A Natureza e o Sagrado em Tolkien
The Nature and the Sacred in Tolkien
1
Diego Klatau*
RESUMO
Este artigo trata da concepção da natureza como sagrado na obra O Silmarillion, do autor inglês J.
R. R. Tolkien (1892-1973), publicada postumamente em 1977. Este livro reúne diversos textos
desenvolvidos durante a vida do autor e apresenta as bases cosmogônicas e teogônicas do universo
mitológico de Tolkien, que fundamentaram os romances mais famosos: O Hobbit (1937) e O
Senhor dos Anéis (1954). Enquanto professor de Filologia na Universidade de Oxford, entre 1925 e
1959, Tolkien teve contato com diversas abordagens teóricas sobre mitologia, especialmente a
Fenomenologia da Religião. É nesta interface entre Fenomenologia e Literatura, através das obras
de Mircea Eliade (1907-1986), que é possível traçar a concepção de sagrado presente na descrição
da criação da natureza na narrativa de Tolkien.
Palavras-chave: Natureza. Sagrado. Tolkien.
ABSTRACT
This article deals with the conception of nature as sacred in the book The Silmarillion, by the
English author J. R. R. Tolkien (1892-1973), published posthumously in 1977. This book brings
together various texts developed during the life of the author and presents the cosmogonic and
teogonic bases to the Tolkien’s mythological universe, including his most famous novels: The
Hobbit (1937) and The Lord of the Rings (1954). As a professor of Philology at Oxford University
between 1925 and 1959, Tolkien had contact with several theoretical approaches to mythology,
especially the Phenomenology of Religion. It is this interface between Phenomenology and
Literature, through the works of Mircea Eliade (1907-1986), that is possible to trace the design of
sacred present in the description of the creation of nature in Tolkien's narrative.
Key-Words: Nature. Sacred. Tolkien.
Tolkien e O Silmarillion
A obra póstuma de J. R. R. Tolkien (1892-1973), O Silmarillion, doravante indicado
como (Sil), publicada em 1977, é uma compilação de diversos textos escritos desde 1917 até
o final da vida do autor. Durante a Primeira Grande Guerra2, quando Tolkien servia como
oficial na batalha do Somme, na França, escreveu um primeiro poema sobre a queda de
1
Recebido em 10/05/2015. Aprovado em 10/10/2015.
Pós-doutorando em Ciências da Religião pela PUC/SP, professor do Centro Universitário da FEI, São
Bernardo do Campo/SP. Email: dklautau@gmail.com.
2
Para uma biografia detalhada de Tolkien, ver Carpenter (1992).
*
A Natureza e o Sagrado em Tolkien
uma grande cidade num universo fantástico, que reunia elementos da mitologia nórdica,
da antiguidade clássica e de relatos cristãos bíblicos e medievais. Este poema, intitulado “A
Queda de Gondolin”, foi o primeiro escrito do que viria a ser chamado de The Book of
Lost Tales, que, por sua vez, foi ampliado para se tornar então O Silmarillion. Enquanto
coletânea de vários esboços de cosmogonia, teogonia, criação de continentes e povos, a
obra está dividida em vários livros, que abrangem milênios de história de Arda, o mundo
fantástico criado por Tolkien, que servem de base geográfica, histórica, teológica e cultural
para os romances mais conhecidos do autor: O Hobbit e O Senhor dos Anéis, este,
doravante, indicado como (SdA).
O objetivo deste artigo é demonstrar como a presença da natureza é lócus do
sagrado, entendido por Eliade (2001) como categoria fundante da consciência humana. A
ficção literária é uma prática imaginativa que pode ressoar aspectos mitológicos, os quais
permitem a presença da sagrado como reminiscência do mito vivo. Assim, a literatura de
Tolkien segue essa perspectiva porque tenta se aproximar de uma mitologia, tecendo os
elementos da ação divina na criação da natureza, seja no seu aspecto mais imediato e
material, seja em sua dimensão mais fundamental e metafísica.
Neste artigo, em seus limites e propósitos, trabalhamos dois livros: o Ainulindalë, a
música dos Ainur, em que se relata a criação de Arda, o mundo, por Eru Ilúvatar, o
Único, e os Valar e Maiar, seus santos, e a queda de Melkor, o mais sábio, que se
transforma em Morgoth, o Senhor da Escuridão e do Vazio. Em Valaquenta, existe uma
descrição dos Valar e dos Maiar, com mais detalhes, que nos serve de maior
conhecimento da criação e dos poderes de Arda. Em ambas as narrativas, podemos
perceber essa dimensão do sagrado a partir de uma mitologia comparada, a partir da
hermenêutica do sagrado como narrativa mítica.
No caso de Ainulindalë e Valaquenta, analisamos as aproximações com o livro do
Gênesis bíblico e da Teogonia grega. A edição bíblica consultada foi a Bíblia de Jerusalém
(2002), da editora Paulus, cujos coordenadores da tradução foram Gilberto da Silva
Gorgulho, Ivo Storniolo e Ana Flora Anderson. A tradução e estudo sobre A Teogonia
estudada foi a de Torrano (2001). Para estudos do caráter mitológico específico acerca do
Gênesis, consultamos a obra de Graves e Patai (1994).
Em SdA (2001), Frodo recebe as Traduções do Élfico (SdA, p. 1045-1046) de seu
tio Bilbo, juntamente com o diário no qual estão escritas as aventuras de O Hobbit
(2003), com inúmeras outras histórias traduzidas durante a estada de Bilbo em Valfenda,
casa de Elrond, o Meio Elfo, um dos guardiões da Terra Média. Antes de partir para
sempre em direção ao Oeste, para Valinor (Casadelfos), Frodo entrega para Sam, seu fiel
companheiro, um estojo vermelho com quatro volumes contendo no primeiro volume o
que seria O Hobbit e sua própria história em SdA (p. 1088).
Os três volumes restantes eram as Traduções do Élfico, contendo mitologias,
lendas, registros, poemas, mapas, genealogias, descrições geográficas e arquitetônicas,
desenhos e plantas que Bilbo traduzira para a língua comum (westron) da biblioteca de
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Valfenda (escrita ou quenya ou sindarin). Todo esse material, juntamente com um quinto
volume dedicado à genealogia dos membros da comitiva, formava “O Livro Vermelho”,
relato fundador da quarta era da Terra Média (SdA, p. 15-16). É possível e razoável inferir
que todo esse material integrava as narrativas presentes em O Silmarillion (Sil) (1999), Os
Filhos de Húrin (2009) e Contos Inacabados (CoI) (2002). Esses livros narram mitos,
lendas e eventos que os elfos, os primeiros seres conscientes que andaram na Terra Média
(Sil, p. 45-56), registraram a partir dos ensinamentos dos Valar e Maiar e da sua própria
história. Os Valar e Maiar são criados a partir de aspectos de Ilúvatar (Eru, o Único), que
os criou como os primeiros seres (espirituais e angélicos) (Sil, p. 3-12).
Conforme Gonçalves (2007), a pseudotradução é fulcral na linguagem e fantasia de
Tolkien. O elo narrativo entre todo o legendarium é a técnica de simular uma tradução
para conceder ao texto mais legitimidade do que simplesmente uma autoria própria de
texto científico, filosófico ou fictício. Essa estratégia de Tolkien apenas reforça seu
empenho em estabelecer a importância da obra em si mesma, mais do que encontrar
elementos arqueológicos que apenas estruturassem a obra como textos que falam de
textos, sem se referir a um valor acerca da realidade, mesmo que seja noética3. O autor
afirma que toda a sua mitopoética4 tinha origem no Livro Vermelho enquanto tradução
sempre mais antiga dentro de sua própria porta para Faerie5. A maior arqueologia textual
(origem, influências, heranças) que pode ser encontrada sobre a Terra Média é na própria
Terra Média (seu valor em si mesmo).
1. Eliade e O Sagrado
A partir da fenomenologia da religião, a obra de Mircea Eliade é um marco
inescapável para o estudo do sagrado e de suas dimensões mitológicas e narrativas. A
variedade da formação de Eliade (filósofo, teólogo, historiador e linguista) faz com que sua
produção se torne multifacetada. Com uma profundidade que consolida a produção da
fenomenologia da religião, Eliade se define como historiador das religiões (CROATTO,
2001; FIROLAMO, PRANDI, 1999). Com uma formação na Romênia, França, Inglaterra e
diversas viagens à e pesquisas na Índia, Eliade se estabelece na França após a Segunda
A noética é um termo da fenomenologia que entende os significados de um fenômeno, em contraste com
sua dimensão hilética ou material. Para a fenomenologia, da qual Eliade é tributário, uma análise completa de
um objeto deve ser realizada sempre com a tensão entre a hilética (matéria) e a noética (o significado
essencial, o eidos, encontrado pelo pesquisador). A metodologia abordada para esta análise é desenvolvida
amplamente pelos filósofos Edmund Husserl e Rudolf Otto. Ver Ales Bello (2004).
3
4
A mitopoética, a fabricação de mitos, é uma prática narrativa que é trabalhada longamente por Tolkien em
seu ensaio On Fairy-Stories. Ver Tolkien (1997).
5
Faerie, Feéria ou Bel Reino é o mundo das narrativas nas quais os poetas e romancistas mergulham quando
criam seus universos e mundos. Cunhado em 1939 por Tolkien (1997), em seu ensaio On Fairy-Stories.
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Guerra Mundial, onde leciona na Universidade de Paris de 1945 até 1956, quando se
transfere para Chicago, nos EUA, onde dá aulas até sua morte em 1986.
Ao apresentar o sagrado (numinoso), Eliade insiste na historicidade do conceito.
Enquanto humana, a experiência religiosa (que revela a realidade transcendente da
divindade) é tributária, por ser manifestação do divino no profano, à contingência e ao
contexto. Além disso, Eliade afirma que é possível determinar uma proposição acerca do
sagrado e, com isso, acentua seu caráter racional, inteligível e passível de transmissão pela
linguagem.
Assim, Eliade afirma que a experiência do homo religiosus é tanto histórica quanto
essencial. O sagrado é de fato um elemento da consciência, e, por isso, um transcendental
que implica as noções de ser, de significação e de verdade, porém possui a sua história
enquanto singularidade de manifestação desse sagrado. O sagrado não é uma fase na
história da consciência do homem, mas sim um elemento da consciência inextirpável e
insubstituível na constituição do homem enquanto diferenciado dos demais animais e
mesmo um necessário constitutivo de toda a cultura e civilização.
Ao trazer a análise do sagrado como a realidade do mistério, do totalmente outro
enquanto inobjetável, para além da causalidade, Eliade também afirma que esta experiência
não é irracional, mas metalógica, ou existe uma lógica própria que devemos utilizar para
compreender a experiência religiosa e o sagrado enquanto sentido na consciência. Além
disso, esse transcendente se relaciona com o imanente através de suas manifestações, logo
é possível perceber sua historicidade e, assim, sua complexidade na experiência humana.
O sagrado é o início da vida cultural, da civilização, enquanto conjunto de
significados compartilhados que instituem, padronizam e identificam uma coletividade, uma
comunidade. Justamente é esse início, porque é a consciência da condição do homem no
mundo, que inaugura o problema da verdade que fundamenta a formação da comunidade
e da significação das coisas em termos intersubjetivos (civilizatórios). Simultaneamente, a
experiência religiosa inaugura tanto o pensamento quanto a cultura, produção recíproca
entre a particularidade e a comunidade.
A principal predicação que define o sagrado é sua distinção do profano. Segundo
Croatto (2001), é através das hierofanias no decorrer da história (transcendente que se
manifesta na realidade imanente, santificando aquilo no qual se manifestou), o homo
religiosus desenvolve sua religião mediante símbolos, mitos, ritos, interditos e doutrinas. É
nessa oposição, nessa dialética, que Eliade inaugura sua investigação do sagrado.
O mistério hierofânico é quando algo criado (objeto, ser vivo, homem) se torna o
locus da revelação (hierofania) do nume, e, então, torna-se sagrado enquanto mediador
que revela o divino. O sagrado é a mediação do divino, fica como profano o que não foi
objeto de manifestação do divino. Na consciência do homo religiosus, não existe diferença
entre sagrado e divino, mas esta divisão é operatória, para não confundir sagrado e divino.
Existe o substrato profano no sagrado, no sentido de que aquilo que é sagrado é
mundano, porém é na relação com o divino manifestado naquilo que é mundano
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(hierofania) que o profano se sacraliza. Logo, o sagrado é uma relação entre uma coisa
material e o elemento divino transcendente.
O estudo da experiência religiosa é o estudo das hierofanias e de como o sagrado
se apresenta na história enquanto modalidades. Se de um lado existe a modalidade de ser
enquanto sagrado, de existir enquanto consciência de si, consciência do mundo e da
realidade que está transcendente a si e ao mundo, por outro lado existe a modalidade de
ser profana, que está ausente dessa relação com o transcendente, com o sagrado.
Isso torna possível, então, identificar essas hierofanias, uma vez que a experiência
religiosa é antes de tudo um reconhecimento de manifestação, e não a produção
intencional desse sentido. O sagrado não pode ser produzido pela consciência e pela
cultura, como qualquer experiência real de sentido que se pretende objetiva segundo a
fenomenologia, mas sim recebido e, portanto, mediatizado, enquanto algo que ativamente
se manifesta à percepção e à recepção do homo religiosus.
Essas mediações do numinoso são as modalidades do próprio sagrado. As fontes
de estudo de um historiador da religião que pretenda ir além da descrição e da coleta de
dados. Devido às singularidades históricas do próprio homo religiosus, o sagrado possui
diversas aparências, mas a experiência religiosa possui um eidos, uma essência. Através do
estudo dessas mediações é possível via comparação, noética e reflexão acerca do sentido
dessas experiências definir as características do sagrado.
Pode-se medir o precipício que separa as duas modalidades de experiência –
sagrada e profana – lendo-se as descrições concernentes ao espaço sagrado e à
construção ritual da morada humana, ou às diversas experiências religiosas do
Tempo, ou às relações do homem religioso com a Natureza e o mundo dos
utensílios, ou à consagração da própria vida humana, à sacralidade de que podem
ser carregadas suas funções vitais (alimentação, sexualidade, trabalho etc.)
(ELIADE, 2001, p. 20).
Dessa forma, as categorias de espaço, tempo, natureza e vida consagrada (hábitos,
votos, práticas e virtudes) são o locus possível de hierofanias. De fato, para Eliade existem
as descrições concernentes a essas realidades que são associadas ao sagrado. Não significa
dizer que em todas as culturas e em todas as experiências do homo religiosus todas essas
dimensões são sagradas ao mesmo tempo. O fato de Eliade dizer que toda a realidade é
sagrada significa dizer que tudo é sacralizável, porque é passível de hierofania.
Isso não implica dizer que tudo é sagrado, perdendo assim a distinção com o
profano, mas sim que tudo é potencialmente locus da manifestação (hierofania) do
sagrado. Essa separação entre sagrado e profano é variável, histórica, e o trabalho
historiador é perceber a modalidade do sagrado, a essência das religiões, enquanto
universal diante de suas variedades manifestadas em diferentes épocas e lugares.
A dinâmica entre símbolo, mito e rito é sempre um precedente e um exemplo do
homem em relação à sua própria condição. Mais ainda, Eliade afirma que é um precedente
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para os modos do real em geral, porque o conteúdo e a função dos mitos, ou seja, a
narrativa do que os deuses fizeram, revela uma estrutura do real inacessível à apreensão
dos empiristas e dos racionalistas.
Da mesma forma, as imagens e símbolos não são criações aleatórias e
inconsequentes oriundas de patologias e repressões da psique que escapam da
razoabilidade e da civilidade. Ao contrário, o pensamento simbólico é consubstancial ao
ser humano e é anterior à – e inclusive é a base da – linguagem e razão discursiva. Esse
pensamento simbólico responde a uma necessidade através da função de revelar as
modalidades mais essenciais do ser.
Essa estrutura do pensamento mítico e simbólico Eliade chama de lógica arquetípica
(arquétipos como acontecimentos instauradores da realidade): não oriunda da observação
da realidade, mas como movimento de manifestação do inconsciente como forma de
organização de experiências, ainda que contraditória. Essa lógica arquetípica expressa pelo
inconsciente expressa uma suspeita de Eliade acerca da concepção de inconsciente como
transconsciente6 (que extrapola o conteúdo do sujeito individual).
Tal concepção afirma que essa lógica é uma manifestação de um elemento da
consciência do sujeito universal (o sagrado) que é a fonte das imagens e símbolos, porque
é uma forma de apreensão da realidade que revela estruturas do real (tanto imanente
quanto o transcendente) de uma forma arquetípica e não empírica ou positivista. A essa
concepção de transconsciente e sua elaboração na lógica arquetípica, Eliade (2000)
denomina de ontologia arcaica, que é expressa pelo pensamento mítico.
Os arquétipos são acontecimentos que revelam o Ser em totalidade, por isso
ontologia arcaica, mediados pela historicidade de suas imagens e símbolos, mas mantendo
o mesmo significado, porque se sustentam na verdade transcendente legada pela hierofania
(verdade acerca da relação entre o homem e o nume e, por isso, da condição do homem
no mundo). A própria realidade da existência só é possível por essa relação com o
transcendente revelado nos arquétipos. A imitação, a repetição e o esforço de atingir o
ideal religioso em todas as dimensões da vida são necessários não apenas como
conhecimento verdadeiro acerca da natureza e do transcendente, mas também como
elemento unificador da comunidade e garantia da continuidade da vida.
De fato, os arquétipos e suas expressões em imagens e símbolos possuem uma
dimensão de inconsciência enquanto mistério da experiência do homo religiosus, porque
escapam da estrutura lógica e da observação direta, mas não são somente individuais ou
6
É nesse sentido que a técnica analítica e espiritual para esclarecer o conteúdo teórico dos símbolos e dos
arquétipos é denominada por Eliade (1991) de metapsicanálise. Dessa forma, o objetivo é tornar mais
transparente e coerente o que é alusivo, secreto ou fragmentário no indivíduo e sua inserção numa
sistematização universal mais ordenada com os próprios documentos míticos, nas tradições culturais e na
permanência histórica, sem se prender a um provincianismo temporal de uma civilização localizada. Da
mesma forma, a história das religiões pode ser considerada uma nova maiêutica, porque pode dar à luz um
homem mais autêntico e mais completo quando, através do estudo das tradições religiosas, o homem
moderno encontra não somente um comportamento arcaico, mas também a riqueza espiritual que tal
comportamento implica.
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coletivos enquanto fenômenos de estruturação unicamente psíquica sem relação com a
verdade do transcendente.
O símbolo não pode ser o reflexo dos ritmos cósmicos enquanto fenômenos
naturais, porque um símbolo sempre revela alguma coisa a mais, além do aspecto
da vida cósmica que deve representar. Os simbolismos e os mitos solares, por
exemplo, revelam-nos também um lado “noturno”, “mau” e “fúnebre” do Sol, o
que não é evidente à primeira vista no fenômeno solar como tal. Este lado de
certo modo negativo, não percebido no Sol enquanto fenômeno cósmico, é
constitutivo do simbolismo solar; o que prova que, desde o começo, o símbolo
aparece como uma criação da psique. Isto se torna ainda mais evidente quando
lembramos que a função de um símbolo é justamente revelar uma realidade total,
inacessível aos outros meios de conhecimento: a coincidência dos opostos, por
exemplo, tão abundantemente e simplesmente expressada pelos símbolos, não é
visível em nenhum lugar do Cosmo e não é acessível à experiência imediata do
homem, nem ao pensamento discursivo. Entretanto, evitemos acreditar que o
simbolismo se refere apenas às realidades “espirituais”. Para o pensamento arcaico,
uma tal separação entre o “espiritual” e o “material” não tem sentido: os dois
planos são complementares... O simbolismo acrescenta um novo valor a um
objeto ou a uma ação, sem por isso prejudicar seus valores próprios e imediatos.
Aplicados a um objeto ou a uma ação, o simbolismo os torna abertos. O
pensamento simbólico faz explodir a realidade imediata, mas sem diminuí-la ou
desvalorizá-la; na sua perspectiva, o universo não é fechado, nenhum objeto é
isolado em sua própria existencialidade: tudo permanece junto, através de um
sistema preciso de correspondências e assimilações (ELIADE, 1991, p. 177-178).
Assim, o mito revela essa ontologia arcaica de modo diferente da lógica formal.
Essa é expressão plástica e dramática daquilo que a metafísica e a teologia definem
dialeticamente. Essa estrutura revelada ao homo religiosus acerca do real, do Ser ainda que
transcendente, é a coincidência dos opostos. Coincidentia oppositorum, na estrutura
profunda da divindade, está além dos atributos e reúne todos os contrários. É uma das
maneiras mais arcaicas de exprimir o paradoxo da realidade divina. Daí a estrutura e o
conteúdo que originam a ontologia arcaica.
O mito tem sua lógica própria, uma coerência intrínseca que lhe permite conhecer
a verdade em muitos planos. Um desses planos é o fato de que os mitos revelam a
condição mortal do homem e, ao mesmo tempo, sua incapacidade de criar algo além da
extensão de si mesmo. Outro é a importância do rito como participação do homem no
mito, como repetição, e, assim, como inserção no sagrado, no tempo primordial onde está
o transcendente (o numinoso), que se atualiza no imanente. Dessa forma, a lógica do
símbolo se manifesta de forma coerente e sistemática. Então, essa lógica simbólica pode
ser considerada como lógica da participação.7
7
O principal pesquisador que delimitou o conceito de lógica da participação para a compreensão do
pensamento mítico foi o antropólogo L. Lévy-Bruhl (1857-1939). A partir de suas observações, pôde
sistematizar uma mentalidade pré-lógica, que se refere a uma estrutura de pensamento que não era ilógica
ou alógica, mas que possuía uma determinada lógica de participação mística juntamente ao sagrado. Ver
Croatto (2011).
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O mito e o ritual possuem a lógica da participação enquanto unidade entre os
opostos porque acessam o nume. Assim, essa lógica simbólica do pensamento mítico
revela o real enquanto contraditório em suas estruturas (ontologia arcaica da coincidência
dos opostos), ao mesmo tempo em que faz com que o homem participe dessas estruturas.
Por isso, os arquétipos são revelações (hierofanias) que emergem do inconsciente
enquanto transconsciente (como elemento da consciência universal), porque extrapolam a
consciência individual: são estruturas da própria realidade, da existência humana e de sua
condição.
Os símbolos, imagens, mitos e ritos são variáveis em sua historicidade, mas o
sagrado vivenciado pelo homo religiosus sempre possui esse sentido. Por isso, é possível
ao historiador da religião estabelecer a comparação entre as diversas religiões, estudar
como os mitos, símbolos, ritos, interditos e doutrinas são diferentes, mas todos falam da
hierofania da condição do ser humano e de sua relação com o numinoso através da
verdade, do significado e do Ser, que unifica tudo o que é oposto.
2. A Natureza e o Sagrado
Retornando ao mundo de Tolkien, podemos encontrar essa perspectiva da natureza
como hierofania, pois, a partir de uma narrativa mítica, tal natureza se torna símbolo da
presença e ação arquetípica (divina) na composição e manutenção do mundo. Dessa forma,
a criação literária épica, a mitopoética, é também um ritual que segue a lógica da
participação (ainda que reduzida em sua força mítica) que evoca a presença do sagrado
nesta mesma natureza ficcional, presente no transconsciente.
O primeiro relato é sobre a criação do mundo, o Ainundale (a música dos Ainur)
(Sil, p. 3-12), e sobre a caracterização dos Ainur (os sagrados – the holy ones) que
habitaram Arda (a criação) em Valar (superiores) e Maiar (inferiores). O mito de criação
no legendarium é pela música. Eru Ilúvatar, o único, criou a partir de seus aspectos os
Sagrados, antes que existisse a terra, o plano material (Arda). Ainur eram chamados todos
os espíritos que foram criados pela Chama Imperecível antes da matéria e entre eles o
maior era Melkor, que era o mais parecido com Ilúvatar no pensamento e a quem foram
concedidos os maiores dons de poder e conhecimento, além de um quinhão de cada um
dos outros Ainur. Depois que Eru criou os Ainur, insuflando-lhes a Chama Imperecível,
os sagrados começaram a usar seus dons através de canções e melodias, agradando a Eru.
Aos poucos compreenderam o que estava na Mente de Ilúvatar e foram realizando suas
canções a partir de sua própria compreensão, cantando uns para os outros ou juntos em
pequenos grupos. Finalmente, Eru juntou os filhos e disse que agora eles deveriam usar os
dons para compor uma grande sinfonia. Os irmãos se reuniram e criaram a Música
Magnífica.
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E então as vozes dos Ainur, semelhantes a harpas e alaúdes, a flautas e trombetas,
a violas e órgãos, e a inúmeros coros cantando com palavras, começaram a dar
forma ao tema de Ilúvatar, criando uma sinfonia magnífica; e surgiu um som de
melodias em eterna mutação, entretecidas em harmonia, as quais, superando a
audição, alcançaram as profundezas e as alturas; e as moradas de Ilúvatar
encheram-se até transbordar; e a música e o eco da música saíram para o Vazio, e
este não estava mais vazio. Nunca, desde então, os Ainur fizeram uma música
como aquela, embora tenha sido dito que outra ainda mais majestosa será criada
diante de Ilúvatar, após o final dos tempos. Então, os temas de Ilúvatar serão
desenvolvidos com perfeição e irão adquirir Existência no momento em que
ganharem voz, pois todos compreenderão plenamente o intento de Ilúvatar para
cada um, e cada um terá a compreensão do outro; e Ilúvatar, sentindo-se
satisfeito, concederá a seus pensamentos o fogo secreto (TOLKIEN, 1999, p. 4).
Essa música durou por muito tempo aos ouvidos de Ilúvatar, até que surgiu no
coração de Melkor o impulso de trazer à música temas de sua própria imaginação que não
estavam em harmonia com Ilúvatar, procurando aumentar o poder e a glória a ele
designados. Muitas vezes, Melkor penetrava no Vazio em busca da Chama Imperecível,
porque queria dar Existência às coisas ele mesmo, pois enquanto Ilúvatar não se
incomodava com o Vazio, Melkor se impacientava. Dessa forma, a harmonia foi quebrada
pelos sons repetitivos e dissonantes de Melkor, e muitos perderam o ânimo, hesitaram e
alguns começaram até mesmo a afinar sua música com a de Melkor.
Ilúvatar se ergueu pela primeira vez, sorrindo. Levantou a mão esquerda e um novo
tema foi proposto em meio à dissonância, dessa vez, em vez de enfrentar a dissonância,
adaptava-se a ela, ganhando beleza e força. Contudo, Melkor aumentou o barulho e o
tumulto, numa violenta guerra sonora, silenciando muitos dos Ainur, dominando por um
tempo a própria sinfonia. Ilúvatar então se ergueu novamente, com a expressão severa, e
levantou a mão direita, apresentando o terceiro tema. A música era suave e triste, mas sua
profundidade e beleza cresceram de uma maneira que acumulava poder, preenchendo a
própria dissonância de Melkor. Por um tempo, as duas músicas tocaram juntas, em grave
batalha, totalmente diversas, com a de Melkor tendo atingido unidade própria, fútil,
violenta e repetitiva, com pouca harmonia e sons uníssonos com poucas notas. Nesse
conflito, as mansões de Ilúvatar se retorceram com um grande tremor. Ilúvatar se ergueu
novamente, com a expressão terrível, e, levantando as duas mãos, produziu um acorde
mais profundo que o Abismo, mais alto que o Firmamento. A Música cessou e Ilúvatar
condenou Melkor, afirmando que nenhum tema poderia ser tocado se não tivesse origem
no próprio Ilúvatar e que sua vontade era soberana mesmo para aquele que tentasse
inventar coisas que tentassem tocar contra sua vontade perceberia que são apenas
instrumentos de Ilúvatar para que coisas ainda mais fantásticas pudessem vir a acontecer.
Chamando os Ainur para o Vazio, Ilúvatar mostrou o que a Música tinha criado.
Ordenando que contemplassem, revelando imagem na qual antes só havia som, os Ainur
viram a matéria, o Mundo e as criaturas terrestres, aquáticas e aéreas, as plantas e as
pedras. Viram o Tempo e a história se desenrolar do princípio ao fim e reconheceram em
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sua contemplação seus próprios dons e temas cantados por cada um e até Melkor se
envergonhou diante da visão. A grande admiração foi com a chegada dos Filhos de
Ilúvatar (elfos e homens), que surgiram no terceiro tema e que refletem a própria
liberdade e pensamento de Ilúvatar, que os criou sem a ajuda de nenhum Ainur. A
morada dos Primogênitos (elfos) e dos Sucessores (homens) é Arda, que foi criada pelos
Ainur no meio do Vazio e do Tempo pela Chama Imperecível posta por Ilúvatar.
Quando os Ainur contemplaram Arda, muitos desejaram esse lugar para si, alguns
para poderem construir e contemplar sua criação em conjunto com Ilúvatar, mas outros
(dentre eles, o maior era Melkor), principalmente por inveja dos Filhos de Ilúvatar, que
desejavam submeter à sua vontade. Dos que contemplavam Arda, Ulmo foi o que mais se
dedicou à água, elemento mais estimado pelos Ainur; sobre os ares e ventos ficou Manwë,
irmão de Melkor, o mais nobre de todos os Ainur, com o coração de Ilúvatar. Sobre a
Terra ficou Aulë, com talentos e conhecimentos pouco inferiores aos de Melkor, mas que
tinha alegria e prazer no ato de fazer e no resultado desse ato, não na posse ou na própria
capacidade. Manwë e Ulmo se aliaram desde o princípio, contrastando com Melkor, o
senhor das Trevas e do fogo da destruição. Dessa forma, quando Ilúvatar recolheu a visão,
os Ainur estavam de novo no Vazio e, então, perceberam a nova realidade das Trevas.
Reclamaram com Ilúvatar porque a visão cessou antes do término da Música e, por isso,
não conseguiram ver com clareza o fim dos Tempos e todos os detalhes da história dos
elfos e dos homens.
Houve então inquietação entre os Ainur; mas Ilúvatar os conclamou, e disse: –
Conheço o desejo em suas mentes de que aquilo que viram venha a ser, não
apenas no pensamento, mas como vocês são e, no entanto, diferente. Logo, eu
digo: Eä! Que essas coisas Existam! E mandarei para o meio do Vazio a Chama
Imperecível; e ela estará no coração do Mundo, e o Mundo Existirá; e aqueles de
vocês que quiserem, poderão descer e entrar nele. – E, de repente, os Ainur
viram ao longe uma luz, como se fosse uma nuvem com um coração vivo de
chamas; e souberam que não era apenas uma visão, mas que Ilúvatar havia criado
algo novo: Eä, o Mundo que É (TOLKIEN, 1999, p. 9).
Depois da Existência, alguns Ainur decidiram morar em Arda e outros continuaram
com Ilúvatar fora do Mundo. Aos que decidiram ir até o Mundo, Ilúvatar impôs a
condição de que seus poderes ficassem presos a Arda até o final dos tempos, tendo a
responsabilidade de sustentar a vida, sendo chamados de Valar, os poderes do mundo (the
powers of Arda). Quando os Valar entraram em Eä, viram que Arda ainda estava para ser
feita, que da Visão de sua Música estavam apenas no começo, sem forma e nas trevas.
Entenderam que estavam no início dos Tempos, e que a Existência tinha sido apenas
prenunciada e prefigurada, e que agora era dever deles realizá-la. E, dessa forma, começou
o Mundo.
Melkor estava entre os Valar e, vendo Ilúvatar distante, reivindicou a soberania de
Arda. Manwë, Ulmo e Aulë lutaram contra ele, e os quatro elementos da terra se
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chocaram e geraram grande destruição. Finalmente Melkor foi expulso de Arda e partiu
para outras regiões de Eä e, então, os Valar iniciaram a ordenação do mundo. Assumiram
formas derivadas do conhecimento do Mundo em vez de derivar do mundo em si e, por
isso, não precisam dessas formas, usando-as como os homens usam roupas, ainda que seus
aspectos masculinos e femininos estejam enquanto princípio desde sempre, sendo parte de
sua essência e que, por isso, são cultuados como Grandes reis homens e rainhas mulheres,
exatamente como entre os homens e mulheres o masculino e o feminino são revelados
pelas vestes, mas não criados por elas. Ao ver isso, Melkor sentiu imensa inveja e
ressentimento e se transformou num grande Senhor terrível de se ver, com poder e
majestade maior que qualquer outro Valar individualmente. E assim começou o combate
por Arda, durante as primeiras eras do mundo onde os Valar construíam e Melkor
destruía.
Assim termina o relato de Ainulindalë. Para entendermos o relato pleno da criação
e dos poderes do mundo (Valar), é preciso recorrer ao Valaquenta (Sil, p. 16-24), o relato
dos Valar e dos Maiar, segundo o conhecimento dos Eldar (elfos). Nesse relato, Tolkien
expõe a divisão entre os Valar e os Maiar. Em primeiro lugar, os superiores Valar, que
eram 14, sendo sete aspectos masculinos e sete femininos. Manwë, irmão de Melkor, mas
com maior entendimento dos desígnios de Ilúvatar, comandava os céus e o senhor do
reino de Arda, o primeiro de todos os Reis e ordenador das aves. Ao seu lado está sua
esposa, Varda (Elbereth), Senhora das Estrelas, sábia em todas as regiões de Arda, cuja
beleza é indescritível nas palavras de homens ou elfos, pois a luz de Ilúvatar ainda vive em
sua face. A primeira a ir ao auxílio de Manwë contra Melkor, porque o Senhor da
Escuridão a temia e a odiava por causa da luz.
Ulmo é o Senhor das Águas e vive só. Seu movimento está por todos os oceanos e
mares. Senhor das águas profundas, Ulmo detém um poder só inferior ao de Manwë, da
qual é grande amigo. Solitário, viu as profundezas do Mundo, mas ama os homens e elfos,
e cria sua música com grandes trompas oceânicas feitas de conchas brancas, e aqueles que
são cativados por essa música nunca mais esquecem o anseio pelo mar. Aulë tem poder
pouco inferior a Ulmo e governa todas as substâncias das quais Arda é feita. Ferreiro,
mestre de todos os ofícios e criador de todos os anões, Aulë contempla o trabalho bem
feito, sejam detalhados ornamentos ou titânicas construções. Tem apreço pelos metais,
pedras preciosas e montanhas. Melkor tinha inveja de Aulë porque eram muito parecidos,
porém este se mantinha fiel a Eru e tinha desejo em criar e não invejava a criação dos
outros, enquanto aquele desejava destruir ou corromper tudo aquilo que não podia ter. A
esposa de Aulë era Yvanna, a Provedora de Frutos, que ama todas as coisas que crescem
na terra, guardando todas as sementes e árvores semelhantes a torres.
Depois vêm os Fëanturi, Senhores dos Espíritos. Os irmãos Námo e Irmo são
também chamados de Mandos e Lórien, os lugares onde habitam. Námo é o mais velho,
sendo em seu palácio em Mandos o guardião das Casas dos Mortos, convocando todos os
espíritos que foram assassinados. O oráculo dos Valar prenuncia os presságios e sentenças
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apenas em obediência a Manwë. Tem como esposa Vairë, a Tecelã, que tece em teia todas
as histórias de todas as coisas que já existiram no Tempo. Irmo, o mais novo, é o Senhor
das Visões e dos Sonhos. Em seu domínio, Lórien, estão os jardins repletos de espíritos
que trazem a inspiração ao Mundo. Sua esposa é Estë, a Suave, a curadora de ferimentos e
da fadiga, possuindo o dom do repouso e do revigoramento. A irmã dos Fëanturi é
Nienna, que vive sozinha. Senhora da Melancolia, guarda a dor e o sofrimento de todos os
ferimentos sofridos por Arda. Ensina a compaixão e a persistência na esperança. Muito
próxima de seu irmão, Námo, frequentemente, ela está em Mandos, no salão dos mortos,
trazendo força ao espírito e transformando tristeza em sabedoria.
O Senhor da Guerra é Tulkas, que veio para Arda somente para auxiliar na guerra
contra Melkor. Conhecedor de todas as lutas, mais ágil que todos os animais, mais forte
que os fundamentos da terra, Tulkas cultiva a amizade e o companheirismo. Sua esposa
Nessa, Senhora da Dança e protetora dos cervos e criaturas dos bosques, é irmã de
Oromë, o Senhor da Caça, menos forte que Tulkas, mas mais temível na ira. Enquanto
Tulkas sempre gargalha no combate ou no esporte (mesmo diante de Melkor), Oromë é
austero, caçador de monstros e feras cruéis, adorando cavalos e cães de caça. Sua esposa é
Vána, a irmã mais nova de Yavanna, a Sempre Jovem, soberana das flores e dos pássaros.
Esses são os Valar e as Valier, entre os quais estão os Aratar, oito Seres
Superiores: Manwë e Varda, Ulmo, Yvanna e Aulë, Mandos, Nienna e Oromë. Todavia,
existem também os Maiar (povo dos Valar), que são espíritos Ainur (criados antes de Eä)
menos poderosos que os Valar e que quiseram entrar em Arda. Seu número é incontável
e poucos têm nomes conhecidos. E, finalmente, está Melkor, o grande inimigo, Aquele
que se Levanta Poderoso, porém seu nome foi esquecido e os elfos o chamaram de
Morgoth, O Sinistro Inimigo do Mundo. A queda do esplendor para o desdém de tudo
que não fosse ele mesmo aconteceu pela arrogância, seu poder e pensamento se
transformaram no desejo de perverter tudo o que pudesse usar, tornando-se o grande
mentiroso.
Começou desejando a Luz; mas, quando viu que não podia possuí-la só para si,
desceu através do fogo e da ira, em enormes labaredas, até as Trevas. E às trevas
recorreu principalmente em seus atos malignos em Arda e encheu-as de temor
por todas as criaturas vivas. Contudo, tão extraordinário era o poder de sua
rebelião, que, em eras esquecidas, combateu Manwë e todos os Valar, e durante
longos anos em Arde manteve a maior parte dos territórios da Terra sob seu
domínio. Mas não estava sozinho. Pois, dos Maiar, muitos foram atraídos por seu
esplendor em seus dias de majestade, permanecendo fiéis a ele em seu mergulho
nas trevas. E outros ele corrompeu mais tarde, atraindo-os para si com mentiras
e presentes traiçoeiros. Horrendos entre esses espíritos eram os valaraukar, os
flagelos de fogo que na Terra Média eram chamados de balrogs, demônios do
terror. Entre seus servos que possuem nomes, o maior era aquele espírito que os
eldar chamavam de Sauron, ou Gorthaur, o Cruel. No início, ele pertencia aos
Maiar de Aulë e continuou poderoso na tradição daquele povo. Em todos os
atos de Melkor, o Morgoth, em Arda, em seus imensos trabalhos e nas trapaças
originadas por sua astúcia, Sauron teve participação; e era menos maligno do que
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seu senhor somente porque por muito tempo serviu a outro, e não a si mesmo.
No entanto, nos anos posteriores, ele se elevou como uma sombra de Morgoth
e como um espectro de seu rancor, e o acompanhou no mesmo caminho
desastroso de descida ao Vazio (TOLKIEN, 1999, p. 23-24).
Esses dois relatos presentes em O Silmarillion, o Ainulindalë e o Valaquenta são
base da cosmogonia, teogonia, mitologia e teologia em Tolkien. Conforme discutimos, a
investigação sobre analogias (ontologia arcaica) de outras mitologias, fontes religiosas,
relatos místicos poderiam se estender para outra (ou várias) pesquisa. Modestamente, este
trabalho é apenas um exemplo de tratar uma hermenêutica eliadiana através o texto como
um âmbito de relações entre leitor, texto e autor, em busca dos significados (noética)
presentes em Tolkien. No caso desses dois relatos, estão inseridos na ordem cósmica
(estruturação da existência) através de um criador supremo (Ilúvatar). Em seguida,
percebemos a questão da multiplicidade e da unidade, através da expansão do criador
único para a independência (liberdade) de seus aspectos em termos de espíritos, anjos ou
dimensões (Ainur). Na constituição dessa unidade e multiplicidade existe uma dissonância
da harmonia proposta, na qual um dos aspectos (pensamento) se volta contra a ordem
cósmica (Melkor).
Essa dissonância é absorvida, primeiramente, com misericórdia e, em seguida, com
severidade, até a grande interrupção do poder supremo do criador. A criação continua
com a manifestação do Ser (existência-Eä), que é composto pela mesma Chama
Imperecível, ou o Fogo Secreto, que é a essência do Criador. O surgimento do Tempo e
do fim dos Tempos, da consciência do Vazio e das Trevas, da construção e da destruição.
O mundo se forma através da matéria (Arda), onde alguns espíritos se mesclam, tornandose os senhores do Mundo (Valar e Maiar). Esses poderes se dividem em aspectos
masculinos e femininos, a maioria em união conjugal, mas com alguns solitários, todos
mantendo uma comunidade em torno da construção, proteção e contemplação pela
criação. Da mesma forma, a divisão da existência entre princípios físicos (ar, água, terra,
fogo) associados a princípios morais (nobreza, gravidade, esforço, ambiguidade) como
manifestações desse Ser, assim como expressões de práticas humanas (guerra, cultivo, caça,
sonhos, dor, alegria) com essas divindades.
A riqueza desses elementos se estende por várias mitologias. No caso, as
referências ao Gênesis bíblico (Bíblia de Jerusalém, 2002; GRAVES; PATAI, 1994) são
evidentes. Desde a suposta influência dos poemas babilônicos na mitologia hebraica, como
o Enuma Elish, até as discussões dos monstros primordiais (inimigos) anteriores à própria
criação (Tehôm, Bohu, Raab, Leviatã), mas não anteriores ao Criador. Ou seja, questões
como a presença do Criador Absoluto diante do Caos e do Vazio e, ao mesmo tempo, a
expressão do ar (ruach: vento) – espírito sob a água, sensitividade – revela a coincidência
dos opostos, essência do sagrado; presença do mal preexistente ao mundo material; seres
angélicos e demoníacos em conflito e organizados em hierarquias; esses seres como
manifestações da infinitude e eternidade de Deus; o uso dos elementos físicos (água, ar,
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A Natureza e o Sagrado em Tolkien
fogo, terra) como expressões da permanência e da mudança da Existência em analogias
com virtudes humanas; a marcação de princípios masculinos e femininos, de
individualidade e comunidade.
Para Graves e Patai (1994), todos esses significados estão presentes na composição
da mitologia hebraica, da mesma forma que uma separação entre planos de existência do
céu e terra e, fundamentalmente, a marcação do Tempo e do fim dos Tempos (os dias da
criação indicado a passagem da Existência) evidenciando a Onipotência, Onipresença e a
Onisciência do Deus Criador. A submissão do plano da existência material (sensível) à
vontade do Criador (transcendente), transformando Sol e Lua (cultuados como divindades
em muitos povos) como simples luzeiros para Deus. A própria concepção de que o
Criador está além da noção de espírito (como um inteligível possível para a mente
humana) é colocada em Tolkien, uma vez que Ilúvatar transcende a Existência (Eä),
enquanto os Valar e Maiar, embora sejam seres espirituais, são presos a Arda até o fim
dos tempos.
Da mesma forma, em Teogonia (2001), podemos perceber também a existência de
certos significados comuns. Ainda que não exista um criador, podemos perceber a
presença da coincidência dos opostos como base da criação. São os quatro deuses
primordiais: Caos e Terra (ordem), Eros (vida) e Thânatos (morte). Ainda que sem a
presença de um antagonista demoníaco ou caído, esse movimento da essência do sagrado
como fundamento da criação estabelece as linhagens divinas. Tais linhagens formam as
criaturas da noite, os demônios e os monstros, assim como os titãs e os deuses (em
aspectos masculinos e femininos muito definidos), para que, finalmente, os homens surjam
e se aproximem dos titãs e deuses e, dentro desses, a aristocracia entre o panteão.
Com efeito, a divisão de elementos naturais (terra, água, ar, fogo) como
fundamentos da constituição da criação a partir de seus significados de movimento e
estabilidade (coincidência dos opostos) associados a dimensões humanas (eros, thânatos).
Nesse sentido, a presença do canto como elemento revelador (hierofania) dentro da
Teogonia está claramente presente no relato tolkieniano. Para Torrano (2001), apesar de
em Hesíodo as musas serem apenas uma mediação, e não o conteúdo da hierofania, a
própria forma poética (canto) do mito deve ser levada em consideração. O canto é parte
integrante e essencial da experiência do numinoso, porque evoca o tempo primordial,
manifestando assim o canto como vivência da própria criação, mediada pela forma cantada.
Por fim, essa perspectiva é encontrada na tradição cristã, com o filósofo da
patrística Atanásio de Alexandria (295-373), que também usa o símbolo da harmonia
musical para a ação divina de criação e ordenação do mundo.
Como músico que afina a sua lira e aproxima habilmente os sons graves das notas
agudas e os médios dos outros, para executar uma só melodia, assim a sabedoria
de Deus, tendo o universo como uma lira, aproxima os seres que estão no ar dos
que estão sobre a terra, e dos que estão nos céus dos que estão no ar;
adaptando o conjunto às partes e conduzindo tudo pelo seu comando e a sua
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vontade, ele produz na beleza e ele mesmo fica imutável junto do Pai, e move
todas as coisas na ordem que ele estabeleceu, segundo o que agrada a seu Pai. O
admirável da sua divindade é que, por um só e mesmo comando, conduz todas as
coisas ao mesmo tempo, e não por intervalos, mas todas juntas, as que vão de
movimento retilíneo e as que se movimentam em círculo, as do alto, do meio, de
baixo, as coisas úmidas, as frias, as quentes, as visíveis e as invisíveis, ele as põe
em ordem cada uma segundo a sua natureza. Ao mesmo tempo e sob a mesma
ordem vinda dele, aquele que é reto vai totalmente reto; aquele que é redondo,
movimenta-se em círculo; aquele que é intermediário, movimenta-se segundo a
sua natureza; o quente aquece e o seco seca; todos os seres segundo a sua
natureza obtém dele a vida e a substância e ele realiza uma harmonia admirável e
verdadeiramente divina. (ATANÁSIO, 2010, p. 108)
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A Natureza e o Sagrado em Tolkien
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