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RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ ESCRITAS PARALELAS: CÓPIA E CRIAÇÃO EM UMA FANFICTION DE DOM CASMURRO Renan Mazzola1 RESUMO: Este artigo tem como objetivo analisar a constituição da autoria em uma fanfiction de Dom Casmurro, publicada por uma adolescente do Rio de Janeiro na internet em 2011. Para esse fim, elegemos o seguinte problema de pesquisa: como ocorrem as transformações e as ressignificações de cânones literários na internet? A fundamentação teórica mobilizada neste trabalho é a Análise do discurso foucaultiana. Especificamente, trabalharemos com a noção de “função-autor”, que aparece em três obras de Michel Foucault: “O que é um autor?”, A arqueologia do saber e A ordem do discurso. Como resultado de nossas análises, demonstramos que a autoria das fanfictions é constituída por dois fatores: a) a consciência da cópia/imitação de traços estilísticos de Machado de Assis; b) a ilusão da cópia/imitação constituída por lapsos e falhas que atravessam a ficção de fã analisada e materializam-se na linguagem. PALAVRAS-CHAVE: Fanfiction; Autoria; Michel Foucault; Machado de Assis. RÉSUMÉ: Cet article vise à analyser la constitution de l'auteur dans une fanfiction de Dom Casmurro, publié par une adolescente du Rio de Janeiro sur internet en 2011. À cette fin, nous avons sélectionné le problème de recherche suivant: comment se produisent les transformations et les réinterprétations des canons littéraires sur internet? La base théorique mobilisée dans ce travail est l’Analyse du discours foucaldienne. Plus précisément, nous travaillerons avec la notion de « fonctionauteur » qui apparaît dans trois œuvres de Michel Foucault: “Qu'est-ce qu'un auteur?”, L'archéologie du savoir et l'Ordre du discours. À la suite de notre analyse, nous montrons que l'auteur de la fanfiction se compose de deux facteurs: a) la prise de conscience de la copie / imitation des traits stylistiques de Machado de Assis; b) l'illusion de la copie / imitation constituée par les défaillances et les échecs qui traversent la fiction de fan analysée et ils sont matérialisés dans la langue. MOTS-CLÉS: Fanfiction; Paternité littéraire; Michel Foucault; Machado de Assis. Introdução Com a popularização e instauração da internet como um importante meio de comunicação em nossa sociedade, esse locus tornou-se consequentemente um espaço privilegiado de circulação de discursos e terreno fértil para observação e análise de diversificadas práticas discursivas. Entre elas, estão as fanfictions ("ficções de fãs"): histórias criadas ou desenvolvidas por terceiros a partir de uma obra literária de grande sucesso de vendas ou um filme de grande sucesso de bilheteria. Adquirem, por isso, diversas formas, tomando corpo ora como contos, ora como romances completos, etc. São desenvolvimentos, em geral, dos fios soltos de enredo deixados pela obra original. 1 Doutor em Linguística e Língua Portuguesa pela Unesp-Araraquara. Professor do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Vale do Rio Verde – Três Corações/MG. E-mail: renan.mazzola@unincor.edu.br Lattes: http://lattes.cnpq.br/9297102372043092. 1 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ Assim, o objetivo geral deste trabalho é analisar a constituição da autoria em uma fanfiction de Dom Casmurro, publicada por uma adolescente do Rio de Janeiro na internet por volta de 2011. Para esse fim, elegemos o seguinte problema de pesquisa: “como ocorrem as transformações e as ressignificações de cânones literários na internet?” Essa pergunta não surgiu sem razão: em trabalhos anteriores,2 investigamos as transformações e ressignificações dos cânones visuais na internet, privilegiando, por isso, os regimes de apropriação das materialidades não-verbais em rede. Dessa forma, o problema de pesquisa acima encontra agora um espaço para seu desenvolvimento, pois acreditamos que essa é uma investigação necessária para melhor compreendermos as práticas discursivas em ambiente virtual. Essa análise tem como fundamentação teórica as reflexões presentes em “O que é um autor?”, fala proferida por Foucault (2006) em um debate na Societé Française de Philosophie em 22 de fevereiro de 1969, em que estavam presentes M. de Gandillac, L. Goldmann, J. Lacan, J. d’Ormesson, J. Ullmo e J. Wahl. As reflexões sobre a autoria são trabalhadas também em A arqueologia do saber (2007) e A ordem do discurso (2003) no contexto de uma análise de discursos, lugar em que Foucault considerou conveniente colocar a seguinte questão: “Que importa quem fala?” (FOUCAULT, 2006, p. 264). Não se trata, portanto, de abordar as mídias digitais da posição de um “midiólogo”, nem de tratar de literatura da posição de um “crítico literário”, mas sim de “analisar discursos literários online” por meio da função-sujeito e função-autor tão caras ao pensamento foucaultiano, dialogando, quando necessário, com alguns postulados da teoria da comunicação e da teoria literária com vistas a fazê-los funcionar no interior do dispositivo teórico e metodológico oferecido pela Análise do Discurso francesa. As mídias segundo Jenkins As mídias digitais envolvem muitas práticas discursivas: ler jornais online, escrever emails, pesquisar conteúdos, consumir vídeos e músicas, interagir através das redes sociais, etc. Pode-se dizer, assim, que o uso da internet está ligado diretamente a determinadas práticas de leitura e escrita, e isso toca necessariamente a questão da autoria. Mas antes de abordarmos esses regimes, é preciso mobilizar um paradigma midiático para tomá-lo como 2 Esses trabalhos são: a) minha tese de doutorado (MAZZOLA, 2014) e meu livro sobre a ressignificação dos cânones visuais na internet (MAZZOLA, 2015). 2 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ pano de fundo para um certo funcionamento discursivo. O professor de mídia comparada do MIT, Henry Jenkins, desenvolve um trabalho importante para pensar nossa relação com as mídias: chama-se paradigma da convergência. Segundo Jenkins (2008), as mídias tradicionais, que são passivas, coexistem com as mídias atuais, caracterizadas como participativas e interativas. Segundo ele, cujos trabalhos inserem-se no que podemos chamar de “paradigma contemporâneo” da teoria da comunicação, as mídias estão em pleno deslocamento – um movimento que ele denomina de “Cultura da convergência” (e descreve em livro homônimo), regido por três fatores: i. Convergência dos meios de comunicação, que se refere ao “fluxo de conteúdos através de múltiplos suportes midiáticos, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação” (JENKINS, 2008, p. 27). Esse público possui agora um papel ativo de busca das experiências de entretenimento que deseja. O exemplo maior dessa convergência é o universo narrativo de Matrix, que foi produzido em diversas plataformas de comunicação – como o cinema, a animação e o game – sem que nessas plataformas houvesse necessariamente o mesmo conteúdo e a mesma narrativa, mas partes deles, acessíveis diferentemente em cada uma das mídias correspondentes. ii. Cultura participativa, que contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios tradicionais de comunicação, porque “em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras” (JENKINS, 2008, p. 28). Essas regras, bem entendido, ainda não são entendidas por completo. Como exemplo da cultura participativa, observamos a proliferação de youtubers e a configuração de novos regimes de trabalho, uma vez que, em tese, qualquer pessoa pode iniciar hoje a produção de conteúdo midiático e publicá-lo na plataforma de streaming da Google. iii. Inteligência coletiva, que parte do pressuposto de que “nenhum de nós pode saber tudo; cada um de nós sabe alguma coisa; e podemos juntar as peças, se associarmos nossos recursos e unirmos nossas habilidades.” (JENKINS, 2008, p. 28). Isto é, podemos utilizar as novas mídias como uma espécie de banco de dados sobre assuntos que nos interessam e que podem ter contribuição dos participantes dessa rede. A Wikipédia foi um exemplo claro do que se chama de “produção coletiva de significados”: a soma das partes de conhecimentos (ou 3 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ informação) de cada um e sua disponibilização em um meio “pode levar” a uma forma de inteligência coletiva. Dizemos que “pode levar” porque ainda não sabemos como utilizar direito esse poder em nossas interações diárias dentro da cultura da convergência com fins políticos, mas apenas relacionados ao entretenimento. Aplicado à política, esse poder teria efeitos mais amplos e mais importantes. As fanfictions e a função-autor Depois de localizar o paradigma da comunicação do qual partimos, cabe definir e descrever as fanfictions no contexto das práticas discursivas foucaultianas. Na primeira metade do século XXI, vimos surgir e desenvolver-se uma prática particular de reescrita de obras literárias - consagradas ou não - na web, possibilitada em grande parte pela popularização do computador pessoal e do acesso irrestrito à internet: as fanfictions (“ficção de fãs”, como já mencionado anteriormente). Os fãs dessas obras literárias criam/ampliam enredos paralelos para elas, ou seja, partem de seu universo ficcional original e criar/ampliam outras faces dessa narrativa. As fanfictions, enquanto gênero discursivo, revestem-se de novos regimes de autoria, aí imbricados novos regimes de escritura e de leitura. São essas configurações que pretendemos descrever. Grande parte das ficções de fãs disponíveis na web é derivada dos livros mais vendidos da literatura pop de língua inglesa, como Harry Potter e Crepúsculo. Elencamos, a seguir, as etapas mais frequentes na produção e circulação de uma fanfiction: a) As mídias corporativas fazem circular determinados conteúdos midiáticos, como o próprio Harry Potter ou Crepúsculo; b) Esse conteúdo atinge um determinado estatuto de popularidade entre os jovens; c) Os jovens com interesses semelhantes formam uma comunidade online; d) Eles elaboram as fanfictions e as publicam no meio digital, agora um locus que mescla os papéis de produtores e consumidores de conteúdos; e) Essas fanfictions passam a ser lidas no interior de sua comunidade, que partilha de interesses em comum.3 3 Por consequência, inicia-se, junto com a disseminação das fanfictions, um conflito com as leis de direito autoral, condenando os jovens escritores. A própria Warner Bros., detentora dos direitos sobre o filme de Harry 4 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ Apesar de possuírem como referência obras do universo pop de língua inglesa, encontramos, a partir de nossas pesquisas, uma fanfiction brasileira: Dom Casmurro, de Machado de Assis, foi a inspiração de uma adolescente carioca de 17 anos para sua narrativa. A principal característica de sua fanfiction é ter sido escrita sob o ponto de vista de Capitu, e não de Bentinho, como na obra original de Machado. Do ponto de vista de sua autoria, as fanfictions revelam elementos interessantes quando analisadas da perspectiva foucaultiana. Foucault (2006, p. 267) inicia sua conferência (intitulada “O que é um autor?”) deixando de lado o autor enquanto “indivíduo” na história da escrita ocidental, isto é, “como o autor se individualizou em uma cultura como a nossa, que estatuto foi lhe dado, a partir de que momento, por exemplo, pôs-se a fazer pesquisas de autenticidade e atribuição [...]”. Importa mais, para Foucault (2006, p. 267), “examinar unicamente a relação do texto com o autor, a maneira com que o texto aponta para essa figura que lhe é exterior e anterior, pelo menos aparentemente.” Nesse sentido, deve-se reconhecer o autor não como indivíduo empírico, mas como uma função exercida de um dado lugar: uma posição vazia a ser ocupada. A função-autor, na esfera da literatura, é um componente da função-sujeito na esfera das interações verbais. Observemos o que Foucault nos diz em A arqueologia do saber sobre essa função: O sujeito do enunciado [...] é um lugar determinado e vazio que pode ser efetivamente ocupado por indivíduos diferentes [...]. Esse lugar é uma dimensão que caracteriza toda formulação enquanto enunciado, constituindo um dos traços que pertencem exclusivamente à função enunciativa e permitem descrevê-la. (FOUCAULT, 2007, p. 107-108). Dessa forma, para a descrição da função enunciativa na esfera das interações verbais, é preciso considerar o enunciador e o enunciatário envolvidos em práticas discursivas efetivamente levadas a cabo, seja por diálogos que aconteceram em um ponto da história, seja por um texto publicado em uma dada condição histórico-político-social. Partindo da função enunciativa, podemos então chegar a um de seus desdobramentos: a função-autor dos enunciados tidos como literários, isto é, efetivamente produzidos no interior da esfera que se convencionou chamar de “literatura”. Um nome de autor não é simplesmente um elemento em um discurso (que pode ser sujeito ou complemento, que pode ser substituído por um pronome etc.); ele exerce um certo papel em relação ao discurso: assegura uma função classificatória; tal nome permite reagrupar um certo número de textos, Potter, proibiu num certo momento a publicação das histórias dos fãs, alegando violação de direitos autorais. (Cf. JENKINS, 2008). 5 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ delimitá-los, deles excluir alguma coisa, opô-los a outros. [...] Enfim, o nome do autor funciona para caracterizar um certo modo de ser do discurso. (FOUCAULT, 2006, p. 273). O nome de autor “Machado de Assis”, nessa ótica, ultrapassa o indivíduo que escreveu Dom Casmurro em 1899 no Rio de Janeiro, e abarca as condições de possibilidades de um discurso machadiano, centrado em determinadas escolhas temáticas, léxicas, estilísticas e gráficas que determinam os caminhos de interpretação do leitor em condições históricas dadas, diante de um livro em cuja capa se encontra o nome do autor. É a partir desse mirante que se pode demonstrar a articulação do nome do autor a um certo modo de ser do discurso, na medida mesmo em que um passa a ser sinônimo do outro. Essa aglutinação pode ser demonstrada, no discurso machadiano da escola “realista”, a partir de elementos como a ironia, o pessimismo e a configuração de um espírito crítico a partir do conjunto de regularidades em seus textos. Em outras palavras, o nome de autor rege o funcionamento linguístico-discursivo colocado sob a égide de sua atribuição. O autor, não [é] entendido, é claro, como o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência. [...] Seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo real que escreve e inventa. Mas penso que [...] o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual paira uma obra possível retoma por sua conta a função do autor: aquilo que ele escreve e o que não escreve [...] e o que deixa, vai cair como conversas cotidianas. (FOUCAULT, 2003, p. 26-29). A reescrita dos cânones (as fanfictions) vai colocar em causa esse lugar, pois vai exigir do autor apropriar-se de um universo narrativo já constituído e subvertê-lo, atribuindo-lhe outra posição de autoria: mesmo que muitos elementos da obra original sejam resgatados, outros serão sempre acrescentados, configurando uma nova autoria. Por outro lado, o status histórico-social de ambos é diferente, pois a obra original pertence a um cânone literário, enquanto a outra circula na internet, em uma comunidade de jovens com interesses em comum. Autoria nas fanfictions: lugares de análise Na pretensão de reescrever um autor clássico, os adolescentes tentam ocupar uma posição enunciativa (FOUCAULT, 2007) que chamamos aqui de “Posição-Machado-deAssis”, na medida em que copiam traços estilísticos, vocábulos da norma linguística de 6 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ outrora, aspectos da escola literária em que se insere Machado de Assis, etc. No entanto, às vezes, essa posição enunciativa não é sustentada integralmente, por tratar-se de um outro sujeito que escreve, deixando à mostra traços de um outro lugar autoral, daquele de quem reescreve o texto clássico (e que chamamos de “Posição-Não-Machado-de-Assis”), isto é, deixando à mostra os lapsos, as falhas e os equívocos que são constitutivos da linguagem, e podem ser apreendidos na materialidade dos discursos. As grandes vedetes das mídias corporativas (JENKINS, 2008), como, por exemplo, livros, seriados, filmes, histórias em quadrinhos, desenhos animados de sucesso mobilizam uma legião de fãs. Essa legião influencia tais conteúdos direta e indiretamente. De um lado, eles são os grandes responsáveis pelo sucesso de determinado conteúdo midiático; de outro, eles representam também, devido à cultura participativa da mídia alternativa, uma ameaça. Quantitativamente, as ficções de fãs em língua portuguesa do Brasil4 que tratam de livros nacionais é bem menor em relação àquelas que tratam de ícones literários norteamericanos da cultura contemporânea. É nesse contexto que efetuaremos uma análise prévia da ficção de fã inspirada em Dom Casmurro e redigida sob o ponto de vista de Capitu por uma adolescente carioca de 17 anos. Essa análise permitiu-nos demonstrar como ocorre a permutação das posições enunciativas no texto com base nas reflexões de Foucault (1994; 2003; 2007) sobre a função-sujeito e sobre a função-autor, sendo esta componente daquela. O sujeito do enunciado é uma função determinada, mas não forçosamente a mesma de um enunciado a outro; na medida em que é uma função vazia, podendo ser exercida por indivíduos, até certo ponto, indiferentes, quando chegam a formular o enunciado; e na medida em que um único e mesmo indivíduo pode ocupar, alternadamente, em uma série de enunciados, diferentes posições e assumir o papel de diferentes sujeitos. (FOUCAULT, 2007, p. 105). Quando uma adolescente se vê diante da tarefa de reescrever um autor conhecido, como é o caso de Machado de Assis, ela deve necessariamente resgatar certas características do discurso de Machado, como, por exemplo, um dado estilo literário, certas escolhas vocabulares, determinadas maneiras de construir o diálogo, etc. No entanto, pelo fato de escrever no início do século XXI, essa adolescente irá deixar seu discurso ser atravessado por elementos que são de sua época, isto é, traços impossíveis de mascarar, em função das determinações histórico-semântico-pragmáticas que atuam na produção de qualquer texto. Em 4 Consultar o portal Fanfiction.net, um dos maiores sites de armazenamento e disponibilização de fanfictions na web. 7 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ outras palavras, aquele que reescreve a obra conhecida tem a ilusão da cópia, mas por vezes ocorrem lapsos, falhas, equívocos, todos do nível do inconsciente, que o expõem como “NãoMachado-de-Assis”. Esses lapsos, falhas, equívocos estão materializados no texto. Em seguida, a título de exemplo, demonstraremos alguns deles. i. Posição enunciativa Machado-de-Assis, em que observamos a consciência da cópia e a reprodução do estilo machadiano Ex. 1: O vocativo Fanfiction • Original “Caro leitor, escrevo este livro de uma pequena cidade na Suíça chamada Surique (Sic). Hoje sinto um frio mortal que me arrepia os pelos da nuca. Todavia este não vem do clima desta cidade cinzenta, onde todos me parecem estranhos. Ele vem de minha alma.” (NATHY, 2011, cap1) • “Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha vida se casa bem à definição.” (ASSIS, 1994, p. 25) • “Não me tenhas por sacrílego, leitora minha devota; a limpeza da intenção lava o que puder haver menos curial no estilo.” (ASSIS, 1994, p. 31) Aqui, do lado esquerdo, a utilização do vocativo “Caro leitor”, na dimensão sintática da reescrita, demonstra a legitimação da “Posição-Machado-de-Assis”, uma vez que o diálogo com o leitor é uma das principais características do estilo machadiano. Do lado direito, exibimos trechos da obra original, para demonstrar que a escrita da fã se apoia em uma imitação de traços consagrados de Machado, caracterizando a consciência da cópia. Ex. 2: O emprego vocabular, a norma linguística Fanfiction • Original • “- E mais uma cousa. – Falou num tom que me arrepiou a espinha, e me fez virar para olhá-lo. - Não a quero metida na casa de D. Glória. Sabes que não gosto quando está acompanhada de moço Bento. Não rezingo para não fazer desfeita a família que nos acolheu.” (NATHY, 2011, cap2) 8 “- Verdade é que cada um sabe melhor de si, continuou Tio Cosme; Deus é que sabe de todos. Contudo, uma promessa de tantos anos... Mas, que é isso, mana Glória? Está chorando? Ora esta! Pois isto é cousa de lágrimas?” (ASSIS, 1994, p. 6) RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ Ocorre também, agora no nível lexical, um emprego vocabular que legitima a “Posição-Machado-de-Assis” (em desuso no português brasileiro contemporâneo): “cousa”. Essa imitação léxica retoma a autoria de Machado, uma vez que esta forma pertencia aos registros escritos da época em que Dom Casmurro foi publicado, mas não é comum em 2011. Ex. 3: A estruturação da narrativa Fanfiction • • • • • • • • • • • Original • • • • Capitulo 1 / Prólogo Capítulo 2 / Começando do começo Capítulo 3 / A casa ao lado Capítulo 4 / Verdade e mentira Capítulo 5 / Adeus Bentinho Capítulo 6 / Santíssima D. Glória Capítulo 7 / Uma ideia brilhante Capítulo 8 / Nossa salvação Capítulo 9 / Imaginação fértil Capítulo 10 / Nosso primeiro beijo (...) (NATHY, 2011) • • • • • • • CAPÍTULO PRIMEIRO / DO TÍTULO CAPÍTULO II/ DO LIVRO CAPÍTULO III/ A DENÚNCIA CAPÍTULO IV / UM DEVER AMARÍSSIMO! CAPÍTULO V / O AGREGADO CAPÍTULO VI / TIO COSME CAPÍTULO VII / D. GLÓRIA CAPÍTULO VIII / E TEMPO CAPÍTULO IX / A ÓPERA CAPÍTULO X / ACEITO A TEORIA (...) (ASSIS, 1994) O texto de D. Nathy (apelido da adolescente no portal de fanfictions) se dá em forma de memórias e no final da vida, como no original, mas desenvolve-se a partir da voz de Capitu. Sua narrativa apresenta uma estrutura parecida de disposição das partes, isto é, a ordem de apresentação de personagens e a atribuição de títulos curtos e diretos aos capítulos podem também ser entendidos como formas de resgatar o discurso machadiano no nível da dispositio. ii. Posição enunciativa Não-Machado-de-Assis, em que observamos a ilusão da cópia por meio dos lapsos, falhas, equívocos e emergência de uma autoria mista 9 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ Ex. 4: A locução adverbial, o emprego vocabular Fanfiction • Original “Morava na antiga rua de Matacavalos, morava na casa ao lado de Bentinho, sendo assim sua vizinha.” (NATHY, 2011, cap2) • “Minha mãe quis saber o que era. José Dias, depois de alguns instantes de concentração, veio ver se havia alguém no corredor; não deu por mim, voltou e, abafando a voz, disse que a dificuldade estava na casa ao pé, a gente do Pádua.” (ASSIS, 1994, p. 16) • “Era o pai de Capitu, que estava à porta dos fundos, ao pé da mulher.” (ASSIS, 1994, p. 31) Com relação à imitação do discurso machadiano, seria mais eficaz o emprego de “ao pé de” para a legitimação da “Posição-Enunciativa-Machado-de-Assis”. No entanto, a autora opta por “ao lado de”, em que percebemos o lapso de suas condições de possibilidades de escrita. Em Dom Casmurro, de Machado, encontramos apenas 1 (uma) ocorrência de “ao lado de”, contra 28 ocorrências de “ao pé de”. Assim, concluímos que a expressão mais adequada para expressar proximidade no discurso machadiano seria “ao pé de”. Esse emprego vocabular configura a “ilusão” da cópia ou a emergência de uma autoria mista. Ex. 5: Emprego gráfico em construções de diálogos Fanfiction • Original “ – Filha! – Chamava meu pai de dentro da nossa casa.” (NATHY, 2011) • “ – Chamo-me Bento, acrescentei para esclarecê-lo.” (ASSIS, 1994, p. 48) • “ – Pois essa, disse José Dias.” (ASSIS, 1994, p. 50) Com relação aos empregos de sinais gráficos, notam-se as diferentes formas de se construir, graficamente, o diálogo entre os personagens do romance: no texto da autora, a voz do narrador aparece depois de um travessão, enquanto em Machado a voz do narrador é precedida de vírgula. A dimensão gráfica dos discursos é um importante lugar para a 10 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ observação das posições enunciativas, já que os detalhes não são alvo de grandes atenções, conforme atesta o paradigma indiciário estudado por Carlo Ginzburg (2003). Ex. 6: Dimensão interpretativa da leitura Fanfiction • Original • “Meu marido Bentinho, como bons leitores já sabem , ganhou um apelido ainda moço de um amigo. Chamavamno de Dom Casmurro. Nunca entendi muito bem o por quê, mas tenho com meus pensamentos que era porque ele não dava muito valor ao que os outros faziam. Bem isso não vem ao caso. O importante é que eu, começando tudo pelo começo, ainda não era a senhora Capitolina, era apenas a cigana, oblíqua Capitu.” (NATHY, 2011, cap2) “Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei um trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. [...] No dia seguinte entrou a dizer de mim nomes feios, e acabou alcunhando-me Dom Casmurro.” (ASSIS, 1994, p. 13) Nessa comparação, constatamos uma interpretação particular (para não dizer inadequada...) da obra machadiana: na obra original, Capitu não saberia que o apelidaram, pois ela já estava na Suíça, e o livro foi escrito bem depois de sua viagem para a Europa. Bentinho foi alvo da alcunha no fim de sua vida, quando ele já havia construído sua casa no Engenho Novo, à semelhança da casa da Rua de Mata-Cavalos. Como observamos na coluna da esquerda, na escrita da adolescente revela-se a interpretação feita por ela na sua leitura de Dom Casmurro. Palavras finais A construção da autoria desta fã, como demonstramos, dá-se a partir da confluência entre a cópia e o lapso, o que resulta em criação. Sua identidade autoral é composta pela cópia do estilo machadiano, manifestado em empregos vocabulares, recursos expressivos, imitação do registro de outrora, e também pelos lapsos manifestados nas diferenças de léxico, nos sinais gráficos, gestos interpretativos, etc. Cogitamos, por isso, um funcionamento inconsciente que age no plano de fundo de sua escrita, nos equívocos que regem a ilusão da cópia. Esse funcionamento do inconsciente, 11 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ bem como as condições históricas de produção dos enunciados configuram o olhar de Foucault (2003; 2006; 2007) para as práticas discursivas. Essas metamorfoses, sejam elas de ordem verbal, visual ou verbo-visual, pertencem à própria dinâmica do “enunciado”, tal como concebido por Foucault (2007, p. 111): De início, desde sua raíz, ele [o enunciado] se delineia em um campo enunciativo onde tem lugar e status, que lhe apresenta relações possíveis com o passado e que lhe abre um futuro eventual. Qualquer enunciado se encontra assim especificado: não há enunciado em geral, enunciado livre, neutro e independente: mas sempre um enunciado fazendo parte de uma série ou de um conjunto, desempenhando um papel no meio dos outros, neles se apoiando e deles se distinguindo: ele se integra sempre em um jogo enunciativo, onde tem sua participação, por ligeira e ínfima que seja. A fanfiction analisada irrompe, como nos diz Foucault, em um campo enunciativo no qual Machado de Assis constitui a referência direta. Dessa forma, um texto publicado na internet por volta de 2011 estabelece relações com Dom Casmurro, publicado em 1899. No entanto, a fanfiction abre sendas de interpretação e possibilidades de escrita – como narrar a história do ponto de vista de Capitu – que inspiram jovens em todo o mundo quando se trata de elaborar uma “ficção de fã”. Esses mais de cem anos de História (com “H” maiúsculo) que separam uma e outra narrativa têm um peso na materialidade da linguagem, como a mudança de registro linguístico e as diferenças vocabulares apontadas. Esses elementos linguístico-discursivos revelam a temporalidade dos textos (século XIX, de um lado; século XXI, de outro). Nesse ponto, reencontramos um postulado de base da Análise do discurso francesa, segundo o qual o “discurso” é o encontro da língua com a história, que se dá a ver nos regimes de autoria online. REFERÊNCIAS ASSIS, M. Dom Casmurro. São Paulo: Ed. Ática, 1994. FOUCAULT, M. Qu'est-ce qu'un auteur ? In : ______. Dits et écrits. Tome I. Paris : Gallimard, 1994. p. 789-821. FOUCAULT, M. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 2003. FOUCAULT, M. O que é um autor? In: MOTTA, M. B. (Org.). Michel Foucault Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2006. p. 264-298. (Ditos & Escritos, v III). FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. GINZBURG, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p.143-179. JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2008. 12 RECORTE – revista eletrônica ISSN 1807-8591 Mestrado em Letras: Linguagem, Cultura e Discurso / UNINCOR V. 15 - N.º 2 (jul.-dez. de 2018) ______________________________________________ MAZZOLA, R. Discurso e imagem: transformações do cânone visual nas mídias digitais. 2014. 155 f. Tese (Doutorado em Linguística e Língua Portuguesa) – Faculdade de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2014. MAZZOLA, R. O cânone visual: as belas-artes em discurso. São Paulo: Cultura Acadêmica/Editora Unesp, 2015. NATHY, D. Dom Casmurro. Nyah! Fanfiction. 2011. Disponível em: <http://fanfiction.nyah.com.br/historia/13871/Dom_Casmurro>. Acesso em: 30 mar. 2011. Artigo recebido em fevereiro de 2018. Artigo aceito em maio de 2018. 13