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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP Cintia Bendazzoli* Raffaela Arrabaça Francisco** Marco Aurélio Guimarães*** Introdução A rqueólogos brasileiros e estrangeiros têm-se debruçado ao longo de mais de um século na tentativa de compreender os múltiplos aspectos relacionados à ocupação sambaquieira no litoral de São Paulo, ainda que pesquisas sistemáticas propriamente ditas tenham iniciado somente a partir da segunda metade do século XX, depois da criação da Comissão de Pré-História liderada por Paulo Duarte. Após mais de 50 anos de pesquisas com diferentes abordagens, foram significativas as contribuições relativas ao entendimento da formação, composição e cultura material dos sambaquis da Baixada Santista e do litoral sul paulista (Guidon e Pallestrini 1962; Pallestrini 1964; Guidon 1964; Duarte 1968; Garcia 1969; Uchôa 1969; Garcia & Uchôa 1980; Figuti 1989 e 1992; Bonetti 1997 e 2004; Calippo 2004, entre outros). Embora o litoral norte de São Paulo possua alto potencial para estudos arqueológicos, poucos foram os projetos científicos desenvolvidos nessa região voltados para a compreensão de aspectos relativos ao estabelecimento de populações sambaquieiras nessa porção da costa. Alguns estudos realizados na região de (*) Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo. Doutoranda em Arqueologia. <cibendazzoli@gmail.com> (**) Departamento de Patologia e Medicina Legal, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Mestranda em Antropologia Forense. <raffaela@usp.br> (***) Centro de Medicina Legal – CEMEL, Departamento de Patologia e Medicina Legal, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. <mag@fmrp.usp.br> Ubatuba inicialmente encabeçados por Garcia e Uchôa (Garcia 1972; Uchôa 1973; Alvim & Uchôa 1976) tiveram continuidade nas décadas de 90 e início do séc. XXI (Amenomori 1999 e 2005; Monteiro da Silva 2005; Nishida 2001) e constituem, até então, uma das principais fontes de informação a respeito dos sambaquis do litoral norte do estado. Na tentativa de contribuir para o entendimento dos aspectos envolvidos no estabelecimento de grupos sambaquieiros no litoral norte – especificamente na região de Ilhabela – o presente trabalho apresenta resultados iniciais dos estudos realizados no âmbito dos projetos de doutorado e mestrado das autoras. As pesquisas aqui relacionadas foram desenvolvidas em decorrência dos trabalhos de prospecção e resgate (Bornal 2007) realizados em um sambaqui de Ilhabela, cujo estudo sistemático foi posteriormente continuado por ambos os projetos.1 São apresentados neste texto os resultados preliminares obtidos. Localização O município de Ilhabela localiza-se no Litoral Norte do Estado de São Paulo, e é formado por um conjunto de ilhas. A ilha maior é a Ilha de São Sebastião com 346 km², mas o arquipélago compreende ainda as ilhas de Búzios, Vitória, Sumítica, Pescadores, Ilhote das Cabras, Serraria, Ilhote de Castelhanos, Lagoa, Figueira, e Ilhote das Enchovas (França 1951). A ilha maior pode ser alcançada por (1) Cabe ressaltar a participação de uma das autoras (Bendazzoli) nos trabalhos de escavação deste sítio realizados no ano de 2007. 381 Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. intermédio da balsa, enquanto as demais ilhas do arquipélago, habitadas pelas comunidades tradicionais, somente podem ser acessadas por embarcações menores (Merlo 2000). (Fig. 1) O relevo da Ilha de São Sebastião é bastante montanhoso, os picos mais elevados chegam a ultrapassar 1.300m. Dos 346 km² de área da ilha principal, apenas 7,3 km² correspondem a terrenos planos, concentrados na face voltada para o canal, enquanto mais de 75% da ilha está em cota superior a 100m de altitude. Este relevo montanhoso apresenta ainda frequentes exposições do maciço rochoso, que junto ao mar dá origem a costões elevados e íngremes. Em meio aos afloramentos rochosos são comuns os abrigos de diferentes dimensões localizados em toda a ilha, muitos dos quais se encontram nas áreas de costa (Sema 1990). O sítio em abrigo No norte da Ilha de São Sebastião, no bairro de Furnas, um pequeno abrigo rochoso foi alvo de pesquisas arqueológicas sistemáticas. Localizado na planície costeira, a uma distância de aproximadamente 25m da atual linha de costa, este abrigo está situado entre o mar e um pequeno mangue existente na porção sudeste do terreno (Fig. 2). O abrigo possui dimensões bastante modestas, com comprimento de 10m entre uma abertura e outra, largura média de 2,5m e altura que atinge um máximo de 2,20m. A área externa ao abrigo voltada para a praia configura-se bastante plana e é circundada por grandes afloramentos rochosos, resultando num local relativamente protegido (Fotos 1 e 2). Prospecções iniciais realizadas nessa área revelaram a existência de alguns fragmentos cerâmicos dispersos em superfície. A abertura de sondagens no interior e na parte externa do abrigo objetivou a delimitação da área de abrangência e dispersão do material arqueológico, a verificação da existência de áreas com concentração de artefatos, bem como a investigação do pacote estratigráfico do sítio. Os locais escolhidos para a abertura de sondagens foram os mais amplos e secos, cuja dimensão e altura permitiriam que, no passado, houvesse uma ocupação mais intensa e a circulação de maior número de pessoas. Fig.1. Mapa de Ilhabela com a localização da área do sítio. 382 Cintia Bendazzoli Raffaela Arrabaça Francisco Marco Aurélio Guimarães Fig.2. Localização do Sítio Abrigo Furnas. Foto 1. Escavação da área interna e externa do abrigo (foto: Cintia Bendazzoli). 383 Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. Foto 2. Vista a partir do abrigo, praia de Furnas (foto: Cintia Bendazzoli). A estratigrafia evidenciada através da abertura das sondagens revelou a existência de um sítio arqueológico pré-histórico de natureza bicomponencial, formado por um pequeno sambaqui sobreposto por uma camada arqueológica contendo vestígios cerâmicos e líticos. Outra ocupação, porém recente, foi verificada no local e deixou vestígios no pacote superficial da área interna do abrigo, formado por uma camada arenosa clara sobre a qual estavam depositados muitos blocos de pedra. Nele foram encontrados vestígios diversos, tais como vidro, metal, faiança, plástico, linha de pesca, pois este abrigo já fora utilizado como moradia de pescadores da região. Vestígios arqueológicos foram localizados em um pacote pouco espesso composto por sedimento arenoso marrom escuro logo abaixo da camada superficial mais recente. Neste estrato, que se apresentava um pouco revolvido evidenciando perturbação do contexto arqueológico local, foi encontrada significativa quantidade de fragmentos cerâmicos e artefatos polidos. Esses vestígios também se estendiam para a área externa do 384 abrigo, onde as intervenções revelaram uma maior concentração de fragmentos cerâmicos próximos à entrada. Os vestígios cerâmicos encontravam-se bastante fragmentados. Confeccionados através da técnica de acordelamento, possuíam paredes finas, dimensões modestas, queima incompleta e antiplástico mineral onde predominavam os grãos de quartzo. Os fragmentos não possuíam qualquer decoração plástica. Quanto ao material lítico, destaca-se a presença de dois suportes, ou “quebra-coquinhos”. Dentro da área coberta, verificou-se a existência de um terceiro pacote assentado sobre a base rochosa, caracterizado por uma ampla camada conchífera que se estende por todo o interior do abrigo e cuja profundidade maior está no acesso voltado para o mar. Trata-se de um sambaqui de pequenas dimensões cuja espessura do pacote varia entre 15 e 50 cm, e é formado por grande quantidade de moluscos e fauna miúda em meio a um sedimento escuro contendo grande quantidade de matéria orgânica. Apesar de ocupar toda a parte interna do abrigo, de uma Cintia Bendazzoli Raffaela Arrabaça Francisco Marco Aurélio Guimarães extremidade a outra, o sambaqui não se estende para a área externa.2 Alguns fragmentos cerâmicos oriundos da camada superficial foram encontrados no contato com o sambaqui, enquanto outros praticamente interpenetraram o início da camada conchífera, possivelmente como resultado de processos pós-deposicionais. Contudo, tais artefatos não foram localizados em profundidade no sambaqui, apenas na superfície de contato entre as camadas. Os vestígios cerâmicos e líticos aparentemente relacionados a atividades domésticas estão presentes no estrato mais superficial, e a observação da estratificação do sítio sugere que esta camada tenha se formado em decorrência de uma ocupação posterior a ocupação sambaquieira. Trata-se de um sepultamento primário simples, realizado em um vão estreito e desnivelado, de modo que o crânio ficou bem mais próximo à superfície que o restante do corpo. A profundidade do crânio (parte mais rasa do sepultamento) era de 35 cm e a base do sepultamento estava a 65 cm de profundidade, ambas em relação ao nível atual do terreno. A largura da fenda também variou, passando de 20 cm na área mais estreita e alta onde estava localizado o crânio, para um máximo de 50 cm na parte mais funda do enterramento onde se encontravam os membros inferiores. Devido à O sepultamento Neste sambaqui, formado por grande quantidade de valvas e restos faunísticos, não foram encontradas estruturas de combustão, carvões, artefatos ou evidências de ocupação por longos períodos. Mas as escavações realizadas na extremidade oeste do abrigo revelaram a existência de um enterramento humano (Foto 3). Sepultados dentro de um vão existente entre duas grandes rochas na base da camada de conchas, Foto 3. Escavação do sepultamento na entrada do abrigo (foto: Estevam Plado). estavam os remanescentes ósseos de um indivíduo envolto em grande quantidade de moluscos e fauna miúda dificuldade de acesso aos membros assentados e recoberto com blocos de pedra de tamanhos na parte profunda da fenda entre os blocos variados (Foto 4). rochosos, a evidenciação e desmontagem das unidades ósseas presentes na parte superior foram realizadas primeiro, de modo que os (2) Partilhamos da definição de sambaqui apresentada por remanescentes mais profundos pudessem ser Gaspar et alii (2007), mas com ressalvas ao destaque na retirados. paisagem que não ocorre com tanta frequência no litoral O indivíduo estava sepultado em decúbito norte de São Paulo, do modo como é verificado no litoral lateral direito, com membros fletidos e acomode Santa Catarina e algumas porções do litoral carioca. 385 Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. Foto 4. Fenda de onde foi retirado o esqueleto (foto: Cintia Bendazzoli). dados dentro do estreito vão. Verificou-se a existência de um seixo arredondado com coloração avermelhada apoiado sobre o crânio como único acompanhamento funerário que tenha se preservado. A forma de arranjo do sepultamento e a maneira como este seixo – bastante distinto dos demais encontrados sobre o sepultamento – estava apoiado sobre a cabeça do indivíduo, sugere que tenha sido depositado de maneira intencional. Já os dos demais blocos parecem ter se deslocado em decorrência de processos pós-deposicionais e erosivos ocorridos dentro do abrigo. Análises laboratoriais Os procedimentos de higienização, reconstituição das unidades ósseas e análises bioantropológicas realizadas com os remanescentes esqueléticos ajudaram na obtenção de informações a respeito do indivíduo sepultado. A higienização foi feita com a utilização de escovas de dente pequenas de cerdas macias para a remoção do sedimento seco. Em seguida 386 os ossos foram limpos com algodão umedecido embebido em água. As unidades ósseas, bastante fragmentadas e que puderam ser reconstituídas, foram consolidadas com cola de pH neutro, própria para esse tipo de procedimento (Foto 5). As análises bioantropológicas realizadas contemplaram a contagem do número mínimo de indivíduos (necessária devido ao estado de fragmentação do material ósseo), determinação de sexo, idade e identificação das patologias orais e esqueléticas. Devido à fragmentação existente nas epífises proximais e distais dos ossos longos, não foi possível realizar a estimativa da estatura do indivíduo. As análises revelaram que o sepultamento é composto por apenas um indivíduo adulto do sexo masculino – a idade e sexo foram estimados pela análise antropológica (morfoscópica direta), sendo observada a completa fusão da epífise medial da clavícula que ocorre entre os 15 e 32 anos de idade. Assim, verificou-se inicialmente que este indivíduo tinha, no mínimo, 15 anos de idade, mas o aspecto geral da estrutura analisada sugeria que o mesmo já Cintia Bendazzoli Raffaela Arrabaça Francisco Marco Aurélio Guimarães fragmentação do crânio (aproximadamente 50 pedaços) e, pelo fato de a pelve – principal elemento para a análise do sexo através do exame antropológico – não ter se preservado nas condições do ambiente em que foi encontrado o esqueleto, análises mais detalhadas não puderam ser realizadas (Bass 1995; Burns 1999; White & Folkens 2004; Soares & Guimarães 2008). No que concerne à análise de patologias orais, este indivíduo apresentou quantidade moderada de cálculo dentário e ausência de cárie. O cálculo ou tártaro dentário caracteriza-se pela deposição da placa mineralizada sobre a superfície dos dentes. Na composição deste depósito mineral têm-se o fluído da placa dentária e os cristais de fosfato de cálcio da saliva. Os dentes normalmente mais afetados são aqueles situados junto aos ductos das glândulas salivares, superfície lingual dos dentes anteriores e superfície bucal dos molares. A deposição de placa constitui um pré-requisito para o desenvolvimento desta doença, por isso uma deficiente higiene oral pode contribuir para a formação de depósitos do cálculo. A incidência do cálculo, tal como o desgaste dentário, apresenta uma relação inversa Foto 5. Esqueleto reconstituído em exposição (foto: PMI). com a incidência de cárie. Estas duas condições representam dois opostos no tinha alcançado a idade adulta (mais de 21 balanço do pH da placa dentária e da deposianos), sem, contudo, ser possível determinar ção/dissolução dos minerais da placa. Consesua idade máxima através deste método (Bass qüentemente espera-se que uma população com 1995; Burns 1999; White & Folkens 2004). uma elevada freqüência de cálculo dentário Contudo, a verificação da existência do terceiro apresente uma baixa taxa de cárie e vice-versa. molar em oclusão e da presença de desgaste O consumo elevado de proteínas pode promover dentário bastante acentuado, que em alguns e acentuar os depósitos de tártaro (Hillson 2000). casos chegou a eliminar totalmente a coroa Durante a análise de patologias orais expondo por completo a raiz dos dentes, verificou-se em dois molares (1º molar inferior revelou que se trata de um individuo adulto – e 3º molar inferior direto) a presença de marcas não tão jovem – com possivelmente mais de 35 de desgaste inter-dental linear atingindo a anos de idade (Brothwell 1981). região lateral da coroa dentária (Madeira 2005). O estudo das características cranianas Bastante sutis, as marcas parecem ter sido sugere se tratar de um indivíduo do sexo formadas pela fricção de algum tipo de fibra masculino, verificado através da observação da movimentada entre um dente e outro. Conturobustez e marcação acentuada de relevos do, o desgaste encontrado não parece resultar ósseos amplamente descritos na literatura como da utilização dos dentes como ferramenta (para tipicamente masculinos. Devido ao alto grau de a produção de artefatos e tratamento de fibras 387 Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. vegetais), mas sim, da utilização de algum tipo de instrumento de ação local, como um recurso de higienização oral ou até mesmo como anestésico (utilização de plantas medicinais com propriedades anestésicas), tendo em vista o tamanho do desgaste dentário verificado. No que concerne às patologias esqueléticas, verificou-se que o fêmur direito apresenta a superfície óssea bastante alterada, na qual é possível observar a existência de pequenos orifícios, um deles atingindo mais de 2 cm no eixo maior. Ainda que a suspeita recaia sobre a presença de osteomielíte, análises laboratoriais específicas estão sendo desenvolvidas no sentido de testar essa hipótese (Foto 6). marinhos. A análise de ambos os isótopos, carbono e nitrogênio, permite que o resultado das análises seja mais confiável uma vez que somente a análise de isótopos de carbono não permite a diferenciação de uma dieta baseada em recursos marinhos e de uma dieta baseada em plantas do grupo C4. As análises de isótopos sugerem que a dieta deste indivíduo esteve centrada primordialmente no consumo de recursos marinhos. A análise de isótopos de carbono, assim como se esperava, apresentou indicativos dúbios do consumo de plantas do grupo C4 e da dieta baseada em recursos marinhos (13C/12C = –14,6‰). Mas a taxa verificada para os isótopos de nitrogênio deixou claro que o consumo de recursos de origem marinha formou a base da dieta desse indivíduo (15N/14N = +17,5‰). Já a análise para obtenção da datação revelou que o sepultamento remonta 1920 ± 40 A.P.3 Discussão Os estudos realizados no sítio Abrigo Furnas trouxeram à luz aspectos pouco conhecidos a respeito da ocupação précolonial do litoral norte paulista, principalmente na região de Ilhabela que até então tinha sido Foto 6. Alterações presentes no fêmur direito (foto: PMI). alvo de algumas poucas pesquisas pontuais. Apesar de apresenAmostras do material ósseo foram remetitar um relevo montanhoso e um litoral bastandas para a datação e análises de isótopos de te recortado com extensas áreas formadas por carbono e nitrogênio a partir do estudo do costões rochosos, esta região propiciou o colágeno. As análises de isótopos de carbono e estabelecimento de grupos sambaquieiros, nitrogênio permitem um maior entendimento mesmo que não seja possível, ainda, definir o a respeito da dieta deste indivíduo, tanto no tempo de permanência desses grupos no que concerne a predominância no consumo de arquipélago. plantas presentes no grupo C3 (no qual se A existência de um sambaqui no norte da inclui a maioria das plantas de áreas temperaIlha de São Sebastião deixa claro que a distândas – que têm no trigo seu maior representancia em relação ao continente e o relevo montate) ou no grupo C4 (composto primordialmente por plantas de regiões tropicais, a exemplo do milho), como possibilitam compreender se a (3) Refere-se à datação calibrada da amostra de colágeno dieta estava baseada em recursos terrestres ou ósseo extraída do fêmur esquerdo. 388 Cintia Bendazzoli Raffaela Arrabaça Francisco Marco Aurélio Guimarães nhoso dessa região não configuraram um impeditivo para que os sambaquis pudessem ser erigidos no arquipélago. E mais ainda, esta pesquisa apresenta um aspecto da ocupação sambaquieira ainda não conhecido naquela porção do litoral de São Paulo: a construção de sambaqui dentro de um abrigo rochoso. Sambaquis construídos dentro de abrigos foram anteriormente identificados no litoral sul do Rio de Janeiro (Mendonça de Souza 1977; Mendonça de Souza & Mendonça de Souza 1981/1982), contudo, no litoral de São Paulo este tipo de sítio ainda não havia sido registrado e estudado. Cabe ressaltar que a construção deste sambaqui em área coberta não evidencia necessariamente um processo adaptativo à geografia local, que inclusive apresenta outras áreas abertas propícias para a construção do sítio. Deve-se considerar a intencionalidade e escolha como fatores determinantes neste processo de ocupação e construção. Outro aspecto a ser considerado refere-se à dispersão dos dois pacotes arqueológicos encontrados no sítio. A investigação da estratigrafia e dos componentes presentes em ambos os estratos sugere que tenham ocorrido dois momentos de ocupação: uma mais antiga relacionada ao pacote conchífero e outra mais recente onde foram localizados os artefatos cerâmicos. Uma vez estabelecida uma data para a ocupação sambaquieira (1920 ± 40 A.P.), foi remetido para análise de datação um fragmento de cerâmica retirado do pacote superior, que indicou um período bastante posterior à ocupação sambaquieira naquele local (460 ± 80 A.P.).4 Este segundo pacote parece estar relacionado à posterior utilização do abrigo como local de acampamento ou moradia temporária por um reduzido grupo ceramista, uma vez que a pequena dimensão do abrigo não permite o estabelecimento de muitos indivíduos. A localização de vestígios cerâmicos na área externa ao abrigo sugere a realização de atividades de cunho cotidiano, entretanto, tal (4) Datação da amostra através do método de termoluminescência. hipótese ainda carece de investigações mais aprofundadas, principalmente centradas no estudo detalhado dos objetos. Apesar da pequena dimensão e profundidade exibidas pelo sambaqui (com espessura máxima de 30 cm, excetuando-se a área da fenda onde estava o sepultamento), a estratigrafia simples revela um acúmulo intencional de conchas e de vestígios faunísticos restritos à área do abrigo. Os vestígios encontrados indicam se tratar de um local de uso aparentemente temporário voltado à realização de atividades ritualísticas de cunho funerário. A ausência de vestígios de atividades domésticas na camada conchífera, verificada durante as escavações, parece corroborar esta hipótese. Algumas características encontradas neste sepultamento se assemelham às práticas funerárias verificadas em sambaquis de outras regiões do país, como o enterramento do morto em posição fletida e a colocação intencional de um seixo sobre o crânio, um tipo de acompanhamento funerário comumente verificado nos sambaquis da região sul de Santa Catarina. No caso das análises esqueléticas, a total ausência de cárie e o desgaste acentuado dos dentes, aliados aos resultados obtidos através das análises de isótopos de carbono e nitrogênio, revelam uma dieta baseada primordialmente no consumo de recursos marinhos. Os estudos laboratoriais realizados permitiram a obtenção de dados significativos a respeito da saúde e da dieta deste indivíduo e contribuíram para o entendimento de como eram e viviam as populações sambaquieiras daquela região, pois, até então, as informações existentes sobre os povos pescadores-caçadorescoletores do litoral norte paulista eram principalmente oriundas de pesquisas realizadas em Ubatuba. Vale lembrar que também a antiguidade da ocupação do arquipélago era inferida com base na datação do Sítio do Mar Virado, em Ubatuba, que remonta 2.640 ± 70 A.P. Assim como a análise do primeiro esqueleto humano escavado de um sambaqui do arquipélago permite que os primeiros traços característicos das populações pré-coloniais de Ilhabela possam ser enfim desenhados, e que o estudo de alguns dos processos construtivos e 389 Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009. funcionais do sítio Abrigo Furnas possam contribuir para o entendimento do sistema de assentamento dessa ilha e a sua relação com os sambaquis das regiões circunvizinhas, as novas datações para o município permitem que um primeiro paço seja dado no sentido de se estabelecer uma antiguidade para a ocupação humana nesse arquipélago. Agradecimentos Agradecemos aos Profs. Drs. Paulo DeBlasis (MAE/USP) e Maria Dulce Gaspar (MN/ UFRJ) pelas orientações, ao Sr. Aloísio Macedo de Araújo pela disponibilização do acesso ao sítio, ao arqueólogo Dr. Wagner Bornal pela possibilidade de trabalho, ao Kuan por toda assessoria e à Secretaria da Cultura do município de Ilhabela por dispor de recursos para a realização das datações. Agradecemos ainda ao Prof. Dr. Ricardo Henrique Alves da Silva da FORP (Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto-USP) e às técnicas do Laboratório de Identificação Humana e Antropologia Forense do CEMEL/FMRP-USP Tereza Cristina Pantozzi da Silveira e Erika Pontin Deloiagono Gual, pelo auxílio com as análises laboratoriais. Referências bibliográficas ALVIM, M.C. de M.; UCHÔA, D.P. 1976 Contribuição ao estudo das populações de sambaquis: os construtores do sambaqui de Piaçaguera. Pesquisas, Série Sambaqui de Piaçaguera. Instituto de Pré-História, Universidade de São Paulo, São Paulo. AMENOMORI, S.N. 1999 Potencial analítico de sedimentos e solo aplicado a arqueologia. Dissertação de Mestrado, Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. 2005 Paisagem das ilhas, as ilhas da paisagem: a ocupação dos grupos pescadores coletores pré-históricos no litoral norte do Estado de São Paulo. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo, São Paulo. 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