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Populismos

2020, Populismos

Populisms Populists aim to rise to the position of courageous heralds of the people who struggle, overall, against the political elite to protect them from endemic and systemic corruption and spoliation in the political world. We strive to contribute with the theoretical and empirical comprehension of the underlying characteristics of the facade of the alleged popular power exercised by populist leaders and, therefore, we set out to not only examine and compile the most varied conceptual definitions, but also to present a theoretical definition in which we recognize a myriad of variable properties of populisms which are strategies commonly used in specific political contexts with the goal of broadening the political force of the movement. The next step was to apply the definition of populisms in the political and normative actions undertaken by Bolsonaro and we found that the attempt of legitimizing a populist governance is characterized, as well, by the use of political and religious moralism, by the rampant drive for misinformation and fake news, by polarization and by the militarization of politics. During the pandemic, that is still lasts, many said that populism would fade facing the need for government officials to be confronted with the urgency of rationally making harm reduction decisions. We do not know if populism will fade or become stronger, what we do know, however, is to identify movements that break with essential paradigms of democracy and, therefore, to prevent democratic disintegration from decaying. Populistas buscam se alçar à posição de corajosos arautos do povo que lutam, sobretudo, contra a elite política para protegê-lo da corrupção e espoliação endêmicas e sistêmicas do mundo político. Empenhamo-nos em contribuir com a compreensão teórica e empírica das características subjacentes à fachada do pretenso poder popular exercido por líderes populistas e, por isso, nos propusemos a não apenas examinar e compilar as mais variadas definições conceituais, como apresentamos uma definição teórica na qual reconhecemos uma miríade de propriedades variáveis de populismos que são estratégias comumente utilizadas em contextos políticos específicos com o intuito de ampliar a força política do movimento. O passo seguinte foi aplicar a definição de populismos nas ações políticas e normativas empreendidas por Bolsonaro e constatamos que a tentativa de legitimar uma governança populista se caracteriza, também, pelo uso do moralismo político e religioso, do impulsionamento desenfreado de desinformações e fake news, da polarização e da militarização da política. Durante a pandemia, que ainda perdura, muitos disseram, que o populismo iria se esmorecer diante da necessidade de os governantes serem confrontados com a urgência da tomada racional de decisões de redução de danos. Não sabemos se os populismos vão esmorecer ou se fortalecer, o que sabemos, porém, é identificar os movimentos que rompem com paradigmas essenciais da democracia e, por conseguinte, evitar que a desintegração democrática se decante.

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PERNAMBUCO POPULISMOS CARINA BARBOSA GOUVÊA Ə PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO apresentação Henderson Fürst prefácio Oscar Vilhena Vieira Copyright © 2020 by Editora Letramento Diretor Editorial | Gustavo Abreu Diretor Administrativo | Júnior Gaudereto Diretor Financeiro | Cláudio Macedo Logística | Vinícius Santiago Comunicação e marketing | Giulia Staar Produção Editorial | Laura Brand Designer Editorial | Gustavo Zeferino e Luís Otávio Ferreira Conselho Editorial | Alessandra Mara de Freitas Silva; Alexandre Morais da Rosa; Bruno Miragem; Carlos María Cárcova; Cássio Augusto de Barros Brant; Cristian Kiefer da Silva; Cristiane Dupret; Edson Nakata Jr; Georges Abboud; Henderson Fürst; Henrique Garbellini Carnio; Henrique Júdice Magalhães; Leonardo Isaac Yarochewsky; Lucas Moraes Martins; Luiz Fernando do Vale de Almeida Guilherme; Nuno Miguel Branco de Sá Viana Rebelo; Renata de Lima Rodrigues; Rubens Casara; Salah H. Khaled Jr; Willis Santiago Guerra Filho. Todos os direitos reservados. Não é permitida a reprodução  desta obra sem aprovação do Grupo Editorial Letramento.  Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD G719p Gouvêa, Carina Barbosa Populismos / Carina Barbosa Gouvêa, Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco. - Belo Horizonte, MG : Casa do Direito, 2020. 208 p. ; 15,5cm x 22,5cm. Inclui bibliografia. ISBN: 978-65-86025-95-8 1. Ciências políticas. 2. Populismo. I. Branco, Pedro H. Villas Bôas Castelo. II. Título. CDD 320 CDU 32 2020-2975 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Índice para catálogo sistemático: 1. Ciências políticas 320 2. Ciências políticas 32    Belo Horizonte - MG Rua Magnólia, 1086 Bairro Caiçara CEP 30770-020 Fone 31 3327-5771 contato@editoraletramento.com.br editoraletramento.com.br casadodireito.com Casa do Direito é o selo jurídico do Grupo Editorial Letramento SOBRE OS AUTORES CARINA BARBOSA GOUVÊA Professora do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco ( PPGD / UFPE ); Pós Doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); Doutora e Mestre em Direito pela UNESA. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro vinculado ao PPGD/UFPE. PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO Professor do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro(IESP- UERJ); Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (PPGD/UVA). Doutor em Ciência Política (IUPERJ), Mestre em Direito (PUC-Rio). Coordenador do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (LEPDESP/UERJ). ȫ NOTA DOS AUTORES Ȏ APRESENTAÇÃO À OBRA “POPULISMOS” DE CARINA BARBOSA GOUVÊA E PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO șǶ PREFÁCIO șȎ INTRODUÇÃO Ɋǫ 1. O QUE SERIA POPULISMO? COMPREENDENDO ALGUMAS DIMENSÕES SEMÂNTICAS Ɋȫ 1.1. DEMOCRACIA E O MOVIMENTO DAS ONDAS POPULISTAS Ƀș 1.2. POPULISMO COMO MOVIMENTO E IDEOLOGIA: A VISÃO DE LACLAU Ƀȫ ǶǶ 2. “WE THE PEOPLE” VS. “WE THE POPULAR MASS” 2.1. O POPULISMO E O PROGRESSISMO PELA LENTE DE BALKIN Ƕǫ 2.1.1. CARACTERÍSTICAS INICIAIS DO MOVIMENTO POLÍTICO POPULISTA Ƕȳ 2.1.2. CARACTERÍSTICAS DO MOVIMENTO POLÍTICO PROGRESSISTA ǶȎ 3. TOTALITARISMO E POPULISMO NO SÉCULO XX: COMPREENDENDO AS DIMENSÕES DO TOTALITARISMO SEGUNDO A VISÃO DE HANNAH ARENDT ȳɃ 4. HARMONIZANDO UM MÉTODO ESTRUTURANTE PARA A COMPREENSÃO DAS DIMENSÕES DE POPULISMO NA CONTEMPORANEIDADE ȳǛ 4.1. O VÁCUO SEMÂNTICO DE POPULISMO Ǜɳ 4.2. POPULISMO E SUA MANIFESTAÇÃO NO LIMBO DA DEMOCRACIA LIBERAL ȎɃ 4.3. EXTRAINDO O LEQUE SEMÂNTICO DE “POPULISMOS” À INFLEXÃO DE SEUS SENTIDOS șɳș 5. INDICADORES PRIMÁRIOS DE GÁBOR TÓTH E O MOVIMENTO DE JAIR MESSIAS BOLSONARO: ASPECTOS FORMAL E INFORMAL, DIRETO E INDIRETO șɳǫ 5.1. A FORJA DE UMA PSEUDOCONSTITUIÇÃO șɳȳ 5.2. MANTENÇA DE UM EQUILÍBRIO INSTITUCIONAL DE FACHADA șșȳ 5.3. A QUEBRA DAS TRADIÇÕES DEMOCRÁTICAS BRASILEIRAS șɊș 5.4. CONSTRUÇÃO DE UM HIPEREXECUTIVO COM AMPLIAÇÃO DAS COMPETÊNCIAS CONSTITUCIONAIS, MANDATO GOVERNAMENTAL E AMPLIAÇÃO DAS JUSTIFICATIVAS PARA INSTITUIR UM ESTADO DE EXCEÇÃO. RIVAIS COMO INIMIGOS șɊɃ 5.5. RESTRIÇÕES IMPOSTAS AOS DIREITOS FUNDAMENTAIS șɊȎ 6. CONTEXTUALIZANDO AS PROPRIEDADES VARIÁVEIS DE POPULISMOS NO GOVERNO BOLSONARO șɊȎ 6.1. DO USO DO MORALISMO POLÍTICO E RELIGIOSO șɃș 6.2. DO USO E IMPULSIONAMENTO DESENFREADOS DE DESINFORMAÇÕES E FAKE NEWS șɃǶ 6.3. DA POLARIZAÇÃO DA POLÍTICA șɃȫ 6.4. DA MILITARIZAÇÃO DA POLÍTICA șǫȫ 7. ABORDAGENS ESTRUTURAIS POLÍTICAS E JURÍDICAS EM OPOSIÇÃO À GOVERNANÇA POPULISTA șǛɃ CONCLUSÃO șǛȎ REFERÊNCIAS NOTA DOS AUTORES A publicação da obra Populismos foi realizada com o apoio do Programa de Apoio à Pós-Graduação (PROAP-CAPES) e da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001. A pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação (PPGD/ UFPE) na linha de pesquisa 1.1. Jurisdição e Processos Constitucionais junto à disciplina “Constitucionalismo Global, Processos Constitucionais e Mudanças em Tempos de Crise do Estado de Direito”, nos semestres 2018.2 e 2020.3, ministrada pela Profª. Carina B. Gouvêa e tendo como Professor Convidado o Prof. Pedro H. Villas Bôas Castelo Branco. A disciplina contemplava as seguintes temáticas: “Populismo, Constitucionalismo Populista, Jurisdição Populista e a Crise da Democracia” e “Estado de exceção, Populismos e a Militarização da Política na pandemia da COVID-19”, tendo sido realizada, respectivamente, nos Programas de Pós-Graduação de Ciência Política do IESP-UERJ e Programa de Pós-Graduação da Universidade Veiga de Almeida (PPGD/UVA). Contou, também, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ) e colaboração do Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (LEPDESP) e do Grupo de Estudos de Pesquisa Teoria da Separação dos Poderes e Crises do Sistema Democrático Brasileiro (PPGD/UFPE). Gostaríamos de agradecer o apoio incondicional de todos que, direta ou indiretamente, colaboraram para a materialização da pesquisa, especialmente à Coordenação do PPGD/UFPE, nas pessoas das Professoras Doutoras Mariana Fischer e Manuela Abath, e à Pro-Reitoria para Assuntos de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal de Pernambuco (PROPESP/UFPE). Outubro de 2020 CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 7 APRESENTAÇÃO À OBRA “POPULISMOS” DE CARINA BARBOSA GOUVÊA E PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO por Henderson Fürst1 Algumas palavras possuem a mesma dificuldade de interpretação, compreensão e manuseio, tal qual as grandes navegações tiveram por muitos anos com os instrumentos de geolocalização e mapas disponíveis à época. Uma destas palavras é “populismo”. Populismo pode ser tomado por diversos conceitos e utilizado para expressar diversas estruturas políticas, com as mais diversas orientações ideológicas e finalidades. Daí a sua dificuldade de estabelecer precisamente seu conteúdo, tal como a dificuldade de se estabelecer precisamente a geolocalização de uma navegação pré-moderna. Este fenômeno estabelece o termo populismo na questão posta filosoficamente por John L. Austin, em especial em sua obra How to do things with words, na qual, logo em sua primeira parte, recebe o tratamento conceitual do termo performativo (performative)2. Na teoria dos atos de fala (speech acts), o termo performático englobaria as expressões linguísticas que seriam frequentemente vazias de sentido nelas próprias (um sem sentido). Os enunciados performáticos não descrevem ou registram nada, por consequência, eles não são nem 1 Doutor em Filosofia do Direito pela PUC- SP. Doutor e mestre em Bioética pelo CUSC. Bacharel em Direito pela UNESP. Professor dos programas de Direito Constitucional da PUC-Campinas. Editor científico e advogado. Presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito da OAB Nacional. 2 AUSTIN, John L. How to do things with words. 2. ed. Cambridge: Harvard University, 1975, p. 4 e ss. CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 9 verdadeiros nem falsos. Ademais, o ato de expressar a oração é realizar uma ação, ou parte dela, ação que, por sua vez, não seria normalmente descrita como consistente em dizer algo3. Os enunciados performáticos, fora das circunstâncias apropriadas, são indiscutíveis: eles não dizem ou significam nada, não podem ser submetidos a um teste de validade. Por exemplo, a expressão “viva”. Ela sozinha não significa praticamente nada, pode ser um comando para que alguém continue vivendo, pode ser uma expressão de exclamação para algo positivo etc. Essa é a característica dos enunciados performáticos eles são indiscutíveis não provam nada e não podem ser refutados considerados verdadeiros ou falsos4. Dessa forma, na teoria de Austin, a dignidade humana é um termo performativo, pois, isoladamente, não se pode determinar seu conteúdo. Não servem para relatar algo, mas performar, já que seu conteúdo apenas é compreensível quando ambientado entre outras palavras, conceitos e atos. Ou seja, por mais que muito já se tenha teorizado sobre a dignidade humana, por melhores textos que se encontrem sobre o tema, seja pela erudição de seus fundamentos, seja pela poesia de seus conceitos, pouco haverá de contribuição à aproximação do conceito hermenêutico fundamental, pois a verificação definitiva da compreensão se dará apenas diante da forma como é performativamente empregada. É dessa forma que se pode justificar a possibilidade de que dois interlocutores defendendo posições antagônicas possam igualmente fundamentar seus argumentos na dignidade humana. Austin é quem introduz, portanto, a ideia de uma “concepção performativa de linguagem”. Sua proposta sistemática, posteriormente desenvolvida por Pierce, expressa que a linguagem pode ser tratada de modo sistemático, desde que se adotem as categorias adequadas para isso, em outras palavras, desde que a linguagem seja tratada como uma forma de ação e não de mera representação do real ou da descrição de fatos no mundo5. A distinção da qual parte Austin é referente à dicotomia dos termos constativos e performativo, em outras palavras, entre o uso de senten3 Idem, p. 4-5 4 Idem, p. 6. 5 SOUZA FILHO, Danilo Marcondes de. A teoria dos atos de fala como concepção pragmática de linguagem. Revista de Filosofia da Unisinos, São Leopoldo, Unisinos, p. 219-229 (220-221), set./dez. 2006. 10 POPULISMOS ças para descrever fatos e eventos e sentenças que são usadas para realizar (to perform) algo, e não para descrever ou relatar. Por essa razão, os termos constativos podem ser verdadeiros ou falsos em relação aos fatos que descrevem; já um performativo não é realmente nem verdadeiro nem falso, pois não descreve um fato, mas deve ser considerado como bem ou mal sucedido, dependendo das circunstâncias e consequências da realização do ato6. É neste sentido que podemos observar a polissemia do termo populismo – motivo pelo qual os autores da presente obra fizeram bem em usá-la no plural. Apenas a título de exemplo, podemos indicar o conceito dado pelo dicionário Duden, em que populismo é conceituado como “política definida pelo oportunismo, popular, amiúde demagógica […] que tem por objetivo angariar, por meio da dramatização da situação política, o favor das massas (com vistas às eleições)”7. Tal conceito demonstra a facilidade que o conceito pode ser utilizado em ocasiões de disputa política, atribuindo-se uma pecha a algum dos candidatos por seus inimigos políticos. E, nisso, o termo não requer explicações, pois parece já trazer consigo elementos de pré-compreensão que fazem toda a comunidade reconhecer como algo negativo8. Outra forma de se compreender o populismo é, ao contrário, como algo bom, tal como as associações feitas a correntes políticas na transição do séc. XIX ao XX, quando agricultores tiveram parte de suas reivindicações atendidas em legislações antitruste e no New Deal9. O panorama da presente obra é este: um mar semântico de árdua navegação, um caleidoscópio teórico impreciso. E, da mesma forma que instrumentos de precisão foram criados com base em marcadores externos constantes, possibilitando segurança à navegação, assim seus autores possibilitaram no âmbito da teoria e conceituação dos populismos, apresentando um preciso mapa teórico das múltiplas formulações e utilizações feitas das palavras populismo, demonstrando que há vários populismos. Os debates em Ciência Política e em Direito Constitucional acerca dos populismos, seus efeitos e riscos à Democracia, passam a contar 6 Idem, p. 224-225. 7 KUNKEL-RAZUM, Kathrin et al. (eds). Duden. Die Deutsche Rechtschreibung. 27.ed., 2017. 8 VOGKUHLE, Andreas. Defesa do Estado Constitucional Democrático em tempos de populismo. Brasília: IDP, 2020, p. 25. 9 EICHENGREEN, Barry. Die Entwincklung des Populismus in den Vereinigten Staaten. Leviathan, n. 45, p. 180, 2017. CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 11 com um inestimável instrumento teórico que guia e estrutura marcadores seguros na compreensão e aprofundamento do tema. Os leitores dessa obra encontrarão um referencial teórico imprescindível nas páginas que se seguirão. Usualmente, uma apresentação diz de seus autores. Essa missão é fácil, à medida que tenho o privilégio de conviver com as personalidades marcantes que escrevem essa obra, mas igualmente difícil, vez que a grandiosidade de suas criatividades, mentes e almas torna qualquer tentativa de reduzir a termo insuficiente. Para respeitar o protocolo das apresentações acadêmicas, quero registrar que Carina Barbosa Gouvêa é Professora permanente do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), tem estágio Pós Doutoral - Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE); é doutora e mestre em Direito pela UNESA. Coordena o Grupo de Estudos em “Teoria da separação dos poderes e a crise do sistema democrático brasileiro” do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE). Advogada, tenho o privilégio de compartilhar a presidência da Comissão Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil com ela. Por sua vez, Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco é professor adjunto do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro ( IESP - UERJ ) e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Veiga de Almeida (UVA). Coordena o Laboratório de Estudos Políticos de Defesa e Segurança Pública (LEPDESP), uma parceria entre IESP-UERJ e Escola Superior de Guerra ( ESG). É coordenador do grupo de trabalho de Teoria Política e Pensamento Político Brasileiro da Associação Nacional de Pós-Graduação em Ciências Sociais (ANPOCS). Foi professor adjunto do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense (UFF) entre 2009 e 2014 e professor adjunto da Escola de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) entre 2010 e 2014. Doutorou-se em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (antigo IUPERJ atual IESP-UERJ), em 2009. Durante o doutorado, estudou com bolsa de extensão no convênio DAAD/CAPES no Otto-Suhr-Institut für Politikwissenschaft (Instituto de Ciência Política Otto Suhr) na Freie Universität Berlin (Universidade Livre de Berlim), na Alemanha. Tem experiência de ensino e pesquisa na área de Teoria Política, Teoria 12 POPULISMOS do Estado, Teoria do Direito e Segurança Pública. É autor do livro Secularização Inacabada: Política e Direito em Carl Schmitt, publicado em 2011 no Brasil e também na Alemanha, em 2013, com o título Die unvollendete Säkularisierung. Politik und Recht im Denken Carl Schmitts. Advogado, é membro consultor da Comissão Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Como anteriormente mencionei, a presente obra que o leitor tem em mãos nasce já como um referencial teórico para a complexa análise do tema. E digo isso acrescentando que, para mim, a leitura desta obra foi fundamental para ampliar meus horizontes teóricos e poder avançar minhas pesquisas no sentido de identificar a existência de um biopopulismo. Trata-se de uma forma de populismo em que se vale das ciências biotecnológicas tanto como instrumento apropriado ideologicamente para sustentar medidas contrárias ao constitucionalismo liberal, tanto como um tema narrativo para se valer como tópica em torno do qual se agregam valores de parte expressiva da sociedade, normalmente de cunho conservador. A apropriação das ciências biotecnológicas não implica num discurso científico, que pressupõe margem de erro, evidências científicas, refutabilidade, replicabilidade, verificabildiade e outras características que marcam o conhecimento científico contemporaneamente. Basta que soe verossímil e extraído de um suposto conhecimento científico para atingir as finalidades necessárias. Com isso, o biopopulismo corresponde a uma faceta contemporânea no complexo poliédrico que é o populismo, possibilitada pelo contexto da pós-verdade e do crescimento de fake news na comunicação de massa, pois não importa que a técnica ou o discurso que se apropriam da biotecnociência seja verdadeira, importa que seja suficientemente verossímil para ter aderência popular e alcançar os objetivos propostos. Trata-se, portanto, de mais um modo de proceder do populismo, em que se usa a biopolítica e as implicações do biopoder para atingir as finalidades maiores de quem dela se vale. Desejo aos leitores uma agradável leitura, esperando que a possa a pesquisa alcançar cada vez mais. CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 13 PREFÁCIO Populismos, de Carina Barbosa Gouvêa e Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco, oferece ao leitor brasileiro um minucioso e sofisticado levantamento do debate acadêmico em torno da mais recente vaga populista que vem se impondo a muitos países na última década. Com um amplo domínio da literatura jurídica e da ciência política contemporânea sobre o novo populismo, os autores apresentam um panorama complexo desse fenômeno multifacetado que vem colocando em risco democracias liberais nos diversos continentes, inclusive onde elas estavam enraizadas, como nos Estados Unidos, ou pareciam estabilizadas como Índia e Brasil. Embora a derrota de Donald Trump nas eleições de 2020 possa sinalizar algum arrefecimento da onda populista, a permanência das dificuldades estruturais apresentadas pelas democracias liberais num contexto de crescente desigualdade, que favorece a ascensão de líderes populistas, indica que teremos que conviver por um bom tempo com esse tipo específico de ameaça à democracia. O populismo contemporâneo, de acordo com os autores, emergiu em um contexto de crises econômicas e financeiras e de uma crise mais profunda da democracia liberal. A ascensão da desigualdade econômica e intensificação da descrença na política representariam o fracasso de elites liberais em cumprir sua promessa de uma prática política baseada na moderação e no consenso, no reconhecimento de direitos de minorias e na tolerância mútua. Isso levou à crise da democracia liberal. Nesse contexto, o populismo apresenta premissas muito distintas das que fundamentam o liberalismo pluralista, como a polarização da política, em detrimento da busca de consenso; a homogeneização popular, em detrimento do reconhecimento da heterogeneidade dos grupos da comunidade política; a sobreposição de valores conservadores e excludentes sobre o progressismo. 14 POPULISMOS Carina Barbosa Gouvêa e Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco não se contentam, no entanto, em realizar uma primorosa revisão da bibliografia sobre populismo contemporâneo. O objetivo desses jovens autores é mais ambicioso. A partir da concepção de Gábor Tóth, que define populismo como uma forma de iliberalismo, procuram verificar se as condutas de Bolsonaro e seu governo podem ser configuradas como populistas. Tomando emprestado de diversos autores um conjunto de indicadores do populismo, se lançam na empreitada de analisar o comportamento de Bolsonaro e seu governo. De acordo com Gouvêa e Castelo Branco, a tentativa de Bolsonaro de forjar uma “pseudo-constituição”, desde o início de seu governo; de estabelecer um “equilíbrio institucional de fachada”; de “quebrar as tradições democráticas”; e de construir um “hiper-executivo”, o colocariam claramente no campo antiliberal. Mais do que isso, o recurso ao moralismo político religioso, o impulsionamento de notícias falsas (fake news), bem como a polarização e a militarização da política, não deixariam dúvida sobre a natureza populista de Bolsonaro. Tendo a compreender o populismo, em sintonia com os autores, como uma síndrome da democracia contemporânea, que nasce da desconfiança nas instituições representativas, do ressentimento com as elites que as habitam e da percepção de que a democracia liberal não tem sido capaz de cumprir com suas promessas (Muller 2017, Bobbio, 1989). Líderes populistas se apresentam como representantes diretos e autênticos da vontade popular e intérpretes exclusivos do bem comum. Não se trata propriamente de uma ideologia política ou econômica, mas, antes de tudo, de uma estratégia para alcançar e manter no poder. A história abriga múltiplas expressões do que se convencionou chamar populismo, como deixam claro os autores. Em suas versões originais e mais benignas, foram chamados de populistas políticos movimentos progressistas que desafiaram elites oligárquicas que se apoderam das instituições representativas, em benefício próprio. O termo também é usado no campo econômico para designar políticas fiscais heterodoxas. Nas variantes autoritárias, o populismo está intimamente ligado ao fascismo, como uma força empenhada em destruir as instituições liberais e o pluralismo político, lançando uma guerra contínua contra o estado de direito, o sistema representativo, os partidos, a imprensa livre e os direitos de todos aqueles que, de alguma forma, se contrapõem ao exercício arbitrário do poder do líder. CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 15 Entre o populismo como mera expressão antielitista e o populismo fascista encontram-se inúmeras trajetórias e experiências, tanto à esquerda quando à direita, que fazem uso de estratégias e práticas populistas de maneira mais ou menos radical, mas sempre em tensão com as instituições democráticas, o pluralismo político, o império da lei e os direitos de grupos alçados a posição de inimigos. Populistas autoritários apresentam-se como encarnação autêntica e exclusiva da vontade popular e dos interesses legítimos da nação. Todos aqueles que dele discordam são apresentados como inimigos a serem combatidos e, no extremo, eliminados. Ao se aproximar da concepção schmittiana de política, que consiste numa constante batalha entre amigos e inimigos, em que o objetivo final é a eliminação do outro (Schmitt, 2015), o populismo se transforma numa antítese da democracia constitucional. A face jurídica do populismo, em muitos países, como a Hungria ou Polônia, tem sido uma espécie de “legalismo autocrático” (Kim Scheppele, 2017). Assim como se utilizam das franquias e procedimentos democráticos para alçar ao poder e subverter a democracia representativa, uma vez no governo, populistas autoritários também passam a empregar procedimentos jurídicos e prerrogativas institucionais com o objetivo de subjugar a legalidade e capturar as instituições jurídicas, subvertendo a própria essência do rule of law (Lon Fuller, 1965). Embora em regimes autoritários, instalados por golpes de Estado, o sistema jurídico e as instituições de aplicação da lei também sejam sistematicamente empregadas como instrumento do governo (Loewenstein, 1942; Antony Pereira, 2005), o enredo da subversão do estado de direito não é o mesmo. Enquanto nos regimes autoritários, tout court, temos a ruptura constitucional, marcada por um período de exceção, seguido pelo estabelecimento de uma ordem autoritária, que pode utilizar o sistema jurídico e suas instituições, em maior ou menor medida, como ferramenta de governo (rule by law), no novo populismo o caminho é mais sinuoso. O que se pode observar nessa onda de populismo, lastreada em maioria eleitoral, é o emprego sistemático de prerrogativas institucionais para fragilizar as regras eleitorais, o sistema de freios e contrapesos, os direitos dos grupos indesejáveis ao sistema, assim como para capturar em instrumentalizar as instituições de aplicação da lei. Os espaços de discricionariedade vão sendo expandi16 POPULISMOS dos, as autoridades responsáveis por aplicar a lei vão sendo substituídas e as instituições finalmente subjugadas ou cooptadas. Trata-se de um processo mais lento, pelo qual as condicionantes para o exercício e as regras de alternância no poder, os procedimentos de participação da sociedade, a transparência na condução da coisa pública, a independência das instituições de aplicação da lei, as garantias do estado de direito e, em especial, os direitos de grupos vistos como inimigos do regime vão sofrendo um processo de contínua erosão. O ritmo e a profundidade desse processo dependerão da capacidade das instituições, da oposição e de setores da sociedade civil de colocar limites aos avanços autoritários. No capítulo final de Populismos, os autores apresentam um longo repertório de mecanismos que entendem poderiam contribuir para conter o populismo, com a ressalva de que seria necessário adaptá-los às particularidades de cada contexto, entre os quais destacaria: fortalecer limites ou obstáculos ao emendamento constitucional/substituição constitucional; fortalecimento dos partidos políticos como guardiões da democracia; aumento do controle legislativo na edição de decretos e medidas provisórias; criação de uma burocracia racional baseada em competência e expertise, e não no carisma e tradição, de modo a aumentar o controle sobre a discricionariedade do Executivo; fortalecimento de uma democracia deliberativa , por meio da abertura e estímulo ao debate com a sociedade civil; criação de instâncias de controle social destinadas a monitorar a democracia; incorporação de ferramentas de proteção Internacional; fortalecimento do sistema de freios e contrapesos, por exemplo, por meio da preservação e aumento da independência judicial; ou ampliação da cooperação e integração entre as democracias, identificando vulnerabilidade e protegendo seus princípios. Evidente que o leitor não precisa concordar com o diagnóstico ou ainda com as propostas elaboradas pelos autores para reduzir os riscos do avanço do populismo. A riqueza de Populismos está, sobretudo, no caminho trilhado por Carina Barbosa Gouvêa e Pedro Hermílio Villas Bôas Castelo Branco. Impressiona a leitura atenta, ao mesmo tempo crítica e respeitosa, de uma imensa literatura sobre o fenômeno do populismo contemporâneo. Como isso ampliam, de forma generosa, os horizontes desse do sobre o populismo no Brasil. Também deve-se destacar o esforço dos autores para investigar as ações do go- CARINA BARBOSA GOUVÊA & PEDRO H. VILLAS BÔAS CASTELO BRANCO 17 verno Bolsonaro em direção ao iliberalismo. A leitura de Populismos certamente contribuirá para que seus leitores tenham mais ferramentas conceituais para analisar esse fenômeno global que ameaça o edifício do constitucionalismo democrático, assim como para compreender como o crescimento do populismo está associado as próprias fragilidades da democracia liberal e das promessas por ela não cumpridas, como já nos alertava Norberto Bobbio no final dos anos 1980. Novembro de 2020 OSCAR VILHENA VIEIRA Professor de Direito Constitucional da FGV Direito SP e membro fundador da Conectas e da Comissão Arns de Direitos Humanos 18 POPULISMOS