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Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ A CABALA E A CULTURA CRIPTOJUDAICA NA DIÁSPORA ATLÂNTICA DOS SEFARDITAS Marcos Silva* Carolline Acioli Oliveira Andrade** Clesia de Santana Santos*** Genisson Melo dos Santos**** Isis Carolina Garcia Bispo***** RESUMO: O texto procura abordar uma dimensão pouco estudada da cultura dos cristãosnovos de origem sefardita na diáspora Atlântica dos tempos modernos. Após demonstrar que o cabalismo era um aspecto fundamental na cultura dos judeus portugueses antes da expulsão da Península Ibérica ao final do século XV, apresenta o processo histórico que levou ao fortalecimento da influência da Cabala sobre a cultura dos cristãos-novos judaizantes. Em seguida, relaciona alguns exemplos de cristãos-novos praticantes da Cabala e conclui construindo uma pequena hipótese explicativa para a relativa ausência nos estudos históricos especializados desse aspecto da religiosidade dos cristãos-novos. Palavras chave: Criptojudaísmo, Cultura sefardita, Cabala, Diáspora Atlântica dos sefardita THE KABBALAH AND CRIYPTJEW CULTURE IN ATLANTIC SHEPHARDIC DIAPORA ABSTRACT: The text seeks to address an understudied dimension of the culture of New Christians with sephardic origin in the Atlantic diaspora of modern times. After demonstrating that the cabala was a key issue in the culture of the Portuguese Jews before the expulsion from the Iberian Peninsula at the end of the fifteenth century, presents the historical process that led to the strengthening of the influence of Kabbalah on the culture of the New Christian Judaizers. Then, relates some examples of New Christians praticantes of Cabala and concludes building a small explanatory hypothesis for the relative absence in the historical stedies specialized in this aspect of religiousness of new Christians. Keywords: Cryptjew; Sephardic Culture, Kabbalah, Sephardic Diaspora of Atlantic. Introdução A história dos judeus em Portugal no final da Idade Média, meados do século XV, é tema bastante abordado e tem se concentrado nos processos de segregação atenuada em vista da proteção dos reis que garantiram a existência de mais de uma centena de comunidades organizadas. Os historiadores também destacam a participação * Professor Adjunto na Universidade Federal de Sergipe. Doutor em História da Educação/UNIMEP. silva.marcos@uol.com.br. ** Acadêmica de História. Bolsista do PET/UFS História – Universidade Federal de Sergipe. carolline1992@hotmail.com. *** Acadêmica de Letras. Bolsista de Iniciação Científica – PICVOL/UFS. Universidade Federal de Sergipe. sabrabella@hotmail.com. **** Acadêmico de Geografia. Bolsista de Iniciação Científica – PICVOL/UFS. Universidade Federal de Sergipe.genisson_hc@hotmail.com. ***** Acadêmica de História. Bolsista de Iniciação Científica – PIBIC/UFS. Universidade Federal de Sergipe. isisgarciaufs@yahoo.com.br. Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ de judeus ilustres em altos postos da corte, misturados com a aristocracia, e na economia portuguesa, sobretudo como mercadores e financistas. Além da necessidade de nuançar o perfil social da comunidade judaica de Portugal, dividida entre uma oligarquia poderosa de médicos, grandes mercadores e funcionários e o povo comum; artesãos e artífices (alfaiates, ourives, ferreiros, armeiros e sapateiros), pequenos comerciantes e os indigentes, é importante destacar o substrato cultural desta comunidade. (BOXER, 2002, p.25-26) Mesmo “à beira de um naufrágio cultural”, segundo expressão de Fernand Braudel, como o que aconteceu no final do século XV com os sefarditas, os judeus salvaguardam “a sua personalidade de base. Permanecem no coração das suas crenças, no centro de um universo do qual nada os desaloja”, especialmente na prática de sua religião. Este seria o garante de uma civilização judaica, autêntica, que se irradia, resiste, aceita e recusa, apesar de relativamente enraizada nas outras e movimentando-se seguindo o curso das mesmas, formando uma verdadeira civilização de diáspora. (BRAUDEL, 1995, p.166). Características da cultura sefardita em Portugal A cultura da comunidade judaica de Portugal, no meio século que antecedeu à diáspora sefardita, apresenta algumas características específicas que devem ser consideradas para o correto entendimento do processo histórico-cultural vivenciado pelas comunidades da diáspora. Na explicação de Carsten L. Wilke, a “relativa fraqueza da infra-estrutura cultural da comunidade judaica portuguesa se deve à proximidade dos centros espanhóis, para onde acorriam os jovens portugueses para estudarem nas importantes yeshivas de Castela.(WILKE, 2009, p.49) Por outro lado, este quadro não pode ser estendido a todo o país, uma vez que a capital, Lisboa, que contava em meados do século XV com uma população de cerca de 40 mil habitantes, muito maior que a segunda cidade do reino, Porto, com no máximo 8 mil habitantes, era uma cidade dinâmica e que na época abrigava a única Universidade do Reino, fundada por D. Diniz em 1290. Nesta linha de raciocínio, o filósofo português João Vila-Chã afirmou que, nos finais do século XV, dentre as comunidades judaicas, a comunidade de Lisboa era considerada como um dos centros culturalmente mais proeminentes em toda a Península Ibérica. (HEBREU, 2001) 238 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Porém, não há porque negar a influência cultural decisiva da comunidade judaica da Espanha. Outra característica significativa da cultura da comunidade judaica portuguesa foi “o alto grau de interpenetração dos saberes religioso e profanos”, exemplificado, sobretudo na obra de Isaac Abravanel. (HEBREU, 2001, p.50) Fernand Braudel acrescenta mais uma característica cultural peculiar da comunidade judaica de Portugal, qual seja, seu entusiasmo pela imprensa. Não foi a toa que a introdução da imprensa em Portugal foi uma realização do espírito empreendedor dos judeus, que a trouxeram da Itália e a instalaram entre 1485 e 1487, sendo o primeiro editor Samuel Gacon, que publicou obras em hebraico. Para eles, “fundar uma tipografia, é obra pia”. Na sua explicação: “A imprensa, para além de ter servido as suas querelas, serviu aos Judeus como elemento de união. Estes livros decisivos, facilmente multiplicados, quem poderia queimá-los ou seqüestrá-los todos de uma só vez?” (BRAUDEL, 1995, p.167) O corolário desse estado de coisas foi o desenvolvimento de uma cultura literária entre os judeus portugueses, a tal ponto deles serem os introdutores da imprensa em Portugal ainda em 1487, como se verá a seguir. De um modo em geral, seguindo proposta de Marc D. Angel, o currículo nas escolas das comunidades judaicas sefarditas incluía, além do estudo da Torah e do Talmud, duas disciplinas principais, a Halakhar, a lei judaica, e a Kabalah, o misticismo judaico. (ANGEL, 1991) A lei judaica determinava a estrutura e a vida das comunidades e o misticismo guiava a busca individual por piedade. Os dois aspectos, o legalismo e o misticismo, atuando de forma inter relacionada e interdependente, moldavam uma visão espiritual de mundo unificada. 1 1 Entre os séculos III e IV, durante o cativeiro da Babilônia, surgiu o Sefer Ietzirah (Livro da Criação), o qual já apresentava uma constituição dos “32 caminhos místicos” da Cabala (10 mandamentos somados às 22 letras do alfabeto hebreu). A partir daí se esboça o que será um dos princípios da Cabala: a busca da presença de Deus por meio dos números e das letras. No Medievo, esses ensinamentos místicos são cultivados por duas figuras principais: Abrahão b. David de Posquières e seu filho, Isaac O Cego (m.c. 1235), na Provença (sul da atual França). Mas, o marco definitivo tse deu no século XIII, na Espanha. Nessa época surgiu o Sefer ha-Zohar, que estabeleceu as principais diretrizes da Cabala. Alguns aspectos presentes na obra são o panteísmo (influência neoplatônica), o teísmo, elementos de feitiçaria e demonologia medievais, unidos a um sentimento nacionalista judaico. A Cabala era uma mistura de tradição oral (a interpretação de textos sagrados) e especulações e preceitos místico-esotéricas da filosofia religiosa judaica, influenciados por outras doutrinas. Com o Zohar (Livro do Esplendor), a Cabala deixa de ser um movimento organizado e transforma-se numa doutrina sistematizada. Apesar disso, o Livro do Esplendor não foi sacramentado de imediato, antes, seria necessário metade de um século para que ele fosse aceito, e não sem hesitações. Talvez essa resistência por parte dos líderes judaicos tenha acontecido 239 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Na explicação de Gershom Scholem, as forças criativas oriundas de novos estímulos religiosos, que não tinham condições de se expressar por meio do judaísmo haláchico, se manifestaram no movimento cabalístico. A Cabala influenciou as comunidades judaicas da Península Ibérica ao longo de mais de dois séculos, desde quando se instalou no círculo rabínico de Gerona, na Catalunha, no início do século XIII e daí se espalhou entre os sefarditas. (SHOLEM, 1989, p. 5) Este movimento, importado do Sul da França, recebeu a dupla influência da antiga tradição gnóstica judaica e das tendências filosóficas da época, notadamente o neoplatonismo. Esse aspecto filosófico da Cabala talvez explique porque em Portugal a mesma se disseminou não apenas entre os pobres como Leon Poliakov defende para o caso da Espanha. Segundo ele, existia um conflito interno nas comunidades judaicas da Espanha, tanto social quanto religioso, pois a oposição entre o relaxamento e indiferença religiosa e a piedade tradicional correspondia à oposição entre ricos e pobres. Enquanto as classes abastadas estavam abertas à influência do racionalismo greco-árabe, as classes populares desenvolveram o misticismo da Cabala e o messianismo. (POLIAKOV, 1996) Em Portugal, ao contrário do quadro desenhado por Leon Poliakov para a Espanha, encontramos indivíduos da mais fina aristocracia judaica, como Dom Isaac Abravanel e seu filho Judá Abravanel, entre os estudiosos dos segredos da Cabala e adeptos do neoplatonismo. Além disso, no principal centro de cultura da época renascentista, a Itália, pensadores como Giovanni Pico della Mirandola e Egidio de Viterbo, se interessaram pela Cabala e seu método simbólico de interpretação da realidade. J. Lucio D’Azevedo mostra que, efetivamente, a Cabala gozou de uma aceitação generalizada entre muitos intelectuais renascentistas. Em suas palavras: Com a paixão da arte, o desejo de saber invadia os espiritos de escol, e os doutos da época, saturados já das linguas clássicas, voltavam também para o hebraico sua attenção. Isso lhes revelou um thesouro de poesia e de especulações philosophicas, accumulado por séculos, o qual, patente só aos iniciados, e occulto pelo obstáculo da lingua, a imprensa agora divulgava,e o trabalho diligente ia facultando aos estudiosos. A Cabala, principalmente, pseudo sciencia, que procurava interpretar os innumeros cryptogrammas, existentes, diziam os adeptos, na Biblia, e por tal meio descortinar os mysterios do porvir, a por conta do caráter contraditório da obra: ao mesmo tempo em que se apresenta como defensor da religião tradicional regulamentada pelo Talmud, coloca-se acima dessa tradição na medida em que afirma a superioridade da doutrina esotérica sobre os estudos do Talmud. 240 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Cabala tinha particular seducção, nesta época de immoderado gosto pelas sciencias herméticas, e em Itália, Allemanha e França eram em quantidade os seus cultores. D'ahi resultou o maior apreço das classes illustradas pela raça perseguida, e para esta a consciência mais viva do seu valor, com o redobrar dos anhelos que lhes são caros, e que o ínfimo dos seus membros jamais de todo abandonou. (D’AZEVEDO, 1922, p.67-68) Grosso modo, este era o cenário cultural das comunidades sefarditas de Portugal na época da expulsão. Os aspectos políticos, econômicos e sociais desta catástrofe para os judeus da Península Ibérica já foram bastante analisados. Para este estudo, interessa perceber os aspectos culturais do acontecimento. A esse respeito, é interessante a opinião de Marc D. Angel, que analisou o significado cultural da expulsão dos judeus da Península Ibérica. Segundo ele, a expulsão foi um ponto crítico de viragem na história dos judeus sefarditas. Após séculos de tradição espiritual e intelectual na Península Ibérica, as gerações que se seguiram à expulsão tiveram de integrar suas tradições culturais em novas circunstâncias, influenciadas pelos novos ambientes para onde emigraram, produzindo novos insights sobre o significado da vida judaica. (ANGEL, 1991, p. 9) A cultura sefardita na Diáspora A diáspora sefardita ao redor da bacia do Mediterrâneo e do Atlântico formou uma complexa rede de comunidades, unidas por interesses comerciais e culturais. Os destinos das migrações, a partir do final do século XV, foram múltiplos: o norte da África (Fez, Arzila e Tânger), o Império Turco, destacando-se Constantinopla e Salônica, o Oriente e, a partir de uma primeira parada em Antuérpia ou Amsterdam as rotas de fuga se dirigiam para a França, Inglaterra, Itália, Hamburgo e o norte da Europa. A conseqüência foi não apenas o desenvolvimento econômico. No século XVI, além do comércio, os sefarditas passaram a se destacar internacionalmente em ramos como o da medicina, da literatura, das finanças, da ciência, da filosofia, nas Universidades e na imprensa. Em realidade, a primeira tarefa intelectual que se colocou para os líderes das comunidades na diáspora após a expulsão foi interpretar as circunstâncias desnorteadoras em que eles próprios se encontravam. (ANGEL, 1991, p. 9) 241 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Assim, alguns elementos essenciais vão caracterizar a cosmovisão 2 dos sefarditas neste período: A preocupação com o propósito e significado do exílio, o que levou alguns a buscarem numa interpretação do significado religioso da história uma perspectiva de compreensão desta nova etapa de sua existência. Outros buscaram saída numa perspectiva mística, daí a proliferação da Cabala entre as comunidades do exílio. 3 O messianismo foi a alternativa mais acalentada.4 Houve também aqueles que buscaram uma explicação racionalista. Outros elementos constituintes desta cosmovisão foram o pensamento de vanguarda, a atitude de resistência cultural e uma estética aprimorada. Comentando também esta “convulsão na consciência judaica” Gershom Scholem explicou que, como conseqüência da combinação entre misticismo e apocalipse messiânico, a Cabala tornou-se uma “força histórica de grande dinamismo”, vindo a penetrar em muitas áreas da fé e dos hábitos populares. Uma corrente de interesse pela Cabala desenvolveu-se na diáspora, destacando-se as cidades de Ferrara e Veneza, na Itália, Salônica, na Turquia e, sobretudo, Safed, em Eretz Israel, que se tornou, a partir de 1530, o centro espiritual dos sefarditas por duas gerações. (SCHOLEM, 1989, p. 61-63). Ao longo do século XVI formaram-se círculos literários, com atividade editorial própria, nas cidades italianas de Veneza e Ferrara. Em função da produção literária dos 2 Cosmovisão no sentido de um conjunto de pressuposições que alguém sustenta sobre a formação básica do mundo e que fornece explicação sobre a realidade primordial, a origem da vida, sobre o ser humano, sobre a morte, sobre padrões de comportamento e sobre o significado da história humana. O conceito será tomado como o elemento central que desempenha um papel diretriz na vida cultural e identidade de um povo. 3 Com a posterior migração dos judeo-espanhóis para a Palestina, formou-se um núcleo de influentes cabalistas em Safed. Porém, a divulgação dos ensinamentos da Cabala às massas derivou movimentos de “falsos mestres”. Foi em Safed que ocorreu a transformação da Cabala, a partir de uma tendência caracterizada pela busca do êxtase e da liberdade. Foi nesse contexto que dois cabalistas se destacaram: Cordovero e Isaac Luria. Este último viria a ser o grande formador de opiniões durante a Diáspora Sefardita. 4 Comentando também as reações dos sefarditas à catástrofe de 1492, Rachel Elior afirmou que a expulsão foi percebida como parte de um processo mais amplo, interpretada pela maioria de seus líderes em termos religiosos, despertando tendências messiânicas nas gerações pós-expulsão. A reação espiritual dos exilados se deveu à propagação do Zohar, revelando os segredos cabalísticos e gerando esforços para apressar a vinda do messias. In: ELIOR, Rachel. Messianic Expectations and Spiritualization of Religious Life in the Sixteenth Century. Revue des Études juives. CXLV (1-2), janv.-juin. 1986, pp. 35 242 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ membros destes círculos, os estudiosos falam de um “movimento humanista judaicoportuguês”.5 Muito mais do que a adesão ao humanismo renascentista do quinhentismo, os judeus sefarditas procuravam mesmo era preservar sua experiência por meio da produção literária. Legítima estratégia de resistência cultural em face da coerção, as obras produzidas em meados do século XVI podem revelar aspectos essenciais da cultura e identidade deste povo, conforme se consolidou na diáspora. Segundo Carsten L. Wilke “as publicações de Ferrara ligavam assim a vida religiosa dos cristãos-novos, regressados ao judaísmo, às suas fontes medievais.” (WILKE, 2009, p. 110) Isto significa que elas refletiam o ambiente cultural em que estavam inseridos os sefarditas da diáspora. Em função disso, torna-se válida a hipótese defendida por Helder Macedo de que a novela Menina e Moça, de Bernardim Ribeiro, uma importante obra da literatura portuguesa que foi publicada na prensa judaica de Ferrara, é uma alegoria de cunho cabalista.6 O questionamento recorrente é o seguinte: “por que motivo um impressor cristão-novo no exílio, com os prelos ao serviço do proselitismo judaico, se interessou pela publicação das obras de Bernardim?” Sem dúvida o tema do exílio, o misticismo, o pessimismo, a expressão esotérica, tão comuns ao contexto sefardita da época, refletemse na novela de Bernardim Ribeiro. (FRANCO, 2007, p. 28) Nesta época, a leitura era vista como uma atividade perigosa, demonizada pela Igreja Católica. “Em Veneza, no fim do século XVI, por exemplo, um trabalhador do ramo da seda foi denunciado à Inquisição porque “lê o tempo todo”, e um ferreiro de espadas porque ‘fica acordado a noite inteira lendo.’”(BRIGS; BURKE, 2004, p. 70) Em função disto foi que Moshe Lazar, em seu texto sobre o judaísmo dos sefarditas forçados à conversão ao catolicismo, afirmou que os inquisidores e as instituições inquisitoriais iniciaram suas ações com a queima de manuscritos e livros 5 Na metade do século XV, a invenção dos caracteres móveis por Gutenberg desempenhou um importante papel na difusão do humanismo, como também na disseminação do movimento da Reforma. Fernand Braudel estima que o número de livros que foram produzidos na Europa no período anterior a 1500 atingiu uma “tiragem global de 20 milhões de exemplares.” E, para o século XVI, numa Europa cuja estimativa populacional ao final do século é de no máximo 100 milhões de habitantes, Braudel calcula uma tiragem de 140 a 200 milhões de livros. O que a prensa gráfica trouxe foi a possibilidade de autodidatismo para as pessoas. Cf. Fernand Braudel. Civilização Material, Economia e Capitalismo: Séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1995, pp. 363-366. 6 Helder Macedo escreveu um ensaio instigante defendendo sua tese polêmica intitulado: “Do Significado Oculto da Menina e Moça”, lançado pela Editora Moraes, em Lisboa no ano de 1977. 243 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ para impedir à força a difusão de crenças contrárias aos seus próprios dogmas. Ao falharem em erradicar a fé e as práticas rituais dos hereges, então eles apelaram para a tortura mental e física, forçando a conversão. Porém, os acusados de “falsos conversos”, teimosos e adeptos em segredo de sua antiga fé eram destinados a serem queimados em uma estaca. A queima de livros, portanto, frequentemente é um prelúdio clássico para a queima de pessoas. (LAZAR, 1991) Esse estado de coisas que já se manifestou em diversos momentos da história demonstra a importância da literatura para a conservação da cultura e identidade. Conforme Stuart B. Schwartz enfatizou, entre os séculos XVI e XVII “os livros e a capacidade de lê-los, usá-los e pensar sobre eles estavam intimamente associados à ideia de liberdade de consciência.” (SCHWARTZ, 2009, p. 225) O contexto histórico em que esses sefarditas produziram suas obras obriga à consideração da existência de uma censura auto-imposta pelos autores. Também traz a necessidade de um trabalho exaustivo para perceber o significado e a mensagem nas entrelinhas ou na linguagem cifrada que foi utilizada para transmitir um recado que deveria ser compreendido apenas pelos iniciados no movimento judaizante. A influência da Cabala na Diáspora Sefardita David M. Gitlitz, que escreveu uma obra de fôlego sobre a religião dos criptojudeus da Espanha, Portugal, México, Peru e Brasil, conforme pesquisou durante quinze anos, caracterizou o sistema de crenças criptojudaicas e detalhou aspectos fundamentais de sua religiosidade, tais como superstições, costumes no nascimento, rituais de purificação e higiene, costumes funerários, guarda do sábado, dias santos, orações e leis alimentares. A perspectiva geral que ele traça parte da consideração de que quando os descendentes dos judeus conversos da Península Ibérica viram-se isolados do judaísmo tradicional e imersos em um mundo de fé cristã, os princípios centrais de sua crença sofreram profundas transformações. Os criptojudeus não possuíam livros judaicos para instruir suas crianças em Hebraico, nem escolas talmúdicas para refinar o entendimento dos adultos e nem sessões de estudo no Sábado à tarde em que debatessem sutilezas da lei. Embora alguns agrupamentos de criptojudeus continuassem a praticar a sua religião durante 244 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ gerações após a expulsão, especialmente os mais antigos, os dados que temos sobre suas conversas religiosas sugerem que o judaísmo que estas pessoas discutiam com os seus amigos não era profundo nem muito ortodoxo. Elas perderam rapidamente a familiaridade com as sutilezas da teologia judaica e as complexidades da observância judaicas. Para essas pessoas, que, sem dúvida, constituíam a maioria dos criptojudeus, o judaísmo deixou de ser um sistema autônomo e auto-referencial. Em vez disso, o cristianismo se tornou seu ponto comum de referência, o modelo contra o qual as suas crenças e práticas criptojudaicas foram medidas. Portanto, cada vez mais eles não eram Judaizantes por que eram diferentes dos cristãos, mas eles eram judaizantes à medida em que divergiam dos cristãos. (GITLITZ, 2002, p. 99-100) Seguindo esta linha geral de interpretação da cultura criptojudaica na diáspora atlântica, no capítulo que dedica a “Superstições” praticadas comumente pelos sefarditas da diáspora, David M. Gitlitz defende que havia entre os moradores da Península Ibérica, quer fossem judeus ou cristãos, uma predileção por certas práticas supersticiosas comuns na cultura Mediterrânea. Segundo ele, depois de 1480, a Inquisição tomou a tarefa de desenraizar as práticas mágicas e os processos contra as superstições abundam, muitas vezes sem a identificação dos antecedentes familiares do acusado. Porém, alguns registros mostram que algumas práticas específicas eram consideradas indicativos de que a pessoa era judaizante. (GITLITZ, 2002, p. 183-184) Em seguida, Gitlitz passa a descrever práticas de adivinhação por vários métodos, como por meio da raiz de mandrágora, pelos astros, por meio de grãos de trigo, carvão ou sal, também a utilização de amuletos, de nóminas e do selo de Salomão para evitar infortúnios, a celebração de cerimônias de exorcismos, a produção de porções do amor e a utilização de ervas para curas. O que chama a atenção é que neste capítulo específico sobre práticas e rituais mágicos não se faz referência a possível origem cabalista destas práticas e não é abordada a influência da Cabala sobre a religião dos criptojudeus. No entanto, o interesse dos judeus por práticas mágicas pode ser historicamente datado, pelo menos, desde o final da antiguidade. Comentando a respeito do Sefer háRazim, Livro dos Mistérios, redigido provavelmente entre os séculos IV ou VII, Roland Goetschel, afirma que “ele contém uma quantidade de fórmulas mágicas para todos os 245 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ momentos da vida: amor, medicina, meios de vencer os inimigos, conjurações das potências naturais,..” (GOETSCHEL, 2009, p. 23) O mesmo Roland Goetschel analisa ainda um grupo de místicos primitivos que esforçavam-se para permanecer nos quadros do judaísmo rabínico e ao mesmo tempo utilizavam práticas de “fisiognomonia” e “quiromancia” para selecionar os candidatos a iniciados. ( GOETSCHEL, 2009, p. 26) Gershom Sholem, que anteriormente foi apresentado aqui como demonstrando a expansão da Cabala entre as comunidades sefarditas da diáspora a partir das primeiras décadas do século XVI, também informa sobre a constituição da “cabala prática”, da magia de motivação pura ou branca. Na sua explicação, “freqüentemente as práticas de magia de amuletos e fórmulas protetoras podem ser encontradas lado a lado com invocações de demônios, incantações e fórmulas de ganhos pessoais.” (SCHOLEM, 1989, p. 166) A estas práticas ele acrescenta “medicina popular”, “alfabeto arcangélico especial”, “mágica astrológica”, “quiromancia”, “nomes mágios”, ou shemot, prescritos para determinadas atividades. (SCHOLEM, 1989, p. 164-170) Reconhecendo a divisão entre uma Cabala teórica e outra prática e revelando o conhecimento do contexto cultural dos sefarditas na diáspora Atlântica, Janet Liebman Jacobs assim se refere à difusão das práticas mágicas entre essas comunidades: Depois da expulsão dos Judeus, a escola de Cabala mágica tornou-se especialmente prevalecente nas comunidades de sefarditas exilados onde incantações e fórmulas herbais foram usadas para proteção, nascimento, amor e prosperidade. Fragmentos dessas fórmulas foram registrados em escritos cabalistas do século dezesseis e tem sobrevivido nos séculos dezenove e vinte na Grécia e em Jerusalém. (JACOBS, 2002, p. 74) Na América portuguesa alguns casos principais podem ser mencionados. Inicialmente, o judeu Bento Teixeira, primeiro livre-pensador não ligado ao clero católico em terras brasileiras, um pioneiro da literatura na colônia, no início do século XVII. Nascido na cidade do Porto, Portugal, em 1561, veio com sua família, da classe média sefardita, possivelmente em busca de melhores condições de vida na colônia, onde por esse tempo os perseguidos pela Inquisição gozavam de tranqüilidade em relação aos sensores da Igreja. Bento Teixeira se tornou mestre de ensinar aos moços latim, aritmética, ler e escrever e também princípios da Cabala. Sua atividade docente, em terras onde os olhos dos visitadores da Santa Inquisição estavam atentos aos 246 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ possíveis vestígios de heresia, era bastante arriscada. Ainda mais em se tratando de pensadores leigos. Dentre as práticas de Bento Teixeira constam a guarda do sábado, negação de dogmas católicos, tais como a existência da punição post-mortem e a santíssima trindade, bem como a virgindade de Maria. Consta ainda o ato de traduzir trechos da Bíblia para o português, facilitando a leitura de porções da Torah, prática comum e clandestina entre os criptojudeus. Autor de um poema épico chamado “Prosopopéia”, publicado em 1601, Bento Teixeira deixou em sua obra diversas insinuações cabalísticas que têm sido exumadas por alguns estudiosos de sua obra. Bento Teixeira saiu num Alto de Fé no ano de 1599 e foi condenado à prisão perpétua. Doente dos pulmões lhe foi permitido morar em liberdade. Morreu um ano depois. (MELLO E SOUZA, 1995) Apesar de toda uma militância em favor da Cabala, no magistério e na literatura, o cabalismo de Bento Teixeira não foi identificado pelo Tribunal do Santo Ofício. A possível influência da Cabala sobre as práticas de magia e feitiçaria do período colonial tem sido percebida apenas de forma implícita, como pode ser exemplificado pela obra seminal de Laura de Mello e Souza: “O Diabo e a Terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial.” 7 Apesar de reconhecer que “traços católicos, negros, indígenas e judaicos misturaram-se pois na colônia, tecendo uma religião sincrética e especificamente colonial” (MELLO E SOUZA, 1995, p. 97), e analisar casos de cristãos-novos pegos em práticas de feitiçaria, a explicação geral do fenômeno na colônia que a escritora faz é a seguinte: Como o imaginário do descobridor europeu, como a religiosidade popular, da qual fazia parte, a feitiçaria colonial era multiforme e heterogênea, constituída basicamente por duas partes que integravam um mesmo todo: um fundo de práticas mágicas características de culturas primitivas (africana e indígena) e um fundo de práticas mágicas características das populações européias, fortemente impregnadas de um paganismo secular que pulsava sob a cristianização recente e ‘imperfeita’. (MELLO E SOUZA, 1995, p. 375) 7 Um trabalho que pode lançar luz sobre esta relação entre a Cabala e a cultura dos sefarditas na diáspora é “Inquisición, Brujería y criptojudaísmo”, de Julio Caro Baroja, cuja primeira edição foi lançada em 1970 na Espanha. 247 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Porém, casos como o de Isabel Mendes, presa no Rio de Janeiro em 10 de Janeiro de 1628, como feiticeira e judaizante, enviada para julgamento em Lisboa, onde permaneceu por sete longos anos no cárcere até enlouquecer, foi provavelmente um exemplo de exercício do criptojudaísmo aliado à Cabala prática. (WIZNITZER, 1966) (MELLO E SOUZA, 1995) Outra possibilidade semelhante pode ser divisada no fato que veio à luz por meio da confissão de Paula de Siqueira, em 20 de Agosto de 1591, na Primeira Visitação do Santo Ofício à Bahia. Ela denunciou Beatriz de Sampaio, moradora de Matoim, principal reduto de cristãos-novos judaizantes na região, por lhe ensinar práticas mágicas para assegurar a amizade de seu marido. (CONFISSÕES DA BAHIA, 1997, p. 111) O próprio David M. Gitlitz também menciona a cristã-nova Violante Carneira, denunciada na Bahia em 1591 por recitar um feitiço para fazer um homem amar uma mulher. (GITLITZ, 2002, p. 191) Nas Confissões da Bahia também aparece o uso de nóminas, orações impressas, geralmente escritas em papel e costuradas no vestuário. Isabel Rodrigues, de alcunha “boca-torta”, deu uma “carta de tocar” a Paula de Siqueira que possuía tanta virtude que faria com que “em quantas coisas tocasse se iriam após ela.” Pelo exposto na confissão de Paula Siqueira provavelmente as palavras escritas na carta eram: “hoc est enim corpus meum”. Essa nómina deveria ser usada no toucado da mulher. (CONFISSÕES DA BAHIA, 1997, p. 110) Segundo Nelson Omegna, no imaginário popular da América portuguesa, “o bruxo ou bruxa era sempre ‘gente da Nação’, de vez que o Diabo para fazer e distribuir malefícios, tinha de contar mesmo era com seus asseclas, os inimigos do Senhor.” (OMEGNA, 1969, p. 51) Em que pese os preconceitos disseminados, o cabalismo possuía realmente seguidores dissimulados entre a população colonial, existindo até mesmo a prática do proselitismo. É o que demonstra o caso de Pedro de Rates Henequim, que mesmo não sendo comprovadamente de origem sefardita, provavelmente foi iniciado nos mistérios da Cabala durante sua estadia na Colônia. A cosmovisão de Pedro de Rates Henequim, foi tema de um livro instigante: “Um Herege vai ao Paraíso: Cosmologia de um ex-colono condenado pela Inquisição (1680-1744)”, de Plínio Freire Gomes. Nascido em Lisboa em 1689 e educado pelos jesuítas, em 1702 foi atraído pela “febre do ouro” para as Minas Gerais. Retornando a 248 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ Portugal em 1722, imbuído da “visão do paraíso” de que tratou Sergio Buarque de Holanda, tornou-se defensor de um projeto mirabolante para tornar o infante D. Manuel, irmão de D. João V (1689-1750), Imperador do Brasil. Foi denunciado à Inquisição em 1741 e tido como cristão-novo, apesar do mesmo negar esta origem. Após ser preso e acusado no Tribunal do Santo Ofício declarou-se versado na “sciencia caballa”. Foi condenado e queimado pela Inquisição portuguesa em 1744. Assim, a disseminação da Cabala entre os criptojudeus da diáspora sefardita pode ser comprovada por esses casos emblemáticos. Outro indício dessa propagação, até entre o próprio clero católico, é mencionado por J. Lucio D’Azevedo. Trata-se do Padre Jesuíta Antônio Vieira (1608-1697), defensor dos cristãos-novos. Segundo o historiador português do início do século XX, Antônio Vieira seria o “único” cultor da Cabala em Portugal. A Cabala não era de todo desconhecida pela Inquisição portuguesa, mas quando o jesuíta foi submetido a um processo no Santo Ofício por causa de seu messianismo, seus inquisidores não foram capazes de perceber esta faceta em seu pensamento. (D’AZEVEDO, 1922) Conclusão Apesar das evidências acima demonstradas, de que a cultura dos criptojudeus sefarditas na diáspora Atlântica incorporava tanto elementos da Cabala especulativa, quanto da Cabala prática, segundo divisão proposta por Gershom Scholem, os trabalhos acadêmicos que abordam a presença do cabalismo nesta cultura perseguida são muito escassos. Ao procurar explicação para a quantidade reduzida de estudos sobre o relacionamento entre a Cabala e o criptojudaísmo, inicialmente procurou-se uma explicação por meio do mesmo princípio adotado por Carlo Ginzburg nos seus estudos sobre a atuação do Santo Ofício contra a feitiçaria. Ou seja, o historiador italiano trabalhou no entendimento do fenômeno dos benandanti com o pressuposto da existência de “um núcleo de crenças populares que, pouco a pouco, em decorrência de pressões bastante precisas, foram assimiladas à feitiçaria.” (GINZBURG, 1988, p. 7) Ele utilizou a hipótese de que houve uma “superposição do esquema inquisitorial” a um “estrato preexistente de superstições genéricas”, “modelando as confissões dos acusados 249 Revista Brasileira de História das Religiões. ANPUH, Ano IV, n. 12, Janeiro 2012 - ISSN 1983-2850 http://www.dhi.uem.br/gtreligiao /index.html COMUNICAÇÕES ____________________________________________________________________________________ graças a dois instrumentos: a tortura e os interrogatórios ‘sugestivos.’” (GINZBURG, 1988, p. 8) Construindo seu argumento, Carlo Ginzburg lembra como no interior da cristandade, entre meados do século XIII e meados do século XV, foi sendo elaborada “a imagem da feitiçaria diabólica, com todos os seus acessórios” e que no decorrer de um século um culto da fertilidade, oriundo de tradições germânicas e eslavas, que sobrevivia na região do Friuli, de defensores das colheitas e da fertilidade dos campos, transformou-se em feitiçaria. Ou seja, em função das “pressões” dos inquisidores ocorreu a “assimilação dos benandanti aos feiticeiros.” (GINZBURG, 1988, p. 37) Da mesma forma que a Inquisição lutou contra esssas culturas e deformou a compreensão das mesmas, ela também combateu a cultura sefardita oriunda da Península Ibérica e possivelmente contribuiu para um entendimento errôneo da identidade dos sefarditas judaizantes. Assim, existe a possibilidade de que o estudo da cultura sefardita no contexto da diáspora atlântica tenha alguns elementos negligenciados ou distorcidos, especialmente a forte influência da cabala sobre a sua cosmovisão. Outra linha de explicação possível pode ser encontrada no fato de que a partir da ocidentalização da cultura judaica por meio do movimento chamado de Haskalah, o iluminismo judaico, a partir do século XIX, as comunidades judaicas, sob forte influência racionalista e humanista, abandonaram o misticismo, tratando a Cabala com relativo desprezo. 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