar pela grande quantidade de agulhas de osso encontradas no local,
deduz-se que eram capazes de costurar peles de animais umas nas outras, e é tentador.
Figura 2 . Antônio Salas Aviles (1784 – 1860)
Virgem de Mercedes
Óleo sobre tela - 95 x 77 cm
considerar o ornamento em zigue-zague como um produto espontâneo da costura. Riegl
afasta essa hipótese recorrendo às tribos polinésias contemporênas (dele) que,
desconhecendo a mais simples costura, não obstante cobrem seus corpos com tatuagens que
são composições geométricas intrincadas, incluindo paralelas, espirais e o próprio ziguezague.4 Padrões semelhantes são encontrados na decoração de canoas Maori. Evocando o
ornamento Maori, Riegl quis minimizar ou mesmo excluir a influência de fatores externos
na concepção do ornamento, de modo que as mudanças de estilo possam ser explicadas em
termos de uma evolução orgânica, como um desenvolvimento relativamente autônomo.5
Em Stilfragen, Riegl paciente e meticulosamente traça uma genealogia do
ornamento, da pré-história à arte islâmica medieval, passando por Egito, Assíria, Fenícia,
Pérsia, e Grécia. Ao longo da trajetória – que compreende a transformação dos motivos
puramente geométricos em padrões fitomórficos - nota-se a recorrência de uma operação
que Riegl chama de “postulado de preenchimento dos eixos”: onde quer que duas curvas ou
espirais se toquem, forma-se entre elas um vão triangular, que pede um preenchimento
adequado - linhas para os maoris, lótus para os egípcios, folhas de acanto para os gregos, e
assim por diante. Não se trata de uma operação exclusiva da antiguidade. Em “Virgem de
Mercedes” (Figura 2), Maria segura o menino Jesus enquanto recebe, das mãos de dois
querubins, uma coroa dourada. Não interessam aqui os ícones religiosos - os discursos que
contêm ou narrativas que evocam – mas o que se encontra fora da imagem: a pintura, de
formato ovalado - como muitas outras imagens religiosas de sua época – é inserida em um
retângulo negro, de modo a criar quatro espaços triangulares nas extremidades. Esses vãos
são preenchidos por um mesmo motivo floral: uma rosa no centro com três possíveis
margaridas de cada lado, num total de sete flores, e alguma folhagem em volta. Vê-se aqui
o mesmo postulado de preenchimento dos eixos que teria levado os egípcios a inserir o
lótus nos vãos entre suas espirais. Pode-se perguntar porque o artista6 teria escolhido um
motivo tão trivial para emoldurar uma imagem consideravelmente rica em significação,
pensada, como a maioria esmagadora da arte religiosa, para evocar sentimentos de devoção
nos fiéis. Independente das razões do artista, constata-se novamente a necessidade de
preencher o vazio. O preencher, então, é uma operação que ultrapassa contextos históricos e
4
RIEGL, pgs. 26 e 27.
PÄCHT, pg.189.
6
mini-bio
5
culturais, estando presente tanto nos ossos esculpidos de Laugerie-Basse quanto nas artes
moderna e contemporânea. O horror vacui, então, é atemporal e anacrônico.
A filosofia oferece mais de uma via para pensar as questões do vazio. Na
psicanálise, é tratado por buraco, falta ou ausência, remetendo – conforme Lacan - à
experiência mais importante da vida do sujeito, aquilo que o torna humano: seu encontro
com a linguagem. Quando o sujeito entra no campo da representação, que é o da própria
linguagem, sua relação com o mundo deixa de ser direta e passa a ser mediada por signos.
É a primeira castração - ocasião em que se perde aquela experiência primeira, onde alguém
– pois ainda não existe a noção de sujeito - se relaciona diretamente com algo –
inominável, já que a linguagem ainda não se encontra disponível. Pensando, como Ferreira
Gullar, todas as formas de arte como linguagem - seu exercício ou delírio - encontra-se na
relação com a psicanálise um forte indício de que essa falta, de que o horror vacui é um
eco, seja de fato a inspiração primeira das artes.
Seguindo por uma trilha semelhante, Georges Didi-Huberman propõe a leitura de
uma dimensão invisível da arte – certas qualidades perceptíveis ainda que invisíveis ou
mesmo totalmente inacessíveis aos sentidos. Em O que vemos, o que nos olha, Huberman
reflete sobre o evitamento do vazio7 a partir da ausência tornada presente pela visão de um
túmulo, sugerindo um vazio que é uma cisão interna, aberta em nós pelo que nos olha no
que vemos - entenda-se “o que vemos” por um objeto ou imagem, e “o que nos olha” como
as questões inconscientes que tal coisa evoca, trazendo-as à consciência. Retornando a
Lacan, entre o que vemos e o que nos olha interpõe-se a intransponível barreira da
linguagem, que cria o vazio ao mesmo tempo em que o preenche. Se o vazio remete, em
última instância, à angústia diante da inevitabilidade da morte, seu evitamento constitui
uma vitória miserável da linguagem sobre o olhar. Huberman sugere ainda que essa vitória
da linguagem pode se dar de duas formas: via tautologia – o que vejo é o que vejo é o que
vejo, ad infinitum – ou via crença – onde se procura ultrapassar, através da imaginação,
tanto o que vemos quanto o que nos olha, um princípio que abarcaria desde a religiosidade
comum à boa-vontade em se considerar, por exemplo, nas narrativas contidas nas artes. A
tautologia estaria aquém da cognição, e a crença, além.
7
O que vemos, o que nos olha, capítulos 1 e 2.
Pensando o horror vacui como inspiração primeira das artes - toda imagem como
mecanismo de evitamento do vazio - pode-se então depreender que a dimensão narrativa
das imagens – no caso de Frei Bartolomeu das Casas, a estória que ali está ilustrada, suas
implicações históricas, os personagens e seus dramas – evita o vazio pela via da crença,
enquanto o ornamento geométrico – sobre as paredes do templo asteca, ao fundo - o faz
pela via da tautologia, na medida em que não implica em crença, afirmando-se
repetidamente como sendo apenas aquilo que aparenta ser; assim, todo padrão ornamental
que repete os mesmos motivos, criando ritmos de efeito hipnótico análogo ao de um mantra
pode ser pensado como uma espécie de tautologia do olhar: o que vejo é o que vejo é o que
vejo...
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, George. O que vemos, o que nos olha. SP: Editora 34, 1998.
KIELWAGEN, Jefferson W. Kitsch & Design Gráfico. Joinville : edição do autor, 2004.
LACAN, Jacques. O seminário, Livro 11, os quatro conceitos da psicanálise. RJ : Zahar, 1998.
LACAN, J. O Seminário, Livro 20, Mais, ainda. RJ : Zahar, 1985.
PÄCHT, Otto; Art Historians and Art Critics - vi: Alois Riegl. The Burlington Magazine, Vol. 105,
No. 722. (Maio, 1963), pp. 188-193.
RIEGL, Aloïs; Problems of Style: Foundations for a History of Ornament. Princeton, Princeton UP,
1992.
PINTURA E ALEGORIA - OS VÉUS DA IMAGEM
Deborah Alice Bruel Gemin1
Alguns conceitos usados para definir estilos, gêneros ou formas de expressão
artísticas, em determinados períodos da história da arte acabam perdendo o sentido ou
sendo suprimidos em detrimento de novas terminologias. Porém, ocorre que
inexoravelmente por ordem da necessidade muitas vezes eles retornam à superfície e
voltam a figurar na retórica da arte, fazendo ressurgir questões e possibilitando uma
renovação do olhar sobre o passado, ressignificando estes conceitos, dando-lhes outra
roupagem e resgatando a antiga dignidade.
Verifica-se esta dinâmica especialmente em relação à alegoria na história e teoria
das artes. Conceito emprestado da literatura e filosofia, que perdurou por alguns séculos
inclusive como gênero plástico de elevada consideração num viés academicista. A alegoria
permitiu por séculos que a arte tratasse com extrema beleza estética, de acordo com os
padrões acadêmicos, temas religiosos e míticos, salvaguardando assim uma história calcada
em grandes acontecimentos heróicos e/ou milagrosos, condizente com espíritos românticos
e esperançosos da grandeza e divindade humanas. Esta vocação grandiloquente que a
alegoria delega à imagem, de maneira alguma desmerece seu potencial sensível e poético, o
enfatiza; e justamente por explorar ao máximo essas características é que foi por vezes
sufocada junto com os aspectos espirituais nos momentos históricos onde a razão
predominou.
Uma das singularidades da alegoria é operar na fenda entre presente e passado, por
procedimentos que resgatam antigos discursos visuais para pensar o presente, o
procedimento alegórico permite ao artista uma reinterpretação do passado para que este não
seja esquecido e para que o presente se relacione historicamente. A faceta anacrônica e a
vocação de ressignificação são características da alegoria apontadas por Walter Benjamin
quando investigava o potencial alegórico do Drama Barroco Alemão, estudo que resulta
1
Mestra pelo PPGAV - CEART UDESC, linha de Teoria e História da Arte, orientada por Rosângela
Miranda Cherem.
num discurso também alegórico da modernidade à qual este teórico era contemporâneo.
Etimologicamente alegoria é “dizer o outro”, uma representação figurativa que transmite
um outro significado em adição ao literal. Ou seja, dizer ou representar uma coisa para
significar outra. A partir deste sentido, Sergio Paulo Rouanet na apresentação da Origem do
Drama Barroco Alemão, formula uma pergunta central: “...qual a outra coisa significada
pela alegoria barroca?” A que ele responde como sendo a “concepção barroca da história”.2
Transportando esta mesma pergunta a outros contextos, pode-se discutir: Qual a outra coisa
significada pela alegoria na pintura clássica ou romântica? Qual a concepção de arte
apresentada na alegoria moderna ou até mesmo na sua negação? Quais os conceitos estão
implícitos pelos procedimentos contemporâneos, que se podem chamar de alegóricos?
Se portanto é uma figura de linguagem, que usa de algo dado para reverter-lhe o
sentido, o faz usando citações e apropriações de formas, palavras, símbolos e imagens já
dadas, o que lhe dá um caráter de permanência e sobrevivência, e não de renovação e
ruptura.
A pintura enquanto linguagem clássica usufruiu seu potencial alegórico explorando
os temas religiosos a serviço da igreja, os ideais de moralidade e ética a serviço de
ideologias, e prosseguiu alternando entre momentos mais ou menos alegóricos devido a
uma maior racionalidade ou espiritualidade. A alegoria paradoxalmente é o recurso usado
de maneira explícita que abriga outro discurso sob seu véu, num jogo poético da forma que
assume que oculta. Apresentar os véus, esconder e revelar, é a vocação essencial da
imagem, que nunca se torna naquilo que alega3, e desvendar estes véus alegóricos é o
desígnio sem fim daquele que olha.
Referindo-se a esta capacidade Orígenes (185-253 d.C.), erudito da igreja antiga,
descreveu três níveis de leitura para a escritura bíblica: um literal, um moral e um místico
ou alegórico. Para justificar essa classificação recorre a uma metáfora: o sentido literal
corresponde ao corpo, o sentido moral à alma, e o sentido místico ao espírito da escrita,
pois a escrita é composta pelos mesmos elementos que o ser humano, corpo, alma e
espírito.4 Somente os mais preparados espiritualmente chegariam ao último nível, o
2
Texto de Apresentação de Sérgio Paulo Rouanet para Origem do Drama Barroco Alemão de
Walter Benjamin. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1984. p 37.
3
Didi-Hubermann, 1998. p.87.
4
GAGNEBIN, 1994, p 38
alegórico. Portanto, a alegoria ocupa um lugar privilegiado na religião cristã: “ela não é
somente uma forma de interpretação, ela determina a compreensão da História da
Salvação”.5
Isso também demonstra que desvendar os véus da alegoria requer uma leitura
intertextual que permita identificar sentidos abstratos e profundos. Mas, para o
Renascimento e o pensamento iluminista a interpretação alegórica não oferecia nenhum
fundamento seguro por ser pautada em aspectos subjetivos de interpretação, e, portanto, foi
deixada de lado em favor de uma interpretação mais literal, como o uso do símbolo. Nos
séculos XVII e XVIII o conceito de símbolo é muito mais aceito em detrimento da alegoria,
por ser mais imediato e corresponder a uma “feliz coincidência do sentido” enquanto a
alegoria é mais hermética. No entanto para Walter Benjamin estes dois conceitos às vezes
se confundem, e por isso tenta restabelecer o conceito equivocado de símbolo da arte
clássica e romântica, na mesma medida em que restaura a alegoria, quando esta nem era
mais considerada uma categoria estética. Benjamin propõe a alegoria “como a categoria
crítica indispensável para a compreensão de fenômenos estéticos pra os quais o conceito de
símbolo já não teria eficácia teórica”.6 Portanto a teoria da alegoria de Benjamin “muito
mais do que constituir a categoria-chave para a compreensão do barroco literário alemão do
século XVII, quer constituir-se como uma categoria estética capaz de dar conta das
características da sua contemporaneidade artística”.7
“O símbolo é, a alegoria significa; o primeiro faz fundir-se significante e
significado, a segunda os separa”. A alegoria possibilita a reabilitação da temporalidade e
da historicidade em oposição ao símbolo que encarna um ideal de eternidade. 8
5
ibid, p 39
MURICY, op cit. p 160
7
ibid p159
8
BENJAMIN, op cit. p 205-206
6
Figura 1. Walter de Navazio (1887 - 1921)
A árvore (1913)
Óleo - 55 x 78 cm
Nas vanguardas da era moderna todo o saber científico indica o conhecimento
específico das diversas ciências, e, a arte do final do século XIX e início do século XX se
debruça em suas especificidades, desvenda cada linguagem artística, nega a representação e
conseqüentemente qualquer possibilidade alegórica. No entanto, essa tautologia defendida
por teóricos não se verifica numa pesquisa mais detalhada, como aponta Rosalind Krauss, a
forma abstrata e reticular das vanguardas está a serviço de um desejo de espiritualidade e
subjetividade, de uma linguagem universal. Portanto, a auto-referência se dá sempre de
maneira incompleta, ou melhor, fragmentada, cada trabalho diz um aspecto desse outro – a
sua categoria artística – que é muito maior e mais complexo, mas também está relacionado
às questões abstratas e subjetivas, muitas vezes de cunho moral, que possibilitam um viés
alegórico. Nesse sentido pode-se pensar que a alegoria das vanguardas modernistas é a
vontade da arte em ser original e universal. Uma alegoria da própria linguagem artística
como meio de expressão moral e espiritual, que tropeça no paradoxo colocado pela retícula,
que multiplica indefinidamente, impedindo a concretização do mito da originalidade.
Figura 2. Maria Luisa Pacheco (1919 -1982)
Abstrato (1961)
Óleo
Figura 3. Maria Luisa Pacheco (1919 -1982)
Composição (1960)
120 x 152,5 cm
O homem moderno é pragmático, ele aceita o símbolo, que é direto, fixo e imutável,
mas não aceita a alegoria, que separa significante do significado, é obscura e indireta. As
vanguardas pedem ruptura, e tudo que seja um resquício da história não é aceito, seu
discurso é auto-referente, no entanto, poderíamos dizer que dialeticamente a alegoria ali se
instala, de maneira diversa, não mais pela representação ou narrativa, mas pelo discurso. Os
artistas modernistas discutem as linguagens e categorias: o plano da pintura, o espaço da
escultura, problematizando a si mesmos, mas principalmente a uma estrutura maior, porém,
específica da arte, gostaria de chamar essa atitude de alegoria do corpo da arte, um discurso
coerente ao pensamento moderno.
O artista moderno entende que a pintura não é uma janela aberta revelando o
mundo, mas um espaço que percebe as relações entre as coisas do mundo, que reverte o
vivido das percepções em propostas estéticas. A configuração do espaço moderno busca
encerrar em si as questões percebidas no mundo. Um movimento cíclico entre fatura e
pensamento, é o impulso que permite aos artistas escaparem à rigidez de regras, a buscar
novas percepções e significações, e este mesmo impulso possibilita perscrutar a alegoria
como uma noção que trata da possibilidade de significação da arte e sua relação com o
alhures. O momento do olhar é o momento da alegoria, ao dizer o outro a obra moderna o
faz via às escolhas operatórias dos artistas.
Dentre as características da alegoria encontra-se a apropriação, entendida em muitos
textos teóricos como um procedimento genuinamente moderno e por conseqüência,
contemporâneo. Mesmo concordando que a atitude do artista é sempre de alguma maneira
apropriativa, a forma e o objeto de sua apropriação é que determinam o quanto esse
procedimento dita o trabalho, ou seja, aparece como chave para seu entendimento. A
apropriação é um dado formal, assim como a escolha do tipo de pincel, cor e gesto
determinam a estrutura em uma pintura.
Para além da mera utilização de procedimentos e técnicas de pintura, tem-se de
maneira mais consistente a construção de um corpo pictórico que carrega em si, as marcas e
os processos utilizados pelo artista. E é justamente esta construção este corpo, que se
reveste dos véus da sua superfície que encerra em si a outra fala, a alegoria. A alegoria da
carne aparece, portanto, de maneira distintas nas pinturas que têm em comum a discussão
do corpo da pintura. O procedimento pictórico serve para a configuração da carne de seu
trabalho revelada sob o véu da superfície/pele.
Figura 04. Juan Francisco Escobar
Carretas na Veja
Óleo sobre tela - 32 x 41 cm
A carne é entendida como a constituição do corpo da pintura que discute a
materialidade da arte na estruturação deste corpo. A alegoria pensada não apenas como
procedimento, mas como corpo da arte, como aquilo que funda o fazer artístico, a carne
como matéria e espírito da pintura. Neste sentido pode-se perceber, ainda que muito
distintas, as pinturas de artistas sul-americanos que ilustram este texto apresentam uma
construção pictórica que remete a esta fatura, à sua materialidade, que além de dar a
aparência dá também um corpo, que alega para dentro e para fora de sua superfície.
O corpo da pintura que se estabelece na trama como carne e na superfície como
pele, que remete às questões da superfície pictórica cujas dobras e rasgos convidam ao
atravessamento do olhar, para que este enxergue seu verdadeiro corpo. Didi-Huberman no
livro La Pintura Encarnada propõe a superfície da pintura como a pele que contém seu
corpo, e enfim, o corpo da arte, numa vocação alegórica que perpassa os procedimentos e
se instala além da trama, e neste jogo da mirada revela que existem sempre dois caminhos,
um, do olhar que observa, rasga a pele e ao expor a carne revela o corpo, o outro da mirada
que volta das entranhas do trabalho, que se abre para além do visível.
Este potencial dialético da imagem requer do observador percepção e olhar ativos
que reflitam para além da sua visibilidade, e por isso uma das possibilidades de abordagem
alegórica, para além dos procedimentos e que considera o corpo pictórico e não como
representação mas como constituição matérica e visual deve considerar o espaço que se
estabelece com o espectador, como o outro que acontece a partir da obra como dispositivo,
quando ela só se completa nessa relação. Momento onde a alegoria se apresenta e manifesta
seu enigma, revela o que se esconde através de seu véu, ponto em que a obra pensa e faz
pensar.
Figura 05. Fernando Fader
Paisagem Tormentosa (1906)
Óleo sobre tela - 70x50cm
Figura 06. Fernando Fader
O Estábulo (1905)
Óleo sobre tela - 49 x 60,5 cm
REFERÊNCIAS
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el Tiempo.Traducción Oscar Antonio Oviedo Funes.
Buenos Aires: Adriana Hidalgo, 2006.
___________. La pintura Encarnada. Trad. Manuel Arranz. Valência: Correspondências
Pré-textos – Universidade Politécnica de Valência. 2007.
___________. O que vemos e o que nos olha. Trad. Paulo Neves, São Paulo: 34, 1998.
GAGNEBIN, Jeanne-Marie. História e Narração em Walter Benjamin. São Paulo:
Perspectiva/FAPESP. 1994
KRAUSS, R. La originalidad de la Vanguardia y otros mitos modernos. Trad. Adolfo
Gómes Cedillo. Madrid: Alianza, 1996.
OWENS, C. O Impulso Alegórico: sobre uma teoria do pós-modernismo. Revista do
Mestrado de História da Arte EBA UFRJ, Rio de Janeiro, 2º semestre. 2004.
BENJAMIN, Walter.Origem do Drama Barroco Alemão. Ed. Brasiliense. São Paulo, 1984.
O VIÉS CONSTRUTIVO DA ARTE LATINO-AMERICANA
Alice de Oliveira Viana1
RESUMO
Este artigo pretende trazer considerações sobre um traço comum na arte latinoamericana, sua tendência construtiva. Na América Latina de uma forma geral
percebemos muitos artistas, em determinado período de suas produções, optando pelo
abandono da utilização de formas diretamente associadas à realidade exterior, primando
pelas formas puras da geometria, ou já anunciando em seus quadros uma leve tendência
a elas. Um geométrico que em grande medida diferiu daquele europeu por seu aspecto
não rigoroso, muitas vezes apresentando sensível ligação com a realidade. Para isto,
analisa parte da produção de artistas que pintavam nas primeiras décadas do século
vinte como Joaquin Torres-Garcia, Petrona Vieira e Rafael Barradas, assim como faz
um paralelo com as expressões arquitetônicas produzidas na época.
PALAVRAS - CHAVE: arte latino-americana, geometria, tendência construtiva.
ABSTRACT
This paper intends to bring some considerations about a common trace in Latin
American art, its constructive tendency. In Latin America, in a general way, we realize
many artists, in some period of its productions, choosing for the abandonment of the
exterior reality directly associated forms use, prioritizing the pure forms of geometry, or
already announcing in its pictures a slight tendency to them. A geometrical that greatly
differed from the European one for its non rigorous aspect, many times presenting
sensitive connection to reality. For this, it analyzes part of the production of artists who
painted in the first decades of the XXth century, as Joaquim Torres-Garcia, Petrona
Vieira and Rafael Barradas, just as makes a parallel to architectonical expressions
produced in the time.
KEYWORDS: Latin American art; geometry; constructive tendency.
1
Mestra pelo PPGAV – CEART UDESC da linha Teoria e História da Arte orientada por Sandra
Makowiecky.
A primeira metade do século vinte foi marcada, de uma forma geral, pela busca,
nos países latino-americanos, de uma identidade própria, pela necessidade de construção
da nação, situação que de certa forma também marcou a produção artística nestes
países. Entretanto, para além desta necessidade assumida de se construir um caráter
nacional, de distinção do particular em meio ao universal em cada país, pode-se deduzir
um traço comum que permanece e acaba tecendo uma linha única entre as diversas
nações latino-americanas: uma tendência construtiva que marcou grande parte da
produção de muitos artistas nestes países, tendo reverberado em outras áreas também
como, por exemplo, na arquitetura, e tendo se estendido até as produções das décadas de
cinqüenta e sessenta.
Desta forma, na arte latino-americana de uma forma geral percebemos muitos
artistas, em determinado período de suas produções, optando pelo abandono da
utilização de formas associadas à realidade exterior, primando pelas formas puras da
geometria ou já anunciando em seus quadros uma leve tendência a elas.
Acerca disto, Frederico Morais (MORAIS IN PONTUAL, 1978) afirma que
importamos, em diferentes épocas, teorias de arte construtiva, em muitos casos tendo
assimilado-as antes mesmo do restante da Europa, e defende assim, a existência comum
na América Latina, de uma vontade construtiva, o que, de acordo com ele, talvez
explicaria a ampla aceitação das teorias construtivas de Joaquin Torres-Garcia e das
idéias de Le Corbusier em sua primeira vinda ao Brasil em 1929, por exemplo.
Entretanto, como muito da nossa arte moderna possui esse aspecto de
apropriação e adaptação, nosso geométrico difere daquele vindo da Europa. Podemos
falar talvez de uma “geometria sensível” 2, não rigorosa, em oposição ao geometrismo
programado, rigoroso, calculado, do construtivismo das vanguardas européias. Nossos
elementos em grande parte são construídos mais em um diálogo com a realidade do que
contra ela.
2
Esse termo foi cunhado a partir da exposição Arte Agora III /América Latina: Geometria Sensível,
realizada de junho a julho de 1978, no MAM- RJ, que foi a terceira de uma série de mostras cujo objetivo
acabou sendo o de manifestar um aspecto saliente da arte da América Latina, que seria sua vocação
construtiva, o que resultou na organização de um livro que acompanhou a mostra: América Latina,
geometria sensível,coordenado por Roberto Pontual.
Na arquitetura esta tendência construtiva é percebida pela recorrência de formas
geométricas e puras encontradas, por exemplo, na estética art déco, em voga na época.
Uma estética das primeiras décadas da modernidade do século vinte, que teria surgido
na França no período do entre-guerras e que foi em grande medida apropriada pelos
países latino-americanos, assim como pelos Estados Unidos. Sendo caracterizada por
linhas simples, com quase ausência de ornamentos e formas geométricas, marcou,
dentre outros, o desenho dos novos espaços de sociabilidade que se desenvolviam na
época. Cinemas, cafés, estações de rádio, dentre muitos outros espaços característicos
desta sociedade de massas que se desenvolvia, muitas vezes diferenciados por cores
alegres em tons pastéis, reforçando a associação desta estética a uma época de “prazeres
efêmeros” (SEGAWA, 2002, p.54), associação justificada especialmente por ter se
desenvolvido entre as duas guerras mundiais. Entretanto, é através das expressões mais
modestas desta estética, como casas de porta-e-janela e sobrados, recorrentes em
cidades do interior ou no subúrbio das grandes metrópoles latinas, que podemos
perceber certa ligação sensível neste geometrismo construtivo.
Casas de porta-e-janela ou sobrados, caracterizados por uma estética repetitiva,
padronizada, distribuídos por diversas cidades da América Latina e trazendo em sua
face um geométrico moderno, em concordância com a moderna arquitetura pública que
surgia nestes países. Entretanto, são casas que mantém sua ligação com o passado, com
a tradição, através da manutenção da configuração de um traçado urbano barroco, por
sua intenção em ser o desenho das ruas, em enquadrar o céu e buscando nesta
configuração a visão dos monumentos religiosos, reforçando sua relação com o sagrado.
Casas sem afastamentos laterais, contrariando as diretrizes sanitaristas modernas, casas
que se apresentavam através de todo um colorido vibrante – diferentemente das cores
sóbrias e austeras da arquitetura pública da época -, um colorido muitas vezes
semelhante ao das festas religiosas populares do interior, das bandeirinhas
comemorativas. Disfarçadas por um geométrico moderno, revelam a persistência de um
passado barroco, nossa tradição emocionalista, que persiste multiplicada por muitas
cidades latinas.
E nesta gramática percebemos uma relação entre a arte e arquitetura, atentando
para os elementos que sobrevivem e reverberam entre ambas, podendo-se citar a obra
dos artistas uruguaios Petrona Vieira e Rafael Barradas. A primeira, tendo realizado
temáticas variadas em seus quadros, já apresenta em grande número deles certa
tendência geométrica, construída através de grandes pinceladas quase homogêneas,
formando contornos bem definidos. Nas cenas que pintou (figuras 01 e 02), percebe-se a
ausência de identificação dos rostos, a repetição e padronização das mesmas figuras
femininas, figuras cujas formas são quase geométricas, diferenciadas somente pelo
alegre cromatismo de seus vestidos, um cromatismo encontrado nas fachadas art déco
coloridas e padronizadas. Uma celebração a esta sociedade de massas que se
desenvolvia, uma sociedade marcada pela entrada do capital norte-americano nos países
latinos. É o art déco de Miami que Petrona Vieira pinta, esse art déco colorido e
ensolarado da costa sudeste dos Estados Unidos, um art déco que tem um quê de
frivolidade latina.
Figura 1. Petrona Vieira (1895 - 1960)
Meninas (1921)
Óleo sobre tela - 114 x 118 cm
Figura 02. Petrona Vieira (1895 - 1960)
Recreio (1924)
Óleo sobre tela - 86 x 90 cm
Já o pintor Rafael Barradas (figuras 03 e 04) optou por pintar temas ligados a
esta sociedade de massas, uma sociedade que vivia estes “prazeres efêmeros” e
freqüentava os cafés, os cinemas e os jogos de bares. Da mesma forma lança mão de um
cromatismo peculiar, em tons mais fortes do que os pastéis de Petrona Vieira, um
colorido que muitas vezes apresenta certa alegria vibrante e que é expresso também em
formas quase geométricas.
Figura 03. Rafael Barradas (1890 - 1929)
Cena de café (1913)
Óleo sobre cartão - 36,5 x 36,5 cm
Figura 04. Rafael Barradas (1890 - 1929)
Jogadores de cartas (1917)
Témpera sobre cartão - 49 x 59 cm
Entretanto, um artista cuja obra possibilita perceber claramente esta ligação
sensível em suas composições é o também uruguaio Joaquin Torres-Garcia. TorresGarcia possui como marca também esta construção geométrica que define seus
antecedentes no neoplasticismo de Mondrian. Assim como este, os quadros de TorresGarcia (figuras 05 e 06) são formados por linhas horizontais e verticais que constroem
formas geométricas, retângulos e quadrados. As linhas em Mondrian, grossas e bem
definidas, aparecem em Torres-Garcia como que um rasgo na tela, ora engrossando de
um lado, ora afinando de outro, denunciam a pincelada, afirmando a participação da
mão, do sensível na fatura da obra. Em Mondrian a participação da mão do artista é
praticamente anulada, tanto no desenho das linhas grossas e bem definidas, que
rigidamente subdividem os planos, como na pintura destes mesmos planos, onde não há
indícios das marcas das pinceladas. Ele busca o equilíbrio total, tanto de cores, através
da quantidade que usa de cada cor primária, quanto das linhas que se cruzam
rigidamente em formato ortogonal.
Figura 05. Torres-Garcia
Composição simétrica universal em branco e
preto (1931)
Óleo sobre tela - 122 x 63,2 cm
Figura 06. Torres-Garcia
Composição construtivista (1943)
Óleo sobre tela - 65 x 75cm
Em Torres-Garcia, ao contrário, o equilíbrio não é previsto, a cor ultrapassa a
linha ou não preenche totalmente a forma gerada por esta, o que provoca certo grau de
dinamismo à imagem. Nestes planos gerados pelas linhas da estrutura de Torres-Garcia,
ele coloca figuras que funcionam como símbolos, muitos retirados da tradição dos
povos pré-colombianos, assim como símbolos contemporâneos, como, por exemplo, o
relógio e o trem, formados pela justaposição de formas geométricas. É através da
montagem e composição destes símbolos na estrutura gerada pelas linhas que podemos
compreender o sentido da obra, uma vez que o barco não é o barco literal, mas é
entendido em sua proximidade ao coração, que também não é o coração simplesmente.
Torres-Garcia recusa a figuração, mas também não opta pela abstração máxima, aquela
do construtivismo europeu, cria uma linguagem própria, particular, inovadora para a
época, mas em sensível ligação com a realidade exterior.
Como explicar esta recorrência da geometria na produção latino-americana de
uma forma geral?
No começo do século vinte, o filósofo Wilheim Worringer em sua tese
“Abstração e Empatia” afirmava que a história da arte deveria ser abordada a partir da
intenção do sujeito, a partir de uma vontade de fazer, em contraposição a um poder
fazer. Sendo assim, a abstração seria resultado de uma forte inquietação interior do
homem, de uma angústia perante o mundo ou referente a algum momento de crise e de
mudança, desviando-o de qualquer ligação com o real. Desta forma, a arte abstrata teria
o caráter transcendental, de ultrapassar a mera realidade (VALLIER, 1980). Ao longo
da história da cultura podemos perceber esse aspecto, por exemplo, durante a revolução
do neolítico, e durante o próprio surgimento da arte abstrata, um momento de profundas
mudanças na sociedade, com o advento da máquina, das novas tecnologias e,
principalmente, com a situação de proximidade à guerra.
O construtivismo russo, tendo adquirido identificação com os pressupostos da
revolução russa, trazia essa idéia de construir uma nova realidade, a qual seria atingida
principalmente através do retorno da arte a suas bases primeiras, como a cor, a linha, o
ponto e as formas puras geométricas. O momento de surgimento dessa tendência na arte
foi concomitante a uma situação particular de fortes transformações na sociedade russa,
que vivia então uma mudança de regime político.
É sintomático que as primeiras manifestações em direção à abstração tenham
surgido nos países da América Latina a partir da segunda década do século vinte,
momento em que vivenciavam um período de amplas transformações, como a
modernização das cidades e da economia, a instauração de uma racionalidade
administrativa com a consolidação do regime republicano moderno e a procura por uma
identidade nacional, sonhos de uma burguesia em ascensão, assimilado pelas
vanguardas artísticas.
Construir uma nova sociedade através de uma geometria feita com esmero, rigor,
porém, não rigorosa, fria. Um geométrico mais orgânico que viesse talvez para ordenar,
como afirmou Frederico Morais, nossa cultura de “tradição emocionalista barroca”
(MORAIS IN PONTUAL, p.18).
REFERÊNCIAS
PONTUAL, Roberto. (coord) América Latina, geometria sensível. RJ: Edições Jornal
do Brasil/GBM, 1978.
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil. 1900-1990. 2.ed. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2002.
VALLIER, Dora. A arte abstracta. Lisboa: Edições 70,1986.
1
A MODERNIDADE, A ARTE MODERNA E O PARANISMO1
Luciana Estevam Barone Bueno2
Sandra Makowiecky
3
Em se tratando de Artes Plásticas, o final do século XIX e o século XX podem
ser caracterizados como períodos de experimentação. Várias foram as contribuições sociais
e científicas para que caminhos tão distintos e muitas vezes tão similares fossem escolhidos
pelos artistas e também por escritores. O estudo do inconsciente, as guerras, as revoluções,
a comunicação em massa e a tecnologia, entre outros fatores, acabaram por influenciar a
produção artística propondo novos pensamentos e ideologias. Uma série de “ismos”
começa a aparecer no final do século XIX e se estende ao século XX, apresentando
novidades como romantismo, futurismo, dadaísmo, Minimalismo, expressionismo, dentre
tantos outros. Muitas vezes, tendências já vistas anteriormente aparecem com uma nova
roupagem, recebendo então um novo nome para o sobrenome “ismo”, como neoclassicismo
e neoexpressionismo, por exemplo.
No Brasil e, de uma maneira geral em outros países, podemos constatar
movimentos considerados modernistas e, as aspirações para tais, podem ser relacionadas
aos aspectos econômicos, sociais, políticos, expansão de determinados produtos agrícolas,
relações ligadas à industrialização bem como à urbanização. Mas afinal, o que podemos
chamar de arte moderna? Que características devemos considerar peculiares para classificar
uma determinada obra de arte de arte moderna?
Poderíamos talvez, começar definindo a palavra “moderno” para associar, de
maneira imprecisa, o que seria atual, algo que não pertence ao passado, chegando muitas
vezes à condição de contemporâneo. Na arte, o termo “moderno” pode ser relacionado a um
1
Ensaio escrito para participação na pesquisa sobre America Latina e Santa Catarina - Academicismo e
Modernismo orientado pelas Profas. Dra. Sandra Makowiecky e Dra Rosângela Miranda Cherem, no PPGAV,
CEART-UDESC.
2
Mestranda do PPGAV, CEART-UDESC linha de Teoria e História da Arte
3
Orientadora
2
determinado período da história, ou seja, para catalogar nesse período, determinados tipos
de arte, pertencendo a interpretações diferentes o começo de tal período. Para Franscina,
“Na linguagem da crítica de arte, portanto, também é usado
seletivamente. ‘Arte Moderna’ não significa necessariamente o mesmo
que ‘arte no período moderno’, pois nem toda arte produzida nesse
período é julgada ‘moderna’ – considera-se que só certos tipos de arte
fazem jus ao título”. (FRANSCINA, 1998 p. 07).
Neste sentido, nem todas as obras realizadas em um determinado período
considerado moderno, recebem a catalogação de obras modernas. Uma pintura acadêmica,
por exemplo, realizada no mesmo período do desenvolvimento do impressionismo não
poderia, neste caso, ser considerada moderna, mesmo que sua execução tenha sido
exatamente simultânea a outra pintura com traços constituídos de uma certa “diferença”.
Baudelaire aplicou o termo “modernité” num ensaio publicado em 1863, em um
jornal francês Lê Figaro, para, segundo Franscina, “articular um senso de diferença com
relação ao passado e descrever uma identidade peculiarmente moderna”. Assim sendo, no
contexto apresentado, o moderno “(...) não significa apenas “do” presente, mas representa
uma atitude específica para com o presente. Baudelaire relaciona essa atitude a uma
experiência particular de modernidade, que é característica do período moderno enquanto
distinto de outros períodos”. (FRANSCINA, 1998 p. 09).
A autora ressalta que este experimento sobre modernidade só desenvolveu-se
quando Baudelaire o aplicou na arte, isto em meados do século XIX, onde o mesmo a
definiu nas seguintes palavras: “Por ‘modernidade’ entendo o transitório, o fugidio, o
contingente, a metade da arte cuja outra metade é o eterno e o imutável” (The Painter of
Moderna Life and other Essays, p.13 In FRANSCINA, 1998 p.09). Portanto, para
Baudelaire a modernidade estava relacionada tanto ao efêmero como ao duradouro, e esta
relação interferia na produção artística. Frascina afirma ter Baudelaire argumentado que
“(...) os pintores deviam pintar figuras em roupas contemporâneas e não em vestimentas
arcaicas do passado, e que o contemporâneo, em todas as suas facetas diversas e fugidias,
possuía uma dimensão épica ou heróica”. (FRANSCINA, 1998 p. 09).
Para Walter Benjamin (1975), “A modernidade caracteriza uma época;
caracteriza simultaneamente a força que age nesta época e que faz com que ela seja
parecida com a antiguidade”. Para o autor, em se tratando de modernidade, a teoria da arte
3
moderna não seria o ponto forte de Baudelaire, pois esta teoria se apresenta com pretextos
modernos e, o foco principal para ela poderia talvez ser “uma discussão sobre a arte
antiga”, segundo Benjamin, Baudelaire nunca havia tentado algo semelhante.
Segundo Franscina, Baudelaire “Afirmava que o moderno na arte estava
relacionado a uma experiência de modernidade – ou seja, a uma experiência que está
sempre mudando, que não permanece estática, e que é sentida com maior clareza no centro
metropolitano da cidade”. (FRANSCINA, 1998 p. 10). Portanto, se tentarmos resolver
modernidade ou moderno com uma definição comum, poderemos de maneira simplista
deixar de lado o efeito de que a modernidade, bem como o moderno, estão em constante
mudança, fazendo parte de um planeta em movimento. A autora afirma ainda que “Os
termos ‘moderno’ e ‘modernidade’ não são passíveis de definição fixa; pelo contrário, são
relativos e sujeitos a mudança histórica”. (FRANSCINA, 1998 p. 10).
No Brasil, a arte moderna está principalmente ligada ao movimento de
vanguarda associado à Semana de Arte Moderna de 1922 que aconteceu na capital paulista.
A SAM4 não foi o Modernismo, mas teve a intenção de remexer em antigas concepções
estéticas propondo novas opções artísticas para, quem sabe, suprir necessidades e sanar a
insatisfação ligada ao tradicional e aos padrões artísticos. O modernismo no Brasil, mesmo
com assimilações vanguardistas e com forte tendência ao Expressionismo, Cubismo e
Fauvismo, esforçou-se em repensar a realidade brasileira utilizando como fonte principal,
as artes. Deste modo, a liberdade criativa na poesia tentou por em terra a métrica e a rima;
na música, a melodia e a tonalidade sofreram intervenções anormais, e nas artes visuais o
intuito era o academicismo ceder espaço para novas cores, temas e formas. O fato é que o
modernismo brasileiro, pelo menos aparentemente, tinha a finalidade de utilizar as artes
para explorar características apreciadas como bem brasileiras para expor um panorama
artístico com cara de Brasil, tentando fugir das influências européias e ao mesmo tempo,
buscando inspirações nas mesmas. Este seria o discurso apresentado pelos intelectuais
considerados ‘modernistas brasileiros’.
Porém, para Sergio Miceli, em seu livro Nacional Estrangeiro, “O movimento
modernista paulista constituiu, pois, a reação possível da geração emergente de artistas às
novas condições de operação em âmbito interno num quadro radicalmente alterado de
4
Semana de Arte Moderna
4
relações de dependência externa”. (MICELI, 2003 p. 19). Segundo o autor, as obras
apresentadas eram carregadas de relações entre as experiências vividas dos grupos inseridos
e os visíveis retornos implantados pela influência mútua dos mestres por meio das
vanguardas, caminhando ainda em direção à tendência de “retorno à ordem”. Tal ordem se
refere à inclusão de citações de padrões clássicos em história da arte, retornando muitas
vezes à iconografia greco-romana e aos protótipos renascentistas. Este “retorno à ordem”
teve no início da década de 1920 com a aceitação inclusive dos chamados mestres cubistas
mais arraigados, onde apresentaram extrações do vocabulário dos maneiristas, ou mesmo
de artistas como Ingres e David.
De qualquer modo, de uma maneira geral, os artistas da América Latina sempre
tiveram inspirações em pensamentos europeus. A tendência em apresentar ligações como o
Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, não se trata de uma exclusividade dos artistas
brasileiros. Podemos observar em outros latinos, como é o caso de Rufino Tamayo, Oaxaca
(26.08.1899 – 24.06.1991), onde fazendo oposição à linha estabelecida pelos muralistas
mexicanos, significou uma brusca mudança aos padrões pré- estabelecidos da pintura
mexicana da dec. de 30. Nas obras abaixo, podemos observar claramente uma ligação com
o Fauvismo de Matisse, bem com, uma tendência ao Cubismo de Braque.
Figura 1. Rufino Tamayo (26.08.1899 – 24.06.1991)
Natureza morta com alcatrazes (1924)
Óleo sobre tela - 39,1 x 40 cm
5
Figura 2. Rufino Tamayo (26.08.1899 – 24.06.1991)
Natureza morta com pé (1928)
Óleo sobre tela - 58,1 x 51 cm
O paraguayo Carlos Colombino (20.10.1937, Concepción), considerado um dos
artistas mais significativos para o modernismo de seu país, na obra abaixo, torna explícita a
relação com a obra Senhora do Arminho do clássico Leonardo Da Vinci, comungando com
os pensamentos de Sergio Miceli, onde afirma que as obras modernistas eram carregadas de
influencias dos “mestres” levando a produção, ao um declarado “retorno à ordem”.
Figura 3. Carlos Colombino (1937)
Mão e Ferro
Xilopintura
6
Rafael Monasterio (1884, – 02/11/1961) Barquisimeto – Venezuela, deixa
evidente uma aproximação como o Expressionismo. As obras deste artista, que podem ser
observadas abaixo, mantêm ainda uma certa afinidade com as obras da modernista
brasileira Anita Malfatti em sua obra O Farol, principalmente em relação a primeira obra
de Monasterio, podemos perceber analogia às cores e pinceladas bruscas e acentuadas.
Figura 4. Rafael Monasterio (1834 - 1961)
A torre de Caricuao (1930)
Óleo sobre tela - 53,6 x 75,5 cm
Figura 5. Rafael Monasterio (1834 - 1961)
Paisagem de Catia (1932)
Óleo sobre tela - 56,5 x 81 cm
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De modo geral os movimentos modernistas nasciam identificados com um
projeto e adotaram caso a caso, códigos únicos que os diferenciavam. Isso também
aconteceu com outros grupos que surgiram nos séculos XIX e XX. Revolucionários,
republicanos, ONDE utilizaram as artes plásticas com a intenção de elucidar algo que
através de meros discursos não atingiria o imaginário popular, interesse principal para os
mesmos.
No Estado Paraná alguns grupos de escritores e artistas começaram a questionar
peculiaridades existentes no Estado que o diferenciavam de outros Estados Brasileiros. É o
caso dos Simbolistas, que, mesmo com representantes em outros Estados, no Paraná,
tiveram uma atuação singular e original, pois, se apegaram ao clima da cidade de Curitiba,
considerado frio como o clima europeu, destacando ainda, as montanhas e relevos que
alguns escritores caracterizaram com particularidades parisienses. A grande projeção do
Movimento Simbolista de vertente neo-pitagórica, no Paraná republicano, ocorreu devido à
convergência deste movimento com a aura construída pela República, no que tange à
ciência e ao ensino laico. A ciência e o ensino laico foram considerados elementos
modernizantes da sociedade, em oposição a uma visão mística do mundo dada pela Igreja
Católica, fato que foi considerado pelos anti-clericais como uma das falências do regime
monárquico.
Outra aspiração modernizante que surgiu no Paraná na década de vinte,
expressou-se a partir de uma reflexão da intelectualidade curitibana sobre o fato do Paraná
não possuir traços específicos regionais por meio de lendas, tradições e vultos históricos.
Então, foi através do Movimento denominado Paranista que as Artes Plásticas tiveram um
espaço privilegiado, atingindo as metas cobiçadas. Os paranistas aguçavam o desejo de
construir uma história regional que mostrasse o Paraná como um local que possuía uma
tradição e uma história, tendo a intenção de inventar uma tradição para um Estado
considerado até então, sem características próprias. Revestido de um caráter de antiguidade,
o discurso histórico dos paranistas tinha uma forte ligação com as instituições republicanas,
onde acreditavam que o imaginário popular carecia de retorno às antiguidades. Partiram
então para um retrocesso nas artes visuais. Enquanto em São Paulo em plena década de 20,
os assim considerados modernistas, aparentemente tentavam oferecer novidades nos
“ismos” europeus para através das artes, apresentarem um Brasil, que no julgamento dos
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mesmos, era desconhecido pelos próprios brasileiros, os paranistas, também com um intuito
de modernidade, no mesmo período, buscavam no neoclassicismo as inspirações para
desenvolverem obras que atingissem o imaginário popular, acreditando que a antiguidade
fosse o melhor alicerce para a identidade que estava sendo criada para o Estado do Paraná.
Os paranistas utilizaram produções já conhecidas da História da Arte e, como
uma apropriação de algo já inventado, adornaram objetos artísticos com símbolos que
seriam característicos do movimento. Escolheram a pinha, o pinhão e o pinheiro, surgindo
da junção desses elementos, a coluna paranista5. A idéia, além de se criar uma
diferenciação para o Paraná, era na verdade, uma necessidade de mostrar que o Estado tinha
uma cultura, um símbolo. Utilizaram a velha coluna grega com cara nova com a intenção
de reforçar um alicerce histórico, ou seja, com o recurso das artes plásticas almejavam
atingir a meta que propunham no projeto do movimento paranista. Apesar de não ser
considerado um movimento artístico e sim político, através das artes, o paranismo atingiu
consideravelmente seu objetivo.
Para Miceli, no modernismo paulista com seu “retorno à ordem”, os artistas
apresentaram muitas vezes fases menos criativas que os mestres onde se espelhavam. O
paranismo também com a idéia de retorno ao clássico, como não poderia ser diferente, não
superou as tradicionais obras adornando-as com seus pinhões.
Diferentes são os motivos que levaram muitos artistas a buscarem alternativas
para apresentarem obras com características modernas.O fato é que, não há uma receita
pronta para classificarmos uma ou outra obra “moderna”, o espectador também deve estar
atento a todos os movimentos que são característicos da modernidade. O homem que
vagueia pela multidão deve ser um observador também moderno. O vaivém da metrópole, a
mudança constante nos propõe duas alternativas, a primeira é de olharmos a cidade, bem
como as obras de arte, como um flâneur, ou seja, um apaixonado observador, que segundo
Baudelaire, é o observador que encontra prazer no efêmero e na circunstância, encanta-se
pela multidão, pelo mundo e por viagens. A segunda é o olhar do dândi para Baudelaire,
que George Simmel denominou blasé. É aquele olhar do sujeito que não se deixa comover,
não se surpreende, entediado por natureza um verdadeiro autista urbano. Para este último,
Makowiecky (2003 p.9) nos alerta, só a arte pode despertá-lo.
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Imagem (3) - Colunas Paranistas: João Turin – Fonte: Elisabete Turin, 1998.
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. A Modernidade e os modernos. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1975.
FRANSCINA, Francis...[et alii] Modernidade e Modernismo – Pintura Francesa no século
XIX. São Paulo: Cosac & Naify Edições, 1998.
GOMBRICH, E.H. A história da arte. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993.
MAKOWIECKY, Sandra. Construções imaginárias: Florianópolis e as influências
bruxólicas. In: XIV Encontro da Associação Nacional de Pesquisadoes em Artes Plásticas,
2005, Goiânia. XIV Encontro da Associação Nacional de Pesquisadoes em Artes Plásticas Cultura Visual e desafios da pesquisa em artes. Goiânia : Editora da Universidade federal
de Goiás, 2005. v. 1. p. 418-429.
________, Sandra. A cidade, o flanêur, o dândi, o blasé, o zappeur e você.. Revista
Multitemática da Fean, Florianópolis, v. 1, 2003., 80 p.
MICELI, Sergio. Nacional Estrangeiro: história social e cultural do modernismo artístico
em São Paulo. São Paulo: Companhia da Letras, 2003.
MORAES, FREDERICO, 1936 – Panorama das Artes Plásticas, Séculos XIX e XX. São
Paulo: Instituto Cultural Itaú, 1991.
TURIN, Elizabete. A arte de João Turin. Campo Largo, PR: INGRA, 1998.
PRESENÇA DO LUXO – DIMENSÕES DO SAGRADO E PROFANO NA ARTE.
Luciane Ruschel Nascimento Garcez 1
Sandra Makowiecky 2
RESUMO
Este artigo pretende abordar aspectos do luxo na arte, buscando pensar os sentidos que este
conceito agrega às obras, particularmente em relação aos revestimentos, tecidos e
ornamentos presentes na pintura latino-americana.
PALAVRAS-CHAVE: arte; luxo; sagrado; profano.
ABSTRACT
This paper intends to approach aspects of the luxury in art, trying to think the senses that
this concept incorporates in the works, especially in relation to revetments, fabrics and
ornaments present in the Latin American painting.
KEYWORDS: art; luxury; sacred; profane.
A contextualização da palavra luxo convida a uma retrospectiva. Neste texto,
aborda-se o assunto utilizando como motivação algumas imagens de obras de autores
latino-americanos. O impulso contra tudo o que se chama luxo tem, de fato, um longo e
venerável passado. Infindável é a série de filósofos e legisladores, de pregadores e
demagogos que se declararam contra a opulência, a ostentação e o desperdício. A exemplo
do objeto de seu zelo, também seus argumentos mudaram no correr do tempo. O poeta e
ensaísta alemão, Hans-Magnus Enzensberger reflete sobre esta polêmica de quase 2000
anos. Para o autor, o luxo passará a ser, no século XXI, o tempo, a atenção, o espaço, o
meio ambiente, o sossego e a segurança. Curiosa inversão de uma lógica dos desejos: o
luxo do futuro despede-se do supérfluo e aspira ao necessário, do qual se deve temer que
fique à disposição tão somente das minorias. No passado, diz o autor, o luxo estava ligado
1 Mestranda do PPGAV – CEART, UDESC linha de Teoria e História da Arte
2 Orientadora; professora do curso de Mestrado no PPGAV – CEART, UDESC.
ao supérfluo (jóias, ornatos, enfeites, vestuário, carruagens, cavalos, louças, criadagem,
etc.), hoje "aspira ao necessário", tanto que "o que realmente importa nenhum Duty Free
Shop tem para oferecer". O tempo é o mais importante de todos. "Vive com luxo quem
sempre tem tempo de se ocupar com o que deseja e quem pode decidir por si próprio o que
fazer com o seu tempo, bem como o quanto, quando e onde fazê-lo” (ENZENSBERGER,
1997, p. 6).
Estas conjecturas sobre o luxo resultam numa reviravolta rica em ironia. Se elas têm
algum cabimento, o futuro do luxo não reside mais, como antes, na multiplicação, mas na
redução, não na confluência, mas na evasão. A abundância ingressa num novo estágio, na
medida em que se nega. A resposta ao paradoxo: minimalismo e renúncia poderiam
mostrar-se tão raros, dispendiosos e cobiçados como, outrora, o esbanjamento excessivo.
Porém, com isso, o luxo perderia completamente seu papel representativo. Ele não
precisaria mais de observadores, pois os excluiria. Sua lógica consistiria, justamente, em
fazer-se invisível. Com tal retraimento em face da realidade, o luxo permaneceria, no
entanto, fiel à sua origem; pois desde sempre, ele esteve em pé de guerra com o princípio
da realidade. Talvez, aliás, ele nunca tenha sido senão uma tentativa de fuga da fadiga e da
monotonia da vida. A exemplo do passado, não se poderá cogitar de justiça quando o
assunto é luxo. Ao menos quanto a isso ele permanecerá, também no futuro, o que sempre
foi: um adversário ferrenho da igualdade. E nas artes, como esta polêmica se
consubstancia?
O que leva um artista a escolher um material e não outro em sua operação poética?
O que faz com que este material remeta a um ou outro significado, trazendo simbolismos
para a obra que independem de sua forma estética? A matéria tem memória, vem
constituída de outros olhares, conceitos estão agregados ao material antes mesmo da
definição de seu uso. Aliás, pode-se pensar que, em muitos casos, seu uso é definido em
função destes conceitos, o artista se apropria desta memória para agregar significado ao seu
trabalho. Faz parte de suas reflexões, de sua operação poética.
A teórica Maria Celeste de Almeida Wanner (1998), comentando sobre o uso dos
materiais na arte, fala do significado por eles adquirido, diz que o artista busca no material
um meio de expressar “seu conteúdo psicológico, ritualístico, mágico, emocional, histórico
e político. Uma linguagem que abrange desde o sagrado ao ‘não-simbólico’ dentro de um
amplo conceito de contemporaneidade” (p. 57). Mas a simbologia dos materiais não se
resume ao significado por eles adquirido na contemporaneidade, alguns trazem esta carga
simbólica há milênios, estão impregnados de outros olhares, outros usos, outras
simbologias. “Cada material possui sua origem vinculada a tradições culturais”
(WANNER, 1998, p. 58), desta maneira a teórica está afirmando que os significados
intrínsecos a cada material variam de acordo com a cultura na qual estão inseridos, variam
de acordo com os cultos aos quais estão associados, variam de acordo com os olhares pelos
quais são formados. Reforçando este raciocínio, Wanner complementa:
Ligados à natureza, à indústria ou à tecnologia, vários artistas desde a préhistória têm transformado materiais em objetos de grande complexidade
simbólica. Assim podemos dizer que cada objeto chega até nós
impregnado de histórias e de um sistema sígnico que ilustram partes da
vida de cada artista, parte de sua personalidade, cultura e identidade, parte
de si (WANNER, 1998, p. 58 - Figura 1).
Figura 1. Júlio Ruelas (1870 – 1907)
Margarita Ruelas Suarez pronta para sair.
Assim como o material tem sua linguagem própria, a forma como o artista faz uso
dele se apropria ou transforma esta linguagem, de acordo com sua própria poética. Na
pintura, muitas vezes o luxo se traduz na forma como o artista retrata seu objeto, no modelo
escolhido, ou na proposta artística do pintor. Um retrato tratado como uma preciosidade é
um exemplo de luxo, um vestido de seda ou de veludo, com detalhes ricos e sofisticados
também traduzem o luxo que o retratado inspira. Um bordado, uma renda, uma jóia, a
postura da figura representada, até mesmo o ambiente pode dar a idéia de sofisticação
pretendida pelo artista (figuras 1 e 2).
Figura 2. Daniel Hernández (1856 – 1932)
Sra. Luisa de Mesones (1883)
Figura 3. Juan Cordero (1824 – 1884)
Dona Leonor Rivas Mercado
Óleo sobre tela.
Em diversos períodos da história da arte podem-se encontrar artistas que usaram dos
recursos que certos materiais ofereciam para agregar significado às suas obras, o luxo é um
destes conceitos, ao qual o material está diretamente relacionado (figura 3). Desde a arte
antiga que se encontram obras que remetem a esta ordem, materiais como ouro, pedras
preciosas, mármore, entre outros, materiais que foram manipulados a fim de traduzirem
plasticamente um pensamento, uma idéia, um conceito. “É importante também pontuar os
conceitos de ‘sagrado’ e ‘nobre’ como não universais, pois ambos estão diretamente ligados
a diversos fatores que tornam um material especial e precioso” (WANNER, 1998, p. 59).
Muitas vezes são estes conceitos que caracterizam a matéria como preciosa, e isto se
desdobra na arte. Assim também se pode ler o luxo.
É recorrente na história da arte a associação do luxuoso, do precioso, ao sagrado.
No Egito antigo as peças feitas para o uso do faraó e da família real eram de cedro, ouro,
lápis-lazúli, prata. Nos desenhos, repletos de simbolismos, a existência do rei é descrita
como parte do universo criado e mantido pelo supremo deus sol, o que, de certa forma,
justifica o luxo e a sofisticação que rodeava o soberano, afinal, este não era um ser terreno,
mas descendente direto dos deuses. As jóias imbuíam às mulheres da família real poderes
sobrenaturais, e assim lhes habilitavam a apoiar o rei no dever de manter a ordem divina
sobre a terra, somente o rei se beneficiava dos poderes mágicos inerentes às jóias usadas
pelas mulheres de sua família. Para os egípcios, a cor do ouro e o brilho de sua superfície
eram associados ao sol, e a pele dos deuses supostamente era feita de ouro. Algumas peças
que explicitam esta prática antiga fazem parte do tesouro encontrado na tumba do rei
Tutankhamon, em 1922. A esplêndida máscara de ouro maciço do faraó Tutankhamon, que
se encontrava na cabeça da múmia, é incrustada de pedras preciosas e pasta de vidro
colorido, este é um exemplo precioso de máscara mortuária que costumava ser enterrada
junto com o corpo; o esquife interno, também confeccionado em ouro maciço e ricamente
ornamentado; o segundo esquife externo, confeccionado em madeira coberto de ouro.
Nestes sarcófagos foram encontradas 143 jóias de ouro distribuídas sobre o corpo do rei,
quase todas teriam sido produzidas especialmente para os ritos funerários do rei. A
miniatura do sarcófago de Tutankhamon, peça feita de ouro, dividida em quatro
compartimentos, cada qual contendo uma miniatura do sarcófago de ouro com as vísceras
do rei enroladas em bandagens. Aqui o luxo está diretamente ligado ao sagrado, os
materiais preciosos fazem parte de um ritual que legitima a prática desta cultura.
Os artefatos feitos para uso litúrgico, em diversos momentos e diferentes culturas,
eram também feitos em materiais preciosos, peças ricamente ornamentadas que traduziam o
esplendor de sua fé. Retratos de representantes da igreja são freqüentemente suntuosos, não
sendo somente o material usado o responsável pelo teor da obra, mas também a maneira
como a figura é tratada, uma imagem dá um sentido de poder (figura 4). A arte barroca fez
uso corrente do ouro como material plástico; no Brasil, retábulos e o interior de igrejas
eram recobertos deste metal reluzente. Uma sensação de irrealidade, ou de miragem, é
provocada por esta profusão de ornatos reluzentes na “igreja toda de ouro”. O barroco foi a
arte do excesso, da ostentação e especialmente do luxo.
Deste modo pode-se ver que o sagrado muitas vezes é representado pelo material
utilizado em certas práticas. Não se celebra uma missa católica, ainda hoje, com uma taça
plástica, por exemplo. A matéria tem lugar importante nas culturas, desde os tempos mais
remotos.
Figura 4. Rafael Troya Jaramillo
Retrato de Monsenõr Marriott (1898)
Óleo sobre tela - 96 x 86 cm
Mas o que diz que certo material é sagrado? A cultura onde está inserido, a forma
como foi utilizado por este povo, os usos que fizeram dele. Mircea Eliade no texto O
Sagrado e o Profano, diz que:
Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e,
contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio
cósmico envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma
pedra; aparentemente (para sermos mais exatos, de um ponto de vista
profano) nada a distingue de todas as demais pedras. Para aqueles a cujos
olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata transmuda-se
numa realidade sobrenatural (1995, p. 18).
Uma pedra sagrada é venerada porque é sagrada e não porque é pedra; é a
sacralidade manifestada pelo modo de ser da pedra que revela sua verdadeira essência. O
que revela esta sacralidade é o uso desta pedra, o olhar que se dá para ela. E este olhar
varia em diferentes culturas, diferentes reflexões.
Mas os olhares variam, e alguns teóricos tecem outras considerações a respeito do
luxo. Para alguns autores, o luxo tem outra conotação, que não a de sagrado, defendem que
o luxo está na ordem do dispêndio, da despesa, da perda. No texto A Noção de Despesa
(1975), Georges Bataille reflete sobre o homem no mundo, sobre o consumo e sobre o que
ele chama de “despesa improdutiva”. Bataille levanta a idéia de que um mundo pacífico
que seria ordenado pela necessidade primordial de adquirir, de produzir e conservar seria
apenas uma ilusão cômoda, uma vez que o mundo em que vivemos está consagrado à
perda, e que a sobrevivência das sociedades só se faz possível devido ao preço de despesas
improdutivas consideráveis e crescentes. O que seriam para este autor as “despesas
improdutivas”? Segundo ele, um grande número de fenômenos sociais, políticos,
econômicos, estéticos, entre eles o luxo, os jogos, os espetáculos, os cultos, a atividade
sexual desviada da finalidade genital, as artes, a poesia no sentido estrito do termo são
manifestações de despesas improdutivas. É sempre a noção de excesso que está na base
dessa construção; complementa ainda sua reflexão dizendo que sempre há excesso, porque
a irradiação solar, que se encontra na origem de todo crescimento, é dada sem retorno: “O
sol dá sem nunca receber”; existe, então, um acúmulo de energia que só pode ser
desperdiçada na exuberância, no exagero, na ebulição.
O homem desempenha um papel eminente nesta cadeia de consumo; ele abre
caminho para novas possibilidades, e, por outro lado, é o homem, de todos os seres vivos, o
“mais apto a consumir, intensamente, luxuosamente, o excedente de energia” (figura 5).
Ao passo que a indústria que ele cria traz múltiplas possibilidades de crescimento,
também traz uma “facilidade infinita de consumo inútil”. Mas dentro destas duas funções, é
no consumo que permite o homem estar em acordo com o mundo: uma vez que o destino
do universo é “uma realização inútil e infinita”, o destino do homem é levar adiante esta
realização. Bataille inova o pensamento econômico vigente no período pós Segunda Guerra
Mundial. Ele percebe a diferença fundamental entre a economia de um sistema separado
(onde há o sentimento de necessidade e onde surgem problemas relativos ao lucro, mas o
crescimento parece possível) e a de uma economia que é a da massa viva em seu conjunto –
onde a energia está sempre em excesso, existe sempre o acúmulo. O problema levantado
então, é saber como, no seio dessa economia geral, é utilizado o excedente, seu uso “que é a
causa das mudanças de estrutura”.
Figura 5. Federico Del Campo (1837 – 1923)
Rosina (1887)
Óleo sobre tela 18,5 X 11,5 cm
Neste rumo de seu pensamento, o prazer estaria associado à concessão, não à regra.
O consumo estaria dividido em duas partes: uma representada pelo uso do mínimo
necessário à sobrevivência, situação relativa a certa parte da sociedade; a outra seria
representada pelas ditas “despesas improdutivas”, acima mencionadas, que representariam
atividades que teriam em si mesmas seu fim. O fato é que em cada caso citado, “a ênfase é
colocada na perda, que deve ser a maior possível para que a atividade adquira seu
verdadeiro sentido” (BATAILLE, 1975, p. 30); esta despesa ainda é destinada a adquirir ou
manter uma posição, posição esta que está diretamente vinculada a uma riqueza, à posse de
uma fortuna, com a condição de que esta fortuna seja parcialmente sacrificada por despesas
sociais improdutivas, tais como festas, jogos, objetos de arte, jóias, luxos e espetáculos. Por
exemplo:
Não basta que as jóias sejam belas e deslumbrantes, o que tornaria
possível a substituição pelas falsas: o sacrifício de uma fortuna, à qual se
preferiu um rio de diamantes, é necessário para a constituição do caráter
fascinante desse rio. Esse fato deve ser relacionado com o valor simbólico
das jóias (...). Quando em um sonho diamante tem uma significação
excrementícia, não se trata apenas de associação por contraste: no
inconsciente, tanto as jóias como os excrementos são matérias malditas
que saem de um ferimento, partes da própria pessoa destinadas a um
sacrifício ostensivo (...). O caráter funcional das jóias exige seu imenso
valor material e explica sozinho o pouco caso que se faz das mais belas
imitações, que são quase inutilizáveis. (...) Antes de tudo, fica claro que as
coisas sagradas são constituídas por uma operação de perda (BATAILLE,
1975, p. 30 – 31).
O sacrifício é compensado pelo prazer de adquirir uma peça “original”, não uma
simples cópia, “imitação barata” que não alimenta os sentidos nem aplaca o desejo de
possuir algo valioso e único. Quanto maior a perda, maior o prazer em possuir tal objeto,
pois, como se lê acima, “é somente pela perda que a glória e a honra lhe são vinculadas”.
A festa e o jogo, que também entram nesta ordem de despesas improdutivas,
significam para o homem o momento onde ele pode ser e fazer tudo aquilo que não é
possível na vida diária, tudo o que a sociedade não permite. Na festa o excesso é
justificado, e até celebrado, uma pessoa pode inclusive se transformar, personificar outra
criatura, liberar sua fantasia, agir de maneira completamente diversa da sua, e assim tem
sido desde a antiguidade, quando o homem se fantasiava, personificava animais e celebrava
as estações, as colheitas, a natureza. É neste momento que o homem deixa sua natureza
fluir e atitudes antes impensadas, agora são passíveis de acontecer, liberando instintos
socialmente controlados.
Para Hans-Georg Gadamer (1985), arte também se situa no espaço do jogo e da
festa. Este autor parte do conceito de jogo enquanto fenômeno essencial da vida e da
cultura humanas, ele diz que o jogo é um movimento que pressupõe interação, não serve a
um fim específico. “A primeira coisa que precisamos levar em conta é que o jogo é uma
função elementar da vida do homem, de tal sorte que a cultura humana, sem um elemento
de jogo, é impensável” (pág. 38). O autor enfatiza que não há jogo que esteja reduzido ao
comportamento do jogador, a condição é justamente ultrapassar pontos de vista singulares,
pois o jogo tem suas próprias regras e salienta que seus significados metafóricos referem a
uma forma de movimento:
Certamente de início o ir e vir de um movimento que se repete
constantemente - pense-se em certos ditos como “o jogo de luz” ou “o
jogar das ondas”, em que há um constante ir e vir, ou seja, um movimento
que não está ligado a uma finalidade última. Isso é notadamente o que
caracteriza o ir e vir – que nem um nem outro extremo é o alvo do
movimento, o ponto no qual ele descansa. Além disso é claro que a tal
movimento condiz um espaço de jogo. Isso nos dará bastante a pensar
quanto à questão da arte. A liberdade de movimento aventada aqui inclui
ainda que este movimento tem que ter a forma do auto-mover-se (1985, p.
38).
É um movimento que se desenrola em um incessante ir e vir, uma troca simbólica
que permite a situação acontecer. Continua o autor: “O jogo aparece então como automover-se que por seu movimento não pretende fins nem objetivos, mas o movimento como
movimento, que quer dizer um fenômeno de redundância, de auto-representação do estarvivo” (1985, p. 38). A verdadeira finalidade do jogo está no próprio jogo que, por sua vez,
nada é sem as suas encenações. Isto é, enquanto é um movimento em que se cumpre uma
tarefa que, não implicando uma solução, ou resolução, retira o seu sentido da coparticipação dos jogadores na forma de auto-apresentação inerente ao movimento lúdico.
Assim deixa de ter qualquer sentido a contraposição habitual entre a vida e a arte. Pelo
contrário, a experiência da arte confronta o existir com uma forma concreta da sua autocompreensão. Sobre este movimento existente no jogo, que pode-se transpor para o âmbito
da arte, cita-se Gadamer: “[...] tal definição do movimento do jogo significa ao mesmo
tempo que o jogar exige sempre aquele que vai jogar junto” (1985, p. 39), onde sem o
movimento do espectador a obra não se completa.
O instinto do jogo promove as realizações humanas todas: a política, a filosofia, a
ciência, a arte. O jogo nasce na área do culto e daí se desdobra em diversas instâncias.
Percebe-se que o jogo, assim como o culto ou a arte, não se efetua sem o participante,
porém, em momento algum, pode-se atribuir a existência do jogo, ou da arte, ao
participante, este simplesmente joga, permitindo que o jogo se desenrole em si mesmo.
Cita-se Gadamer neste sentido, quando ele diz que: “[...] Ou às artes plásticas, cuja função
decorativa e expressiva procede no todo de um contexto vital religioso. Um vai dar no
outro” (1985, p. 40).
Além da importância das regras prévias à construção da obra artística, outro ponto
importante na reflexão que este teórico realiza sobre a arte é o valor que ele concede ao
apreciador, continuando seu raciocínio sobre a questão do fluxo, onde a arte, ou o jogo,
não se completa sem este movimento. Toda sua exposição mostra que sem o apreciador a
arte não se realiza como tal. “A predestinação da obra como ponto de identificação do
reconhecimento, da compreensão, inclui além disso que tal identidade está ligada a variação
e a diferenças. Cada obra deixa como que para cada um que a assimila um espaço de jogo
que ele tem que preencher” (GADAMER, 1985, p. 43). Para este autor a apreciação é um
momento de co-criação, Gadamer exemplifica isso com a necessidade de concentração e de
tempo para se fruir a arte.
Apesar de situar a obra de arte na esfera do jogo, Gadamer lhe confere certa aura, e
seu pensamento vai em caminho diverso de teóricos como Georges Bataille, citado
anteriormente. Gadamer diz que:
[...] a obra de arte é insubstituível. Mesmo na era da reprodutibilidade, em
que vivemos, em que obras de arte superior chegam a nosso encontro em
excelente qualidade de cópia, isso continua verdade. Há uma resposta
antiga à questão que apenas se tem que entender de novo corretamente.
Numa obra de arte há algo como [...] imitatio. Mimese, não quer dizer aqui
imitar algo já conhecido anteriormente, mas levar algo à representação, de
modo que, desta maneira, ele se torne presente em plenitude sensória
(1985, p. 56).
Talvez esta plenitude sensória de que fala o autor possa ser considerada como a
sensação frente à obra que tem no luxo sua linguagem, sua poética. O luxo que remete ao
sagrado, ou ao profano, dependendo do olhar que se dá e da cultura onde se vive. Quando o
teórico situa a arte no âmbito da festa, o faz para mostrar sua concepção de representação, a
festa celebra, e ao fazê-lo reatualiza a celebração. Nesse sentido, ela se reatualiza a cada
ocasião em que é festejada, assim como a obra se reatualiza a cada olhar, em cada
espectador. A reatualização implica tanto sua transformação histórica quanto a
continuidade da tradição. Assim, a representação que ocorre na festa não é espelho de
alguma idéia de festa, é a própria experiência que se dá neste momento, a exemplo do
apreciador frente à obra, ou ao jogador no momento do jogo. Sobre a participação no
momento, o autor comenta: “Se há algo relacionado com toda a experiência da festa, este
algo é o que impede todo isolamento de alguém frente a outrem. Festa é coletividade e é a
representação da própria coletividade, em sua forma acabada” (1985, p. 61). Neste sentido
pode-se compreender como este autor relaciona festa à arte, no sentido da co-participação,
do não isolamento, uma vez que a obra é incompleta sem o apreciador. E ele segue em sua
reflexão que vai em sentido oposto ao que Bataille coloca sobre o mesmo assunto. Gadamer
fala que: “Se arte, de fato, tem algo a ver com festa, então isso quer dizer que ela tem que
ultrapassar o limite desta definição, [...] e com isso também os limites do privilégio
cultural, do mesmo modo como se deve ficar imune às estruturas comerciais de nossa vida
social” (1985, p. 75). Nesta citação o autor situa a arte longe do sentido da perda, mas como
algo inerente à vida, não há separações.
O luxo na arte (figura 6) pode ser compreendido e considerado em diversas
instâncias, cabe ao leitor da obra apreender seus significados em sua própria experiência.
Não regras e não há limites, a simbologia varia de acordo com o tempo e lugar onde ela é
lida. Um retrato pode ser uma mera imagem, pode ser um cânone, pode ser uma relíquia,
depende de quem o vê. Assim como a pedra só é sagrada para quem a entende desta
maneira, apesar de ser sempre uma pedra, o luxo na arte tem a mesma conotação, depende
de quem o olha.
Figura 6. Alberto Lynch (1851 – 1936)
Retrato de Garota (1890)
Óleo sobre tela, 55 X 38cm
REFERÊNCIAS
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1975.
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CALEIDOSCÓPIO, MONTAGEM E SINTOMA.
Academicismo e Modernismo na América Latina. [1]
Rosângela Cherem[2] e Rachel Reis de Araújo[3]
Participantes do Grupo de Pesquisa: Ana Lúcia
Gil, Kamilla Nunes, Letícia Weiduschadt e
Rachel Reis de Araújo[4]
RESUMO
Através de quatro pinturas de artistas latino-americanos que privilegiam cenas de
interior e tematizam o banal, observa-se que as mesmas se constituem como uma
recorrência bastante cara ao modernismo, antes mesmo do que se convencionou
demarcar como advento das vanguardas. Interrogando a noção de ordinário e
extraordinário, trata-se de sensibilidades e percepções que, vindas especialmente de
temáticas pictóricas setentrionais e francesas deslizaram para o romantismo,
sobrevivendo mais adiante de forma caleidoscópica e anacrônica como lapso que se
repete.
PALAVRAS-CHAVE: História da Arte; pintura; sensibilidades e percepções; AméricaLatina.
Entre as abordagens privilegiadas pelo modernismo situa-se a inclusão do banal
e do ordinário, possivelmente como parte de uma sensibilidade anterior ao romantismo
e que se visibiliza com o advento da vida privada, da intimidade e do psicológico,
acabando por se desdobrar e potencializar na mesma proporção em que a tradição
pictórica é posta em xeque em proveito das acentuadas experimentações artísticas
verificadas especialmente a partir da segunda metade dos século XIX. Por sua vez, em
Walter Benjamin vamos encontrar certos fenomenos cotidianos e inscritos na ordem
[1]
Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina.
Rosângela Miranda Cherem. Professora do Departamento de Artes Plásticas do Centro de Artes,
UDESC.
[3]
Acadêmica do Curso de Licenciatura em Artes Plásticas. Ceart / UDESC. Bolsista PROBIC / UDESC.
[4]
Acadêmicas participantes do Projeto Academicismo e Modernismo na América Latina, do mesmo
grupo de pesquisa das orientadoras Rosângela Miranda Cherem (coordenadora do projeto) e Sandra
Makowiecky (docente participante), além de Kamilla Nunes bolsista PROBIC, acadêmica do curso de
Licenciatura em Artes Plásticas; Letícia Weiduschadt, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de
Licenciatura em Artes Plásticas; Ana Lúcia Gil, bolsista PROBIC, acadêmica do curso de Bacharelado
em Artes Plásticas e Rachel Reis de Araújo, bolsista voluntária, acadêmica do curso de Bacharelado em
Artes Plásticas.
[2]
1
rotineira do homem comum e sem qualquer notoriedade alçados à condição de
acontecimento extra-ordinário através da memória e da imaginação criativa: Quem faz
com que lhe sirvam o café da manhã num quarto de hotel em París, em pequenas
bandejas prateadas, guarnecidas com bolas de manteiga e geléia, nada sabe sobre
ele”1
Fascinado pelos efeitos de cintilação que se escondem na vida moderna
encobertos sob o manto do banal, Benjamin construiu um campo onde a imagem pôde
ser problematizada recorrendo aos recursos de montagem que lhe permitiam pensar em
des-tempos. Interessado em abordar menos os deslumbramentos da última novidade ou
conceder a última palavra ao presente e mais em arriscar-se pelo campo da teoria e
crítica de arte, procurava conjugar as plausibilidades e evidências do cotidiano vivido
aos afetos explicativos e derivas ficcionais em que ele mesmo podia se situar como
herdeiro e tributário das sensibilidades e percepções de seu tempo:
“O primeiro armário que se abriu por minha vontade foi a cómoda. […] Nada
superava o prazer de mergulhar a mão em seu interior tão profundamente quanto
possível. E não era apenas pelo calor da lã. Era “tradição “enrolada naquele interior
que eu sentía em minha mão e que, desse modo me atraía para aquela profundeza. […]
Pois agora me punha a desenrolar a ‘’tradição” de sua bolsa de lã […] ao ser
totalmente extraída de sua bolsa a “tradição” deixava de existir. Não me cansava de
provar aquela verdade enigmática:que a forma e o conteúdo, que o invólucro e o
interior, que a “tradição” e a bolsa, eram uma única coisa” 2
Este artigo é parte integrante da pesquisa sobre Academicismo e Modernismo na
América Latina e está voltado para uma relação entre algumas imagens pictóricas e a
problemática da banalidade como operação anacrônica que sobrevive e se materializa
no interior do prório pensamento plástico. Os artistas que aqui comparecem são Fídolo
Alfonso González (Bogotá, 1883 – Sibaté, 1941), Francisco Antonio Cano Cardona
(Yarumal, 1865 – Bogotá, 1935), Eladio Vélez (Itagui, Antioquia, 1897 – Medellin,
1967), Cristóbal Rojas (Cúa 1858 - 1890, Caracas).
1
BENJAMIN, Walter Benjamin. Imagens do Pensamento. In: Rua de Mão Única. Obras
Escolhidas, vl. II. São Paulo: Brasiliense, 1995, p. 214.
2
___________. Infância em Berlim. In: Rua de Mão Única. Obras Escolhidas II, vl.. São
Paulo: Brasiliense, 1995, p.122.
2
1- O CALEIDOSCÓPIO E AS CINTILAÇÕES DO ORDINÁRIO.
Diversos textos de Walter Benjamin registram os novos recursos técnicos e
sensibilidades estéticas que atingiam os acontecimentos cotidianos e afetavam
percepções do homem moderno. Mas o que se pretende destacar aqui, e conforme
assinala o historiador Georges Didi-Hubermann3, é uma maneira de apreensão do
tempo-espaço tal como um caleidoscópio. Nesta perspectiva Benjamin não apenas tinha
conhecimento do objeto inventado em 1817 por Alphonse Giroux, como recorreu ao
caleidoscópio como um modelo teórico para abordar as variedades e combinações da
modernidade. Assim como no tubo de imagem polido ficavam guardados pedaços
desfiados de tecido, pequenas conchas, plumas, poeiras e cacos de vidro, a passagem do
século XIX ao XX poderia ser lida pela moda, os panoramas, a fotografia, as
exposições, o ambiente privado, os reclames, o cinema.
Do mesmo modo que aquele objeto é constituido por pequenos fragmentos de
coisas ordinárias e comuns que se combinam e recombinam, formando a cada vez que é
manuseado uma imagem diferente da anterior, também a própria modernidade não mais
poderia ser constituída pelo objeto único da pintura feita somente por quem tivesse o
dom e um repertório erudito repleto de simbologia, advindo da tradição onde o belo e o
estilo eram balizas que não podiam ser deixadas de lado. Em outras palavras, nesta
estreita relação com o extraordinário e o fabuloso como efeito, Benjamin voltou-se para
os acontecimentos da modernidade.
Sua abordagem corresponde a um tempo que colhia os frutos da sociedade
industrial e da vida urbana, quando as viagens eram facilitadas pela locomotiva, quando
emergia um novo patamar de conforto facilitado pelo acesso aos novos produtos para os
lares, quando a noção de consumo e diversão se redefiniam e a reprodutibilidade
técnica, notadamente através da fotografia e do cinema, ressignifica as imagens. Tratase de uma época onde a linearidade e a continuidade estava sendo substituída pelo
intermitente, pelo que cintila num momento e logo desaparece num movimento fugaz e
incessante. Dispensando a memória e a experiência em prol das vivências, o
caleidoscópio continha por princípio o movimento constante e o reembaralhamento
infinito
3
das
formas
cujas
semelhanças
seriam
mantidas
um
processo
de
DIDI-HUBERMAN, Georges. Ante el tiempo. Córdoba: Adriana Hidalgo, 2006, p. 125.
3
reprodutibilidade, sendo assimiladas com sentidos semelhantes aos das novidades pelas
crianças, ou seja, sem vínculos de temporalidade contínua com o passado.
Tal entendimento permite que se possa considerar a temática do ordinário no
modernismo como uma espécie de potência imagética advinda de um pretérito.
Pensando esta espécie de sobrevivência póstuma que emerge nas imagens artísticas é
possível considerar o exemplo de telas como A Leiteira de Vermeer e O Trapaceiro de
Georges de La Tour. Num caso, sua cenografia registra um cotidiano suspenso na
banalidade espontânea de um gesto através do qual
uma mulher
derrama
comedidamente o leite de uma jarra e com o qual parece preparar um alimento. No
outro caso, pessoas comuns se divertem, enganam e seguem jogando desavisadamente.
Apesar do forte sentido moral, nada nelas remete ao fabuloso ou ao excepcional, tudo
parece se passar num instante de silêncio e anonimato.
Mais de dois séculos adiante, uma mulher arruma a mesa, enquanto
noutra tela pessoas se divertem numa taberna. O que incide em ambas as cenas e
permite estabelecer uma relação com as anteriores é a noção de sintoma como aquilo
que interroga a imagem em sua relação com o tempo, interrompendo o fluxo regular
das coisas e tornando-se uma espécie de lei avariada e subterrânea que persiste como
retorno de uma enfermidade. Nem conceito semiológico, nem conceito clínico, trata-se
de uma
noção operatória que recusa submissão ao tempo eucrônico, destacando-se
como aparição de uma latência que conjuga diferença e repetição, proximidade e
distância, interior e exterior, imobilidade e aceleração4.
Figura 1. Jan Vermeer
A Leiteira (1660-1661)
Óleo sobre tela. 45,5 x 41 cm.
4
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., pág. 119 e seg.
4
Figura 2. Georges de La Tour
O Trapaceiro (1630)
Óleo sobre tela, 106 x 146 cm
Figura 3 Fídolo Alfonso González
Pondo a Mesa (1910)
Óleo s/ madeira, 27,5x35 cm
Figura 4. Cristóbal Rojas
A Taberna (1887)
Óleo s/ tela, 212 x 272 cm.
5
2-MONTAGEM, EMPILHAMENTO E ANACRONISMO. Problematizando
o manuseio do caleidoscópio através de um movimento incessante que produz tanto o
sobressalto e a queda de formas como os choques e as recomposições, a imagem surge
como uma remontagem visual ou reconfiguração que testemunha um tempo de
perturbações e turbulências, variações e alterações. Eis uma espécie de noção operatória
pela qual Benjamin esboçava não apenas um modelo ótico mas um novo modo de
conceber a História da Arte, voltada para a leitura da catástrofe insidiosa do mundo,
sendo
o passado um arsenal de escombros e fragmentos. Recusando a retenção
temporal, a transformação progressiva e historicista, bem como as tramas hierarquizadas
com pretensões à objetividade, para ele os acontecimentos como as imagens, só
poderiam ser pensados pelos procedimentos de recombinação e montagem.
A este respeito é importante lembrar que, interrogando os regimes de verdade
que sustentam a história da arte como disciplina, Aby Warburg e Walter Benjamin não
apenas comparecem como interlocutores favoráveis ao recurso da montagem, como
caminham na contra-mão dos manuais que simplificam a relação vida e obra ou que
tomam a obra de arte como mera expressão de sintomas culturais e políticos ou meros
componentes de contextos históricos e econômicos, bem como os catálogos que
reduzem a obra aos estilos e escolas:
La imagen no es ni um simple acontecimiento em el devenir histórico ni um
bloque de eternidade insensible a las condiciones de esse devenir. Posee –o más bien
produce- uma temporalidad de doble faz [...]. esta temporalidad de doble faz fue dada
por Warburg, luegfo por Benjamin – cada uno com su próprio vocabulario-, como la
condición mínima para no reducir la imagen a um simple documento de la historia y,
simetricamente, para no idealizar la obra de arte em um puro mmomento de lo
absoluto. Pero las consecuencias eran graves: esta temporalidad de doble faz debía ser
reconocida sólo como productora de uma historicidad anacronica y de uma
significacíon sintomática5.
Trata-se de considerar a permanência das formas menos como o
herdado e
que foi
mais os desdobramentos das possibilidades resultantes. Interrogando a
estrutura do tempo, sob a variedade iridescente do caleidoscópio encontra-se a própria
5
DIDI-HUBERMAN, Georges. Op. cit., pág. 119.
6
modernidade em seus procedimentos intempestivos, extemporâneos e anacrônicos,
ainda que arriscando-se num dado momento a cair e partir-se como se fora o próprio
objeto deixado na mão da criança. O que emerge são as formas tornassoladas e o
elevado poder de configuração dos detritos e da cintilância dos resíduos. No movimento
errático das dessimetrias multiplicadas, a estrutura inesgotável da imagem moderna é
dada pelo caráter ilusório da novidade e pela constante desmontagem interior das coisas
conjugada com elementos díspares. Caso bastante emblemático se apresenta numa cena
onde se reconhece um ferro elétrico para passar roupas, um entre os muitos utensílios
propalados como parte das facilidades oferecidas pela modernidade:
Sobre o ferro elétrico surgido em 1882, a história registra que na época do seu
lançamento ele não obteve o sucesso que seu inventor esperava, chegando mesmo a ser
quase esquecido pelas donas de casa. O motivo desse fracasso comercial deveu-se ao
fato de que a maioria das residências daquela época não dispunha de rede elétrica...
Dez anos mais tarde (1892) apareceram os ferros de passar com resistência. Eles eram
mais práticos, eficientes e seguros; aliavam limpeza ao controle de temperatura,
permitindo que sua elevação ou diminuição fosse feita sem perda de tempo; podiam ser
usados em qualquer local que dispusesse de eletricidade; e, sobretudo, eram oferecidos
aos interessados a preço acessível. 6
6
Fernando Kitzinger DANNEMANN http://www.fernandodannemann.recantodasletras.com.br
7
Figura 5. Eladio Vélez
A Passadeira, 1938
Óleo s/ tela, 99x79 cm
Figura 6. Edgard Degas
A Passadeira.
3- O SINTOMA COMO LAPSO QUE SE REPETE. Abordando a repetição das
imagens artísticas na lógica do movimento constante, Didi-Huberman considera que a
obra é sempre portadora de algo já visto que volta subterraneamente como fantasma,
atravessando e mesclando diferentes temporalidades pelos arremessos fragmentários da
memória. Suspensa entre dois começos, a imagem se refere tanto aquilo que se faz
8
bloco de afecções e sensações num dado momento, como também aquilo que é trazido
pelas forças pretéritas que não cessam de retornar como sobrevivência póstuma ou
potência associada ao rebatimento do passado no presente, questão que confere à
imagem um caráter de espectralidade. Assim, na contradança da cronologia, as imagens
podem ser pensadas como portadoras de impurezas e descontinuidades temporais, sendo
que para alcançá-las é preciso recorrer aos procedimentos de montagem, construindo
séries capazes de revelar a sobrevivência de um recalque. Pelos efeitos de cintilação e
em ocasiões de proximidade empática acontece uma espécie de dobra temporal, através
da qual surge o sintoma.
Desdobrando esta abordagem parece conveniente considerar o conceito
psicanalítico de alteração, através do qual a criança como o artista elaboram o
assassinato da coisa e constroem sua simbolização através da metamorfose das formas,
sendo esta mesma simbolização inerente à mudança de um estado para outro e
equivalente a um signo lingüístico constantemente esvaziado e ressignificado7. Na
relação próximo-distante, o recalque é aquilo que, não podendo calar, retorna como
desvio e faz despontar a criação como elaboração da perda e do luto, ou seja um
trabalho de esquecimento que se mantém como derivação infinita da matéria.
Por sua vez, em clave pós-estruturalista, repetir não tem equivalente nem
semelhante, pois repetir é sempre um irrecomeçável. Assim, Deleuze8 assinala que a
diferença se constitui como aquilo que nem está subordinado ao idêntico, nem é sua
negação, nem se refere à oposição nem se constitui como contradição, visto que se trata
de preservar a potência como poder do diverso. Distinguindo a repetição da simples
generalidade, considera que enquanto uma obedece leis com permanências e variáveis,
possibilitando que um termo possa ser traduzido por outro e o particular possa ser
reposto e substituído, posto que é indeterminado e indiferenciado, a outra se coloca
como vibração secreta.
7
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do prazer. Coleção Obras completas, vl XXVIII.
R.J.:Ed. Imago,1976.
8
DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. R.J.: Graal, 2006
9
Figura 7. Francisco Antonio Cano Cardona
A Costureira, 1891
Óleo s/ tela, 50x35 cm
Figura 8. Jean Baptiste Chardin
A dama que prepara o chá
Óleo sobre tela, 80 x 101 cm
Quando a repetição e o retorno tornam-se potência, gravitações e saltos são
inventados para agir em função daquilo que não se é e nem se tem. Se não se pode
trocar a alma e se os duplos como os ecos não possuem equivalência ou semelhança, do
mesmo modo não existe acréscimo numa segunda ou terceira vez, elevando-se a
primeira vez à enésima potência. Sendo a arte o lugar onde as diferentes repetições
coexistem, a repetição é diferença sem conceito, não porque se constitui como
reprodução do mesmo e sim porque é arremesso em direção ao outro. Assim, os
10
disfarces revelam sintomas que operam por deslocamento, potencializando uma
realidade mais profunda, impossível tanto de reter como de alcançar.
11