Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009.
Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP
Cintia Bendazzoli*
Raffaela Arrabaça Francisco**
Marco Aurélio Guimarães***
Introdução
A
rqueólogos brasileiros e estrangeiros
têm-se debruçado ao longo de mais de
um século na tentativa de compreender os
múltiplos aspectos relacionados à ocupação
sambaquieira no litoral de São Paulo, ainda
que pesquisas sistemáticas propriamente ditas
tenham iniciado somente a partir da segunda
metade do século XX, depois da criação da
Comissão de Pré-História liderada por Paulo
Duarte. Após mais de 50 anos de pesquisas
com diferentes abordagens, foram significativas
as contribuições relativas ao entendimento da
formação, composição e cultura material dos
sambaquis da Baixada Santista e do litoral sul
paulista (Guidon e Pallestrini 1962; Pallestrini
1964; Guidon 1964; Duarte 1968; Garcia
1969; Uchôa 1969; Garcia & Uchôa 1980;
Figuti 1989 e 1992; Bonetti 1997 e 2004;
Calippo 2004, entre outros).
Embora o litoral norte de São Paulo possua
alto potencial para estudos arqueológicos,
poucos foram os projetos científicos desenvolvidos nessa região voltados para a compreensão
de aspectos relativos ao estabelecimento de
populações sambaquieiras nessa porção da
costa. Alguns estudos realizados na região de
(*) Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de
São Paulo. Doutoranda em Arqueologia.
<cibendazzoli@gmail.com>
(**) Departamento de Patologia e Medicina Legal,
Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade
de São Paulo. Mestranda em Antropologia Forense.
<raffaela@usp.br>
(***) Centro de Medicina Legal – CEMEL, Departamento de Patologia e Medicina Legal, Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.
<mag@fmrp.usp.br>
Ubatuba inicialmente encabeçados por Garcia
e Uchôa (Garcia 1972; Uchôa 1973; Alvim &
Uchôa 1976) tiveram continuidade nas décadas
de 90 e início do séc. XXI (Amenomori 1999 e
2005; Monteiro da Silva 2005; Nishida 2001) e
constituem, até então, uma das principais
fontes de informação a respeito dos sambaquis
do litoral norte do estado.
Na tentativa de contribuir para o entendimento dos aspectos envolvidos no estabelecimento de grupos sambaquieiros no litoral norte
– especificamente na região de Ilhabela – o
presente trabalho apresenta resultados iniciais
dos estudos realizados no âmbito dos projetos
de doutorado e mestrado das autoras. As
pesquisas aqui relacionadas foram desenvolvidas
em decorrência dos trabalhos de prospecção e
resgate (Bornal 2007) realizados em um
sambaqui de Ilhabela, cujo estudo sistemático
foi posteriormente continuado por ambos os
projetos.1 São apresentados neste texto os
resultados preliminares obtidos.
Localização
O município de Ilhabela localiza-se no
Litoral Norte do Estado de São Paulo, e é
formado por um conjunto de ilhas. A ilha
maior é a Ilha de São Sebastião com 346 km²,
mas o arquipélago compreende ainda as ilhas
de Búzios, Vitória, Sumítica, Pescadores, Ilhote
das Cabras, Serraria, Ilhote de Castelhanos,
Lagoa, Figueira, e Ilhote das Enchovas (França
1951). A ilha maior pode ser alcançada por
(1) Cabe ressaltar a participação de uma das autoras
(Bendazzoli) nos trabalhos de escavação deste sítio
realizados no ano de 2007.
381
Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009.
intermédio da balsa, enquanto as demais ilhas
do arquipélago, habitadas pelas comunidades
tradicionais, somente podem ser acessadas por
embarcações menores (Merlo 2000). (Fig. 1)
O relevo da Ilha de São Sebastião é
bastante montanhoso, os picos mais elevados
chegam a ultrapassar 1.300m. Dos 346 km² de
área da ilha principal, apenas 7,3 km²
correspondem a terrenos planos, concentrados
na face voltada para o canal, enquanto mais de
75% da ilha está em cota superior a 100m de
altitude. Este relevo montanhoso apresenta
ainda frequentes exposições do maciço rochoso, que junto ao mar dá origem a costões
elevados e íngremes. Em meio aos afloramentos
rochosos são comuns os abrigos de diferentes
dimensões localizados em toda a ilha, muitos
dos quais se encontram nas áreas de costa
(Sema 1990).
O sítio em abrigo
No norte da Ilha de São Sebastião, no
bairro de Furnas, um pequeno abrigo rochoso
foi alvo de pesquisas arqueológicas sistemáticas.
Localizado na planície costeira, a uma distância
de aproximadamente 25m da atual linha de
costa, este abrigo está situado entre o mar e um
pequeno mangue existente na porção sudeste
do terreno (Fig. 2). O abrigo possui dimensões
bastante modestas, com comprimento de 10m
entre uma abertura e outra, largura média de
2,5m e altura que atinge um máximo de 2,20m.
A área externa ao abrigo voltada para a praia
configura-se bastante plana e é circundada por
grandes afloramentos rochosos, resultando
num local relativamente protegido (Fotos 1 e 2).
Prospecções iniciais realizadas nessa área
revelaram a existência de alguns fragmentos
cerâmicos dispersos em superfície. A abertura
de sondagens no interior e na parte externa do
abrigo objetivou a delimitação da área de
abrangência e dispersão do material arqueológico, a verificação da existência de áreas com
concentração de artefatos, bem como a investigação do pacote estratigráfico do sítio. Os locais
escolhidos para a abertura de sondagens foram
os mais amplos e secos, cuja dimensão e altura
permitiriam que, no passado, houvesse uma
ocupação mais intensa e a circulação de maior
número de pessoas.
Fig.1. Mapa de Ilhabela com a localização da área do sítio.
382
Cintia Bendazzoli
Raffaela Arrabaça Francisco
Marco Aurélio Guimarães
Fig.2. Localização do Sítio Abrigo Furnas.
Foto 1. Escavação da área interna e externa do abrigo (foto: Cintia Bendazzoli).
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Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009.
Foto 2. Vista a partir do abrigo, praia de Furnas (foto: Cintia Bendazzoli).
A estratigrafia evidenciada através da
abertura das sondagens revelou a existência de
um sítio arqueológico pré-histórico de natureza
bicomponencial, formado por um pequeno
sambaqui sobreposto por uma camada arqueológica contendo vestígios cerâmicos e líticos.
Outra ocupação, porém recente, foi verificada
no local e deixou vestígios no pacote superficial
da área interna do abrigo, formado por uma
camada arenosa clara sobre a qual estavam
depositados muitos blocos de pedra. Nele
foram encontrados vestígios diversos, tais como
vidro, metal, faiança, plástico, linha de pesca,
pois este abrigo já fora utilizado como moradia
de pescadores da região.
Vestígios arqueológicos foram localizados
em um pacote pouco espesso composto por
sedimento arenoso marrom escuro logo
abaixo da camada superficial mais recente.
Neste estrato, que se apresentava um pouco
revolvido evidenciando perturbação do
contexto arqueológico local, foi encontrada
significativa quantidade de fragmentos
cerâmicos e artefatos polidos. Esses vestígios
também se estendiam para a área externa do
384
abrigo, onde as intervenções revelaram uma
maior concentração de fragmentos cerâmicos
próximos à entrada.
Os vestígios cerâmicos encontravam-se
bastante fragmentados. Confeccionados através
da técnica de acordelamento, possuíam paredes
finas, dimensões modestas, queima incompleta
e antiplástico mineral onde predominavam os
grãos de quartzo. Os fragmentos não possuíam
qualquer decoração plástica. Quanto ao
material lítico, destaca-se a presença de dois
suportes, ou “quebra-coquinhos”.
Dentro da área coberta, verificou-se a
existência de um terceiro pacote assentado
sobre a base rochosa, caracterizado por uma
ampla camada conchífera que se estende por
todo o interior do abrigo e cuja profundidade
maior está no acesso voltado para o mar.
Trata-se de um sambaqui de pequenas dimensões cuja espessura do pacote varia entre 15 e
50 cm, e é formado por grande quantidade
de moluscos e fauna miúda em meio a um
sedimento escuro contendo grande quantidade de matéria orgânica. Apesar de ocupar
toda a parte interna do abrigo, de uma
Cintia Bendazzoli
Raffaela Arrabaça Francisco
Marco Aurélio Guimarães
extremidade a outra, o sambaqui não se
estende para a área externa.2
Alguns fragmentos cerâmicos oriundos da
camada superficial foram encontrados no
contato com o sambaqui, enquanto outros
praticamente interpenetraram o início da
camada conchífera, possivelmente como
resultado de processos pós-deposicionais.
Contudo, tais artefatos não foram localizados
em profundidade no sambaqui, apenas na
superfície de contato entre as camadas. Os
vestígios cerâmicos e líticos aparentemente
relacionados a atividades domésticas estão
presentes no estrato mais
superficial, e a observação da
estratificação do sítio sugere que
esta camada tenha se formado
em decorrência de uma ocupação posterior a ocupação
sambaquieira.
Trata-se de um sepultamento primário
simples, realizado em um vão estreito e
desnivelado, de modo que o crânio ficou bem
mais próximo à superfície que o restante do
corpo. A profundidade do crânio (parte mais
rasa do sepultamento) era de 35 cm e a base do
sepultamento estava a 65 cm de profundidade,
ambas em relação ao nível atual do terreno. A
largura da fenda também variou, passando de
20 cm na área mais estreita e alta onde estava
localizado o crânio, para um máximo de 50 cm
na parte mais funda do enterramento onde se
encontravam os membros inferiores. Devido à
O sepultamento
Neste sambaqui, formado
por grande quantidade de valvas
e restos faunísticos, não foram
encontradas estruturas de
combustão, carvões, artefatos ou
evidências de ocupação por
longos períodos. Mas as escavações realizadas na extremidade
oeste do abrigo revelaram a
existência de um enterramento
humano (Foto 3). Sepultados
dentro de um vão existente
entre duas grandes rochas na
base da camada de conchas,
Foto 3. Escavação do sepultamento na entrada do abrigo (foto: Estevam Plado).
estavam os remanescentes ósseos
de um indivíduo envolto em
grande quantidade de moluscos e fauna miúda
dificuldade de acesso aos membros assentados
e recoberto com blocos de pedra de tamanhos
na parte profunda da fenda entre os blocos
variados (Foto 4).
rochosos, a evidenciação e desmontagem das
unidades ósseas presentes na parte superior
foram realizadas primeiro, de modo que os
(2) Partilhamos da definição de sambaqui apresentada por
remanescentes mais profundos pudessem ser
Gaspar et alii (2007), mas com ressalvas ao destaque na
retirados.
paisagem que não ocorre com tanta frequência no litoral
O indivíduo estava sepultado em decúbito
norte de São Paulo, do modo como é verificado no litoral
lateral direito, com membros fletidos e acomode Santa Catarina e algumas porções do litoral carioca.
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Foto 4. Fenda de onde foi retirado o esqueleto (foto: Cintia Bendazzoli).
dados dentro do estreito vão. Verificou-se a
existência de um seixo arredondado com
coloração avermelhada apoiado sobre o crânio
como único acompanhamento funerário que
tenha se preservado. A forma de arranjo do
sepultamento e a maneira como este seixo –
bastante distinto dos demais encontrados sobre
o sepultamento – estava apoiado sobre a cabeça
do indivíduo, sugere que tenha sido depositado
de maneira intencional. Já os dos demais
blocos parecem ter se deslocado em decorrência
de processos pós-deposicionais e erosivos
ocorridos dentro do abrigo.
Análises laboratoriais
Os procedimentos de higienização,
reconstituição das unidades ósseas e análises
bioantropológicas realizadas com os remanescentes esqueléticos ajudaram na obtenção de
informações a respeito do indivíduo sepultado.
A higienização foi feita com a utilização de
escovas de dente pequenas de cerdas macias
para a remoção do sedimento seco. Em seguida
386
os ossos foram limpos com algodão umedecido
embebido em água. As unidades ósseas,
bastante fragmentadas e que puderam ser
reconstituídas, foram consolidadas com cola de
pH neutro, própria para esse tipo de procedimento (Foto 5).
As análises bioantropológicas realizadas
contemplaram a contagem do número mínimo
de indivíduos (necessária devido ao estado de
fragmentação do material ósseo), determinação
de sexo, idade e identificação das patologias
orais e esqueléticas. Devido à fragmentação
existente nas epífises proximais e distais dos
ossos longos, não foi possível realizar a estimativa da estatura do indivíduo.
As análises revelaram que o sepultamento é
composto por apenas um indivíduo adulto do
sexo masculino – a idade e sexo foram estimados pela análise antropológica (morfoscópica
direta), sendo observada a completa fusão da
epífise medial da clavícula que ocorre entre os
15 e 32 anos de idade. Assim, verificou-se
inicialmente que este indivíduo tinha, no
mínimo, 15 anos de idade, mas o aspecto geral
da estrutura analisada sugeria que o mesmo já
Cintia Bendazzoli
Raffaela Arrabaça Francisco
Marco Aurélio Guimarães
fragmentação do crânio (aproximadamente
50 pedaços) e, pelo fato de a pelve –
principal elemento para a análise do sexo
através do exame antropológico – não ter
se preservado nas condições do ambiente
em que foi encontrado o esqueleto,
análises mais detalhadas não puderam ser
realizadas (Bass 1995; Burns 1999; White &
Folkens 2004; Soares & Guimarães 2008).
No que concerne à análise de patologias orais, este indivíduo apresentou quantidade moderada de cálculo dentário e
ausência de cárie. O cálculo ou tártaro
dentário caracteriza-se pela deposição da
placa mineralizada sobre a superfície dos
dentes. Na composição deste depósito
mineral têm-se o fluído da placa dentária e
os cristais de fosfato de cálcio da saliva. Os
dentes normalmente mais afetados são
aqueles situados junto aos ductos das
glândulas salivares, superfície lingual dos
dentes anteriores e superfície bucal dos
molares. A deposição de placa constitui
um pré-requisito para o desenvolvimento
desta doença, por isso uma deficiente
higiene oral pode contribuir para a
formação de depósitos do cálculo. A
incidência do cálculo, tal como o desgaste
dentário, apresenta uma relação inversa
Foto 5. Esqueleto reconstituído em exposição (foto: PMI).
com a incidência de cárie. Estas duas
condições representam dois opostos no
tinha alcançado a idade adulta (mais de 21
balanço do pH da placa dentária e da deposianos), sem, contudo, ser possível determinar
ção/dissolução dos minerais da placa. Consesua idade máxima através deste método (Bass
qüentemente espera-se que uma população com
1995; Burns 1999; White & Folkens 2004).
uma elevada freqüência de cálculo dentário
Contudo, a verificação da existência do terceiro
apresente uma baixa taxa de cárie e vice-versa.
molar em oclusão e da presença de desgaste
O consumo elevado de proteínas pode promover
dentário bastante acentuado, que em alguns
e acentuar os depósitos de tártaro (Hillson 2000).
casos chegou a eliminar totalmente a coroa
Durante a análise de patologias orais
expondo por completo a raiz dos dentes,
verificou-se em dois molares (1º molar inferior
revelou que se trata de um individuo adulto –
e 3º molar inferior direto) a presença de marcas
não tão jovem – com possivelmente mais de 35
de desgaste inter-dental linear atingindo a
anos de idade (Brothwell 1981).
região lateral da coroa dentária (Madeira 2005).
O estudo das características cranianas
Bastante sutis, as marcas parecem ter sido
sugere se tratar de um indivíduo do sexo
formadas pela fricção de algum tipo de fibra
masculino, verificado através da observação da
movimentada entre um dente e outro. Conturobustez e marcação acentuada de relevos
do, o desgaste encontrado não parece resultar
ósseos amplamente descritos na literatura como
da utilização dos dentes como ferramenta (para
tipicamente masculinos. Devido ao alto grau de
a produção de artefatos e tratamento de fibras
387
Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009.
vegetais), mas sim, da utilização de algum tipo
de instrumento de ação local, como um recurso
de higienização oral ou até mesmo como
anestésico (utilização de plantas medicinais
com propriedades anestésicas), tendo em vista o
tamanho do desgaste dentário verificado.
No que concerne às patologias esqueléticas,
verificou-se que o fêmur direito apresenta a
superfície óssea bastante alterada, na qual é
possível observar a existência de pequenos
orifícios, um deles atingindo mais de 2 cm no
eixo maior. Ainda que a suspeita recaia sobre a
presença de osteomielíte, análises laboratoriais
específicas estão sendo desenvolvidas no
sentido de testar essa hipótese (Foto 6).
marinhos. A análise de ambos os isótopos,
carbono e nitrogênio, permite que o resultado
das análises seja mais confiável uma vez que
somente a análise de isótopos de carbono não
permite a diferenciação de uma dieta baseada
em recursos marinhos e de uma dieta baseada
em plantas do grupo C4.
As análises de isótopos sugerem que a dieta
deste indivíduo esteve centrada primordialmente no consumo de recursos marinhos. A análise
de isótopos de carbono, assim como se esperava, apresentou indicativos dúbios do consumo
de plantas do grupo C4 e da dieta baseada em
recursos marinhos (13C/12C = –14,6‰). Mas
a taxa verificada para os isótopos de nitrogênio
deixou claro que o consumo de
recursos de origem marinha
formou a base da dieta desse
indivíduo (15N/14N = +17,5‰).
Já a análise para obtenção da
datação revelou que o sepultamento remonta 1920 ± 40 A.P.3
Discussão
Os estudos realizados no
sítio Abrigo Furnas trouxeram à
luz aspectos pouco conhecidos a
respeito da ocupação précolonial do litoral norte paulista,
principalmente na região de
Ilhabela que até então tinha sido
Foto 6. Alterações presentes no fêmur direito (foto: PMI).
alvo de algumas poucas pesquisas pontuais. Apesar de apresenAmostras do material ósseo foram remetitar um relevo montanhoso e um litoral bastandas para a datação e análises de isótopos de
te recortado com extensas áreas formadas por
carbono e nitrogênio a partir do estudo do
costões rochosos, esta região propiciou o
colágeno. As análises de isótopos de carbono e
estabelecimento de grupos sambaquieiros,
nitrogênio permitem um maior entendimento
mesmo que não seja possível, ainda, definir o
a respeito da dieta deste indivíduo, tanto no
tempo de permanência desses grupos no
que concerne a predominância no consumo de
arquipélago.
plantas presentes no grupo C3 (no qual se
A existência de um sambaqui no norte da
inclui a maioria das plantas de áreas temperaIlha de São Sebastião deixa claro que a distândas – que têm no trigo seu maior representancia em relação ao continente e o relevo montate) ou no grupo C4 (composto primordialmente por plantas de regiões tropicais, a exemplo
do milho), como possibilitam compreender se a
(3) Refere-se à datação calibrada da amostra de colágeno
dieta estava baseada em recursos terrestres ou
ósseo extraída do fêmur esquerdo.
388
Cintia Bendazzoli
Raffaela Arrabaça Francisco
Marco Aurélio Guimarães
nhoso dessa região não configuraram um
impeditivo para que os sambaquis pudessem ser
erigidos no arquipélago. E mais ainda, esta
pesquisa apresenta um aspecto da ocupação
sambaquieira ainda não conhecido naquela
porção do litoral de São Paulo: a construção de
sambaqui dentro de um abrigo rochoso.
Sambaquis construídos dentro de abrigos
foram anteriormente identificados no litoral
sul do Rio de Janeiro (Mendonça de Souza
1977; Mendonça de Souza & Mendonça de
Souza 1981/1982), contudo, no litoral de São
Paulo este tipo de sítio ainda não havia sido
registrado e estudado. Cabe ressaltar que a
construção deste sambaqui em área coberta não
evidencia necessariamente um processo
adaptativo à geografia local, que inclusive
apresenta outras áreas abertas propícias para a
construção do sítio. Deve-se considerar a
intencionalidade e escolha como fatores
determinantes neste processo de ocupação e
construção.
Outro aspecto a ser considerado refere-se à
dispersão dos dois pacotes arqueológicos
encontrados no sítio. A investigação da
estratigrafia e dos componentes presentes em
ambos os estratos sugere que tenham ocorrido
dois momentos de ocupação: uma mais antiga
relacionada ao pacote conchífero e outra mais
recente onde foram localizados os artefatos
cerâmicos. Uma vez estabelecida uma data para
a ocupação sambaquieira (1920 ± 40 A.P.), foi
remetido para análise de datação um fragmento
de cerâmica retirado do pacote superior, que
indicou um período bastante posterior à
ocupação sambaquieira naquele local (460 ± 80
A.P.).4 Este segundo pacote parece estar
relacionado à posterior utilização do abrigo
como local de acampamento ou moradia
temporária por um reduzido grupo ceramista,
uma vez que a pequena dimensão do abrigo
não permite o estabelecimento de muitos
indivíduos. A localização de vestígios cerâmicos
na área externa ao abrigo sugere a realização de
atividades de cunho cotidiano, entretanto, tal
(4) Datação da amostra através do método de
termoluminescência.
hipótese ainda carece de investigações mais
aprofundadas, principalmente centradas no
estudo detalhado dos objetos.
Apesar da pequena dimensão e profundidade exibidas pelo sambaqui (com espessura
máxima de 30 cm, excetuando-se a área da fenda
onde estava o sepultamento), a estratigrafia
simples revela um acúmulo intencional de
conchas e de vestígios faunísticos restritos à
área do abrigo. Os vestígios encontrados
indicam se tratar de um local de uso aparentemente temporário voltado à realização de
atividades ritualísticas de cunho funerário. A
ausência de vestígios de atividades domésticas
na camada conchífera, verificada durante as
escavações, parece corroborar esta hipótese.
Algumas características encontradas neste
sepultamento se assemelham às práticas
funerárias verificadas em sambaquis de outras
regiões do país, como o enterramento do morto
em posição fletida e a colocação intencional de
um seixo sobre o crânio, um tipo de acompanhamento funerário comumente verificado nos
sambaquis da região sul de Santa Catarina. No
caso das análises esqueléticas, a total ausência
de cárie e o desgaste acentuado dos dentes,
aliados aos resultados obtidos através das
análises de isótopos de carbono e nitrogênio,
revelam uma dieta baseada primordialmente no
consumo de recursos marinhos.
Os estudos laboratoriais realizados permitiram a obtenção de dados significativos a
respeito da saúde e da dieta deste indivíduo e
contribuíram para o entendimento de como
eram e viviam as populações sambaquieiras
daquela região, pois, até então, as informações
existentes sobre os povos pescadores-caçadorescoletores do litoral norte paulista eram principalmente oriundas de pesquisas realizadas em
Ubatuba. Vale lembrar que também a antiguidade da ocupação do arquipélago era inferida
com base na datação do Sítio do Mar Virado,
em Ubatuba, que remonta 2.640 ± 70 A.P.
Assim como a análise do primeiro esqueleto humano escavado de um sambaqui do
arquipélago permite que os primeiros traços
característicos das populações pré-coloniais de
Ilhabela possam ser enfim desenhados, e que o
estudo de alguns dos processos construtivos e
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Arqueologia de um sambaqui em abrigo, Ilhabela-SP.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 19: 381-391, 2009.
funcionais do sítio Abrigo Furnas possam
contribuir para o entendimento do sistema de
assentamento dessa ilha e a sua relação com os
sambaquis das regiões circunvizinhas, as novas
datações para o município permitem que um
primeiro paço seja dado no sentido de se
estabelecer uma antiguidade para a ocupação
humana nesse arquipélago.
Agradecimentos
Agradecemos aos Profs. Drs. Paulo DeBlasis
(MAE/USP) e Maria Dulce Gaspar (MN/
UFRJ) pelas orientações, ao Sr. Aloísio Macedo
de Araújo pela disponibilização do acesso ao
sítio, ao arqueólogo Dr. Wagner Bornal pela
possibilidade de trabalho, ao Kuan por toda
assessoria e à Secretaria da Cultura do município de Ilhabela por dispor de recursos para a
realização das datações. Agradecemos ainda ao
Prof. Dr. Ricardo Henrique Alves da Silva da
FORP (Faculdade de Odontologia de Ribeirão
Preto-USP) e às técnicas do Laboratório de
Identificação Humana e Antropologia Forense
do CEMEL/FMRP-USP Tereza Cristina
Pantozzi da Silveira e Erika Pontin Deloiagono
Gual, pelo auxílio com as análises laboratoriais.
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