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OPEN ACCESS v LETRAS DE HOJE Studies and debates in linguistics, literature and Portuguese language Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 e-ISSN: 1984-7726 | ISSN-L: 0101-3335 http://dx.doi.org/10.15448/1984-7726.2020.1.33678 O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie The mode as expression of the point of view in Dom Casmurro, the novel, and Capitu, the micro series El modo como expresión del punto de vista en Don Casmurro, la novela, y en Capitu, la microserie Alexandre de Assis Monteiro1 orcid.org/0000-0002-1670-5668 moinhosdevento1@hotmail.com Luiz Antonio Mousinho2 orcid.org/0000-0002-7730-3195 lmousinho@yahoo.com.br Recebido em: 25 mar. 2019. Aprovado em: 19 dez. 2019. Publicado em: 14 abr. 2020. Resumo: As obras Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie possuem um modo de trânsito entre elas, operacionalizado recentemente (2008) por Luís Fernando Carvalho, que revela a adaptação do discurso verbal para o verbo visual, sem desconsiderar o fato de que todo o fornecimento de informação narrativa provém de uma única fonte: Dom Casmurro, o personagem narrador. Essa adaptação nos instiga a adentrar os meandros deste processo a fim de compreender os diferentes pontos de vista, a ilusão de verdade, as autorias narrativas propostas inicialmente pelo autor-narrador da primeira obra e em seguida, pelo adaptador-focalizador da segunda. A tese eixo que propomos é a de que a fala ostensiva do narrador do romance não foi interrompida no fluxo narrativo das imagens, a ponto de fragmentar ou comprometer os seus significados, ao contrário, preserva-os e os viola ao mesmo tempo, construindo uma nova obra e ressaltando a identidade da “outra” na qual se ampara, sem que sejam as mesmas. Para a verificação e percepção do modo dessa transição, fundamentamo-nos nas categorias narrativas atinentes a narradores e focalizadores, a partir de suportes teóricos, conceituais e literários de vasta bibliografia anexa. Palavras-chaves: Dom Casmurro. Capitu. Narrativa. Microssérie. Modo. Focalização. Abstract: The works Dom Casmurro, the novel, and Capitu, the micro series have a mode of transit between them, recently operationalized (2008) by Luís Fernando Carvalho, which reveals the adaptation of the verbal discourse to the visual verb, without disregarding the fact that the whole supply of narrative information comes from a single source: Dom Casmurro, the narrator character. This adaptation instigates us to enter the intricacies of this process in order to understand the different points of view, the illusion of truth, the narrative authors proposed initially by the narrator of the first work and then by the focal-adapter of the second. The axis thesis we propose is that the ostensible speech of the narrator of the novel was not interrupted in the narrative flow of the images, to the point of fragmenting or compromising their meanings, on the contrary, it preserves them and violates them at the same time, constructing a new work and emphasizing the identity of the “other” in which it is protected, without being the same. For the verification and perception of the mode of this transition, we are based on the narrative categories related to narrators and focusers, from theoretical, conceptual and literary supports of vast bibliography. Keywords: Dom Casmurro.Capitu.Narrative.Microseries.Mode.Focusing. Resumen: Las obras Don Casmurro, la novela, y Capitu, la microserie, poseen Artigo está licenciado sob forma de uma licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional. 1 2 un modo de tránsito entre ellas, recientemente (2008) operacionalizado por Luís Fernando Carvalho, qui revela la adaptación del discurso verbal hacia el verbo visual, sin desconsiderar el hecho de que todo el fornecimiento de información narrativa proviene de una sola fuente: Don Casmurro, el personaje narrador. Esa adaptación nos instiga a investigar los meandros de dicho proceso con la finalidad de comprender los distintos puntos de vista, la ilusión de verdad, las autorías narrativas propuestas inicialmente por el autor-narrador de la primera obra y, en Instituto Federal de Educação da Paraíba (IFPB), Sousa, PB, Brasil Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, PB, Brasil 60 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 secuencia, por el adaptador-enfocador de la segunda. La tesis central qui proponemos es aquella según la cual el discurso ostensible del narrador de la novela no fue interrumpido por el flujo narrativo de las imágenes, rompiendo y comprometiendo sus significados. Muy al contrario, los preserva y los viola al mismo tiempo, construyendo una nueva obra y poniendo de relieve la identidad de la “otra” en la cual se sostiene, sin que sean las mismas. Para la verificación y percepción del modo de esa transición, fundamentémonos en las categorías narrativas relacionadas a autores y enfocadores, partiendo de soportes teóricos, conceptuales y literarios de la amplia bibliografía anexa. segmento em câmera subjetiva (simulação do Palabras-clave: Don Casmurro. Capitu. Narrativa. não há ponto de vista limitado (focalização zero ou Microserie. Modo. Enfocación. que o personagem vê), mas o “olhar”, a percepção que orienta a perspectiva narrativa, o ponto de vista, não ser a do personagem. A focalização3, ou foco narrativo, tem a ver com restrição de foco, quando a narrativa tem ponto de vista limitado (a um ou mais personagens ou ao narrador com ponto de vista limitado). Quando a narrativa é onisciente – quando o narrador vê tudo – então narrativa não focalizada; visão por trás, narrador Gérard Genette define uma importante > que personagem). Mas pode haver infrações categoria narratológica, partindo de um conceito/ do código e, numa narrativa onisciente, certos aplicação gramatical, a que chama de modo. dados podem ser escondidos do espectador para Como ele entende, modo é o nome dado às serem revelados depois em paralipse. diversas formas do verbo para exprimir diferentes Assim, o modo narrativo possibilita – ou tipifica pontos de vista a partir dos quais se considera a – a forma como a história é contada, segundo existência ou a ação. Para efeito de elucidação, um ou outro ponto de vista e, cada um, fornece a embora o objeto deste artigo tenha outras informação narrativa à sua maneira, com mais ou categorias narratológicas como periféricas, menos pormenores, mais ou menos diretamente não podemos deixar de aludir ao conceito de e deste ou daquele lugar, estabelecendo um grau focalização, a partir da mesma obra de Genette, de distância e uma perspectiva em relação àquilo fundamental para a integração e compreensão que se conta (GENETTE, 1979, p. 160). do que aqui propomos. O autor faz nítida separação entre narradores e focalizadores, tomando o conceito de focalização (ou foco narrativo ou ainda ponto de vista) para se referir à representação da informação que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, seja do narrador, seja de um personagem. Em outras palavras, é o olhar do personagem ou do narrador, como ele percebe e filtra a história para além do sentido da visão. Assim, o ponto de vista, focalização ou foco narrativo, responde à pergunta sobre qual personagem orienta a perspectiva narrativa ou quem é o focalizador. Numa equação diremos mais simples: o narrador é quem narra; o focalizador é quem vê, mas o narrador pode ser também detentor da focalização, sendo então narrador e focalizador, em tal ou qual segmento narrativo. No caso do cinema, um filme pode ter um Para nos suster na questão, acorremos ao que Maria Lúcia Dal Farra descreve como ponto de vista (1978), em sua prolífera ideia do conceito: Na verdade, aquilo que se tem considerado ser o ponto de vista do narrador e que, segundo se afirma, filtra o mundo e dá forma e nome às coisas, nada mais é que uma postura visual regulada por uma ogiva maior: aquela que enxerga no defeito ou na amplitude de visão conferida ao narrador a certeza do sucesso dos valores que quer manipular. Assim, a ótica do universo nascerá do confronto entre a luz e a sombra, entre o ponto de vista do narrador – que pode percorrer toda a hierarquia das visões, desde a onisciência até o foco mais restrito – e os pontos de cegueira do narrador (DAL FARRA, 1978, p. 23, 24). Quando se considera o ponto de vista do narrador é necessário levar em conta, ao mesmo tempo, o que ele vê e o que ele não vê: o que ele foi levado a não enxergar. As supostas omissões A focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história quer o do narrador heterodiegético [que não participa da história]; consequentemente, além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa, p 119, 122. São Paulo: Editora Ática, 1988. 3 Alexandre de Assis Monteiro • Luiz Antonio Mousinho O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie poderão desencadear novas arregimentações para a história, ou seja, podem suplantar óticas anteriores e postular novas visões e intervenções sobre a mesma história. A contribuição da categoria modo interessa sobremaneira à análise dos textos que compõem o corpus deste artigo: Dom Casmurro, romance de Machado de Assis publicado pela primeira vez em 1899, e Capitu, microssérie de Luís Fernando 61 ria, o narrador-testemunha tem uma mobilidade muito maior e, por consequência, uma amplitude e variedade de fontes de informação bem maiores do que o próprio protagonista, que se encontra centralmente envolvido na ação. O narrador protagonista, portanto, encontra-se quase que inteiramente limitado a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. [...] o ângulo de visão é aquele do centro fixo. [...] a distância pode ser longa ou curta, ou ambas (FRIEDMAN, 2002, p. 176, 177). Carvalho lançada em 2008. A grande polêmica – e trunfo – das duas narrativas envolve o fato de que A conveniência do modo de narração todo o fornecimento de informação provém de (protagonista) de Dom Casmurro, além da uma única fonte, Dom Casmurro, o personagem limitação de sua visão em relação ao narrador- narrador. Pelo menos a partir da crítica feita pela testemunha, também envolve a questão da teórica americana Helen Caldwell (2002) em seu O mimese 4, pois, além de contar a história – Otelo brasileiro de Machado de Assis, em que põe modalidade nomeada narrativa pura –, ele a em cheque a veracidade da informação narrativa do mostra – utilizando segmentos dialogados. Ou romance, adverte para o fato de que a Capitu não é seja, não só rememora, mas traz à vida novamente dada voz. Se isso tivesse acontecido, a compreensão os personagens, seus espaços e suas ações do texto muito provavelmente seria outra. através do discurso direto, “invocando, a seu Dessa maneira, constatamos o quanto a tempo, ora o cuidado em contar as coisas tais perspectiva (local de onde se tem o ponto de como foram ‘vividas’ no momento, ora tais como vista) se relaciona e influi sobre a distância (teor são ulteriormente rememoradas” (GENETTE, 1979, de informação liberada pelo narrador). O ludibrio, p. 155). Acerca disso, Lubbock salienta que: através das peripécias narrativas, como sugere Gledson (1991), operado sobre o leitor, tem tudo a ver com o fato de que a informação é fornecida exclusivamente por Dom Casmurro, o que lhe assegura o poder de elisão, suspensão, prolepses etc. como lhe convém para convencer seu leitor. A “arte da ficção” não tem início até que o romancista pense sua história como algo a ser mostrado, a ser tão exposta que se conte por si mesma [em vez de ser contada pelo autor]... ela deve parecer verdadeira, e é tudo. Ela não se faz parecer verdadeira por simples afirmação (LUBBOCK, 1954, p. 112). A partir da tipologia proposta em 1967 por Friedman compreendemos que Dom Casmurro Lubbock exibe uma percepção sobre os pode se encaixar como um narrador-protagonista. modelos de discurso narrativo que superestima Anos mais tarde, em O discurso da narrativa, obra o recurso do discurso direto em detrimento do de 1972, Genette lançará mão das formulações uso do discurso indireto. Em oposição a esse de Friedman, já assentadas e reconhecidas, sobre pensamento, podemos citar, em caráter ilustrativo, “perspectiva e distância”, e que fornece definição o caso do filme O homem que copiava (FURTADO, preciosa sobre esse tipo de narrador, 2003), em que a presença tenaz da voz do narrador, [...] conta a história na primeira pessoa, alguns outros canais de informação são eliminados e mais alguns pontos de vantagem, perdidos. Devido a seu papel subordinado na própria histó- apesar de quebrar (BERNARDO, 2010, p. 166), não compromete a eficácia do contrato ficcional estabelecido entre a narrativa e o espectador. Em Capitu e em Dom Casmurro, ao contrário de como Genette (1979, p. 162) afirma que a única mimesis possível em narrativa é a ilusão de mimesis, já que a realidade (mesmo a diegética) passada é intangível e a linguagem apenas supostamente consegue recuperá-la. Preferi a praticidade do termo mimesis em todo o estudo, mas se entenda ilusão de mimesis. Utilizo o termo em sentido estrito, como pensava Platão (apud LEITE, 2002, p. 7): alicerçado na ideia de imitação, cena, cópia infiel e simulacro do real e da verdade, em detrimento do sentido lato, em que o termo, independentemente de o discurso mostrar ou contar, se liga a própria noção de representação poética. 4 62 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 Lubbock concebe a narração, o discurso contado estabelece contato direto com seu narratário: “O acaba por reforçar o que é mostrado. que fazer quando se fica preso numa fila com um Friedman, por sua vez, finda por ratificar o cara desses atrás?”. Alvy, então, puxa McLuhan de equívoco de Lubbock, tomando outro caminho outro ponto “da cena” e o faz ratificar o equívoco Se a verdade artística é uma questão de compelir a expressão, de criar a ilusão da realidade, então um autor que fale em sua própria pessoa sobre as vidas e fortunas de outros estará colocando um obstáculo a mais entre sua ilusão e o leitor, em virtude de sua própria presença (FRIEDMAN, 2002, p. 169). do rapaz, ao desconstruir os argumentos do pedante espectador, volta a olhar para a câmera e diz: “Se a vida fosse assim!”. Em Baixio das bestas, filme de Cláudio Assis (2007), Everardo, personagem de Matheus Nachtergaele, numa cena que, curiosamente, também se passa dentro do cinema, que é o Parece haver, no argumento de Friedman, uma lugar usado pelos personagens para a prática de confusão entre narrador e autor, ou ainda entre contravenções, olha para a câmera e pergunta: autor e autor implicado5, que seria uma instância “Sabe o que é que é o melhor do cinema? É que com voz diegética que não pode ser atribuída a no cinema tu pode fazer o que tu quer”. personagens nem ao narrador. Não ignoremos Esse recurso, do olho no olho, para Anna Maria que ele propõe como solução para que o autor Balogh (BALOGH, 2004, p. 166,167), constitui uma se esquive de comprometer o sentido de ilusão estrutura conversacional rara na TV, sobretudo da narrativa, com sua intromissão, escrever em em programas ficcionais. Mas, talvez, na verdade, terceira pessoa, para que a história passe a ser esteja até vulgarizado na teleficção. Ele é muito algo de responsabilidade de um personagem.6 usual nas séries e programas humorísticos. O rompimento da ilusão de realidade, ademais, Em Os normais (TV Globo) ou nos episódios não se dá de forma tão simples. Alguns autores, dos programas já encenados pelo humorista inclusive, ironizam ou dão sentido jocoso à Renato Aragão, como A turma do Didi (TV relação entre diegese e realidade. Globo), os personagens estão constantemente Woody Allen, em Noivo neurótico, noiva estabelecendo esse contato com o espectador. nervosa (ALLEN, 1977), supera o tabu que cerca Mesmo na TV, o recurso parece só combinar e distancia o personagem do narrador-câmera, com esse tipo de programa. No cinema, porém, é aquele que, no texto audiovisual, vê, mostra, incomum. Aparece em obras sem caráter cômico ouve os acontecimentos e os transmite ao e ainda constitui uma estrutura de agressão.7 espectador. Na cena do filme se passa numa A explicação para os efeitos semânticos e fila de cinema. Ao perder a paciência com um psicológicos do recurso do “olho no olho” no cinema pernóstico e verborrágico intelectual que esbanja e na TV pode estar em Marcel Martin (2003), em suas conhecimento sobre teorias do filósofo Marshall reflexões sobre o processo de liberação da câmera. McLuhan perto de si, o personagem vivido por Para o autor, a comédia cinematográfica, em Woody Allen, Alvy Singer, olha para a câmera e princípio, utilizou o recurso com o intuito de fazer 5 Autor implicado (ou autor implícito) é, talvez, a categoria narrativa e o ser da narração mais caro às contribuições de Maria Lúcia Dal Farra (1978) em O narrador ensimesmado. Ele, segundo Dal Farra, parece coordenar, gerir e fazer existir toda espécie de narrador e de narração. Seria “uma máscara do autor implícito”. Para atestá-lo basta reparar na recorrência a essa categoria em suas citações e na adjetivação que ela usa para se referir a este ser (diegético?): “criador mítico do universo” e possuidor da “mente detentora dos poderes romanescos” (DAL FARRA, 1978, p. 22, 23, 42). O espaço que dispomos aqui impedirá que nos prolonguemos na discussão do conceito e da ação do autor implicado por considerá-la demasiada “problemática e complexa”, como afirmam Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes em seu dicionário de narratologia (REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M., 1988). Ademais pôr de lado essa categoria dos estudos narrativos não deverá comprometer a coesão deste trabalho, que é centrado na teorização do narrador e da narração, e menos no autor. 6 A focalização pode ser definida como a representação da informação diegética que se encontra ao alcance de um determinado campo de consciência, quer seja o de uma personagem da história quer o do narrador heterodiegético [que não participa da história]; consequentemente, a focalização, além de condicionar a quantidade de informação veiculada (eventos, personagens, espaços, etc.), atinge a sua qualidade, por traduzir uma certa posição afetiva, ideológica, moral e ética em relação a essa informação. REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de Teoria da Narrativa, p. 119, 122. São Paulo: Editora Ática, 1988. 7 Termo cunhado por Freud, em O estranho (1919), para se referir ao incômodo por que passa o sujeito ante algo a que seus olhos não estão condicionados, causando estranheza, em oposição ao que é “familiar” (FREUD, 1986, p. 241). Alexandre de Assis Monteiro • Luiz Antonio Mousinho O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie 63 do espectador uma testemunha do paradoxo substitui”. Em suma, deve-se entender cena de personagens histriões, bobos e burlescos, como “representação”, com discursos diretos; e pronunciando sentenças espirituosas. E no caso panorama, como “narração”, com discurso indireto do filme não cômico, o cinema fez o personagem de um narrador (TODOROV, 1971, p.242). se dirigir diretamente ao espectador para que Para Dal Farra (1978) a apresentação do discurso ele se sentisse mais atingido pela situação, pode ser tratada de forma dramática – através de potencializando o efeito dramático sobre o que vê. diálogos, fazendo com que a mente do narrador Já em Capitu, o olho no olho é tributário das lições desapareça e a história se conte por si mesma – da comédia e do drama, pois, ao mesmo tempo ou ainda pode ser tratada de forma pictórica – que em que torna o espectador uma testemunha do compreende a existência de um narrador que usa paradoxo de um burlesco narrador contando sua sua própria linguagem e seus próprios padrões de trágica história de vida, o close potencializa o apreciação, “a fim de reproduzir alguma realidade efeito dramático da dor que o perpassa. que está em sua mente – e nesse caso a mente Retomando a questão que envolve o dilema se transforma numa pintura” (DAL FARRA, 1978, entre contar ou mostrar a história, Friedman p. 39 – 31). Essa forma nos interessa e nos ajuda a (2002, p.171), coloca a questão “quem fala ao compreender um pouco mais da sinuosa narração leitor?” como fundamental para a interpretação de Dom Casmurro e Capitu, que, nesse caso, da narração e, paradoxalmente, considera seria fortemente pictórica, pois os padrões de a viabilidade, em alguns casos, da resposta: apreciação de Dom Casmurro em momento ostensivamente ninguém. Isso fica mais evidente algum são postergados. na narrativa audiovisual, por não podermos ver A zona limítrofe entre personagem e narrador quem fala. Ao assistir somos tentados a atestar ou, para ser menos generalizante agora, entre a verdade genetteana: na mimese prevalece em a autoria dos discursos, pode não ser tão grau máximo a informação em detrimento do demarcável, todavia. Uma divisão – para usar ainda informador. Não é tão simples se pensarmos que a um termo do campo semântico de limite–muito informação narrativa é um discurso articulado por evidente é suspeita, a menos que incorramos 8 um emissor que é o próprio narrador-informador. no equívoco, como alertou João Batista de Em termos generalizantes, a narração simples Brito em outro contexto, de esquecermos que ou em panorama ou o discurso indireto ou o o discurso, do tipo que for, com suas escolhas contar a história ou a modalidade de narrativa vocabulares e combinações sintáticas, sempre pura colocaria o discurso em um estado de maior traz a marca do enunciador, e que tudo o que se distanciamento entre a enunciação e o enunciado, vê na história resulta de uma construção (BRITO, ou manteria a informação como algo mais distante 2006, p. 162) no mínimo do narrador, mas também, do acontecimento. Maria Lúcia Dal Farra (1978, potencialmente, do próprio personagem. p. 30), conceitua panorama como a posição do Lígia Chiappini Leite (2008) ao refletir narrador exercendo uma visão generalizada ou historicamente sobre a polêmica em torno do quando o narrador está interessado num único e foco narrativo, afirma que particular momento em oposição à imitação ou à cena ou ao discurso direto/relatado/reportado ou mimético, (tal qual se vê também em FRIEDMAN, 2002, p. 169),ou como segmentos dialogados. Conforme Genette (1979, p. 173), nesta forma, “o narrador dilui-se e a personagem lhe As HISTÓRIAS narradas pelos homens foram-se complicando, e o NARRADOR foi mesmo progressivamente se ocultando, ou atrás de outros narradores, ou atrás dos fatos narrados, que parecem cada vez mais, com o desenvolvimento do romance, narrarem-se a si próprios (LEITE, 2002, p. 5). 8 A esse respeito, a professora Sandra Luna, do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFPB, adverte que, na arte icônica, para além do narrador protagonista, há a instância narrativa extradiegética, mas há muito de “ostentação”, o que problematiza significativamente esse “poder” do narrador. 64 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 Na narrativa audiovisual não é diferente, e narrador. Isso nos permite perceber as perdas e geralmente o “problema” da ilusão de invisibilidade ganhos da troca de um enunciado exclusivamente do narrador se torna ainda mais agudo. Brito (2006, p. verbal para um audiovisual. 162) defende que, em oposição ao discurso literário, A tendência à ilusão de anulação do narrador a instantaneidade do movimento e a objetividade e diluição de sua voz, por um lado, é extrema, em da imagem, no discurso cinematográfico (ou que pese o subjetivo e denso teor informativo e em outros discursos de gêneros audiovisuais), criativo disponibilizado pela imagem e pelo som. Por intensificam a ideia ilusória de anulação do narrador outro lado, o déficit de informações pontuais como e diluição de sua voz. horários, tempo, estados de espírito ou interesses Entretanto, se no caso do livro Dom Casmurro, dificilmente o narrador se deixa “esquecer”, devido pessoais de cada personagem no evento é patente. Comparemo-los: ao seu já comentado modo excêntrico de narrar, no caso da microssérie isso é ainda mais difícil, já que, além do discurso, a imagem (visual) de Dom Casmurro é explorada à exaustão. Seria difícil responder que, em Capitu, quem fala é “ostensivamente ninguém”. Aqui pontuamos que, quando o Dom Casmurro da microssérie é visto como um ser contrário à graça e a beleza, sua “imagem” ao invés de se impregnar na visão do espectador, pode ser apagada, distanciada. Dispomos de um exemplo excepcional encontrado em Capitu. A adaptação de todo o capítulo da obra, CXXII – O enterro, é feito inteiramente sem falas de personagem ou Imagem 1 – Panorama do velório de Escobar (CARVALHO, 2009). Saí de lá cerca de onze horas. Capitu e prima Justina esperavam-me, uma com o parecer abatido e estúpido, outra enfastiada apenas. - Vão fazer companhia à pobre Sanchinha, eu vou cuidar do enterro. [...] José Dias ouviu também falar dos negócios do finado, divergindo alguns na avaliação dos bens [...] Tinha-as escrito [as palavras do discurso] com receio de que a emoção me impedisse de improvisar. No tílburi em que andei uma ou duas horas, não fizera mais que recordar o tempo do seminário, as relações de Escobar, as nossas simpatias, a nossa amizade, começada, continuada e nunca interrompida [...] (ASSIS, 2000, p. 160). Alexandre de Assis Monteiro • Luiz Antonio Mousinho O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie 65 Imagem 2 – José Dias, Sancha e Bento durante velório de Escobar (CARVALHO, 2009). Resignação, dissimulação, transtorno? Toda essa discussão acerca do problema da apresentação do discurso em literatura já era, na década de 40 do século passado, considerada repetitiva, reprisada, porém não esgotada. Friedman afirma que “a distinção entre contar/ mostrar – em que “tell”/“dizer” aponta para o polo “onisciência” e “show”/“mostrar” aponta para o polo da “objetividade” –encontra-se estabelecida como um lugar-comum da crítica de ficção” (FRIEDMAN, 2002, p. 172). Chiappini (2002) vai além, afirmando que “se narrar é coisa muito antiga, refletir sobre o ato de narrar também o é” e, na antiguidade clássica, a questão já estava carregada de valor em A Dom Casmurro, intitulado I – Do título frente ao capítulo inicial de Capitu (sem título). No livro, o capítulo inicia: Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo, encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro, que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me, sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e acabou recitando-me versos. A viagem era curta, e os versos pode ser que não fossem inteiramente maus. Sucedeu, porém, que como eu estava cansado, fechei os olhos três ou quatro vezes; tanto bastou para que ele interrompesse a leitura e metesse os versos no bolso. - Continue, disse eu acordando. - Já acabei, murmurou ele. - São muito bonitos (ASSIS, 2000, p. 13). república e na Poética9(LEITE, 2002, p. 6-7). Se nos estudos literários ainda há panos para as mangas no debate que envolve os efeitos de sentido de cada tipo de discurso, o campo da ficção audiovisual parece ter potencializado a complexidade do assunto. Pensemos metonimicamente o caso do capítulo I do livro 9 Na nomenclatura de Todorov (1980), a distinção entre “tell” e “show” pertence aos “modos” da narração e não aos “aspectos”. Os “modos” concernem à maneira pela qual o narrador expõe a história, enquanto os “aspectos” à maneira pela qual a história é percebida pelo narrador. O “dizer” está relacionado à narração e o “mostrar” à representação. 66 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 Imagem 3 – O “Poeta do trem” recita versos enquanto o agora “Dom Casmurro” cochila (CARVALHO, 2009). Esse fragmento nos serve de amostra para enquanto que o drama é subjetivo e objetivo; o confrontar diversas concepções narrativas sobre romance, por seu turno, que faz uso da forma os tipos de discurso na ficção. Aristóteles (apud mista é, como o épico, uma narrativa dramática. LEITE, 2002) defendia a mimese (imitação, como Contar a história, ao contrário do que Lubbock temos trabalhado) como forma de revelação pensava, não impede que o informador seja tão da essência do real (e aqui Lígia Chiappini não cúmplice do leitor quanto a informação. destrincha o conceito de real). Foi amparado Certamente, se fornecêssemos esse trecho de nesse pensamento que Lubbock (1954, p. 148) Dom Casmurro a diversos cineastas e diretores para concluiu que a história deveria parecer verdadeira que fosse adaptado para um meio audiovisual, e, para tanto, ela deveria ser mostrada – usando depararíamo-nos com uma série de propostas o discurso direto –, deveria falar por si só, e a de trabalho distintas. Nenhuma delas ousaria “mera” afirmação do narrador não seria capaz de preterir toda a riqueza informativa disponibilizada instaurar a “arte da ficção”. na narrativa sumária sem prejuízo para a leitura do O ideal de verdade da ficção, então, seria algo texto. A narrativa sumária, a despeito de Lubbock, muito próximo do drama, isso é, com menos é a ficção pulsando forte com a verdade que o distância entre aquilo que se fala daquilo que discurso indireto possui, colocando com clareza se fala – porém parte significativa das falas. Mas a descrição das coisas, os sentimentos das o drama são narrações. Ora, o próprio Friedman personagens, os estados mentais, etc. chegou a afirmar que a ficção era pra ser lida e Observemos o trecho transformado em não vista e ouvida, como o drama, que tem sua imagem (Imagem 3). Como poderíamos supor narrativa quase totalmente constituída de falas. com o necessário laconismo e precisão que O drama comumente faz uso da narrativa aquela era uma noite qualquer, qual era o destino sumária e recorreu, não raras vezes, à rubrica do trem, que a viagem era curta, a origem do para ajudar o leitor na construção da verdade rapaz, o que nele era familiar, como se deu o ficcional. Sandra Luna (UFPB, 2012) adverte que a encontro dos moços, como se postaram, de que narrativa pura – a épica – é por natureza objetiva, falaram, como se entretiveram, o que um achou Alexandre de Assis Monteiro • Luiz Antonio Mousinho O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie 67 dos versos, qual era a disposição física de um da literatura que, por vezes, se torna, digamos, deles, como um reagiu ao recital e como o outro direto-indireto quando adaptado para um meio se portou diante de tal reação? audiovisual. Quando o autor refere o acontecimento A solução encontrada por Luiz Fernando usando a sentença “Cumprimentou-me, sentou- Carvalho para que os detalhes – muito se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros, e significativos – espalhados por todo o livro não acabou recitando-me versos” (ASSIS, 2000, p. 13), fossem desperdiçados foi manter o narrador- esse enunciado adquire sentido diretivo e cênico a personagem e suas falas, tal qual no romance partir do momento em que se torna imagem, pois a E, dessa forma, sem que sua presença referência ao evento passa a ser imagética, direta. ostensiva interrompesse o fluxo da narrativa, A narração “narra e ostenta”. Ao assistir o trecho comprometesse a ilusão da realidade ou criasse da imagem anterior (Imagem 3) notamos algo como obstáculo entre ela e o leitor, como Friedman uma redundância discursiva, onde coexistem o (2002) propõe acerca da ficção literária. texto verbal (por vezes, em Capitu, aparecendo A pergunta que se interpõe é difícil de escrito e falado) e o visual, ratificando-o. administrar: a estranha figura do narrador de Luiz Outro aspecto de grande utilidade a este Fernando Carvalho não causa perda de sedução estudo é o da perspectiva, situada também como retórica em relação ao polido e contido narrador subcategoria contida dentro do modo. Para do livro? Ao menos, na maior parte do romance, desenvolver o estudo da perspectiva, Genette ele consegue transparecer tal polidez e contenção. (1979) recorre a outro teórico que se aprofundara na Os supostos problemas de interrupção do fluxo questão da posição do narrador e no seu ponto de da narrativa, quebra da ilusão de realidade e falha vista sem, contudo, atribuir-lhe essa nomenclatura. na comunicação com o leitor/espectador podem Norman Friedman, em seu O ponto de vista quedar como obstáculos ou como soluções, na ficção (2002), expande e problematiza as procedimentos encontrados para a construção conclusões a que chegaram Cleanth Brooks da metaficcionalidade e da hipertextualidade, e Robert Penn Warren (1943), ao, de maneira como em Capitu e em Dom Casmurro. bastante elementar, posicionarem o narrador, no Para Platão, que aqui citamos indiretamente que concerne ao ponto de vista, como observador apenas para destacar as diversas leituras feitas externo ou, no tangente ao seu caráter, como a respeito de suas teses, o ideal, sobretudo presente ou ausente da ação. no discurso longo, seria equilibrar imitação e A tipologia de Brooks e Warren é “sucinta” – na narração, como acontece de fato no romance eufêmica acepção de Maria Lúcia Dal Farra (1978) ocidental (apud LEITE, 2002, p. 6-7). Em Capitu, –, não dá conta da variedade de facetas possíveis ao longo dos oitenta e seis capítulos da do narrador. Lubbock (1954, p. 157) aprofundou microssérie, em apenas seis, o narrador Dom o olhar sobre o narrador e acrescentou que sua Casmurro não aparece nem fala (Prima Justina, posição é um meio para uma apresentação No passeio público, A alma é cheia de mistérios, coerente e vívida da história e Schorer (apud A missa, Depois da missa e Capitu que entra) e a FRIEDMAN) ressaltou que os usos do ponto de narração fica por conta do narrador-câmera. O vista servem tanto como modo de delimitação que predomina na narrativa é uma coadunação dramática como de definição temática. equilibrada da atitude patente do narrador com o Outros teóricos, como Pouillon (1974) e próprio evento, alternando trechos de econômico Todorov (1971), também têm uma tipologia sumário com outros com detalhes vívidos dos diferente. Porém, as divergências em relação acontecimentos, enfatizando, a um tempo, a cena ao pensamento de Friedman se resumem à e a própria narração (FRIEDMAN, 2002, p. 173). nomenclatura, enquanto os conceitos são Além disso, o diretor da microssérie soube equivalentes. Maria Lúcia Dal Farra (1978) fala em usufruir do dilema acerca do discurso indireto “correspondência” e “mesmas acepções” e inclui 68 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 Boris Tomachevski entre esses narratologistas, uma fala pautada na evolução dos modos de sendo os termos “narração subjetiva” e “narração narrar. Santiago argumenta que a fala em primeira objetiva” ambos cunhados pelo teórico. pessoa, operada pelo “narrador clássico”, é o Os tipos de narrador/narração de Pouillon modelo em que a ação é uma experiência que (1974, p. 114) denominam termos como visão por se tem dela. É isso que empresta autenticidade à trás, visão com, visão de fora e os de Todorov matéria que é narrada e ao relato. No discurso em (1971, p. 238-240), como narrador>personagem, terceira pessoa não se pode falar em autenticidade narrador=personagem e narrador<personagem da experiência e do relato porque a informação podem ser abarcados pela teoria de Friedman. é obtida da observação de um terceiro, isso Ao final, os conceitos de visão, campo ou ponto implica um rechaço e um distanciamento do de vista estão tecnicamente incluídos no que narrador clássico. O auge desse movimento de Genette, agora na esteira de Brooks e Warren, afastamento produziu o narrador pós-moderno. chama de focalização. Para Walter Benjamim (apud SANTIAGO, 2002, O trunfo de Pouillon reside no seu esforço em p.39), entre esses, se produziu outro narrador, tentar fornecer uma conceituação para um tipo o narrador do romance, distante do narrador de narrador que é o mesmo de Dom Casmurro, clássico por causa da negação ao “senso prático o de primeira pessoa ou “ensimesmado”, e doutrinário” e por sua função, que seria a de como usa Dal Farra (1978). Pouillon, em Tempo não mais falar de maneira exemplar a seu leitor, e novela, afirma que tal narrador é dotado de moral e esteticamente. E, distante do narrador uma compreensão simpática e sentimental da pós-moderno, que narra por narrar, sem interesse realidade, frequentemente deformante e fonte pela experiência que “se subtrai da ação narrada de mal-entendido (POUILLON, 1974, p. 164). [...] e cria um espaço para a ficção dramatizar a Tzvetan Todorov, em As categorias da narrativa experiência de alguém desprovido de palavra, literária (1971), retoma a causa de Pouillon, com o narrador que se identifica com um segundo seus próprios termos novamente. Para ele, dois observador – o leitor.” (SANTIAGO, 2002, p. 38-48). tipos de narração alicerçam a discussão: a do No ensaio “Sobre alguns temas em Baudelaire”, romance em terceira pessoa, “que não representa Walter Benjamin observa como a informação seu próprio processo de enunciação” e a do se posta rigidamente distante da experiência, romance em primeira pessoa, em que “o narrador pois não entra na tradição. Ao contrário, floresce é representado”, sendo “sujeito da enunciação e num momento de atrofia da experiência, quando ao mesmo tempo do enunciado”. “nenhum leitor tem mais facilmente qualquer coisa A “polêmica” (para usar a expressão do subtítulo para poder contar ao outro” (BENJAMIN, 1980b, p. do estudo de Dal Farra) em torno da narração se 31). Na imprensa, há o momento de exclusão do torna drástica quando Wayne Booth, em A retórica acontecimento do contexto “em que poderia afetar da ficção e Distância e ponto de vista, considera a experiência do leitor”. O que inevitavelmente seria como “irrelevante” a categoria pessoa por causa feito, tendo em vista os ditames da informação, das “infinitas possibilidades de conjugação dos com suas exigências de novidade, brevidade, pontos de vista” (p. 64). O discurso poderia “dilatar etc., bem como os da diagramação, que expõe os sua dimensão na simultaneidade de dois pontos de assuntos de maneira fragmentária e sem relação vista”. Por trás de qualquer narrador haveria um autor- entre si nas páginas publicadas. implícito mediando qualquer situação e o romance, Já em “O narrador” (BENJAMIN, 1980a), o independentemente da situação, traria sempre a filósofo alemão analisa um contexto de perda da figura do narrador como uma consciência focal. experiência, com o rareamento da narrativa oral, Finalmente, Silviano Santiago (2002), em O tendo caído de cotação socialmente a experiência narrador pós-moderno, reelabora a discussão que anda de boca em boca. Para Benjamin, o acerca da conceituação dos narradores, trazendo advento do romance já acenaria, como exemplo Alexandre de Assis Monteiro • Luiz Antonio Mousinho O modo como expressão do ponto de vista em Dom Casmurro, o romance, e Capitu, a microssérie 69 remoto, para as forças históricas seculares que dos “grãos de semente que, durante milênios teriam afastado a narrativa do “âmbito do discurso hermeticamente fechados nas câmaras das vivo”. Estaria no romance um sinal de decadência pirâmides, conservaram até hoje sua força de da experiência, com o romancista sendo um germinação” (BENJAMIN, 1980a, p. 62). ser segregado, desorientado, que não sabe Em O narrador pós-moderno, Silviano Santiago aconselhar — um sujeito roubado pela experiência. aponta os três estágios da história do narrador Para Benjamin, porém, a informação, como sistematizados por Benjamin (por volta de 1935) nova forma de comunicação surgida no justamente no texto “O narrador”. O primeiro seria capitalismo avançado, ameaçaria a narrativa o do narrador clássico, que teria por função “dar bem mais que o romance. Exigindo plausibilidade ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio e verificabilidade, ela, em todas as suas frentes, de experiência (único valorizado no ensaio)”. tolheria a germinação de significações. O segundo se configuraria com o do narrador Cada manhã nos informa sobre as novidades do universo. No entanto somos pobres em história notáveis. Isso ocorre porque não chega até nós nenhum fato que já não tenha sido impregnado de explicações. Em outras palavras: quase mais nada do que acontece beneficia a narrativa, tudo reverte em proveito da informação. Com efeito, já é metade da arte de narrar, liberar uma história de explicações à medida que ela é reproduzida (BENJAMIN, 1980a, p. 61). do romance, “cuja função passou a ser de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor” (e aqui lembramo-nos da observação de Benjamin de que o romancista está desorientado e não sabe aconselhar). No terceiro momento, o narrador, “que é jornalista”, só “transmite pelo narrar a informação, visto que escreva não para narrar a ação da própria experiência, mas a que aconteceu com x ou y” (SANTIAGO, 1989, p. 39). No primeiro caso, o narrador expõe uma Assim, faltaria à informação certa amplitude de vivência, a experiência de uma ação. Nos dois oscilação presente na narrativa. Dessa forma, se seguintes, ele passa “uma informação sobre mantém viva apenas no instante em que é nova, outra pessoa”, tem a “experiência proporcionada “vive apenas nesse instante, precisa entregar- por um olhar lançado” (SANTIAGO, 1989, p. 38). se inteiramente a ele” (BENJAMIN, 1980a, p. Ainda: no primeiro caso (narrador clássico) “a 62). Ao contrário, a narrativa não se exaure, traz coisa é mergulhada na vida do narrador e dali possibilidades de desdobramentos futuros. retirada”. No romance, “a coisa narrada é vista Benjamin fornece como exemplo a narrativa de com objetividade pelo narrador, embora este Heródoto, que trata da prisão por Cambises, rei confesse tê-la extraído de sua vivência”. No persa, de Psanemita, rei egípcio. Após vitória em terceiro momento, “a coisa narrada existe como guerra, Cambises obrigou Psanemita a assistir ao puro em si, ela é informação, exterior à vida do desfile do triunfo persa, a ver sua filha servindo narrador” (SANTIAGO, 1989, p. 40). Para Santiago, como escrava aos persas e seu filho ser levado à o narrador pós-moderno é o que transmite execução. O rei não esboçou reação a todas essas cenas atordoantes, no entanto, ao reconhecer “um de seus criados, homem velho e empobrecido, nas filas dos prisioneiros, bateu com os punhos na cabeça e deu todos os sinais da dor mais profunda” (BENJAMIN, 1980a, p. 61). Pensando sobre a interpretação que Montaigne faz dessa narrativa, o ensaísta alemão especula sobre outras e, principalmente, ressalta o impacto em espanto e reflexão que ela conserva através dos tempos — um poder que se assemelha ao [...] uma ‘sabedoria’ que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar ‘autenticidade’ a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o ‘real’ e o ‘autêntico’ são construções de linguagem (SANTIAGO, 1989, p. 40). 70 Letras de hoje Porto Alegre, v. 55, n. 1, p. 59-72, jan.-mar. 2020 | e-33678 Santiago observou as tensões entre o jornalismo e a literatura percebendo como, no primado da informação, a figura do narrador passa a ser a de “quem se interessa pelo outro (não por si) e se afirma pelo olhar lançado ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar [...] que cata experiências vividas no passado)”. Dessa maneira, assinala que “pode-se falar que o narrador olha o outro para levá-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência” (SANTIAGO, 1989, p. 43). Finalizando, percebemos como Genette (1979), fez o termo focalização sobressair e tornar-se o mais recorrente nos estudos narratológicos. Segundo ele, visão, campo ou ponto de vista é preferível por ser mais abstrato, mas isso provavelmente ocorreu por ter notado que o narrador nunca analisa objetivamente os pensamentos e as percepções da personagem focal e que “a distinção entre os diferentes pontos de vista nem sempre é tão nítida quanto a simples consideração dos tipos puros poderia fazer supor” (GENETTE, 1979, p.190). A consideração dessa teoria arrasa a tentativa de Dom Casmurro de se posicionar como sujeito (narrador) potencialmente distante ou objetivo em relação ao que diz. Já que, como sustentou Pouillon, sua visão da realidade é sentimental, deformante e fonte de mal-entendido, além de ser desinteressada de compromissos estéticos e morais para com o leitor, como afirmou Santiago (2002). REFERÊNCIAS ARRAES, Guel. O Auto da Compadecida. [Microssérie]. 2000. ASSIS, Cláudio. Baixio das bestas. [Filme]. Brasil. 2007. 80 min. ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. São Paulo: Ed. Ática, 2000. AUMONT, Jacques. Moderne? 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