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Ur Faculdade de Arquitectura O Centro Editorial da Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Universidade Técnica de Lisboa Lisboa agradece a inestimável colaboração de todos os intervenientes neste número e adverte que os artigos publicados são da exclusiva responsabilidade dos Rua Sá Nogueira Pólo Universitário - Alto da Ajuda 1349-055 Lisboa Tel 213 615 000 Fax 213 625 138 www.fa.utl.pt seus autores. Ur Coordenação Margarida Moreira Catarina Teles Ferreira Camarinhas Comissão Editorial Margarida Moreira Catarina Teles Ferreira Camarinhas Alexandra Ai Quintas Miriam Pereira Colaboraram neste número Catarina Camarinhas Diana Soeiro Francisco Serdoura Guilherme Alves Coelho Helena Almeida Inês Rodrigues João Pedro Costa João Rafael Santos José Nicolau Tudella Luís Filipe Mendes Luís Guimarães Lobato t Madalena Cunha Matos Tânia Beisl Ramos Vasco Massapina Design Mónica Loureiro Sandra Belela Lopes Impressão Ficha Técnica Antó Rua Conde das Antas, 48 A 1070-070 LISBOA Tel: 219 345 800 Fax: 219 345 809 UR Cadernos FA / UTL / Lisboa: cidade-projecto n.8 | Janeiro 2012 Preço: 12€ Tiragem: 500 exemplares ISSN: 1645-2844 Depósito legal n.º 230330/05 Índice 04 Editorial Margarida Moreira 06 Madalena Cunha Matos Tânia Beisl Ramos Inês Rodrigues Transpor e Permear: Passagens no Tecido Urbano de Lisboa 26 João Pedro Costa Ler Alvalade no Tempo: Arquitectura e Urbanismo no Estado Novo, 1930/1950 42 João Rafael Santos Sete Rios: A Construção de um Espaço entre Infra-Estruturas, Escalas e Topologias Territoriais 52 Luís Filipe Mendes Os equí 60 Francisco Serdoura Helena Almeida A reabilitação da Baixa Pombalina de Lisboa: Uma estratégia para a sustentabilidade ambiental e económica ENTREVISTAS 68 Guilherme Alves Coelho 74 José Nicolau Tudella 84 Luís Guimarães Lobato t RECENSÕES 95 Vasco Massapina Urbanismo 97 Diana Soeiro O Imperceptível Devir da Imanência de José Gil DIVULGAÇÃO 101 Exposição Lisboa: Planos e Projectos 121 Teses 131 Mestrado Erasmus Mundus > Eur-Med, Estudos Urbanos em Regiões Mediterrânicas Ur RECENSÕES O Imperceptível Devir da Imanência: Diana Soeiro * José Gil, Lisboa: Relógio d’Água, 2008 268 pp, 19€, ISBN 9789896410278 SOBRE O AUTOR Deleuze é um autor complexo que, tal como Heidegger, é comum despertar a curiosidade por parte de arquitectos revelando-se no e siga para a leitura de cada um dos capítulos. O ritmo abranda e a entanto difícil de aceder. O livro de José Gil propõe ser uma introdução generosidade do autor é visível, procurando conduzir o leitor da forma à obra de Deleuze e esta recensão propõe apresentar uma orientação mais acompanhada possível. que facilite a leitura do livro, para pensar Arquitectura, a partir de Deleuze. Sobre José Gil pode dizer-se que tendo estudado na Universidade de Paris VII, foi aluno do próprio Deleuze, e que este terá deixado em si uma forte impressão. Os livros que tem vindo a o pensamento de Deleuze permite. A inteligência, subtileza, rapidez e integridade com que Gil continua e desenvolve o pensamento de Deleuze é admirável revelando uma compreensão rigorosa do que está em causa, sem no entanto perder originalidade. A Introdução difícil, mas sem dúvida permite uma antecipação do que se segue. No * Goethe, Wittgenstein, Husserl, Deleuze http://pt.linkedin.com/in/dianasoeiro 97 ENQUADRAMENTO E EXPLICAÇÃO BREVE DO ASSUNTO DO LIVRO Tendo em mente um leitor que tenha por formação base Arquitectura DESEJO, CORPO-SEM-ÓRGÃOS E ESPAÇO O Capítulo 8 talvez seja o mais interessante para um leitor da área da Arquitectura, sendo que no entanto uma verdadeira compreensão elementar não só dos conceitos como do método seguido por Deleuze – e não esquecer que para Deleuze, cuja forte relação com a fenomenologia permanece ainda por desvendar apesar de a dada altura a ter dispensado, o método é uma questão essencial sendo a partir dele que a criação dos conceitos se torna possível. De forma breve, começa-se por esclarecer o que é pensar e consequentemente como é que é possível começar a pensar sendo que, por alguma razão se assume que todos nascemos a saber fazê-lo e não é assim de todo. Pensar é uma capacidade que se aprende, desenvolve e exercita, segundo um método. Para começar é preciso sair do senso comum (doxa) gerando oposições entre conceitos seguindo uma lógica de negação. Essas oposições não anulam os conceitos mantendo-se num esforço de torsão e tensão, em pleno paradoxo. O fundamento de começar a pensar não é assim fundamento mas “a-fundamento”, um caos que abre para uma esfera de pensamento desconhecida: descobrimos o campo da diferença. Saímos da doxa e neste campo de diferença, pela torsão do paradoxo gera-se o movimento do próprio pensamento semelhante a um movimento sísmico, por vagas. movimento. Pensar, mais do que algo que se aprende, é assim um 98 n.8 | Janeiro 2012 Ur de casos (conceitos), um confronto constante perante uma rede problemática sempre aberta, uma apresentação do inconsciente e não representação do consciente. Assim, a diferença e a intensidade da diferença desencadeiam o movimento libertador da repetição. E a repetição não é uma repetição do mesmo, é uma repetição com potência criadora. Neste exercício gerador de intensidade e movimento, o acaso deste não seria possível sem os anteriores. Tendo ultrapassado alguns obstáculos até aí, deste capítulo em diante o ritmo torna-se mais lento e estando já seguros dos conceitos e terminologia deleuziana, podemos desfrutar de forma plena a dinâmica do seu pensamento. É justamente o seu corpo-sem-orgãos por forma a criar um estilo que se repita nas suas várias obras. (p. 194) Do que é que falamos exactamente? O corpo-sem-orgãos (c-s-o) é antes de mais algo que se começa a fabricar assim que há desejo. É assim algo que é construído. Essa construção consiste numa técnica e não num método ou num processo. Porquê? Porque o c-s-o, ou plano de imanência, é um entidade singular, que permite a eclosão e circulação de singularidades. O c-s-o vem ao de cima, da profundidade do interior dos corpos criando um plano de imanência consistente e intensivo. (p. 181) Como se constrói então para si próprio um c-s-o? Como transformar o corpo “empírico” numa outra matéria, a matéria do plano de imanência? (p. 182) É aqui que aparece como elemento decisivo o desejo. O desejo, (como diz Freud) mas que cria sempre novas conexões, agenciamentos. “O desejo quer pois, antes do mais, desejar.” (p. 182) Ao desejar compõe, construindo matéria própria, em si próprio. O que trabalha o desejo a partir do interior é a imanência que é a força que faz desejar o desejo. possa desejar. É por isso que é necessário construir um espaço ou um plano em que o desejo circule e se desdobre segundo a sua potência própria. Esse plano é o c-s-o.1 A partir daqui o raciocínio, e o que está contribuindo para o surgimento de séries divergentes que resultam da torsão dos conceitos, derivando linhas de fuga consequentes de uma implosão do pensamento a partir de dentro. Estas séries divergentes ressoam umas nas outras, dando origem a novas séries, criando um espaço de ressonância expressão própria do movimento do pensamento. Nos Capítulos 5, 6 e 7 José Gil aborda como é que acontece a transcendental, de forma a que este ganhe maior consistência. Para isso, torna a falar da ressonância das séries, de como o vazio ressoa o excesso de uma outra série (p. 106) e de como através destes elementos surge a ideia de superfície. A superfície é topológica e surge enquanto lugar de sentido formando-se a partir da profundidade (do “a-fundamento”). (p. 120, 121) É o movimento do sentido à superfície que faz subir os diversos patamares da profundidade. (p. 121) em causa, torna-se mais próximo daquilo com que o arquitecto lida tornando-se mais fácil de reconhecer. Este c-s-o, este espaço ou plano, tem primeiro de tudo de ter consistência suportando a co-existência de elementos heterogéneos, isto matéria trabalhada, transformada. “Construir o c-s-o consiste em determinar a boa matéria, a que convém ao corpo que se quer construir (...). Compor um tal corpo torna-se matéria delicada, quando se pensa ” (p. 184) Não se pode partir senão do corpo próprio, do corpo-organismo. Mas esse corpo próprio é sempre uma interpretação do corpo, pronta a desfazer-se. O corpo empírico, simplesmente empírico, não existe. É o c-s-o, virtual-real, que é mais real do que o corpo empírico porque é corpo de desejo. (p. 184, 185) (Exemplos de matéria para a construção movimento da diferença expressiva.” (p. 196) A expressão é trabalhada do c-s-o que José Gil desenvolve são a pele, o espaço interior do corpo pelos movimentos de torsão e reversão do corpo (que entre ele próprio e os órgãos-focos de intensidade.) em devir-matéria de expressão). “Interior e exterior são atravessados de Existem três obstáculos de estratos que se opõem à construção o nosso corpo é uma casa” se pode vida. tornar enigmática porque se vivemos o corpo como uma casa, o que que se queira desfazer destes estratos enfrenta ou loucura ou a morte. Deleuze fala bastante de prudência e ter prudência é que cada um Tomando a Arquitectura como exemplo da construção e continue a guardar “pequenos pedaços de estratos ‘ao romper de cada aparecimento do c-s-o, tanto na sua percepção como na interacção dia’. Para quê? Para se poder ‘responder à realidade dominante’”. (p. 188) que temos com uma estrutura, como no processo criativo que leva à Um exemplo da dissolução do estrato que é o organismo são os rituais de possessão, e de cura, exóticos onde um gesto de sua concepção, José Gil no nono capítulo faz um ponto de situação do que foi visto até aqui descrevendo-nos o movimento do conceito. “desterritorialização” (perseguindo uma linha de fuga) desorganiza a para chegarmos ao c-s-o. O c-s-o vai sempre construir-se porque se perca os pontos de referência do espaço e mesmo os sentidos. estamos condenados a desejar e é por isso que é necessário violentar os nossos estratos para libertar o desejo do interior, do mesmo modo a subjectividade. (p. 188, 189) Nestes rituais dá-se uma reversão que é necessário violentar o pensamento para começar a pensar. Para do interior para o exterior, em que a pele se estende para além do espaço exterior e se torna matéria-energia que atrai e emana afectos que pela primeira vez nos faz desejar sair de um estrato. Os encontros e sensações tornando-se órgãos-focos de intensidades, construíndo um c-s-o onde a separação corpo-espírito desaparece. O transe é mantendo sempre um pedaço novo de terra. “O que estas estratégias em movimento o corpo paradoxal permitindo a reversão do espaço implicam é um contínuo vaivém entre o homem e o meio que as rodeia; 99 (p. 200) O conceito só tem sentido quando se considera a sua conexão ARQUITECTURA E CORPO-SEM-ÓRGÃOS: VAZIO, REVERSÃO DO com outros conceitos sendo os seus contornos irregulares. Isto é o que EXTERIOR EM INTERIOR E CONSTRUÇÃO DE TERRITÓRIO A percepção de um edifício é paradoxal porque é percepcionado “ com algo que envolve um vazio inconsciente mas sempre presente. ideia de conceito como algo sempre em aberto. Tudo ecoa em vez de O vazio é imaginado como não contendo órgãos (vísceras). É por isso se seguir ou corresponder. Os melhores conceitos são os que fazem que “[E]ste vazio tem uma propriedade: no saber que temos dele inclui-se o saber que nele podemos entrar (habitar).” (p. 194) O dentro pode transformar-se em fora com o nosso movimento (entrar no edifício). A percepção de uma obra de arquitectura implica a reversão virtual entender o conceito é preciso criá-lo porque o processo de criação do interior no exterior. Reversão que equivale a um rebatimento do implica imanência do sentido do conceito do plano. (p. 210) Pensar dentro no fora, constituindo um plano único povoado pelos espaços a imanência absoluta é pensar no campo transcendental. (p. 214) do edifício e pelo corpo do espectador. (p. 194, 195) “A natureza paradoxal do plano de imanência absoluto faz com que ele Em relação ao processo criativo do arquitecto, nos elementos exista por si. Quando, precisamente, o sujeito e o objecto “mergulham” na que selecciona para construir a sua sintaxe, procura construir um imanência, o plano constrói-se separando-se daquelas instâncias. Adquire O a autonomia ontológica e a textura do ser como vida.” (p. 214, 215) c-s-o do processo criativo da arquitectura é feito por muitas superfícies No último capítulo é de destacar a abordagem do conceito de que constituem outros tantos c-s-o”. Este ganha preponderância ritornelo “máquina de criação do tempo não cronológico” (p. 228) em que mesmo relativamente à função. O arquitecto subordina as funções estando nós mergulhados no caos de que se falava no início, através à expressividade (p. 196) “A casa-abrigo abriga para o ‘conforto’, e o de um êxtase proporcionado por um ritmo, somos arrancado dele | Diana Soeiro ” interior e a constituição do c-s-o. (p. 188-193) acedendo a um tempo não cronológico. (p. 230) Acedemos assim a um o leitor pode ler directamente Deleuze e aceder a um dos maiores ponto zero, a um intervalo, a um vazio em que não se respira e não se pensadores do século XX. Um privilégio. pensa. (p. 243) Este conceito é interessante pela relação que faz entre ritmo, vazio e diferença. O espaço intervalar é vazio e não mensurável e é através deste que o ritmo é possível. É a diferença que é rítmica e não a repetição que a produz. (p. 230, 231) – e no fundo percebemos agora melhor como é possível começar a pensar a partir da diferença, sem fundamento, através de um “a-fundamento”. É também pelo ritornelo que se forma o território, jogando-se o jogo do automovimento, com ritmo e repetição. O ritornelo é a forma a priori do tempo que fabrica tempos diferentes, é um prisma, um cristal de espaço-tempo que (p. 239) É através dele que criamos um território sendo que toda a criação de um território implica no começo uma deterritorialização. “Lançamo-nos, improvisamos” (On s’élance, on improvise). Nada nos é dado, senão a força de nos escaparmos.” (p. 235) DELEUZE E ARQUITECTURA “No plano de imanência, tudo está em devir. E o devir segue uma sequência ético-ontológica; para que possa ter pleno sucesso, a sequência deve “culminar” no devir imperceptível”. Diz Deleuze: “O imperceptível .” (p. 260) Tudo é devir 100 imperceptível. (p. 260) Ur (conceber e habitar): em traços gerias, negar o que se pensa saber Experimentação é a palavra-chave que une ambos os lados n.8 | Janeiro 2012 contra o senso comum introduzindo um conceito oposto (negação); no caos criar intensidades singulares sustendo o paradoxo (diferença); transe, onde o não cronológico e o devir se torne imperceptível. Tudo, sempre com prudência e guardando um pedaço de terra. Para se ir, e poder voltar. Estando consciente de que pode implicar um esforço ler “O Imperceptível Devir da Imanência” de José Gil parece-me ser um esforço bastante compensador. Não é demais dizê-lo, com vista a encorajar o potencial leitor, que José Gil é bastante atencioso e didáctico na exposição percebendo-se também ser um conhecedor de fundo do pensamento de Deleuze – e na verdade é um estudioso da sua obra desde há quase 30 anos – pelo à vontade com que manuseia os seus vários elementos e se move na sua complexidade. Oportunamente, perdermos a orientação ou, melhor ainda, o que nos permite não percebermos mal. É um livro que, propondo-se como uma introdução ao pensamento de Deleuze, cumpre. Depois desta introdução que dá uma visão alargada da sua obra e da evolução do seu pensamento, 1 O paradoxo da imanência acaba por acontecer porque o desejo é já um produzir enquanto é, construindo um contínuo, e por isso é por natureza hostil à transcendência (em potência). (p. 183). Agradecimento a Nuno Fonseca (IFL-FCH/UNL) pela revisão de texto