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O CORPO DANÇANTE OU DA TRADUÇAO EM LAVOURA ARCAICA1 Wanessa Gonçalves Silva2 Luciana Wrege Rassier3 RESUMO: Dentre os estudos consagrados a Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar, poucos discutem aspectos ligados à tradução e, dentre eles, raros adotam uma perspectiva semiótica. Neste artigo, buscamos identificar se, e de que forma, o corpo e a dança podem ser considerados, no romance nassariano, como tradutor e tradução, respectivamente, de traços culturais e de sentimentos dos personagens, em especial da protagonista Ana. Para tanto refletimos sobre o conceito de tradução com base na teoria geral dos signos de Charles S. Peirce, apresentada em The collected papers of Charles Sanders Peirce (1931-1958). Também recorremos às reflexões sobre o corpo articuladas por Christine Greiner (2005), José Gil (1997) e Richard Shusterman (2008), bem como as ideias de Alain Badiou (2002) e Paul Bourcier (2001) sobre a dança. Constatamos, pelo modo através do qual o corpo da protagonista se apresenta ao mundo e pelas relações por ele desencadeadas em outros corpos, que os sentidos inscritos em nosso interior se podem transferir a outros espaços-corpos, nos quais os signos gerados encontram terreno fecundo para a semiose. Os resultados também apontam que a dança pode ser encarada como tradução sígnica tanto de uma cultura específica como de sentimentos e conflitos presentes nos personagens da narrativa. PALAVRAS-CHAVE: Lavoura arcaica; Tradução; Semiótica; Corpo; Dança. REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. A BODY THAT DANCES OR ON THE TRANSLATION IN LAVOURA ARCAICA ABSTRACT: Among the studies dedicated to Lavoura arcaica [Ancient Tillage] (1975), by Raduan Nassar, few discuss aspects related to translation and, among them, those that adopt a O presente artigo é oriundo de reflexões apresentadas na tese de doutorado defendida pela autora sob orientação da coautora em 2017, intitulada Tradução e mediação: o corpo em Lavoura arcaica, de Raduan Nassar e de Luiz Fernando Carvalho, no Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução da Universidade Federal de Santa Catarina, disponível em: https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/185606/PGET0355T.pdf?sequence=-1&isAllowed=y. 2 Doutora em Estudos da Tradução pela Universidade Federal de Santa Catarina – Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-4031-2688. E-mail: s.wanessa@gmail.com. 3 Doutora em Estudos Luso-Brasileiros pela Université Montpellier III – França, com período cotutela em Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil. Realizou estágio pós-doutoral em Letras na Université de Rennes II – França e na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Brasil. Professora na Universidade Federal de Santa Catarina - Brasil. ORCID iD: https://orcid.org/0000-0002-2821-9851. E-mail: lucianarassier2020@gmail.com. 1 637 REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. semiotic perspective are rare. In this article, we seek to identify whether, and in what way, body and dance can be considered, in the Nassarian novel, as translator and translation, respectively, of cultural traits and feelings of the characters, especially the protagonist Ana. In order to do so, we question the concept of translation from the semiotics perspective provided by Charles S. Peirce on The collected papers of Charles Sanders Peirce (1931-1958). We also take into consideration reflections on the body articulated by Christine Greiner (2005), José Gil (1997) and Richard Shusterman (2008), as well as the ideas of Alain Badiou (2002) and Paul Bourcier (2001) about dance. We can see, by the way in which the protagonist's body presents itself to the world and by the relationships it unleashes in other bodies, that the meanings inscribed in our interior can be transferred to other space-bodies, in which the generated signs find fertile ground for the semiosis. The results also point out that dance can be seen as a sign translation both of a specific culture and of feelings and conflicts present in the characters of the narrative. KEYWORDS: Ancient tillage; Translation; Semiotics; Body; Dance. “Porque agora te falo a sério: não estou brincando com palavras. Encarno-me nas frases voluptuosas e ininteligíveis que se enovelam para além das palavras. E um silêncio se evola sutil do entrechoque das frases.” Clarice Lispector 1 UNIVERSAL PORQUE VISCERAL Mais de quatro décadas após sua publicação, Lavoura arcaica segue intacto na singular posição por ele assumida na literatura brasileira: um romance universal porque visceral. Raduan Nassar, ao escrevê-lo, trabalhou, como ele mesmo diz, a “casca e gema” das palavras, dando não só refinamento linguístico e estético ao seu texto, mas conferindo-lhe substância carnal. O verbo em Lavoura arcaica se faz carne, torna-se corpo, e todo significado represado nas palavras revela-se nos corpos inseridos naquele cosmo por meio da leitura, ela própria corporal. A leitura atenta e profunda que Nassar faz do “livrão” da vida (CADERNOS..., 1996, p. 27) pode ser sentida no romance, pois pelo corpo de seus personagens vemos o desenrolar de uma história passional e a tradução de aspectos culturais verbalmente não mencionados no texto. 638 Raduan Nassar se fez pelo intermeio de culturas e saberes. Brasileiro, filho de imigrantes libaneses, abandonou cursos universitários, a empresa da família, o jornalismo e o agronegócio, mas o abandono da literatura em 1984 foi o que lhe rendeu a alcunha de “personagem fascinante” (NASSAR, 1997, p. 12). Retirou-se da cena literária, na qual havia se consagrado como escritor com a publicação de apenas dois livros, para dedicar-se à produção rural. Não tinha mais muito a ver com a literatura, argumentava, por isso estava dando uma “virada radical” em sua vida (CARIELLO, 2012). Não tinha mais a mesma paixão “não se faz literatura para valer com paixão requentada”, explicou Nassar (1997, p. 9) anos depois. Apesar de seu rompimento com a literatura e reclusão, a publicação mais recente de artigos nos quais o autor expõe sua visão crítica sobre a situação política, econômica e cultural do país, a transposição de seus dois livros para as telas do cinema, uma em 1999 (Um copo de cólera) e a outra em 2001 (Lavoura arcaica), junto com as diversas traduções publicadas ao longo de todos esses anos, trouxeram mais visibilidade à obra do autor, mantendo seu nome em foco no Brasil e no exterior. Em 2016, a exemplo, Um copo de cólera foi indicado ao Man Booker Prizer e, pelo conjunto de sua obra, Nassar recebeu o Prêmio Camões, principal premiação de literatura em língua portuguesa, confirmando o que há muito a crítica havia anunciado: que ao lado de Clarice Lispector e Guimarães Rosa, REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. que o levara a escrever Lavoura arcaica (1975) e Um copo de cólera (1978), e Nassar é uma das grandes vozes da literatura brasileira. Ao final do mesmo ano, sua obra completa foi lançada pela editora Companhia das Letras, em uma edição sofisticada. Diante da permanência da escrita de Nassar, diversos estudos sobre sua obra têm sido conduzidos no Brasil e no exterior em âmbito acadêmico4, o que comprova que “[c]lássico, porque sempre contemporâneo, o A primeira edição da Obra completa de Nassar, publicada em 2016, apresenta uma extensa lista de publicações sobre a obra do autor elaborada por Elfi Kürten Fernske, incluindo sua fortuna crítica, adaptações e traduções. Uma relação de artigos sobre a obra do escritor e entrevistas até 2002 é apresentada por Rassier (2002). Atualizada até 2017, uma lista de trabalhos acadêmicos sobre a obra de Nassar, além de entrevistas, traduções, premiações e adaptações para o cinema de sua obra, encontra-se disponível no repositório digital Templo Cultural Delfos (FENSKE, 2013). 4 639 Verbo nassariano, com seus requintes alquímicos, subverte os limites do tempo e do espaço” (RASSIER, 2017, p. 26). Neste artigo, propomos uma reflexão sobre tradução envolvendo semiótica e corpo, uma discussão não sobre as traduções entre línguas feitas da REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. obra de Nassar, mas acerca da tradução que ocorre dentro do romance Lavoura arcaica, a tradução sígnica que acontece nos e por meio dos corpos dos personagens, voltando nossa atenção especificamente para Ana, a protagonista que dança, parte integrante de um universo patriarcal, propulsora da paixão vivida por André5 e responsável por incendiar valores austeros fundamentados na disciplina e no trabalho. Interessa-nos aqui, a partir da narrativa nassariana, refletir sobre o conceito de tradução de uma forma mais ampla, considerando, para tal, a teoria semiótica peirceana e questionando de que forma corpo e dança podem ser considerados tradutor e tradução. 2 PENSANDO A TRADUÇÃO: DO SIGNO À DANÇA Para o senso comum, pensar em tradução remete à transposição de textos escritos ou discursos orais de um determinado idioma para outro. Roman Jakobson, entretanto, em seu On linguistic aspects of translation, nos oferece uma visão bem mais instigante sobre o assunto. Abordando o signo linguístico com base nas afirmações de Charles Sanders Peirce, Jakobson (2012, p. 127) argumenta que o significado do signo é a sua tradução para um signo alternativo e mais desenvolvido. Ainda que o termo tradução tenha sido utilizado por Peirce e por Jakobson em sentido figurado, como argumenta Eco (2011, p. 253), se 640 tomarmos o significado de um signo linguístico como sua tradução para outro 5 Sobre André como uma figuração do filho pródigo, ver Rassier (2003). signo, temos, em essência, que o processo tradutório envolve e caracteriza-se pela geração de signos. Assim, a argumentação de Jakobson nos leva a refletir sobre a tradução como um processo de semiose, no qual novos signos são produzidos em um sistema semiótico diferente do sistema inicial, mas que representam os mesmos objetos ou objetos semelhantes, criando objetos de modo infinito, num movimento contínuo responsável pelo acesso ao significado da obra. Jakobson foi o primeiro a definir e classificar os tipos de tradução6 (PLAZA, 2001, p. XI), tomando um signo alternativo como a tradução de um signo linguístico e, ao mesmo tempo, traçando um paralelo entre o processo tradutório e o interpretativo, pois, de acordo com o linguista, os três tipos de tradução envolvem a interpretação de signos verbais (JAKOBSON, 2012, p. 127). Presente tanto na tradução intralingual quanto na tradução interlingual e intersemiótica, é neste último tipo que a interpretação torna-se mais evidente e capaz de criar um objeto estético à parte ao proporcionar novas visões sobre a obra a ser traduzida ou transmutada. E realizar transmutações envolve, de forma recorrente, o isolamento de um dos níveis da obra original, aquele entendido como o “único realmente importante para restituir o sentido da REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. interpretantes ou novos signos que assumem a mesma relação tríadica com tais obra”, como observa Eco (2011, p. 371). No que diz respeito à introdução de um novo pensamento acerca da tradução, a tipologia e as definições elaboradas por Jakobson nos levam a considerar o ofício tradutório como uma operação realizada entre signos, independentemente do tipo de tradução que se realize. Mesmo ao considerarmos a tradução somente do ponto de vista linguístico, percebemos que a operação realizada entre textos e, consequentemente, entre línguas traz 641 6 Referimo-nos à tradução intralingual, à tradução interlingual e à tradução intersemiótica. o signo como seu constituinte básico, sendo este também a unidade essencial de qualquer linguagem. Para Saussure (2006), o estudo do signo como elemento comum a todos os tipos de linguagens desvela a “verdadeira natureza da língua”, e os fatores REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. linguísticos, a priori considerados importantes, passam a ser secundários quando utilizados na distinção entre a língua e outros sistemas. Com isso, não apenas se esclarecerá o problema linguístico, mas acreditamos que, considerando os ritos, os costumes etc., como signos, esses fatos aparecerão sob outra luz, e sentir-se-á a necessidade de agrupá-los na Semiologia [...]. (SAUSSURE, 2006, p. 25). Ele nos diz também que a língua se caracteriza como “um sistema de signos que exprimem ideias, [...] comparável, por isso, à escrita, ao alfabeto dos surdos-mudos, aos ritos simbólicos, às formas de polidez, aos sinais militares etc., etc.” (SAUSSURE, 2006, p. 24). Então, se falamos de um conjunto de convenções que compõem a língua, falamos de um sistema de signos que correspondem a ideias. Considerando as reflexões de Saussure sobre a língua, a partir das quais entendemos os signos como comuns às linguagens, e tendo em mente o pensamento de Jakobson sobre tradução, ao conceituarmos este ofício como um processo que envolve línguas e linguagens, entendemos que ele ocorre, na realidade, entre signos. É, sem dúvida, um ato comunicativo entre culturas de diferentes línguas e costumes; entretanto, ele não acontece apenas no nível linguístico, uma vez que os signos, ao exprimirem ideias, conforme coloca Saussure, se originam também dos processos de interação não linguística entre 642 o ser e o mundo a partir da experiência do indivíduo e de uma originalidade irresponsável e livre, como nos diz Peirce (C.P., 2.85)7. Ao ponderarmos a língua e a linguagem com base na natureza essencialmente sígnica de ambas, podemos, então, trabalhar com uma definição de tradução capaz de colocar o ofício tradutório, a atividade intersemiótica e a dos costumes, dos corpos inseridos no meio cultural e das manifestações artísticas como sistemas constituídos por signos, produtores de significados, e, por conseguinte, como linguagem capaz de traduzir e passível de ser traduzida. Por essa razão, consideramos a dança como um tipo de tradução que transpõe, por meio do corpo e de seus movimentos, signos responsáveis por expressarem ideias, sentimentos e também traços culturais. Trata-se de uma tradução constituída por signos não linguísticos literalmente em movimento, a qual chamaremos tradução sígnica8, entendendo o signo como: [...] aquilo que, sob certo aspecto ou modo, representa algo para alguém. Dirige-se a alguém, isto é, cria, na mente dessa pessoa, um signo equivalente, ou talvez um signo mais desenvolvido. (C.P., 2.228). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. interpretação numa esfera de ação única, possibilitando também a abordagem Considerar o corpo como tradutor e a dança como tradução significa observar um tipo de mediação que se concretiza por dar vazão a signos icônicos, The collected papers of Charles Sanders Peirce (C.P.) (1931-1958), editado por Charles Hartsforne, Paul Weiss e Arthur W. Burks. Seguimos o convencionado para as chamadas de citações extraídas dos textos de Peirce: a sigla C.P. seguida das numerações do volume, isolada por um ponto final, e do parágrafo de onde se encontram. A tradução do texto peirceano aqui utilizada foi feita por J. Teixeira Coelho Neto e publicada sob o título Semiótica (1999) pela editora Perspectiva. 8 Não fosse a limitação da definição dada por Jakobson (2012) à tradução intersemiótica, ou seja, “a interpretação de signos verbais por meio de signos pertencentes a sistemas de signos não verbais” (JAKOBSON, 2012, p. 127, grifo nosso, tradução nossa), poderíamos considerar a dança, de modo geral, como tradução intersemiótica. Este não é o caso aqui. Para uma discussão aprofundada sobre a tradução sígnica, confira Silva (2017). 7 643 que estabelecem certa relação de semelhança com seu objeto (C.P., 2.247), indiciais, que atraem a atenção para os objetos que denotam (C.P., 1.369), e simbólicos, que se referem a um objeto em virtude de uma associação de ideias (C.P., 2.249). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. Ao assumirmos a tradução como um processo de mediação entre signos, invalidamos o conceito restrito que limita o processo e o produto tradutório ao âmbito linguístico, e passamos a considera-la sob a perspectiva ampla da “teoria sígnica do conhecimento” (SANTAELLA, 2008, p. 9), na qual a noção de signo não diz respeito estritamente ao signo verbal, mas contempla signos visuais, sonoros, gestuais, culturais, etc. Abordamos, portanto, a tradução como um processo fundamentalmente semiótico, o que implica considerar que “não existe ‘a’ tradução correta ou perfeita”, mas “muitas traduções possíveis e, assim, igualmente ‘corretas’” (WEININGER, 2009, p. XXV), manifestas pela língua ou por meio das artes plásticas, da música, do cinema, da dança ou simplesmente por meio do corpo, suas posturas, seus gestos, expressões ou movimentos. 3 O CORPO TRADUTOR Como ferramenta primordial de aprendizado e percepção, é pelo corpo que nos relacionamos com o meio e fazemos a síntese necessária entre o conhecimento já existente e as novas informações a fim de comunicarmos opiniões, sentimentos e sensações. Afora um instrumento cognitivo e comunicativo, o corpo caracteriza-se como um agente interpretativo e produtor de significados ao gerar signos e possibilitar que o indivíduo traduza sua realidade e expresse seu entendimento das situações vivenciadas. 644 O corpo insere o sujeito em uma realidade concreta e lhe proporciona experiências novas, que serão contrastadas com aquelas já assimiladas. Deste diálogo, pensamentos e sentimentos diversos surgirão no indivíduo e dele farão parte até que o corpo, por meio de outras vivências, lhe propicie novas sínteses. Como um produto dessa mediação, os gestos originam-se do corpo, traduzindo e comunicando as emoções e os pensamentos do indivíduo. Segundo Gil (1997) e Greiner (2005), os gestos, como signos naturais do corpo, significam e comunicam algo ao meio porque há, mesmo de forma inconsciente, uma A exemplo dos signos linguísticos, os corporais originam-se na categoria da mediação, da interação entre um primeiro e um segundo induzida por um terceiro, e são compreendidos por um intérprete não apenas por pertencerem a um código específico e conhecido, mas principalmente por possuírem uma familiaridade com aquilo que denotam (C.P., 8.179). Gesto ou expressão alguma ou, segundo Peirce, “signo algum pode ser entendido [...] a menos que o intérprete tenha um ‘conhecimento colateral’ de cada um de seus Objetos” (C.P., 8.183). Assim, pensar o corpo como tradutor significa pensá-lo a partir de suas funções mediadora e comunicativa, considerando que o produto da interação entre o sujeito e o meio é formado de unidades de significado responsáveis pela propagação de sentidos, estando elas fundamentadas num código implícito, mas socialmente partilhado. Compreender o signo corporal ou o linguístico, no entanto, não diz REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. codificação partilhada. respeito apenas ao conhecimento do código do qual ele faz parte, sendo necessário conhecer o seu objeto, ou seja, aquilo a que o signo está diretamente ligado e representa. A expressão facial de alegria ou de tristeza de uma pessoa, por exemplo, é passível de ser entendida por já termos experienciado tais sentimentos, acessado corporalmente as sensações causadas pela alegria ou pela tristeza, e não somente por termos entendido, racionalmente, tal expressão ou gesto como um código representativo de algo. Desse modo, a partir da mediação realizada entre o ser e o mundo, o corpo produz seus signos, elementos responsáveis por interpretar e expor o fluxo de pensamentos e 645 emoções do indivíduo, compreendidos pelo outro por meio de sua familiaridade com o objeto ali expresso. A esta interpretação e exposição empreendida pelo corpo chamamos de tradução sígnica, pois ela toma as ideias, opiniões e sentimentos gerados na REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. síntese realizada pelo sujeito e os codifica em gestos. Temos, então, um processo de transposição de algo abstrato em algo concreto, signos materializados no corpo e pelo corpo. Como signos, os gestos evoluem no sentido de produzirem novos signos na mente do intérprete, os quais se relacionam com os mesmos objetos denotados pelos gestos e produzem outros signos aptos a iniciarem uma nova relação com tais objetos e a produzirem novos signos. Ocorrendo de forma infinita, tal cadeia de relações é responsável pela propagação dos signos e dos significados, e trata-se do processo de semiose contínua explicado por Peirce em sua teoria geral do signo (C.P., 2.92). Entendemos o que a movimentação, o gesto ou a postura de outrem querem transmitir porque o corpo, em sua linguagem, produz signos e desempenha um papel decisivo “na função significante, e em especial no simbolismo”, conforme diz José Gil (1997, p. 32). Quando falamos tanto do corpo em performance quanto do corpo no cotidiano, a compreensão que temos daquilo que está sendo transmitido não se apoia apenas na decodificação dos signos produzidos, mas também na perturbação causada por tais signos e sentida em nossos próprios corpos. De acordo com Gil (1997, p. 34): Os signos que [...] [emitimos] perturbam-nos porque não se podem desligar do significado inscrito no próprio corpo. O mal-estar provém do facto de [...] [utilizarmos] o corpo para significar — e significar (pela linguagem articulada, por exemplo) é, em última análise, reenviar ao corpo. 646 Traduzimos no e pelo corpo porque a ele direcionamos todo signo produzido e todo significado passível de ser produzido. E graças a essa perturbação trazida pelo “reenviar ao corpo”, talvez mais do que à codificação subentendida, somos capazes de compreender um olhar de afeto ou de ira, identificar, num gesto, poder, submissão ou resistência, captar discursos dissidentes inscritos na carne e por eles sentir empatia mesmo que a partir do horror e da repugnância causados (FONTES, 2018). Tal perturbação nos primordial de percepção e ação, o corpo, receptáculo de transformação de experiências, de apreciação sensória e construção de identidade (SHUSTERMAN, 2008). No caso do Lavoura arcaica — assim como em todos os escritos de Nassar —, toda a perturbação por ele causada desde o seu lançamento até os dias atuais deve-se não pelo fato de abordar um assunto entendido como tabu, mas porque fomenta, segundo Rassier (2017, p. 26), espanto, “cólera, desejo, angústia, perplexidade, volúpia e tudo mais que as paixões e os sentidos sejam capazes de criar no laboratório do nosso corpo”. 4 O CORPO NA DANÇA DE RODA: TRADUÇÃO DO TEMPO E DA ORIGEM Em Lavoura arcaica, é possível perceber que a tradução de um forte REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. proporciona, assim, aquisição de conhecimento por meio de nosso instrumento traço cultural ocorre por meio da configuração assumida pelos corpos que bailam durante as festas de família, nos tempos verbais pretéritos das cenas a seguir: o imperfeito na primeira e perfeito na segunda. Cena 01: [...], e era então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro, compondo ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como se fosse o contorno destacado e forte da roda de um carro de boi [...] (NASSAR, 1989, p. 27, grifo nosso). 647 REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. Cena 02: [...], e foi então a roda dos homens se formando primeiro, meu pai de mangas arregaçadas arrebanhando os mais jovens, todos eles se dando rijo os braços, cruzando os dedos firmes nos dedos da mão do outro, compondo ao redor das frutas o contorno sólido de um círculo como se fosse o contorno destacado e forte da roda de um carro de boi [...] (NASSAR, 1989, p. 185, grifo nosso). A repetição da cena em momentos cronológicos diferentes da narrativa pode ser considerada tradução do conceito de tempo circular presente, por exemplo, na cultura árabe, configurando-se como uma tradução sígnica indicial. Como índice, a repetição do evento refere-se ao objeto que denota, o tempo circular, ao ser diretamente afetada por ele sem, no entanto, ser meramente semelhante a ele (C.P., 2.248). O signo indicial manifesta-se ainda na formação em círculo assumida pelos personagens do romance no momento da dança, estando em consonância com o pensamento peirceano quanto ao fato de o índice possuir qualidades em comum com seu objeto (C.P., 2.248), além de estar presente também na música que irá marcar o ritmo dos que bailam nas passagens em questão. De acordo com Dib (2013, p. 46), “é pela mudança, pela consciência do ‘antes’ e do ‘depois’ que temos a consciência do tempo”, modo este de marcar a ocorrência dos fatos presentes não apenas nos episódios de dança, mas em toda a narrativa de Lavoura arcaica, não havendo qualquer outro tipo de referência cronológica no texto, como datas ou estações do ano. Trata-se de uma visão do tempo alinhada com os fenômenos naturais, com o movimento de expansão e 648 contração constante do cosmos; uma visão ligada ao “grande ciclo de existência do universo” dentro do qual ciclos menores acontecem, como o dia e a noite, e fatos se “repetem, mas sempre de forma renovada, como uma espiral, já que não existe repetição absoluta no universo” (DIB, 2013, p. 49). Quando o tempo é concebido como circular, o que tem mais valor é a experiência, a imersão naquele momento. Assim, é possível estar vivenciando uma situação semelhante, mas a experiência é nova, pois a característica temporal dominante é o instante, a duração, o tempo presente. (DIB, 2013, p. 49). notamos que nelas o tempo é transposto fisicamente na formação adotada pelos corpos dos personagens nos momentos de dança, de mãos dadas, assumindo o “contorno sólido de um círculo”, movendo-se de forma “emperrada” até encontrar-se com sua própria força e, vibrante, acelerar-se ao som da flauta. Temos, então, a tradução de tempo enquanto “sucessão contínua e invariável de instantes, todos idênticos uns aos outros”, e a tradução do céu cósmico relacionado à terra, na qual “o círculo simboliza a atividade do céu, sua inserção dinâmica no cosmo, sua causalidade” (CHAMPEAUX G.; dom STERCKX S., 1966, apud CHEVALIER; GHEERBRANT, 2003, p. 250). Cena 01: [...] e logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxava do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se punha então a soprar nela como um pássaro, [...] e ao som da flauta a roda começava, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voava de repente, [...] e a roda então vibrante acelerava o movimento circunscrevendo todo o círculo [...] (NASSAR, 1989, p. 27-28, grifo nosso). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. Ao percebermos o conceito de tempo cíclico nessas duas passagens, Cena 02: 649 REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. [...] e logo meu velho tio, velho imigrante, mas pastor na sua infância, puxou do bolso a flauta, um caule delicado nas suas mãos pesadas, e se pôs então a soprar nela como um pássaro, [...] e ao som da flauta a roda começou, quase emperrada, a deslocar-se com lentidão, primeiro num sentido, depois no seu contrário, ensaiando devagar a sua força num vaivém duro e ritmado ao toque surdo e forte dos pés batidos virilmente contra o chão, até que a flauta voou de repente, [...] e a roda então vibrante acelerou o movimento circunscrevendo todo o círculo [...] (NASSAR, p.185-186, grifo nosso). Dançar de mãos dadas, em roda ou em fila, faz parte das tradições de muitos povos, mas os passos fortes e ritmados pela batida dos pés contra o chão num compasso vibrante é uma característica do dabke, dança popular no Líbano, na Palestina, Jordânia, Síria, em Israel e em algumas regiões do Iraque. O dabke (literalmente, “bater os pés no chão”) traduz em dança, por meio de signos indiciais, uma antiga tradição árabe, nascida na época em que os telhados das casas eram feitos de troncos de árvores e barro. Com a mudança das estações, especialmente na chegada do inverno, o barro rachava e cedia pouco a pouco, fazendo com que os telhados precisassem ser consertados. Então, as pessoas se reuniam para fazerem os reparos necessários. De mãos dadas, organizando-se em fila e lideradas pelo anfitrião, elas batiam com seus pés sobre o barro de modo a reacomodá-lo, num movimento de roda quase emperrado no início, como descreve André no Lavoura, mas que se tornava, gradualmente, um conjunto de passos intricados, ritmados e bem marcados (ALZAYER, 2004, p. 57). Esse ritual de ajuda mútua era executado ao som do daloonah, uma forma improvisada de se cantar e dançar que servia de estímulo para o trabalho, à qual foram adicionados instrumentos musicais como o derbak (instrumento rítmico percussivo), a nay e a mijwiz (instrumentos melódicos de sopro). 650 Em termos semióticos, pela simples qualidade de ser uma dança folclórica, o dabke torna-se um índice capaz de traduzir um fato cultural por meio da ligação que possui com esse fato, o objeto que denota, partilhando algumas qualidades e sendo influenciado e modificado por ele, o que podemos perceber na composição dos gestos e passos característicos da dança. Conforme Peirce explica, um índice, por ter qualidades em comum com seu objeto, envolve um tipo peculiar de ícone, que não diz respeito a uma mera representação do dos pés no chão e o ato de dar as mãos, por exemplo, ou seja, os gestos, como ícones, signos que se referem ao objeto que denotam pelas características que possuem (C.P., 2.247), estas ligadas à prática social da qual nasceu essa dança. Por meio de uma relação referencial, a dança dabke gera significados a partir de associações de ideias e partilha do status de símbolo devido a uma convenção existente (C.P., 2.249), uma vez que é reconhecida como dança nacional libanesa e representa, portanto, essa cultura (ALZAYER, 2004, p. 56). Em virtude deste processo de geração de signos, quando falamos em dabke, lembramos que sua origem não está somente ligada ao trabalho, mas ao trabalho realizado em equipe, e, por isso, se trata de uma dança que celebra o espírito de solidariedade e que se tornou símbolo tradutor da união e da força de um povo. Ainda que nenhuma indicação seja feita sobre o tipo de música que REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. objeto que denota (C.P., 2.248). Assim, em uma roda de dabke, vemos o bater acompanha as cenas de dabke em Lavoura arcaica, por “conhecimento colateral” (C.P., 8.183), ou seja, “prévia familiaridade com aquilo que o signo denota” (C.P., 8.179), sabemos que a música iniciada pelo velho tio de André, imigrante e “pastor em sua infância”, possui uma estrutura denominada modal, presente na música árabe em geral, a qual traduz em sons a concepção de tempo circular. Nesse tipo de estrutura, as frases melódicas giram “em torno de uma tônica (nota de base)”, criando “um efeito hipnótico, uma experiência de suspensão do tempo [...]. É novamente a ideia de círculo: notas que circulam ao redor de um centro, no caso a nota tônica da escala” (DIB, 2013, p. 50). 651 Sobre o sistema modal, Márcia Dib (2013, p. 84) explica que ele é utilizado em sociedades onde o mundo é entendido em relação a um eixo vertical, por meio do qual a existência material está ligada a algo em um plano superior e a algo em um plano inferior. Acredita-se, nessas sociedades, que o REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. homem está ligado a um todo e que existe uma relação entre todas as coisas do mundo, sendo o tempo circular. De acordo com essa visão, as pessoas precisam estar “afinadas com os ciclos do universo” e, para tal, devem estar imersas em cada ciclo, ou seja, imersas no tempo da experiência. Lembrando que todo círculo possui um centro, temos que o centro do tempo circular é, então, o tempo presente, o único tempo no qual as experiências podem ser vividas. No romance, a roda de dabke, com todos os signos que os corpos nela presentes carregam, traduz não só uma cultura, mas a noção de tempo, e Ana, ao tomar o centro da roda, torna-se o centro do tempo e do cosmos criado por Nassar. É no centro, no presente suspenso pela dança, cuja “essência do movimento está no que não teve lugar” (BADIOU, 2002, p. 82, grifo do autor), que a dançarina oriental da obra de Nassar experimenta seus desejos e seus conflitos, dando a eles vazão por meio do corpo. 5 O CORPO DE ANA E A TRADUÇÃO SÍGNICA Embora Ana possa ser considerada o centro do tempo e do cosmos criado por Nassar, as referências a ela e a seu corpo ocorrem de modo esparso. André, o narrador da trama, conta que Ana tinha “corpo de campônia” (NASSAR, 1989, p. 28, 95), um corpo rude (BOURDIEU, 2006, p. 87), que traduzia, como o corpo grosso da mãe (NASSAR, 1989, p. 25, 153), a dura rotina das atividades da fazenda. Valendo-se desse corpo, Ana se faz ouvida sem dizer uma palavra 652 nas duas cenas de dança, durante as festas de família. Nelas, Ana, “cheia de uma selvagem elegância” e em completo silêncio, espalha signos perturbadores por meio de seu corpo, fazendo a vida daqueles que a veem dançar “mais turbulenta, tumultuando dores, arrancando gritos de exaltação” (NASSAR, 1989, p. 29, 187). Diferenças em seu discurso corporal, porém, traduzem intenções e desejos de formas distintas nas cenas abordadas. Na primeira, Ana invade o círculo formado para a dança e se coloca tanto como uma garota da terra, bint al balad (FRANKEN, 2002, p. 18), zelosa de “passos precisos” e capaz de enfeitiçar a todos. Ana, cabelos negros presos de lado por uma flor vermelha, traz na pele o frescor do cheiro de alfazema, na boca, toda a meiguice da donzela e, nos olhos de tâmara, o mistério e o veneno da cigana (NASSAR, 1989, p. 28, 30). Cena 01: [...] e não tardava Ana, impaciente, impetuosa, o corpo de campônia, a flor vermelha feito um coalho de sangue prendendo de lado os cabelos negros e soltos, essa minha irmã que, como eu, mais que qualquer outro em casa, trazia a peste no corpo, ela varava então o círculo que dançava e logo eu podia adivinhar seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas, e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante [...] (NASSAR., p. 2829, grifo nosso). REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. dos valores familiares e digna de respeito, quanto como uma mulher sedutora, Cena 02: [...] e quando menos se esperava, Ana (que todos julgavam sempre na capela) surgiu impaciente numa só lufada, os cabelos soltos espalhando lavas, ligeiramente apanhados num dos lados por um coalho de sangue (que assimetria mais provocadora!), toda ela ostentando um deboche exuberante, [...] foi assim que Ana, coberta com as quinquilharias mundanas da minha caixa, tomou de assalto a minha festa, varando com a peste no corpo o círculo que dançava, introduzindo com segurança, ali no centro, sua petulante decadência, assombrando os olhares de espanto, suspendendo em cada boca o grito, paralisando os gestos por um 653 REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. instante, mas dominando a todos com seu violento ímpeto de vida, e logo eu pude adivinhar, apesar da graxa que me escureceu subitamente os olhos, seus passos precisos de cigana se deslocando no meio da roda, desenvolvendo com destreza gestos curvos entre as frutas e as flores dos cestos, só tocando a terra na ponta dos pés descalços, os braços erguidos acima da cabeça serpenteando lentamente ao trinado da flauta mais lento, mais ondulante [...] (NASSAR, 1989, p. 186-187, grifo nosso). A flor vermelha prendendo os cabelos de lado chama a atenção para a sensualidade do corpo que dança e simboliza uma emoção intensa, traduzindo naquele corpo o ato de levantar os cabelos com as mãos por trás da cabeça frequentemente utilizado na dança árabe solo, ou dança do ventre, também para representar a quebra da barreira entre o mundano e o sagrado (DEAGON, 1997). O poder da dança, segundo Deagon (1997, tradução nossa), coloca a bailarina e o seu público em conexão com uma rede mítica e de imagens simbólicas. Para a autora: [...] aquilo que é vasto e cósmico torna-se compreensível por meio da dançarina, que o imbui de significados específicos, oriundos tanto de sua própria experiência quanto dos valores de sua cultura 9. Dessa maneira, numa cultura em que há a busca pelo alinhamento pessoal com os ciclos do universo, os gestos curvos, sinuosos de Ana, traduzem o movimento da água, elemento essencial para a fecundação da terra, sendo esta tocada por ela com os pés descalços para que a energia do centro de seu corpo, liberada pelo movimento de seus quadris, flua em todos os espaços, atingindo a 654 todos na roda que gira “cada vez mais veloz, mais delirante” ao som das palmas a cada instante “mais quentes e mais fortes” (NASSAR, 1989, p. 29). Ela traz, 9 “[…] what is vast and cosmic is made comprehensible by the dancer who imbues it with specific meanings, those that arise both from her individual life, and from the values of her culture.” para a roda de dança, “uma excitação nervosa recíproca, um abandono de ao menos uma parte da identidade pessoal em proveito da identidade do grupo” (BOURCIER, 2001, p. 9). Quando dança pela segunda vez, Ana espalha lavas com os cabelos e, atenção de todos. Com o corpo enfeitado pelas “quinquilharias mundanas” das prostitutas de André, Ana, “sempre mais ousada, mais petulante” (NASSAR, 1989, p. 188), transforma seu corpo e seus gestos nos índices que apontam para a rejeição dos valores há muito impostos e que informam o mundo sobre a existência do desejo carnal também em si. No espaço do corpo que dança, por meio de seus gestos curvos e do corpo embebido no vinho (NASSAR, 1989, p. 187, 188), Ana é capaz de dizer não àquilo que a oprime, as regras e os valores impostos pelo pai. Quando dança pela última vez, o corpo de Ana traduz sua metamorfose interna e a transformação do seu entorno sem pensar nas implicações que poderia desencadear. Ao transgredir os dogmas familiares por se apresentar num corpo abjeto, que causa repulsa e horror, quebrando os mecanismos históricos de poder (FONTES, 2018, p. 252) em ação naquele cosmos, Ana ultrapassa a divisa que protege a luz calma e clara da casa da família contra as REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. com o corpo impaciente, toma de assalto a festa do irmão, chamando para si a trevas do mundo das paixões e leva o pai a se antecipar no “processo das mudanças” (NASSAR, 1989, p. 54, 55), contradizendo as lições de uma vida inteira dadas por ele. No corpo dançante de Ana, vemos o seu “espaço interior” desposando “estreitamente o espaço exterior”, despertando em nós a consciência de que o “movimento visto de fora” coincide com o “movimento vivido ou visto do interior” (GIL, 2002, p. 47, grifo do autor). Como em regimes ditatoriais, nos quais a soberania é mantida pelo “monopólio da força” e pelo “controle sobre a vida e os corpos dos indivíduos”, principalmente e de “maneira mais extensiva e rígida sobre os corpos 655 femininos” (PEREIRA, 2017, p. 146), o patriarca em Lavoura arcaica mantém o controle sobre os corpos daquele universo até o momento que o corpo de Ana, no centro do cosmos traduzido em círculo, dá vazão à grande tormenta na REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. segunda vez que dança: o patriarca, “possuído de cólera divina”, intervém naquela dança e quebra os dogmas pregados por ele mesmo. Era “a lei que incendiava” (NASSAR, 1989, p. 191) não só para a destruição do que havia se tornado arcaico, mas para a criação de uma nova ordem. Violar preceitos é causar tensão. Ao opor-se aos preceitos morais paternos, Ana desonra a família. Em sociedades patriarcais, a honra da família possui a máxima importância e garante status social e respeitabilidade. Se ela for, de alguma forma, perdida, precisa ser recuperada. No caso do Lavoura arcaica, mesmo não havendo a certeza do incesto entre Ana e seu irmão André, a honra é maculada pela negação dos preceitos morais e familiares, e pela desconfiança obsessiva do pai, cujo sentimento exagerado de dever proteger as tradições “o leva ao absurdo”, “o assassinato, um paroxismo de princípios patriarcais” (ZILLY, 2009, p. 48). A honra da família, a castidade feminina, ou seja, o estado da vagina, que, no caso da mulher não casada, tem que ser virginal, é uma fixação exacerbada, uma obsessão sexual, onde o apolíneo e o dionisíaco pervertidos se tocam. Quaisquer fanatismos e fixação são pouco apolíneos, pois deixam o homem à mercê de instintos e emoções indomados. (ZILLY, 2009, p. 48). Senão em nome da honra, da virtude e principalmente da castidade feminina, por que mais todas as rédeas cederiam, “desencadeando-se o raio numa velocidade fatal” (NASSAR, 1989, p. 190) que não poupou a vida da filha transgressora? Valendo-se de seu direito de pai e de sua austeridade, o patriarca 656 “atingiu com um só golpe a dançarina oriental” (NASSAR, 1989, p. 190) para reaver sua honra, pensando, talvez, ser possível transformar tal ato num símbolo moralizante. Cego pela revelação suscitada pelo corpo e pela dança de Ana, tornou-se ele também um perversor do amor e da união da família pregados com tanto afinco durante anos. E, na sua “obsessão sexual” de pai, o dionisíaco subverteu o apolíneo. Analisando não só corpo e a dança em Lavoura arcaica, mas repensando também a tradução sob o prisma da semiótica peirceana, compreendemos que o processo tradutório e o seu produto são, em verdade, um movimento interpretativo incessante que vai além das fronteiras linguísticas, passível de acontecer entre sistemas sígnicos diversos e até aparentemente improváveis de se relacionarem entre si, como o sistema de signos verbais e o de signos corporais. E, no caso de Lavoura arcaica, a mediação ocorrida no espaço do corpo dos personagens gera signos que se manifestam pela força imagética das palavras. Ana, envolta em silêncio no espaço e no tempo de seu corpo, significa por meio deste, gera signos que traduzem sua metamorfose contestadora da ordem paterna e perturbam os corpos ao seu entorno ao reenviar a eles os REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. 6 CONSIDERAÇÕES FINAIS significados neles já inscritos. Ela subverte a ordem opressora fazendo com que tal subversão seja manifesta pelo corpo do próprio opressor, o pai. Percebemos, pelo modo através do qual o corpo de Ana se apresenta ao mundo e pelas relações por ele desencadeadas em outros corpos, que os sentidos inscritos em nosso interior se podem “tão perfeitamente transferir simbolicamente a outros espaços” (GIL, 1997, p. 177), outros espaços-corpos, nos quais os signos gerados encontram terreno fecundo para a semiose. Diante dessa reflexão, constatamos que, em Lavoura arcaica, Raduan Nassar nos oferece a possibilidade concreta de tomar a dança enquanto tradução sígnica tanto de uma cultura específica como de sentimentos e 657 conflitos presentes nos personagens e em toda a história narrada, confirmando no corpo um poder de expressão que a língua por vezes não logra atingir: “A língua nos propicia algumas coisas, mas nos faz perder outras10 [...]” (DEAGON, 1997, tradução nossa), e é na transmissão dos signos pelo corpo e pela dança REVELL – ISSN: 2179-4456 - 2020 – v.2, nº.21 – agosto de 2020. que se traduz a complexidade daquilo que, no nível linguístico, não somos capazes de exprimir. REFERÊNCIAS ALZAYER, Penni. Middle Eastern dance. Philadelphia: Chelsea House Publishers, 2004. BADIOU, Alain. A dança como metáfora do pensamento. In: BADIOU, Alain. Pequeno manual de inestética. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002. p. 79-96. BOURCIER, Paul. História da dança no ocidente. 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