Revista Angolana de Sociologia
12 | 2013
As ciências sociais em questão
“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a
Unita, são partidos profundamente diferentes” –
pesquisando os passos de Christine Messiant
Cláudio Fortuna e Michel Cahen
Edição electrónica
URL: http://journals.openedition.org/ras/770
DOI: 10.4000/ras.770
ISSN: 2312-5195
Editora
Sociedade Angolana de Sociologia
Edição impressa
Data de publição: 1 Dezembro 2013
Paginação: 127-153
ISSN: 1646-9860
Refêrencia eletrónica
Cláudio Fortuna e Michel Cahen, « “Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos
profundamente diferentes” – pesquisando os passos de Christine Messiant », Revista Angolana de
Sociologia [Online], 12 | 2013, posto online no dia 01 março 2015, consultado no dia 03 maio 2019.
URL : http://journals.openedition.org/ras/770 ; DOI : 10.4000/ras.770
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a
Renamo e a Unita, são partidos
profundamente diferentes” –
pesquisando os passos de Christine
Messiant
Cláudio Fortuna e Michel Cahen
Investigador do Centre National de la recherche scientifique (França), Michel Cahen é
historiador de formação. É especialista em colonização portuguesa contemporânea em
África, cujo período de estudo se estende, aproximadamente, desde o golpe de Estado de
Maio de 1926 até a descolonização e aos atuais PALOPs. De Setembro de 2003 a agosto de
2012, foi diretor-adjunto do Centre d’étude d’Afrique noire que, em 2011, tornou-se “Les
Afriques dans le monde”, dentro do Instituto de estudos políticos da Universidade de
Bordeaux (França). Foi cofundador (com Christine Messiant e Christian Geffray) da revista
trilingue (francês, português, inglês) Lusotopie, uma revista dedicada à análise política dos
espaços contemporâneos oriundos da colonização e da história portuguesa, revista da
qual esteve à frente de 1994 até 2009.
A Revista Angolana de Sociologia publica largos excertos desta longa entrevista recolhida
por Claúdio Fortuna, que teve lugar em Luanda, aos 19 de Maio de 2012. As frases e
parágrafos cortados estão assinalados com reticências: [...]. Todas as notas de ropadé
foram acrescidas ulteriormente por Michel Cahen. Agradecemos a Melina Revuelta pela
revisão do texto.
Cláudio Fortuna (C.F.) – Qual foi o impacto da colonização portuguesa em África,
professor?
Michel Cahen – [...] Ao contrário do que se diz, a colonização portuguesa não foi mais
fraca ou mais arcaica do que as outras. Podem ter sucedido momentos de fraqueza ou
de algum arcaísmo, mas devemos analisá-los cuidadosamente, de acordo com os
contextos e os períodos. Por exemplo, quando da entrada em vigor do Estatuto político,
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
civil e criminal dos indígenas, em 1926, e do Código de trabalho indígena em, 1928-29,
pode-se dizer que o trabalho forçado era uma prática arcaica (embora completamente
inserido no sistema-mundo capitalista moderno). Porém, Portugal estava a fazer
exactamente o que as outras potências, como a França, a Bélgica e a Inglaterra, faziam
nas suas colónias. Então, antes da Segunda Guerra Mundial, não se pode falar em
arcaísmo da colonização portuguesa, ou então deve-se falar de arcaísmo em geral de
todas as colonizações.
No entanto, há um facto importante: Portugal, que participou do primeiro conflito
mundial, não o fez na Segunda Guerra Mundial. Como se sabe, este conflito obrigou as
potências coloniais, como a França e a Inglaterra, a promoverem reformas nas suas
colónias e, como Portugal não participou, não foi submetido a este movimento
reformador. As tendências de modernização que se sentiam nos fins dos anos 1930
foram paralisadas a partir de 1939/40, e entrou-se, pois, num período de arcaísmo que
perdurou até 1958: enquanto a França e a Inglaterra estavam a terminar com o trabalho
forçado entre 1945 e 1947, este é o período de maior incremento do trabalho forçado
nas colónias portuguesas continentais (Angola, Moçambique e Guiné). A partir deste
momento, é verdade que Portugal conheceu uma fase de arcaísmo colonial até 1958-59,
quando a economia colonial entrou em crise, antes mesmo das lutas de libertação. Isto
provocou vagas de reformas, obviamente dentro de uma óptica colonialista, mas é bom
assinalar que isto começou antes mesmo das revoltas, nos princípios de 1960.
Por vezes, diz-se que Portugal começou as suas reformas só por causa das lutas de
libertação anticolonial. Não é bem verdade. Obviamente que as lutas de libertação vão
acelerar as reformas, mas já havia uma forte corrente de reformismo colonial a partir
dos anos de 1958-59, pois os sectores mais esclarecidos da burguesia portuguesa
percebiam que aquela economia baseada no trabalho forçado não favorecia a obtenção
de produtos de qualidade para vender na Europa. Assim, a partir de 1962, o algodão
colonial passou a ser mais caro do que o algodão do mercado internacional. Também
não se deve subestimar o grau de mudanças que Portugal implantou durante o período
de colonialismo tardio, enquanto que os outros países africanos já eram independentes
ou estavam a entrar para as independências. No caso de Portugal, que fica, como dizia
Salazar “orgulhosamente só”, obviamente não há revolução política, mas vai haver um
momento de reestruturação económica. Estou convencido de que, em 1975, Angola e
Moçambique não eram menos desenvolvidos do que o Senegal ou a Costa do Marfim –
pelo menos em relação às infra-estruturas económicas. O que permanecia muito
arcaico, no caso das colónias Portuguesas, era que 95% da elite era constituída de
população branca: técnicos, operários qualificados, engenheiros e professores eram, na
sua maioria, brancos, havendo raros assimilados e mestiços. Dever-se-ia estudar esta
modernização tardia com maior precisão. Portanto, o impacto global da colonização
portuguesa não foi, afinal, tão diferente das outras, mas contou com a agravante de ter
uma elite branca a impedir o surgimento de uma elite africana, o que fez com que
houvesse péssimas condições para o alcance das independências nestes países.
C.F. – O surgimento dos assimilados não teria como efeito mudar o quadro da época?
Michel Cahen – Bom... a assimilação, em primeiro lugar, é uma ideologia. Uma ideologia
não tem por finalidade ser verdadeira: uma ideologia serve para justificar o poder dos
dominantes aos olhos deles próprios. Aliás, a legislação da assimilação serviu,
sobretudo, para impedir a assimilação, não para desenvolvê-la! Em Moçambique, nos
anos de 1950, o número de assimilados não chegava aos dois mil, era um número
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perfeitamente insignificante; em Angola, o número era um pouco mais alto por razões
históricas, por causa das antigas elites crioulas, e o conjunto de crioulos/assimilados
formava um grupo um pouco mais importante, mas insuficiente para criar um tal novo
Brasil! A assimilação era, antes de tudo, uma ideologia, a ideologia de uma colonização
de fraca possibilidade de investimento em capitais, a ideologia de uma colonização de
povoamento – que eu chamaria de colonização de “pequenos brancos”, sendo a única
forma de justificar a permanência de Portugal em África não só para “o inglês ver”, mas
para o próprio português ver. Se desenvolvimento económico e rápida modernização
não eram justificativas, dizia-se, pois, que era para assimilar, para civilizar os africanos.
A diferença entre a colonização portuguesa e as outras colonizações é que a portuguesa
era muito antiga, mas isto também deve ser bem compreendido: não quer dizer que o
mito dos “cinco séculos de colonização” tenha sido verdadeiro uma vez que os lugares
onde realmente houve cinco séculos de colonização foram muito reduzidos. Em
Moçambique, o que era a Ilha de Moçambique? Eram a ilha propriamente dita e as
terras firmes, mas as terras firmes da ilha de Moçambique tinham apenas dez
quilómetros de costa continental. Eram Quelimane, Chinde, a foz do rio Zambeze até
Tete... eram pontinhos. Portanto, 95% do território que hoje constitui Moçambique foi
conquistado por Portugal exatamente quando outras potências europeias conquistaram
as colónias delas, aproximadamente dez anos após a conferência de Berlim, em 1884.
Em Angola, a primeira idade colonial limitou-se a Luanda, um pedaço de terreno até
Malanje, à costa do Lubango, Moçâmedes e, nessa altura, havia também um início de
ocupação no reino do Congo, no Loango, mas não se tratava de uma implantação
efectiva. Havia também uma penetração comercial portuguesa com os pombeiros, os
ambaquistas, ou os lançados da Guiné, havia tudo isto, mas não era uma colonização na
acepção do que se viu no século XX, ou seja, era uma colonização mercantil.
Se, por um lado, é mito a tal “colonização de cinco séculos”, também é mito a
“resistência de cinco séculos”. Muitas vezes, as contradições ou guerras entre os reinos
africanos e o de Portugal foram guerras entre Estados, e isso não era necessariamente
uma resistência anti-colonial, mas guerra entre dois Estados. No entanto, apesar do
mito “cinco séculos de colonização”, isto não impediu que, em lugares muito pequenos
em termos de espaço, houvesse núcleos sociais coloniais muito antigos, como as elites
coloniais de crioulos de Luanda ou da Ilha de Moçambique (embora nesta cidade não se
utilizasse muito a palavra “crioulos”, havia quase o mesmo fenómeno, ou seja, elites
coloniais portuguesas, luso--indianas, luso-árabes, ou luso-africanas). Tratava-se de
elites coloniais que, muitas vezes, participavam do tráfico de escravos, que não eram
bem elites capitalistas, núcleos sociais coloniais muito reduzidos mas com grandes
consequências históricas. Com efeito, depois do século dezanove, os descendentes
desempenharam um grande papel na génese de parte das identidades africanas e na
politização do sentimento anticolonial.
Isto é, a conjunção entre a primeira idade colonial (mercantil e escravista) e o
capitalismo colonial não aconteceu da mesma maneira no caso português e nas outras
colonizações: nessas, havia uma ruptura espacial entre os lugares de velha colonização
(Antilhas, América, Índias...) e os de nova colonização (África). No caso português, foi a
partir dos lugares da antiga colonização em África que se conquistaram os novos
espaços do capitalismo colonial. Em outras palavras, diversamente do que sucedeu
algures, no caso português, a nova colonização não apagou a antiga.
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C.F. – Professor, a teoria da assimilação defendida por Portugal não se coaduna com a
frase de Fernando Pessoa, que diz que “a língua portuguesa é a minha pátria”?
Michel Cahen – Desde já, devo adiantar que a teoria de assimilação é muito antiga, não
sendo só portuguesa. Lembro que a França colonial defendia a teoria de assimilação até
à primeira guerra mundial, só que, depois, o legislador francês notou a contradição
existente entre a teoria de assimilação e o facto de se implementar nas novas colónias
de África uma legislação completamente diferente daquela da metrópole. Se era
assimilação, então por que não se faziam as mesmas leis em África e na metrópole?
Então, obviamente, o colonialismo tinha que criar em África um regime de excepção,
com trabalho forçado, com ausência de cidadania. A contradição passou a ser
insustentável depois da Primeira Guerra mundial, quando estabilizou-se a conquista
efetiva dos territórios. Então, a França utilizou outra teoria, a da “associação” (como se
uma “associação” pudesse ser forçada!), que legitimou as diferenças entre a legislação
da metrópole e das colónias.
Portugal ficou com a teoria de assimilação, provavelmente por razões históricosociológicas. Esta teoria era antiga, já vinha do século XIX, mas é verdade que foi
legislada em maiores detalhes a partir de 1926, com o surgimento do estatuto do
indigenato, com base na regulamentação dos alvarás de assimilação que detalhavam
quais eram as condições para que o indígena conseguisse tornar-se num cidadão
português. Mas a regulamentação de assimilação serviu, sobretudo, para impedir a
assimilação de numerosos africanos que já sabiam falar português, que já tinham
abandonado os hábitos “tribais”, que já trabalhavam nas cidades. Normalmente, este
pessoal devia ser assimilado, mas as condições foram de tal maneira severas que
aconteceu o contrário. Os brancos, os mestiços e os assimilados tinham o privilégio de
ter acesso a certas profissões às quais o indígena não tinha acesso. Nessas profissões,
para poder trabalhar, era preciso ter o cartão profissional que era emitido pelos
sindicatos nacionais (estrutura corporativa) que, por sua vez, vigiavam de maneira
estreita a não abertura a trabalhadores africanos qualificados. Assim, embora com
variações, quer seja em Moçambique, Angola, Guiné ou até mesmo em São-Tomé – não
falo de Cabo-Verde –, o processo de assimilação foi muito reduzido. Mas a ideologia de
assimilação era muito mais importante do que a assimilação em si porque a ideologia de
assimilação era a única ideologia possível para um colonialismo de fraca capacidade de
investimentos em capitais: não se podia dizer que se estava em África para fazer
grandes obras, visto não ser o caso; então, era somente para dizer: “Nós estamos em
África para nos misturarmos com os africanos”. Era aquela ideologia de que os
portugueses não faziam a colonização com a espada e a cruz, mas com o sexo (como se o
sexo forçado pudesse ser feito sem espada...).
Então, qual foi a relação com o Luso-Tropicalismo? Esta foi uma teoria desenvolvida
pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre nos anos 50, com base em trabalhos anteriores,
dos anos 1930. Ele desenvolveu o conceito quando o Governo português lhe pagou uma
viagem a quase todas as colónias portuguesas (menos Timor), e ele se deixou
maravilhar, ficando com a impressão de estar perante “pequenos Brasis”. Mas esse
encantamento, sincero ou de encomenda (não sei), por todas as colónias que ele
visitara, não resultou de uma análise de campo aprofundada que o sociólogo ou o
antropólogo deve fazer. Foram visitas muito superficiais e totalmente programadas
pelas autoridades. Porém, essa viagem permitiu a Gilberto Freyre sair do Brasil e
estender a teoria a todo o antigo espaço imperial português, falando de factos que ele
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dizia testemunharem um génio particular da raça portuguesa. Assim, o LusoTropicalismo foi uma teoria enraizada na história específica do Brasil, com suas
relações paternalistas entre a Casa Grande do mestre e a senzala dos escravos, e que ele
misturou com a ideologia que existia já antes em Portugal, a saber que, como os
portugueses eram um povo situado no Sul da Europa, que tinha conhecido um período
árabe importante, estavam geograficamente mais próximos dos africanos, tendo pois
qualidades natas para se misturarem melhor com os africanos. Tal teoria não era mais
do que uma justificativa de um colonialismo pobre: o colonialismo holandês ou francês
e até mesmo o inglês tinham capital para fazer investimentos e para fazer grandes
obras, enquanto o pequeno colono português optava por abrir uma cantina no mato e,
neste caso, a única ideologia possível para a administração de tal colónia era justamente
a assimilação. Não há duvidas de que, depois da viagem de Gilberto Freyre às colónias
portuguesas em 1951-52, o regime de Salazar aproveitou-se do prestígio de Gilberto
Freyre para justificar a colonização portuguesa frente aos ventos da história que
começavam a soprar mais forte.
No entanto, há uma diferença ente o Luso-Tropicalismo propriamente brasileiro e o
Luso-Tropicalismo tal como foi explorado por Salazar. Pode-se discutir e criticar muito
o Luso-Tropicalismo de Gilberto Freyre, mas, pelo menos, ele desenvolvia a ideia de que
a mestiçagem era o fundamento para uma nova civilização “lusa”: é claro que este não
era o objectivo de Salazar! Para Salazar, o Luso-Tropicalismo e a mestiçagem eram
apenas vistos como uma etapa, como um estágio para o branqueamento das colónias,
tanto cultural como, até mesmo, racial, isto é a portugalização. Afinal, eram dois LusoTropicalismos muito diferentes: o de Gilberto Freyer era um Luso-Tropicalismo da
mestiçagem “lusa”, enquanto que o de Salazar era o do branqueamento português. Mas,
como o nome era o mesmo, Salazar aproveitou a confusão, claro que com a
cumplicidade de um Gilberto Freyre encantado por poder encontrar uma irmandade
entre Brasil e as colónias africanas de Portugal. No entanto, é bom lembrar que, quando
começaram as lutas de libertação anticolonial, Gilberto Freyre não se alinhou a Salazar
e ficou na reserva. Morreu em 1987 sem, salvo erro da minha parte, nunca ter voltado a
África.
Quanto à famosa frase de Fernando Pessoa – “A língua portuguesa é a minha pátria” –
devo dizer que esta frase foi voluntariamente muito mal interpretada. Ela foi utilizada
depois da Revolução dos Cravos, em 1974-75, num contexto onde, para muitos
portugueses que já tinham perdido o império, era importante analisar a Lusofonia em
construção como uma espécie de continuação do império. É preciso ler a famosa
expressão de Fernando Pessoa no parágrafo em que está inserida: ele explica que não
sente nenhum patriotismo; está-se nas tintas e não lhe pesaria se os espanhóis
invadissem Portugal desde que não o incomodassem pessoalmente. Ele quis dizer que,
como escritor, não tinha ódio daquele que não tinha tido o privilégio de ir à Escola e que
não sabia escrever bem o português, mas, ao contrário, daqueles que, tendo
frequentado a escola, escreviam mal o português. Como escritor, diz que, para a vida
dele, o importante não era Portugal ou o seu império: o importante era o espaço
intelectual, um espaço mental criado pela língua portuguesa. Isto é, ele explica que era
completamente apatriota no nível político, e que a “pátria” dele (vista como espaço
mental) era somente a literatura e a língua. Mas esta frase foi totalmente invertida para
dar a entender que a língua portuguesa define uma pátria comum (no sentido político e
cultural) de todos aqueles que falam português ou têm esse dialeto como língua oficial
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
do Estado. Como se Angola, Moçambique, Portugal e o Brasil fossem a mesma pátria ou
a mesma “superpátria”..., como se a CPLP e a Lusofonia produzissem uma pátria
comum. Não é nada disso que quis dizer Fernando Pessoa. Obviamente que há vários
povos, várias identidades e várias nações que se expressam em português, mas isto não
quer dizer uma pátria comum. Aliás, não existe uma África de expressão portuguesa, ou
francesa, ou inglesa: existem Estados africanos que têm o português, ou o francês, ou o
inglês como língua oficial, mas a expressão deles nessas línguas é uma expressão
africana. Por isso, a designação neutra de “Países africanos de língua oficial
portuguesa” parece-me muito mais correta do que “África de expressão portuguesa”
(ou francesa, ou inglesa).
C.F. – No que toca às fronteiras, professor, os africanos herdaram um legado que ainda
subsiste até hoje, de alguma conflitualidade que tem a ver com a problemática das
fronteiras, como é que vê esta situação?
Michel Cahen – Bom! Esta é uma grande questão, mas, desde já, devo dizer que o
problema não está em saber se uma fronteira é natural ou artificial. A ideologia das
fronteiras artificiais ou naturais vem da revolução francesa de 1789-93, quando a ideia
era que a França tivesse “fronteiras naturais”, isto é, montanhas altas ou rios grandes
para delimitá-la com relação aos outros países. Ora, obviamente que a geografia teve
um impacto na história das guerras, das conquistas. No Sudeste e no Sul, os Alpes e os
Pirenéus eram tidos como limites com Itália e Espanha, mas naquela época, o reino do
Piemonte ainda possuia a província de Sabóia, do lado ocidental dos Alpes. Já no leste e
ao Norte, ao seguir pelo Reno, entrava-se em áreas que nunca tinham sido francesas de
cultura, inclusive dentro da Holanda. Afinal, esta teoria das fronteiras naturais dava
contornos para a expansão territorial da França, embora disfarçada na ideologia do
estado natural das coisas oriunda do Iluminismo. Na realidade, não há um país com
“fronteiras naturais” porque qualquer país é oriundo de conquistas militares que não
levam a “natureza” em consideração. No caso de haver democracia num processo de
unificação territorial, o importante não são as fronteiras naturais, mas as fronteiras
sociais, as fronteiras de identidade, as fronteiras de povos, as fronteiras sentidas.
C.F. – Sobre esta questão, o historiador Joseph Ki-Zerbo dizia que as fronteiras artificiais
podem ser para África uma espécie de bomba relógio....
Michel Cahen – Sim, mas salvo o respeito que devo ao Professor Ki-Zerbo, uma vez que
não se coloca o problema das fronteiras serem artificiais porque todas as fronteiras são
artificiais na medida em que não são naturais, então o problema que se coloca é saber se
elas têm ou não têm historicidade, se são ou não são socializadas ? Se há um conflito militar
entre um império qualquer e um outro reinado e uma fronteira política se estabelece,
caso ela fique assim durante cinco séculos, ela pode tornar-se uma fronteira
historicizada e social. Mesmo se essa fronteira, no momento da conquista, cortar um
povo no meio, pode ser (digo bem “pode ser”, não há fatalidade) que o facto de uma
parte desse povo estar doravante num reinado e outra parte estar num outro reinado vá
provocar um processo de diferenciação identitária e étnica entre as duas partes. É uma
possibilidade histórica que nem sempre se verificou, mas que pode acontecer. Pode darse também uma combinação de duas evoluções: de um lado, um certa diferenciação, de
outro lado, a manutenção de um sentimento comum de pretença (parece-me, hoje em
dia, a situação da velha nação kongo divida entre cinco espaços geopolíticos : sul do
Gabão, oeste do Congo e do Congo-D, Cabinda e Norte de Angola). Então, a fronteira
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
“militar” ou “política” pode tornar-se uma fronteira de identidade, mas para isto se
consolidar precisa de muito tempo.
O problema em África não é as fronteiras serem artificiais – sim, são!, mas tal como as
da Europa! –, mas reside na diferença de que, na Europa, as fronteiras foram
delimitadas num prazo de tempo muito longo (cerca de mil anos), enquanto que, em
África, não o foram por guerras entre os Estados africanos, mas por gente vinda do
exterior, num prazo muito curto, por gente que desconhecia o terreno e que, por vezes,
utilizou algo do conhecimento local ou reproduziu fronteiras já existentes (o que não
quer dizer socializadas) como, por exemplo, as fronteiras entre sultanatos no Norte da
Nigéria (que também eram recentes) – mas sempre no interesse deles, logo não
hesitando em criar fronteiras incríveis. Veja, por exemplo, a Faixa de Caprivi – hoje
Namíbia –, anexada ao Sudoeste africano alemão pelo Tratado anglo-alemão de
Helgoland-Zanzibar em 1° de Julho de 1890, anexação que tinha por única razão a
vontade dos Alemães de chegar ao rio Zambeze e assim poder explorar os espaços
hidrográficos desse rio continental. Isto é quase caricatural, mas há muitos outros casos
onde as fronteiras coloniais tiveram como efeito a divisão de povos ao meio. Já falei da
nação Kongo, mas pode-se acrescentar o antigo império da Lunda, que foi dividido
entre a Angola e o Congo Democrático (a parte da Lunda que está em Angola é uma
parte minoritária do território da antiga Lunda). No caso de Moçambique, a situação é
extrema, na medida em que só há dois grupos étnicos de Moçambique dentre os vinte e
cinco principais que não tem prolongamento do outro lado da fronteira política. A
grande maioria dos povos de Moçambique tinham uma certa unidade antes da
colonização e foi a colonização que partiu essa unidade, formando o espaço político
meramente colonial que é Moçambique.
Não estou a dizer obrigatoriamente que, no momento das independências, era possível
contestar os espaços coloniais impostos no final do século XIX, podendo-se pensar num
movimento de libertação que constituísse Estados-nação baseados nas realidades
populares ao invés de aceitar o espaço colonial. Talvez sim, talvez não, não entro aqui
nessa conversa. De qualquer forma, no contexto político e cultural, até mental, dos anos
1960 e 1970, era muito complicado (nem se imaginou que se pudesse fazer de outra
maneira, e os poucos que advogaram nesse sentido foram tratados como tribalistas; as
elites africanas criadas no contexto colonial queriam, a todo o custo, manter o espaço
colonial que delimitava o imaginário político delas). A história foi assim: manutenção
dos espaços e das fronteiras coloniais.
Mas o problema da história ter sido assim não deve impedir os historiadores de estudar
os efeitos da aplicação destas fronteiras que foram decididas sem a participação dos
povos africanos. Neste aspecto, concordo plenamente com o historiador Ki-Zerbo, não
por causa da artificialidade das fronteiras, mas, sobretudo, por causa da ausência de
historicidade das fronteiras, de um processo fundamentalmente não democrático na
definição dos novos espaços políticos. Os Africanos, em sua esmagadora maioria,
queriam ver os colonizadores partir – não era preciso referendo – mas não foram
consultados sobre os espaços que se deviam construir. Como bem sabem, houve a teoria
de “Um só povo, uma só nação”, e durante um tempo de “um só partido”, isto é, da
imposição de uma nação e de uma identidade política a povos que não a sentiam
necessariamente. Mas estes foram deslegitimados como “tribalistas”. Os “nacionalistas”
corresponderam àqueles que aceitavam o espaço colonial!
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C.F. – Professor, estas fronteiras que não tiveram historicidade podem ser entendidas
como arcaísmo colonial?
Michel Cahen – Sim, mas a questão que se coloca pode ser: essas fronteiras que se
traçaram entre 1890 e 1918, que não tinham historicidade, não podem em 2012 ter uma
certa historicidade? Pode não haver uma resposta simples para essa pergunta.
Penso que o problema principal está na natureza do Estado em vigor no espaço (pós)
colonial. Por exemplo, no caso de Angola, se o Estado angolano se tornar uma garantia
do progresso social e económico para os povos que foram reunidos à força naquele
espaço colonial, se esta República for sentida como a ferramenta do progresso dos
povos inseridos nela, então vai haver um processo de identificação política dos povos
para com aquela República, e a identificação política desses povos para com a República
de Angola vai, aos poucos, com o decorrer do tempo, se tornar uma identificação
cultural que se vai tornar nacional. Então, haverá uma estreita ligação entre a capacidade
do Estado em promover o progresso social e a identificação das pessoas com a criação
da nova nação.
Vou dar-lhe um exemplo pessoal. Eu nasci em Estrasburgo, cidade do rio Reno no Leste
da França, numa região que se chama Alsácia. É uma região historicamente de cultura
germânica, que fazia parte do império germânico até a conquista por parte do rei
francês Luís XIV. Só que, depois da Revolução francesa (1789-93), os camponeses e os
burgueses Alsacianos constataram que era melhor ser cidadão da República francesa,
que promovia o progresso social, do que ficar com o rei da Prússia. Foi, pois, uma
identificação social ou política que provocou uma “adesão” à França. Quer dizer, a
questão do progresso social foi fundamental. O grande problema de África – não só de
Angola –, é que o Estado da periferia capitalista, em regra geral, não é capaz de
promover o progresso social ou nem quer fazê-lo. Este Estado não produz uma
identificação política e social – apesar das numerosas ligações clientelistas e de
paternalismo autoritário que desenvolve – e isto trava o processo de “difusão” de um
sentimento nacional novo dentro do espaço colonial. Pode haver uma aceitação política:
“sei de qual chefe, de qual presidente, de qual Estado, dependo”, mas isto é débil e ainda
não enraiza um sentimento nacional – apesar de todos os discursos dizerem o contrário.
Essa não identificação faz com que, muitas vezes, as fronteiras se transformem num
elemento que traz fortes conflitos. Conflito não quer dizer solução: por exemplo, no
caso do Sudão, a divisão do país em dois Estados obviamente resultou da vontade dos
povos subsaarianos do Sul do Sudão de se separar dos povos Árabes do Norte do Sudão,
mas o espaço Sul do Sudão também pode considerar-se como resultado de uma
produção colonial porque as fronteiras do Sul do Sudão também estão a dividir povos
africanos, como os que estão hoje parte no Sudão do Sul e parte do outro lado da
fronteira, na República Centro-Africana ou na Etiópia.
Os grandes problemas não são étnicos – quando aparece um problema dito étnico,
sempre se deve buscar as raízes sociais –, os problemas são a democracia e o progresso
social. Se uma República assume-se como Estado sem nação (“somos um Estado, mas não
temos uma nação”) e promove uma política de respeito máximo para com as nações
pré-coloniais – isto é, as identidades realmente vividas pelos povos –, promovendo
alfabetização em línguas africanas para que, depois, se aprenda melhor português,
francês ou inglês, fomentando o desenvolvimento económico dos pequenos camponeses
ao invés de construir ou permitir a expansão desenfreada de grandes cidades onde 80%
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da população não tem emprego, planeando um desenvolvimento económico equilibrado
entre todos os povos e etnicidades do país, pois, ao se fazer tudo isto, esta República que
não tem nação, que não proclama nação, que não diz que tem um projecto de nação,
mas que tem sim um projecto para respeitar ao máximo possível as nações pré-coloniais
e que promove o progresso social destas nações, penso que, sem o querer, aquela
República vai estar em melhores condições para criar uma nação porque vai provocar um
processo de identificação. Mas isto seria um processo histórico no decorrer dos séculos,
talvez de mais de cinco séculos. Esta República seria forte e unida não em virtude de
uma unicidade imposta, mas, ao contrário, em virtude de ser o espaço onde a promoção
da diversidade cultural e da igualdade social é garantida.
C.F. – Será o progresso social uma forma de impedir a crise de identidade das nações
africanas? Por outro lado, professor, será que a forma de descolonização portuguesa no
caso angolano terá contribuído em grande medida para a crise de identidade entre os
beligerantes em Angola...
Michel Cahen – Bom, é verdade que a forma como decorreu a descolonização portuguesa
pode ser muito criticada porque o Movimento das Forças Armadas que teve o grande
mérito de derrubar a ditadura fascista em Portugal tinha um único objetivo, isto é, o de
sair o mais rapidamente possível de África. Basta ver, por exemplo, que os mesmos
militares portugueses que deitaram abaixo o partido único na Europa (Portugal),
ajudaram na criação do partido único em África (Cabo Verde, Guiné-Bissau,
Moçambique, São Tomé e Príncipe). No caso de Angola foi um pouco diferente porque,
no inicio, já havia os três partidos reconhecidos, mas que, globalmente, não passavam
de uma ideologia de partidos únicos. A luta era saber quem seria o partido único.
Mas penso que, além da forma de descolonização, tem mesmo a ver com a
especificadade da colonização portuguesa, que dificultou muito o processo de
descolonização. Como lhe disse, o período do colonialismo tardio foi de grande
progresso em termos de escolarização e industrialização, mas que não deixou de ser
muito pouco e muito tarde. Em 1974, quando surgiu o processo da Revolução dos
Cravos, 95% da elite que tinha o domínio da ciência e da tecnologia, que era
alfabetizada, era constituída pela população portuguesa, quase que não havia uma elite
africana - isto sim dificultou muito a descolonização. Pois, não foi bem o período de
descolonização que foi o causador das dificuldades das independências; foi, sim, a
história da colonização portuguesa, que não foi mais arcaica do que as outras quanto às
infraestruturas económicas, como já vimos, mas sim no que diz respeito ao nível de
formação social das camadas qualificadas e das elites africanas.
Quanto à segunda questão, do progresso social, se era uma forma de impedir as crises
de identidade... Claro, quando em França houve aquele processo semelhante no século
XIX, nomeadamente com a criação da terceira República, após 1871, surgiu um feroz
nacionalismo francês que visava apagar todas as outras culturas. A França era um país
de 200 línguas, houve uma grande campanha política para implementar o francês e
erradicar as outras línguas, isto é, deu-se uma opressão étnica, contra os povos da
França. Mas a mesma República que proibia falar Basco, proibia falar Bretão, proibia
falar Córsego e proibia falar Alsaciano, aquela República foi capaz de trazer pontes,
estradas alcatroadas, escolas públicas e de qualidade, reformas e direitos sociais. Aí as
pessoas puderam identificar a língua francesa com a ideia de progresso. Assim, houve
como que uma troca - não digo que tenha sido boa -, mas que, pelo menos, permitiu o
funcionamento da República, entre aceitação da opressão étnica e promoção do
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
progresso social. As pessoas, inclusive os pais que falavam as línguas locais, deixaram de
se comunicar com os seus filhos em línguas locais porque acreditavam que o “patois”
(gíria) haveria de prejudicar as crianças e impedir a aprendizagem do francês. Isto era e é - uma ideia perfeitamente falsa, mas pensavam que as crianças deviam só falar o
francês. Foi isso que reforçou a nação francesa, mas isto só funcionou por causa do
progresso social. E não se deve esquecer que o processo de formação da nação francesa
não começou com a Revolução de 1789; era um processo histórico há muitos séculos em
andamento: a Revolução fortificou este processo, porém não o criou.
Hoje em dia, se um Estado africano entender que deve difundir a língua francesa ou
inglesa, mas, ao mesmo tempo, o povo não sentir o progresso social, isto não terá como
funcionar. No caso de Angola nomeadamente, deve-se constatar que a “portugalização”
ou a “lusofonização” do país progrediu muito, mas foi por outras razões, razões
péssimas, pelo fato de ter havido um conjunto de guerras civis que obrigou grandes
quantidades de populações a refugiarem-se nas grandes cidades. Estas pessoas vieram
para as grandes cidades, não porque estivessem necessariamente a favor do MPLA, mas
porque era nas cidades que chegavam as ajudas internacionais, onde se podia conseguir
alguns meios para sobrevivência, era isto que dava alguma segurança – no campo, o
povo estava refém dos militares dos dois lados, seja do MPLA como da UNITA. Ora, a
cidade pós-colonial em sí é um fator de forte lusofonização. Mas vemos facilmente que o
processo não tem nada que ver com a democracia, o progresso social e a identificação:
as pessoas necessitavam absolutamente participar de redes clientelistas para
sobreviver.
Mas até hoje, na periferia do capitalismo, o Estado angolano não está a produzir o
progresso social dos seus povos. Pelo contrário, tem estado a garantir cada vez mais
fortunas para elites dirigentes que praticam um neopatrimonialismo de alto grau.
C.F. – Como é que se justifica a forma de atuação do PAIGC ter sido diferente, entre CaboVerde e a Guiné-Bissau, com Amílcar Cabral no centro das atenções....
Michel Cahen – Deve-se distinguir dois períodos, o da luta anticolonial e o da
independência. A atuação durante a luta anticolonial foi muito diferente por uma razão
óbvia: era quase que impossível desenvolver uma luta armada no Arquipélago de CaboVerde. São ilhas muito pequenas onde quase que não há florestas para os guerrilheiros
se refugiarem, não há “Maiombi” como em Cabinda. O nome de Cabo-Verde não tem
nada a ver com o “verde”, é um país muito árido. O PAIGC teve uma implantação em
Cabo Verde, mas eram redes clandestinas que faziam acções políticas de forma
camuflada. Houve de facto o projecto de desenvolver uma guerrilha dentro de Cabo
Verde, chegou mesmo a haver um grupo de quarenta pessoas que estiveram em Cuba
para treinar, mas depois de muitas dificuldades, a direcção decidiu que não deveria
haver uma guerrilha no arquipélago. Até o exército português chegou ao ponto de
derrubar o pouco de floresta que havia em Cabo Verde, tudo para impedir que houvesse
esconderijos para os guerrilheiros. Pois a guerrilha para libertação conjunta de Cabo
Verde e da Guiné só teve lugar na Guiné.
Quanto ao comportamento do PAIGC, depois da independência, claro que foi muito
diferente. Também foi um caso único em África, com o mesmo partido no poder em dois
países diferentes. Não chegou a haver a fusão que era o grande sonho pessoal de
Amílcar Cabral, por sua vez, um caboverdiano nascido na Guiné, que sentia no seu
coração as duas identidades, daí ele ter tido o sonho de uni-las. Isto não funcionou
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
porque, se era um sonho pessoal dele, os povos eram totalmente diferentes. A
população de Cabo Verde como sociedade ou como país é uma produção integral da
colonização: quando os portugueses lá chegaram em 1460, não havia ninguém ou, pelo
menos, não havia uma sociedade. Então, foi uma sociedade produzida pela importação
de escravos para os colonos portugueses com capatazes mestiços. Não há de facto uma
sociedade africana em Cabo Verde, não há etnicidade, não há linhagens, não há castas,
não há clãs, não há classes de idades; [...] é uma sociedade que apresenta maior
semelhança com as sociedades [...] das caraíbas do que com as sociedades africanas. É
uma sociedade completamente crioula: a crioulidade em Cabo-Verde não é um
fenómeno de elite, como foi em Angola ou mesmo na Guiné, aqui até os pobres e
descendentes de escravos são crioulos. Por isso, Cabo-Verde é um Estado-nação que
nasce da escravatura: de facto, as pessoas que lá foram colocadas durante o largo de
séculos formaram uma nação. Já a Guiné-Bissau é um país como qualquer outro de
África continental, com etnicidades, com linhagens e clãs, com classes de idade. O
PAIGC, politicamente de raiz crioula, teve uma política muito violenta na Guiné, fez
chacinas nos antigos comandos do exército colonial. [...] Se os comandos eram
traidores, pois bem, deviam ser julgados e condenados, não chacinados. Mas não foi só
isso na política violenta de repressão: estou lembrando do caso do Baticão, que foi um
líder tradicional muito importante, e que foi fuzilado em hasta pública perante a sua
família. Depois, os familiares foram obrigados a dançar para exército do PAIGC como
forma de mostrar a sua alegria, etc. De facto, houve métodos de repressão feroz. Em
Cabo Verde, o mesmo partido com certeza foi partido único com Segurança de Estado,
mas houve poucas torturas, não houve fuzilamentos. Quando da reforma agrária, muito
mal planeada porque a mesma política foi implementada em todas as ilhas apesar de a
situação ser bastante diferente de uma para outra, a Ilha de Santo Antão teve motins no
início dos anos 1980, com choque contra as forças de segurança – creio que foi o
episódio mais violento da história do partido único no arquipélago. Mas nunca foi uma
repressão de massa. Havia um semanário católico que era quase um jornal da oposição,
Terra Nova, que nunca foi proibido, foi tolerado. Mas o mesmo partido foi muito violento
na Guiné, do mesmo tipo que a Frelimo em Moçambique, ou o MPLA em Angola.
Provavelmente, isto exprimiu o medo da elite crioula do PAIGC na Guiné em ser
derrubada por um país não crioulo, que era considerado como que estrangeiro para ela
própria. Aliás, é bem conhecido que muitos guineenses participaram da luta sob a
direcção do PAIGC, mas depois não aceitaram bem a direcção do partido. Claro que isto
facilitou em muito as manipulações da PIDE, que agudizou algum antagonismo entre os
combatentes negros de pele e a elite crioula. A PIDE agudizou, mas não criou este
antagonismo que vinha desde a história colonial, quando os Caboverdeanos da Guiné
serviam a potência colonial. O assassinato do Amílcar Cabral tem a ver com isso. Mas as
diferenciações sociais não foram um resultado das manipulações da PIDE, que
manipulou algo que já existia.
A história dos dois paises continua em ser muito diferente. Por exemplo, hoje em dia,
Cabo Verde é um caso único em África de situação de paz civil, com um Presidente da
República que é uma personalidade independente muito próxima da oposição (MPD,
Movimento para Democracia), e cujo primeiro Ministro é do PAICV, herdeiro do PAIGC.
Outro caso existente é o Zimbabwe, mas como consequência de uma quase guerra civil e
como imposição da União Africana. Em Angola, seria completamente inconcebível ter
um presidente do MPLA, por exemplo, e um primeiro ministro que não seja do MPLA.
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
Igualmente, em Moçambique, ter um presidente que seja da Frelimo e um primeiro
ministro da Renamo, ou o contrário, seria perfeitamente inconcebível. O simples facto
de haver a coabitação entre um presidente que é mas próximo da oposição e um
primeiro Ministro que é do PAICV, é por si só um sinal de maturidade da democracia em
Cabo-Verde. Mas essa maturidade não é fruto somente das qualidades dos dirigentes; é
que a formação social mesmo do país é diferente e permite mais facilmente uma
identificação para com o Estado-nação, seja qual for o partido no poder.
Hoje na Guiné Bissau, há uma instabilidade permanente. Este Estado não foi capaz de
promover o progresso social das suas populações e as elites - pelo menos em parte, em
particular os militares - estão profundamente metidas no tráfico de drogas, ficando
muito difícil fazer uma leitura política dos golpes de Estado naquele país, pois podem
exprimir rivalidades relativas ao tráfico de droga e muito pouco devido a diferenças
políticas.
C.F. – O tipo de procedimento institucional quer de Angola, quer de Moçambique facilita o
“Estado neopatrimonial”, professor?
Michel Cahen – Eu não falo em Estado neopatrimonial, mas sim em Estado capitalista da
periferia, dentro do qual existem comportamentos neopatrimoniais. Recuso o conceito
de Estado neopatrimonial porque penso que, ao se falar assim, estaríamos a dizer que o
Estado em si é neopatrimonial. Então, o que poderia ser um Estado neopatrimonial?
Literalmente, neopatrimonialismo significa nova forma de patrimonialismo. Mas o que
é o patrimonialismo? O Estado patrimonial, que foi muito frequente na história, era um
Estado cuja riqueza era também a riqueza pessoal do rei ou do Sultão seja o que for. Isto
não era corrupção porque na épóca era socialmente aceite a total personificação do
Estado. Mas hoje em dia, estamos numa época onde as monarquias são raras e, no caso
das monarquias constitucionais, o rei deixou de ser absoluto; simboliza o Estado, mas
não é o Estado. Nas repúblicas e mesmo no caso de monarquia constitucional, o
soberano foi substituído pelo povo soberano. No tempo do patrimonialismo, o rei ou o
sultão era um dominante que se temia, mas de que se podia gostar. Por exemplo, a
crença que se passava na população era “El rei é bom”; ele pode ter maus conselheiros à
sua volta, mas “El rei é bom”. Hoje em dia, é o Estado em si que deve ser bom: um Estado
moderno deve representar o ideário do bem público, é mesmo a estrutura do Estado que
deve ser boa para o povo. Mas como é que poderia haver no contexto actual um “Estado
neopatrimonial”? Teria que ser um Estado que reconhecesse oficial, legal e abertamente
que o presidente pudesse misturar a sua riqueza pessoal com o tesouro do Estado, mas
que, ao mesmo tempo, aceitasse os valores universais internacionalmente admitidos. O
neopatrimonialismo existe, sim, obviamente, como a tendência para o clientelismo
quando penetrar o aparelho de Estado. Mas não há, nem pode haver, uma categoria
específica de estados que se pudesse caracterizar “Estado neopatrimonial” como houve
o Estado feudal, o Estado capitalista, o Estado colonial. Existem, sim, Estados capitalistas
da periferia, onde há comportamentos neopatrimoniais profundamente enraizados
porque fornecem o meio de “financiar” a elíte do país que, por mais rica que seja, não é,
ou ainda não é uma verdadeira burguesia que pode tirar a sua riqueza da organização
da produção, sem alta proteção familiar do chefe de Estado e sem desvios da ajuda
internacional. Não é o facto das pessoas que fazem parte do aparelho do Estado –
mesmo o presidente – terem comportamentos neopatrimoniais que faz com que o
Estado em si o seja. Ao contrário, essas pessoas de comportamento neo-patrimonial
estão a trair a função do Estado moderno, que é de servir o bem público.
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
C.F. – O Estado da periferia de que falou teria uma relação com o conceito defendido por
Christine Messiant para descrever um fenómeno do final dos anos 1950 e 1960, isto é, o
fenómeno dos “novos assimilados” em Angola?
Michel Cahen – Bem! Sim e não, ou seja, há uma ligação, mas são coisas completamente
diferentes. Christine Messiant, grande socióloga francesa que morreu em 2006, foi, em
meu entender, a maior especialista da sociologia política e histórica de Angola. Quando
ela falava do fenómeno dos novos assimilados, estava a fazer referência ao período
colonial, o período de colonialismo tardio depois de 1945 e sobretudo entre 1961 e 75,
quando Portugal modernizou, industrializou e escolarizou pode-se dizer que foi muito
tarde e muito pouco, tudo bem, mas foi uma grande diferença em relação ao período
anterior a 1961. Isto produziu efeitos sociais, novas camadas sociais surgiram, e
Christine Messiant qualificou esses africanos que já viviam nas cidades, que já falavam
Português e que já tinham qualificações urbanas de novos assimilados: pois, se este
fenómeno tivesse surgido antes da supressão do indigenato em 1961, estes africanos
poderiam ter solicitado a sua assimilação. A legislação sobre assimilação foi revogada
por Adelino Moreira em 1961, mas o fenómeno social da nova assimilação foi contínuo.
Claro que aquele processo dos novos assimilados tem uma relação com o capitalismo da
periferia, mas é para confirmar que na periferia não se produziu uma burguesia
africana – não estou a falar da África do Sul ou dos países arabes, mas da África SubSariana. Pode haver pessoas muito ricas, grandes negociantes, mas um burguês, no
sentido histórico da palavra, na perspectiva de Marx, um verdadeiro capitalista é aquele
que consegue ganhar muito dinheiro, sim senhor, que consegue fazer fortuna, mas
através da exploração de mão de obra dos trabalhadores em esquemas de produção por
ele organizados, ou então, com um comércio em condições de (pelo menos relativa)
liberdade e transparência do direito comercial. Quando uma pessoa faz fortuna só
porque ela é Presidente ou porque ela tem alguma aproximação com a cúpula do
Estado, esta pessoa pode ganhar muito dinheiro e pode ter um padrão de vida muito
alto, mas não se pode dizer que é exemplo de um processo de formação de uma
burguesia nacional. Se ela perder o poder, se ela perder a proteção do poder, perderá
tudo, o que não é o caso de verdadeiros burgeses. Os portugueses impediram a formação
de uma verdadeira burguesia nacional, tinham medo de um possível “Novo Brazil” que
ia pedir independência. A camada social dos novos assimilados não foi uma pequena
burguesia por mais que alguns, individualmente, tenham conseguido o equivalente;
foram mais artesãos, pequenos comerciantes, e sobreduto funcionários dos serviços e
públicos. Vou dar um exemplo fora de Angola: no Zaire do tempo de Mobutu Seseko,
houve uma altura em que Mabutu teve a segunda maior fortuna do mundo nas
classificações. A questão que se coloca é: será que o Mobutu era um capitalista, um
burguês no sentido sociológico da palavra? Não, ele era, sim, um bandido de alta
patente, uma pessoa autocrática que desviava as ajudas internacionais, que roubava ao
seu povo, mas que não tirava a riqueza da organização da produção ou do comércio, não
foi um empresário de sucesso, foi um individuo que fez fortuna como ditador. Isto não é
ser burguês e não sei se os filhos do Mobutu, mesmo tendo frequentado grandes escolas,
tiveram capacidade de se tornar burgueses. Não sei se os filhos da nomenclatura
angolana actual vão poder formar uma burguesia, isto é, produzir e apoderar-se de
riqueza, independentemente de proteção da cúpula do Estado. Sinceramente, não sei.
Será que, com o passar do tempo, isto poderá vir a acontecer? Talvez. Hoje, quem capta
as fontes de riqueza dos diamantes e do petróleo, são aqueles que estão próximos da
presidência. Isto em si não é bem o modo de produção capitalista, ainda que totalmente
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
integrado no sistema-mundo capitalista, isto é típico dos fenómenos neopatrimoniais.
Mas, ao mesmo tempo, o Estado angolano deve, para integrar-se ao capitalismo mundial
(para vender seu petróleo, etc.), ser um Estado universalmente aceite e aceitável
(mesmo que o capitalismo mundial aceite ditaduras, etc.) nas suas formas de integração
internacional. Os comportamentos neopatrimoniais dentro do Estado angolano são
actualmente necessários para a reprodução social alargada da elite justamente porque
esta elite social não é uma burguesia. Portanto, esta elite precisa do controlo do
aparelho do Estado porque, se ela perde os privilégios do Estado, perde tudo, não tendo
capacidade de fazer a manutenção do seu status social com as suas próprias empresas
independentemente da proteção presidencial.
C.F. – Se calhar, estas elites poderão nesta senda dizer que não se pode escrever a história
por antecipação, professor....
Michel Cahen – É verdade! Daí o fato de eu ter questionado anteriormente: “não sei se os
filhos da nomenclatura angolana vão ser capazes de produzir uma burguesia”. Poderá
acontecer que parte deles possa conseguir obter capitais de forma “normal”, ganhando
dinheiro não por via de aproximação com a presidência da República, mas porque serão
capazes de organizar eles próprios uma verdadeira produção de bens e serviços, em
concursos livres e sem ser por via de tráficos de influências. Isto não é só em Angola;
este fenómeno é visto na maioria dos países africanos já que quase todos estes Estados
conhecem comportamentos neopatrimoniais. Não existe neles uma verdadeira
burguesia local e, quando existe, é muito fraca. A alta elite não ganha o seu dinheiro
com base em moldes de produção capitalista, mas tem como forma de assegurar os seus
proventos o domínio do aparelho do Estado. Isto constitui um atraso considerável na
democratização dos países. Uma pessoa que é membro de Frelimo e vive da Felimo, ou
alguém que seja membro do MPLA e que vive deste partido ou de outro partido no
poder em África não pode nem pensar sequer em perder o poder porque isso significaria a
morte social dela.
C.F. – Falando de novo de Christine Messiant, ela fez a sua tese de doutoramento em 1984,
que a consagrou como uma das mais respeitadas especialistas da sociologia e história
política de Angola. Terá sido por influência do professor Georges Balandier que, por sua
vez, teve uma relação muito proxima com Mário Pinto de Andrade?
Michel Cahen – Não sei bem desta história, mas é verdade que o director de tese da
Christine Messiant foi o Georges Balandier, grande amigo do Mário Pinto de Andrade.
Conheceram-se em Paris, onde Mário Pinto de Andrade viveu vários anos. Como sabe,
havia em Paris a famosa revista Présence Africaine e, num determinado dia, o Georges
Balandier e o Mário Pinto de Andrade cruzaram-se lá e aí cimentaram amizade. Mas não
sei se terá sido por isso que Christine se predispôs a estudar Angola. De qualquer forma,
o Balandier foi um grande especialista da história do reino do Congo, o que também tem
muito a ver com a história portuguesa e com a história de Angola já que o território
angolano tal como está hoje tem uma parte do antigo reino do Congo. Christine
Messiant foi uma marxista.... isto é, aquela parte dos marxistas que não aceitou o
partido único de Estaline. Ela acompanhava os processos de luta na América Latina, a
Revolução cubana, a incursão do Che Guevara na Bolívia... ela se empenhou muito em
estudar estes fenómenos. Tendo estudado as lutas de libertação social do lado da
América latina, em países já independentes, ela quis estudar as lutas de libertação
anticolonial do outro lado do Atlântico. Ela escolheu Angola provavelmente porque, em
1974, havia a revolução portuguesa que provocara uma incrível onda de simpatia por
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parte da juventude francesa anti-imperialista – revolução que era, ao mesmo tempo, de
conteúdo anti-fascista, mas também era uma revolução colonial. Toda aquela juventude
anti-imperialista que tinha estado solidária com os vietnamitas na luta contras os
americanos e com os palestinos na luta contra Israel sentiram uma enorme simpatia
pelo que acontecia em Portugal e nas suas antigas colónias. A revolução portuguesa
surgiu como revolução europeia de um lado e como revolução africana do outro lado.
Muita gente da minha geração fez uma espécie de “turismo revolucionário” em
Portugal para “ver a Revolução”, a revolução portuguesa surgindo como um exemplo de
revolução com a qual sonhava aquela juventude anti-imperialista. Penso que foi por isso
que a Christine Messiant, que já tinha em mente as experiências das lutas armadas na
América Latina, sentindo fortemente as influências da revolução portuguesa, decidiu
trabalhar sobre uma luta de libertação numa colónia portuguesa. No início, ela queria
escrever um artigo sobre a guerra de libertação, mas como ela era marxista, não quis
ficar só por estudar os acontecimentos, queria estudar também os fundamentos sociais
e acabou por se dedicar a uma análise de longa duração da sociedade angolana, que
acabou por ser a sua tese de doutoramento, cuja direcção foi do Goerges Balandier, sob
o título Angola 1961. Histoire et société, les prémisses du mouvement nationaliste (Angola 1961.
As premissas do movimento nacionalista). Ela acabou por se encurralar porque levou
largos anos a estudar a sociedade angolana, sem poder escrever a história da guerra de
libertação que ela tanto queria. Mas depois de defendida a tese em 1984 (que só foi
publicada depois da sua morte, em 2006, e só em francês, infelizmente), ela estudou
muito as guerras civis angolanas, com a mesma vontade de estudar não somente os
acontecimentos mas, sobretudo, as raízes sociais, a historicidade ao longo do período de
duração das mesmas.
A primeira vez que a Christine veio para Luanda foi em 1979 e era um gesto de coragem
para uma mulher sozinha, sem conhecer ninguém, quando não havia hotéis e nem táxis
no Aeroporto de Luanda. Ficou por cá três meses, teceu algumas amizades que lhe
foram fieis para toda a vida, nomeadamente com Ruy Duarte de Carvalho, o
antropólogo angolano. Em 1979, era muito pouco tempo depois da tentativa do golpe de
1977 de Nito Alves, que fez aproximadamente quinze mortos, e da terrível repressão
dele, que fez acerca de quinze mil mortes. Christine Messiant não analisou isto só em
termos de fracções dentro do MPLA; claro que eram fracções dentro do MPLA, mas o
que estava por detrás destas fracções? Quais eram as bases sociais daquelas fracções?
Foi justamente por isso que ela analisou o Nitismo como uma expressão política dos
novos assimilados, isto é a camada jovem urbana dos anos 1960 e 1970 em Luanda do
final do período colonial. Embora num contexto diferente das velhas famílias crioulas
que tinham criado o MPLA, entraram com entusiasmo na luta para apoiar o MPLA em
1974-1975, mas muitas vezes ficaram chocados pelo comportamento arrogante, já com
privilégios, da elite. Isto criou um grande descontentamento e uma vontade de renovar
o MPLA, de se fazer um verdadeiro poder popular – esta foi a base social do Nitismo, um
fenómeno populista radical que falhou. Mas o que se questiona é: por que é que houve
aquela repressão sangrenta e desmedida, militarmente inútil? Por trás daqueles
acontecimentos trágicos, parte das antigas famílias crioulas que fundaram o MPLA teve
muito medo de perder o poder, a favor destas novas camadas sociais de assimilados. O
medo não era só político mas sobretudo social: perder o poder para camadas muito mais
baixas. A Christine Messiant sempre desenvolveu suas análises com base na
historicidade dos fenómenos.
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Depois, sobre a guerra civil, ela não teve qualquer simpatia pela UNITA, mas nunca
considerou a UNITA como bandidos armados. O que ela condenava era o facto da UNITA
ter tido o apoio do Apartheid da África do Sul – um fato indubitável –, mas a UNITA era
um produto da história angolana, tal como a FNLA, um produto do movimento anticolonial angolano e não um grupo fantoche. Foi por isso que a Christine estudou o
processo de sucessão das guerras civis como contexto que permitiu a criação do Estado
angolano de hoje, ultra centralizado, com uma captação das riquezas cada vez mais
centralizada na elite dirigente. No início não era bem um neopatrimonialismo: até
1982/83, os dirigentes tinham privilégios, mas eram “privilégios legais”, abertos,
transparentes. Um ministro, um membro do Comité Central naquele tempo, tinha
privilégio, mas não era porque este era próximo ao presidente, mas sim em virtude da
função, por ser ministro, ou por ser membro do Comité Central – era isto que dava
privilégios, era um paternalismo autoritário [...] Esses privilégios funcionais e de
categoria [...] não se podiam capitalizar individualmente. Por exemplo, o facto de ter
um bom apartamento, o facto de ter acesso à loja dos dirigentes quando o povo ficava
nas bichas, nas lojas populares, isto era privilégio, mas isto não dava para produzir uma
capitalização que permitisse construir uma torre de vinte pisos. Depois de 1982-83,
começou-se a se criar alguns privilégios como as famosas “caixas de cervejas”: o direito
de receber dólares pelo preço do cambio oficial e depois trocá-los a preços
perfeitamente especulativos. Isso já era resultado dos privilégios, mas, depois, com a
virada económica do final dos anos 1980 e, sobretudo, da década de 1990, a confluência
do antigo paternalismo autoritário – que dava privilégios sem ser propriamente
corrupção – e a virada neoliberal criou uma autoestrada para aceder ao
neopatrimonialismo, muito diferente dos privilégios do tempo do paternalismo
autoritário porque o que dá privilégio não é mais a alta função, mas a proximidade com
presidente e sua família. Assim, há casos de pessoas que não têm nenhum cargo oficial,
bastando ser sobrinho de algum governante próximo ao presidente da República para já
ter vantagens que podem lhe dar muito dinheiro recapitalizável.
C.F. – Mas Christine Messiant fez também um estudo que tem a ver com a data real da
fundação do MPLA, que não é de 1956, mas sim de 1960 – nesta esteira, também é
coincidente à pesquisa desenvolvida por Carlos Pacheco. Quais foram as bases que ela
utilizou para chegar a tal conclusão?
Michel Cahen – Bem, devemos fazer uma distinção entre o fenómeno sociológico do
MPLA, isto é, a camada que se foi agrupando desde o início dos anos 1950, que muitas
vezes fazia uma resistência, mas mais no âmbito da literatura e da poesia. Havia gente
que já frequentava a escola secundária, que já trocava correspondências internacionais
com escritores brasileiros: este pessoal já existia desde o inicio dos anos 1950 em
Luanda e poucas outras cidades costeiras, e é este pessoal que vai produzir o MPLA,
nomeadamente, com Viriato da Cruz. Este formou, em primeiro lugar um partido
comunista angolano, que foi uma coisa muito pequena, mas que existiu. Depois,
justamente, pensou-se numa coisa mais ampliada e isto deu lugar ao PLUA, ao MINA,
que nunca tiveram, de facto, uma existência estabilizada, sendo, sobretudo, siglas que
demonstravam um pensamento que estava evoluindo. O historiador francês René
Pélissier já há muito tinha lançado a hipótese – embora sem as fontes suficientes para ir
mais longe naquela altura (1975) – de que a ideia da frente da libertação alargada existia
na mente daquele pessoal no início do ano 1956 – tanto mais que exitia um modelo, a
frente de libertação nacional argelina – mas que o MPLA não teria sido criado nesta
data. Pois, ideia sim, incluindo um “Manifesto do MPLA” que não se sabe bem se foi de
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1956 ou mais tarde1, mas outra coisa é falar da organização de uma forma mais
estruturada. A Christine Messiant, o Carlos Pacheco e eu mesmo trabalhámos nos
arquivos da PIDE que infiltrava todos estes núcleos, daí o facto de haverem muitas
prisões regulares. Ora, como explicar que, nesses arquivos policiais, nunca se encontra a
sigla MPLA antes de 1960? Fala-se do partido comunista angolano, do PLUA, do MINA;
fala-se de muitas siglas, mas a do MPLA, essa, não existe. Como explicar isso? A PIDE
teria infiltrado tudo salvo o MPLA? Mas, então, como explicar as prisões? O facto é que a
decisão da criação do MPLA como estrutura organizada (embora o projeto já existisse),
foi em Tunes, em 1960, quando de uma conferência internacional de solidariedade onde
era estratégico não deixar aparecer só a FNLA.
Mas o mais interessante não reside nisso, reside na pergunta: por que é que isso é tão
polémico em Angola? Se aquele pessoal existiu, se o projecto existiu, se foi um processo,
por que é que isto provoca imediatamente acérrimo debate? É tão polémico porque é
uma luta de legitimidade. Com efeito, a FNLA, a antiga UPNA, União dos povos de Norte
de Angola, depois UPA, União dos Povos de Angola, esta sim foi criada muito antes, em
1953. A batalha de legitimidade reside com certeza em saber quem foi o primeiro, mas
sobretudo no facto de quem aparece em segundo lugar, esta divide o movimento de
libertação, porque já existia anterioridade e unidade (direi mesmo melhor: unicidade
porque já temos, desde o princípio, uma ideologia de partido único e a luta é para saber
quem será o partido único): são os dois elementes ultrasensíveis do assunto no âmbito
político. Mas do meu ponto de vista de historiador, isto não tem grande importância,
esta é uma batalha de “politiquice”. Em termos históricos, o MPLA como organização é
de 1960, mas vem de um processo de politização da intelectualidade angolana, tal como
aconteceu com a FNLA, que também não é de 1953, porque de 1953 é a UPNA. Estes dois
processos ocorreram quase ao mesmo tempo em meios “geo-sócio-étnicos” diferentes:
foi a maturação pós Segunda Guerra mundial de jovens camadas modernas, muito
diferenciadas porque Angola era uma área colonial heterogénea na medida em que a
economia colonial nunca permitira a unificação dos mercados tal como Marx estudou
no caso da Europa, para criar espaços sócio-económicos coerentes. A função económica
de uma colónia era de fazer comércio e dar matéria prima para metrópole, e nunca
unificar o mercado. Assim, havia pelo menos três principais trajectórias sociais em
Angola.
Primeiramente, havia em Luanda um complexo que eu chamaria de “crioulidade lusombundu” que permitia a existência de uma certa elite mestiça e negra, apesar do
avanço do branqueamento colonial. Com efeito, como a capital Luanda sempre foi a
capital – ao contrário da situação moçambicana, da Ilha de Moçambique para LourençoMarques, ou bissau-guineense, de Cacheu para Bissau –, pois não houve em Angola o
mesmo processo de profunda marginalização das antigas elites coloniais luso-africanas
da primeira idade colonial. A antiga crioulidade ficou lá, onde era a capital, e isso
permitiu que estas elites tivessem uma certa proeminência social: eram pessoas que
falavam português, maioritariamente católicos, quando protestantes eram
maioritariamente evangelistas, tinham o domínio da cidade moderna e do
relacionamento com o aparalho colonial de Estado.
Em segundo, havia as elites da FNLA, maioritariamente (mas não exclusivamente)
oriundas das etnicidades kongo e que, depois do boom do café e da espoliação massiva
das terras pelos colonos portugueses, tinham fugido pelo então Congo belga. Na capital
Kinshasa, socializaram-se como comerciantes, outros ficaram camponeses mas com
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
certa ligação com a cidade. Enfim, a elite era ligada a um ramo da família real kongo.
Também eram maioritariamente católicos, mas quando protestantes, eram
maioritariamente baptistas.
Em terceiro, havia os herdeiros dos antigos reinos produtores de cereais, que já no final
do século XIX produziam para o comércio, provenientes do planalto central. Eram de
facto uma elite rural, quase que não falavam português, eram na sua maioria católicos,
e, quando protestantes eram maioritariamente congregacionistas americanos. Foi
nessas camadas que a UNITA, depois da sua saída da FNLA, recrutou a maioria da sua
base social.
Nota-se aqui o percurso de três elites que são tão modernas umas como as outras. Não
concordo com as pessoas que dizem que a elite do MPLA era mais moderna do que as
elites da FNLA ou da UNITA; não é verdade, são modernidades alternativas. Mas são
trajectórias que nunca se cruzaram antes da independência de Angola, eram pessoas
completamente diferentes. Definitivamente, não é somente uma questão de etnicidade,
para não dizer tribal. A etnicidade entra aqui numa constelação de factores, sociais,
culturais, religiosos, políticos, geográficos... em suma, eram mundos diferentes. Pode-se
dizer que não eram da mesma nação angolana – o que é o mesmo que dizer que não
havia nação angolana alguma –, mas toda gente queria o poder em Luanda porque
Luanda é a capital do país, o lugar do poder de Estado. É de reparar que ultrapassada
rapidamente a fase da UPNA que, talvez, sonhasse com a reconstituição do Reino de
Congo, e fora o caso especial de Cabinda, estas três elites (crioulidades luso-mbundu,
elite kongo, camadas modernas ovimbundu) nunca reivindicaram a partição da área
colonial angolana de modo a formar países separados; foram aceitas as fronteiras e o
espaço colonial – mas eram três elites que queriam o poder para elas próprias. Por
exemplo, quando das primeiras eleições de 1992, um dos slogans da UNITA de Savimbi
era “É a nossa vez” – quer dizer “foi a vez do MPLA”, isto é, na mente dela, o partido dos
filhos mestiços dos colonos que tiveram o poder durante dezesseis anos –, agora é a
“nossa vez”, significa um projecto obviamente nada democrático. O projeto do Savimbi
era tomar o poder e afastar os outros, isto é, fazer exactamente a mesma coisa que o
MPLA fez. A FNLA já não tinha mais a mesma importância, mas não duvido que a
ideologia dela, no momento da sua força, fosse exctamente a mesma. Mesmo o período
da transição (1974-1975) não foi de pluralismo, uma vez que os acordos de
descolonização não reconherecam o livre direito de formar partidos. Só três partidos
eram reconhecidos; era o que chamei o “tripartismo único” que, rapidamente, como se
viu, voltou à forma clássica do partido único. Pois, FNLA, MPLA, UNITA foram três
trajectórias diferentes de modernidade, portadoras, por assim dizer, de três Angolas
para um mesmo país. Só uma prática democrática poderia resolver pacificamente a
questão, mas a democracia não era a ideologia de nenhum e deve-se reparar que, na
altura, a comunidade internacional inteira (não só os países ditos comunistas) apoiava o
modelo do partido único, proclamado como a melhor ferramenta para “produzir a
nação”. Tanto sangue produziu tal ideologia!
C.F. – Teve acesso ao Manifesto de Viriato da Cruz de 1956 que, segundo se diz, foi o
documento embrionário da criação do MPLA?
Michel Cahen – “Documento embrionário da criação do MPLA”, com certeza, mas o que
quer dizer “embrionário”? Não trabalhei pessoalmente nisso, mas o René Pélissier já
falou deste projecto, que é um projeto de movimento popular de libertação de Angola como
conceito, mas não proclama, nem anuncia que foi formada uma organização. Ao
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
contrário acaba-se com um apelo : “Tudo pela criação, pelo fortalecimento e pela
multiplicação por toda a Angola de organizações patrióticas! [...] Viva o invincível
MOVIMENTO POPULA[R] DE LIBERTAÇÃO DE ANGOLA”. Na mente de Viriato da Cruz, o
movimento era isso, a “multiplicação por toda a Angola de organizações patrióticas”, no
plural, isto é um movimento social para desenvolver, ainda não uma frente já organizada e
proclamada2.
C.F. – Gostava de ouvir o seu comentário em relação à expressão usada por Christine
Messiant, “multipartidarismo sem democracia”, para descrever o poder do MPLA depois de
1992 e sobretudo depois de 2002, e sobre a questão do famoso artigo sobre a FESA...
Michel Cahen – São duas questões diferentes. Vou começar pela segunda.
Christine Messiant teve que ficar cinco anos sem ir a Angola porque ela havia escrito
um artigo em francês na revista Politique Africaine sobre a Fundação Eduardo dos Santos
(FESA), no qual demonstrou como o surgimento, o funcionamento e as funções desta
fundação eram típicas do neopatrimonialismo3. Com efeito, formalmente, a FESA era (e
é) distinta da pessoa do Presidente, mas já a primeira questão que se colocava era a de
saber como a FESA ganhava o seu dinheiro? Era pelas contribuições “voluntárias” das
empresas estrangeiras ou nacionais: se uma empresa quisesse ter um contrato, era
“melhor” dar dinheiro à fundação. Provavelmente, a fortuna pessoal do presidente
estava também no financiamento. Mas assim, em vez de as “dádivas” (de facto,
impostos “especiais”) das empresas entrarem no orçamento da República, em vez de as
obras sociais concluídas serem obras do governo da República, isto é, em vez de
responder aos direitos dos cidadãos (direito à saude, direito à alfabetização, direito à
habitação, etc.), nesses esquemas “fundacionais”, o que é realizado aparece como uma
dádiva, como um favor da pessoa do Presidente e não como respeito aos direitos que a
República tem o dever de assegurar aos cidadãos. Quando o Estado constrói um Hospital
ou uma escola, ele está à respeitar o direito do povo à saúde e à alfabetização; quando
uma fundação oferece em nome de uma alta personalidade obras do mesmo tipo, ela faz
o favor, ela não respeita um direito – é um comportamento típico de clientelismo (eu
direi pessoalmente, tratando-se de um dirigente estatal, de neopatrimonialismo). No
caso do Estado respeitar os seus deveres, reforça-se a cidadania; no caso de uma
fundação oferecer favores ao povo, reforça-se a dependência. A Christine procurou
demonstrar isso naquele seu artigo na revista francesa. Ora, o que aconteceu foi que,
sem o conhecimento dela e ainda menos sem autorização dela, um jornal da oposição
em Angola publicou este artigo (aliás, numa tradução não muito boa – a publicação do
artigo em tradução fiel nunca foi realizada em Angola, apesar dos meus esforços, por
exemplo há poucos anos, quando propus uma nova tradução a uma revista angolana de
ciências sociais, que não aceitou). No dia seguinte da publicação em Angola, o diário
português Público publicou estratos. A partir deste momento, o assunto era, por assim
dizer, internationalizado, e foi um escândalo porque era uma descrição directa e
pessoal do comportamento do Presidente da República de Angola. Aí, a embaixada de
Angola em França fez perceber a Christine Messiant que seria melhor ela ficar
doravante sem vir para Angola porque se ela solicitasse um visto corria o risco de ser
oficialmente proibida de entrar e, quando se tem uma proibição oficial, fica muito difícil
removê-la. Então, ela ficou quatro ou cinco anos sem colocar os pés em Angola, o que
não lhe impediu de continuar a trabalhar sobre este país, até porque ela encontrava-se
com muitos angolanos que iam a Paris, ou a Lisboa, para onde ela viajava com
regularidade, além de ter muitas boas fontes. Houve um aspecto bom nesta
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
impossibilidade de seguir directamente a actualidade angolana, pois ela teve o tempo
de voltar a estudos históricos: assim, ela conseguiu fazer um estudo profundo sobre o
pensamento político de Viriato da Cruz4.
A propósito do “multipartidarismo sem democracia”, é preciso voltar atrás. Christine
Messiant tinha feito uma análise muito pormenorizada sobre o processo de paz em
Angola a partir de 1991, ficando muito severa em relação a isso porque sempre ela
soube que os acordos de paz não haviam de ser respeitados. Toda a gente sabia que a
guerra civil havia de recomeçar. Os americanos apoiaram os acordos de paz em 1991
porque acreditavam que a UNITA ia ganhar, mas na verdade foi o MPLA que ganhou. Os
europeus, com destaque para Rússia, Portugal, e França, apoiaram o MPLA, etc. Mas
essas negociações, bem como todas as outras que se sucederam até a derrota militar da
UNITA em 2002, foram negociações de pacificação, mas nunca de democratização: estas
negociações nunca levaram em consideração o papel da sociedade civil, [...] que estava
ganhando novo impulso depois da chacina repressiva do golpe de Estado do Nito Alves
que calara, por vinte anos, [...] vozes discordantes. Sobretudo do lado das igrejas, coisas
aconteciam, por exemplo com o COIEPA, que exprimiu uma atitude corajosa para a
época ao dizer que a UNITA não se tratava de “bandidos”, e que a solução deveria ser
política, que deveria haver negociações. Mas a comunidade internacional não deu
importância a isso: as negociações levaram apenas em conta a partilha do poder, uma
reintegração da UNITA, sem que houvesse qualquer cláusula que permitisse realmente a
desconcentração do poder. Pode ter havido um multipartidarismo formal, um sistema
político formal, mas se o partido no poder continua a utilizar todos os proventos do
Estado, haverá sempre um grande desequilíbrio em relação aos outros partidos já que
os outros vivem apenas das dádivas dos seus militantes quando o MPLA vive com os
proventos do Estado. Um exemplo frequente disso, em Angola bem como em
Moçambique, é o partido no poder fazer reuniões, no horário de trabalho, com os
funcionários públicos – que de facto são obrigatórias –, como se o facto de fazer parte
do aparelho de Estado fosse fazer parte do partido. De facto, há uma fusão muito
acentuada, porém ninguém, nomeadamente na comunidadade internacional pública e
empresarial, se ofusca frente a uma prática que deveria ser perfeitamente proibida.
Numa campanha eleitoral não devia utilizar-se os carros do Estado, nas campanhas
eleitorais não devia aceitar-se dinheiro proveniente das empresas públicas. Isto cria um
desequilíbrio muito forte, que é perfeitamente uma consequência da maneira como
foram feitos os vários acordos de paz, que visaram sempre uma pacificação, ignorando
voluntariamente as potencialidades da sociedade civil. Hoje em dia, a manutenção de
um partido político que já não é único, mas é “ultra hegemónico”, não é uma postura
democrática. Deve-se reparar que a oposição, hoje, também tem a sua responsabilidade
porque, como sabe, está completamente dividida, além de não ser credível para com a
população. Obviamente há este outro problema, que estas divisões são reforçadas pelo
riquíssimo poder de compra do partido dominante.
C.F. – Ainda sobre Christine Messiant, ela foi uma pessoa muito “perfeccionista” de tal
forma que depois de ter escrito um artigo científico de cem páginas, podia achar que não
estava conforme e, pura e simplesmente, apagava a totalidade do texto do computador... O
caso extremo foi quando, depois de ter acabado a sua tese de doutoramento, achou que
não estava como ela queria e atirou-a para o caixote de lixo. Foi o seu marido que a salvou
e a depositou na Universidade…
Michel Cahen – É verdade! Pessoalmente, testemunhei outro caso. Ela havia escrito um
artigo de cem páginas – já não me lembro sobre que assunto era – com o qual não ficou
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
satisfeita e, ao invés de guardá-lo para melhor reflectir e recuperar algumas ideias, ela
pura e simplesmente apagou… Eu fiquei furioso! É verdade que ela não considerava a
sua tese de doutoramento como suficientemente boa. Era de facto uma muito boa tese,
mas ela achava que não era boa! Ela pensava que muitas coisas deviam ser alteradas e,
por isso, nunca quis publicar antes de modificá-la. Só que ela nunca o fazia, entrando
em outros estudos, outras batalhas... Teria sido muito lamentável se ela não fosse
publicada, porque uma tese, mesmo que não seja completamente perfeita, é sempre útil
aos investigadores e, neste caso, nomeadamente aos investigadores angolanos. Mas ela
não queria e, assim, só aqueles que conseguiam encontrar um dos poucos exemplares
mimeografados puderam lê-la e sempre pensaram que era uma tese excelente e
indispenável para a história de Angola. Foi só depois dela estar a padecer de cancro que,
por influência muito forte da sua grande amiga angolana Maria da Conceição Neto, e do
seu amigo suíço Didier Péclard, ela aceitou publicar a tese no estado inicial.
Infelizmente, isto só se concretizou a título póstumo. Retomando o caso que
testemunhei pessoalmente, eu vivo em Bordeaux, no sudoeste de França, e ela vivia em
Paris. Eu estava farto da super-exigência dela e disse-lhe: “Christine, tu vens para
minha casa, ficas uma semana, vamos fazer uma entrevista de uma semana inteira,
vamos gravar, assim eu fico com a gravação e, mesmo que tu não estejas satisfeita, eu
fico com os registos”. Ela aceitou, mas só ficou dois dias e depois desistiu. Era de facto
muito perfeccionista, por isso é que ela escreveu poucos livros. Ela podia ter publicado
dez livros, porém ela só escreveu um livro que é a tese dela. Brigitte Lacharte e eu,
depois da morte dela, juntámos parte dos seus artigos sobre Angola pós-colonial,
publicando assim dois volumes, infelizmente disponível só em francês: L’Angola postcolonial. 1. Guerre et paix sans démocratisation. 2. Sociologie politique d’une oléocratie, [Angola
pós-colonial. 1. Guerra e paz sem democratização. 2. Sociologia política de uma
oleocracia], com prefácio de Georges Balandier (Paris, Karthala, 2008). É uma colectânea
de vinte artigos dela. Ela escreveu muitos mais, mas sempre achava que não era
suficiente para escrever o grande livro da sua vida, que seria sobre Angola pós colonial.
Ela não aceitava o ditado francês que diz que “o melhor é inimigo do bom”, isto é,
quando esperamos sempre pelo melhor, acabamos por nunca fazer nada; assim, ela
sempre atrasava com a redacção do livro sobre Angola pós-colonial, escrevendo só
artigos. Também foi quando ela soube do seu cancro e que ia morrer que ela deu
autorização para a publicação desta colectânea, que não viu.
C.F. – Que relação se pode estabelecer entre a Frelimo e o MPLA de um lado, e a Renamo e
a UNITA de outro lado?
Michel Cahen – Há muitos pontos comuns e há também muitos pontos perfeitamente
diferentes porque os dois países são completamente diferentes, apesar de terem em
comum o facto de terem sido colonizados por Portugal. MPLA, por exemplo, é produto
da maturação anti-colonial e política de uma das elites angolanas – já falamos de pelo
menos três elites: do complexo crioulo luso-kimbundu de Luanda, Viana, Malanje, das
elites Bakongo do Norte, e dos herdeiros dos reinos ovumbundu do centro e sul. O MPLA
surge como uma das expressões da maturação anti-colonial e tinha uma legitimidade
certa, mas nunca se pode dizer que desde o seu início era o único representante
legitimo do povo angolano. Aliás, foi por isso que a guerra de libertação em Angola foi
desde logo uma guerra civil entre os três movimentos – e claro que os portugueses
tentaram manipular todo aquele processo. No caso da Frelimo, é completamente
diferente. Porquê ? Temos que analisar a longa duração histórica, o velho Moçambique,
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
o Moçambique quinhentista, seiscentista, setecentista ou oitocentista que está situado
naquilo que é hoje o Norte de Moçambique, a Ilha de Moçambique, o antigo Sultanato
de Angoche, a cidade de Chinde, a cidade do Tete no rio Zambeze, toda aquela área que
fazia parte da zona económica do Índico. Nunca se deve esquecer que, até 1753,
Moçambique era uma dependência do vice-reino de Goa, não sendo directamente uma
colónia de Portugal, mas sim uma colónia de Goa. As formações sociais dessas velhas
colónias que, no caso de Angola, seriam as velhas crioulidades de que já falámos,
estavam, no caso de Moçambique, na Ilha de Moçambique, na parte baixa da Zambézia,
no rio Zambeze, numa zona onde havia um complexo de portugueses, luso-africanos,
indianos, luso-indianos, luso-árabes, etc. Eram elites não capitalistas, mas eram elites
coloniais. Ao contrário de Angola, onde Luanda sempre foi a capital, em Moçambique,
com o longo declínio durante os séculos XVIII e XIX e com o fim do tráfico de escravos
muito mais tardio do que em Angola, o governo lisboeta achou bem que, para
restabelecer a curto prazo a rentabilidade da colónia, seria bom transferir a capital da
Ilha de Moçambique para Lourenço Marques (hoje Maputo), na Delagoa Bay, um porto
natural fantástico e que podia vir (e veio) a ser o terminal do caminho de ferro que
serviria para transportar o carvão do Transval. Assim, o Banco de Portugal decidiu
organizar estruturalmente a dependência de Moçambique para com o capitalismo sulafricano – já muito mais desenvolvido. Mas a transferência do aparelho de Estado da
Ilha de Moçambique para Maputo marginalizou profundamente as antigas crioulidades;
é como se em Angola se tivesse decidido que Luanda já não seria a capital e que a nova
capital seria, por exemplo, na Jamba – não digo a Jamba por causa da UNITA, mas
porque é o extremo Sul do país, um lugar completamento descentrado. Assim, as
antigas elites coloniais moçambicanas foram profundamente marginalizadas, social e
politicamente. Surgiram duas cidades que nunca existiram anteriormente, que são as
cidades da Beira – que faz a ligação com a Rodésia do Sul – e a cidade de Lourenço
Marques – na época, uma pequeníssima aldeia que fazia ligação com a África do Sul –,
que foram cidades principalmente brancas. Obviamente, aos poucos foi penetrando a
população africana, mas a elite africana de lá era muito reduzida; esta nova elite não
tinha ligação com as antigas elites do Norte, não tinha assim tradição, foi produzida
unicamente pelo capitalismo colonial de Lourenço Marques (e Beira). Mesmo a nova
elite de Beira foi subalternizada em relação ao desenvolvimento de Lourenço Marques,
daí o seu descontentamento, tanto entre os brancos como entre os mestiços e negros
assimilados beirenses. Por sua vez, os antigos núcleos da elite do Índico tornaram-se
uma espécie de “lumpen-elites”, muito fracas social e culturalmente, sempre
descontentes da supremacia do Sul, e que não foram capazes de criar importantes
movimentos de libertação. De fato, a única elite capaz de criar um movimento
anticolonial forte foi a elite do extremo sul que fez aliança com os camponeses
Macondes no extremo norte, na fronteira com o Tanganica (hoje Tanzânia), mas a elite
e a sua cúpula política foram nitidamente do extremo Sul. O que é muito importante
reparar é que o facto da Frelimo surgir como um único movimento não significa que ele
conseguiu agrupar e unificar uma diversidade de movimentos: ao contrário, essa
unicidade veio da inexistência de outros grupos expressivos, isto é, veio de uma grande
fraqueza da maturação anticolonial em Moçambique, oriunda do desequíbrio histórico
criado por Portugal quando este decidiu modificar a geopolítica do país e
institucionalizar a dependência de Moçambique para com a África do Sul. A fraqueza da
unicidade anticolonial dentro de uma única frente, a Frelimo, foi verdade, tanto mais
que em certas partes do país, como na Zambézia, a vontade de parar com o colonialismo
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
não era uma vontade separatista, mas, ao contrário, assimilacionista: obrigar Portugal a
deixar de considerar Moçambique como uma colónia, obrigá-lo a fazer o que dizia; a
saber, que Moçambique era uma província da nação portuguesa. Assim, frente ao
anticolonialismo separatista da Frelimo, continuou a existir, muito mais tarde do que
em Angola, um anti-colonialismo integracionista que visava, se podemos comparar,
fazer de Moçambique um território como as Antilhas francesas de hoje, que são
institucionalmente parte integrante da metrópole. Assim, ao contrário da versão oficial
da história ditada pela Frelimo, não houve verdadeira unificação das diversas
trajetórias históricas: houve sim a grande fraqueza das trajetórias históricas que não
fossem as do Sul.
Já se pode notar que se o MPLA é produto de uma parte das elites, a Frelimo também é,
mas não se compara. O MPLA não foi único, havendo outros movimentos, e a Frelimo foi
(quase) a única, mas não foi única por unificação e sim por fraqueza do movimento
anticolonial. O paradoxo é que, de uma certa maneira, pode-se dizer que o MPLA foi
fundado por velhas elites que podem ser comparadas às velhas elites marginalizadas do
Norte de Moçambique, isto é, elites da primeira idade colonial, anteriores ao
capitalismo colonial. Mas as primeiras estavam na capital e puderam ficar dentro da
esfera do Estado moderno (embora colonial), enquanto que as de Moçambique foram
completamente marginalizadas, com resultados políticos, pois, contrários: ao passo que
as velhas elites crioulas de Luanda eram o chão social de surgimento do MPLA, as velhas
elites marginalizadas de Moçambique seriam, mais tarde, pelo menos em parte, o chão
social de apoio à Renamo. E também, de uma certa maneira, pode-se dizer que a Frelimo
foi fundada por “novos assimilados” de Lourenço-Marques, socialmente bem distintos
das velhas elites que fundaram o MPLA.
Aliás, os contextos de nascimento da UNITA e da Renamo foram contextos
completamente diferentes. O ponto comum foi terem se revoltado contra um regime
dito “marxista-leninista”, e terem o apoio da África do Sul. Mas mesmo assim, houve
grandes diferenças porque a UNITA é um movimento que faz parte da história
anticolonial de Angola, que resultou de uma cisão da FNLA em 1965 com quadros
Ovimbundus e Cabindas. Pode-se dizer que a UNITA foi traidora porque colaborou com
os serviços secretos de Portugal para lutar contra o MPLA – sim, é verdade –, mas o
historiador também deve explicar isto de outra maneira, não como simples sacanagem
de um Jonas Savimbi. Num dado momento, a UNITA, convencida de que o MPLA era o
partido dos filhos dos colonos que ia roubar a independência (daí o nome mesmo do
movimento: União nacional para a independência total de Angola), considerou-o como
um inimigo pior que os próprios portugueses que um dia haviam de ir embora, quando
os “filhos de colonos” (MPLA) iam ficar. De qualquer maneira, isto não muda o fato de
que a UNITA faz parte da história do anticolonialismo angolano. Não é o caso da
Renamo: esta surge já depois da independência, com poucos dissidentes da Frelimo –
pessoas que haviam sido expulsas –, alguns poucos antigos membros negros e brancos
do exército colonial, e alguns civis portugueses que ajudaram no início. A Renamo, nos
princípios, é um pequeno fenómeno meramente militar que foi utilizado pelos serviços
secretos da Rodésia, não só para combater em Moçambique, mas também para
combater a guerrilha Zimbabweana que se instalara no interior de Moçambique.
Portanto, o nascimento da Renamo e o da UNITA são completamente diferentes. Mesmo
o contexto regional é diferente. Com efeito, até à grande batalha de Kuito Cuanavale
(1985), os sul africanos quiseram realmente vencer o MPLA por causa da presença das
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
tropas cubanas. Enquanto que do lado da Frelimo, que nunca quis soldados cubanos
embora tivesse alguns conselheiros, [...] a África do Sul queria fazer pressão sobre a
Frelimo para ela mudar, mas nunca quis derrubar a Frelimo, nem tão pouco fez alguma
intervenção militar do tamanho da que houve em Angola. A África do Sul apoiou militar
e tecnicamente a UNITA em nível largamente superior ao que ela consagrou à Renamo.
A UNITA tinha tanques, a UNITA tinha a um dado momento uma aviação, era quase uma
guerra entre dois exércitos clássicos; a batalha do Kuito Cuanavale não foi uma batalha
entre o exército de um Estado e uma guerrilha, foi uma batalha entre dois exércitos –
diria que foram até quatro, com os cubanos apoiando o MPLA e a África do Sul a UNITA
– enquanto que a África do Sul apoiou a Renamo somente com dinheiro, aparelhagem
de rádio e disposição de avionetas para transferência dos dirigentes. A Renamo nunca
teve armamento pesado, os armamentos da Renamo eram basicamente as Kalashinikov
e as RPG 5 ou 7 que os guerrilheiros assaltavam dos quartéis da Frelimo. O exército da
Frelimo sempre teve um grau de combatividade muito fraco e sempre que eram
atacados pelos guerrilheiros da Renamo, muito facilmente fugiam. Lembro aqui o
próprio chefe dos serviços secretos (CIO) da Rodésia, Ken Flower, que pensava ter criado
uma organização fantoche que deveria servir para lutar contra a Zanu e a Zapu5. Ele
reuniu-se com a cúpula da Renamo quando o fim da Rodésia se aproximava e propôs
exfiltrar os homens da Renamo rumo à África do Sul (que mantinha então o Apartheid)
porque, no seu ver, tudo estava a acabar e a única coisa que ele podia fazer era
transferí-los. Mas ficou muito admirado quando, depois da sua proposta, os dirigentes
da Renamo responderam, dizendo: “não senhor, nós agradecemos mas nós vamos
mesmo para o interior de Moçambique, não vamos sair de Moçambique”. Uns ficaram
na África do Sul para se beneficiarem de treinos e, em 1983, a Renamo atravessou o rio
Zambeze e entrou pela Zambézia, que se tornou a principal região de apoio. Assim, no
meu entender, foi paradoxalmente porque a Renamo teve um apoio de baixo nível da
África do Sul que procurou tecer relações com o campesinato – foram relações de
violência mas não só, pois uma parte do campesinato moçambicano, muito descontente
com a política da Frelimo, sobretudo por causa do aldeamento obrigatório, do não
respeito às religiões e às autoridades tradicionais e, no sector da Educação, pelo facto de
enviarem os jovens para Cuba sem avisar os pais –, acreditou poder utilizar essa
estrutura de guerrilha vinda do exterior para se proteger da actuação da Frelimo e de
sua modernização autoritária que não trazia para eles nenhum progresso social. A
Renamo, de certa forma, exprimiu uma profunda crise no seio do campesinato
moçambicano. A UNITA, no seu início, foi um fenómeno político, mas se militarizou de
forma tão acentuada que quando houve a primeira tentativa de pluralismo em 1991,
sempre que entrasse para as cidades, era quase como se tivesse aberto um quartel;
quando o Savimbi falava nos comícios, ia com a sua farda militar e a arma no coldre, o
que fazia medo às pessoas. Assim, dos três sectores da opinião pública angolana, um que
de qualquer forma havia de votar para o MPLA, o outro sector que havia de votar para a
UNITA, e um terceiro que estava hesitar, ao final, dois sectores – o primeiro e o terceiro
que tomou medo da UNITA – votaram para o MPLA que venceu – com certeza com
fraudes, mas, ao meu ver, provavelmente sem que isso revertesse os resultados.
Resumindo, a trajetória da UNITA vai do político (quando da sua criação) para o militar
(quando do massivo apoio militar sul-africano) e ela não conseguiu “recivilizar-se”
(utilizando a palavra “civilizar” no sentido literal da palavra, daquilo que é “civil”), não
conseguiu tornar-se novamente um partido civil em 1991-1992, para não falar da
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
retomada da guerra até a sua derrota militar de 2002. A trajetória da Renamo é
completamente diferente: no início, ela foi um fenómeno meramente militar, só que
tecendo relações com o campesinato, tornou-se num fenómeno politico-militar e,
depois do final da guerra, com os acordos de Roma de 16 de Março de 1992, ela
conseguiu “civilizar-se” rapidamente e obteve resultados que surpreenderam muitos
dos observadores que ainda pensavam que se tratava de grupos de “bandidos armados”
pouco expressivos: entre 1994 e 1999, quase quatro moçambicanos entre dez votaram
nela. O fim da guerra também é diferente: equanto que em Angola trata-se da derrota
militar de um dos beligerantes, o que faz dos acordos de Luena uma rendição, em
Moçambique a volta da paz resulta de uma longa negociação entre os dois beligerantes.
Eu pude pessoalmente observar o processo de “civilização” da Renamo: os guerrilheiros
foram facilmente desmobilizados mercê de um pequeno subsídio da Onumoz (Operação
das Nações Unidas em Moçambique), uma parte dos generais entrou para o exército
unificado e os outros ficaram como dirigentes do partido, mas o que pude observar logo
em 1994 é que a grande maioria dos quadros e a esmagadora maioria dos militantes
eram civis. A “civilização” deste grupo militar foi alcançada. Depois de 1999, a Renamo
enfraqueceu, mas realmente ela conseguiu transformar-se num partido político civil,
embora um partido político politicamente fraco. Com efeito, na Renamo, uma pessoa
com a 4ª classe já era um quadro superior porque a quase totalidade da elite está com a
Frelimo ou, pelo menos, vive no mundo social da Frelimo (nas cidades, etc.) e a Renamo
carecia tragicamente de pessoal qualificado. Esta situação é o produto do processo
histórico que já frisei, a saber, que a Renamo exprimiu as marginalidades
moçambicanas, as pessoas que vivem fora da esfera do Estado moderno. Além disso,
apesar do partido ser civil, a mentalidade do presidente da Renamo, Afonso Dhlakama,
ficou muito militarista: não é um partido onde se discute sequer a mínima iniciativa
local, é um partido onde toda a gente está sempre a espera de orientações, espera por
ordens, e Dhlakama foi um péssimo dirigente político. A Frelimo jogou muito bem com
isso, nomeadamente recuperando grande parte das autoridades tradicionais que
tinham se alinhado com a Renamo durante a guerra civil, e usando e abusando do
neopatrimonialismo uma vez que o crescimento económico permite distribuir,
seletivamente, mais proventos. E realmente, mesmo que continuando muito
desequilibrado regionalmente, este crescimento económico permitiu o surgimento de
infraestruturas, como estradas, água, luz, escolas, tudo isto que obviamente é sentido
como um progresso pela população. A Frelimo, tal como o MPLA, tornaram-se partidos
ultra-hegemónicos, com um multipartidarismo sem democracia: o resultado, sim, podese dizer que é o mesmo, mas quando entra-se pela história, estes partidos, quer a
Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a UNITA, são sobretudo partidos profundamente
diferentes. [...]
NOTAS
1. O “Manifesto do MPLA” foi escrito por Viriato da Cruz, sem que ele tivesse indicado uma data.
Foi Mário de Andrade quem acrescentou no documento, à mão, em francês, a data de “Décembre
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“Quer a Frelimo e o MPLA, quer a Renamo e a Unita, são partidos profundamente...
1956”. Tal manifesto está online no site da Fundação Mário Soares. (1956), “Manifesto do MPLA
(manuscrito)”,
CasaComum.org,
Fundação
Mário
Soares,
<http://hdl.handle.net/11002/
fms_dc_83814 (2013-1-16)>.
2. Veja nota anterior. Acontece que na versão manuscrita de Viriato da Cruz, “organizações” está
escrito no plural, mas na versão datilografada do manuscrito, “organizações” foi posto no
singular (“organização”) mas... o adjetivo ficou no plural (“patrióticas”). Não sei quem
dactilografou o manuscrito original de Viriato da Cruz.
3. Christine Messiant, “La Fondation Eduardo dos Santos. À Propos de l’investissement de la
société civile par le pouvoir angolais”, Politique Africaine (Paris, Karthala), n° 73, Março 1999 pp.
82-102, online: <http://www.politique-africaine.com/numeros/pdf/073082.pdf>. Este texto nunca
foi publicado na integra, em português, em Angola (cf. infra).
4. C. Messiant, “Viriato da Cruz em Pequim: as provações de um revolucionário angolano. Esboço
de um percurso e tentativa de interpretação. Ensaio”, in M. Laban (ed.), Viriato da Cruz. Cartas de
Pequim, Luanda, Chá de Caxinde, 2004, pp. 215-360.
5. Isto é, as guerrilhas zimbabuenas instaladas dentro de Moçambique.
AUTORES
MICHEL CAHEN
Historiador, com Doutoramento em História e habilitação pela EHESS (Paris, França),
investigador do Institut d’Études Politiques de Bordeaux e do Centre National de la Recherche
Scientifique (CNRS, Paris), foi Director-adjunto do LAM e integrou o Comité National de la
Rechercher Scientifique. As suas áreas de investigação são a História contemporânea da
colonização portuguesa em África e História dos PALOP. Foi fundador e redactor da revista
Lusotopie. É autor dos livros Le Portugal bilingue. Histoire et droits politiques d’une minorité linguistique
: la communauté mirandaise (Rennes, 2009), La dialectique des secrets. Histoire et idéologie dans
l’accouchement sous X et l’adoption plénière (Paris, 2004), La nationalisation du monde. Europe, Afrique,
l’identité dans la démocratie (Paris, 1999), Os outros. Um historiador em Moçambique (Bâle, 1994), Les
Bandits. Un historien au Mozambique (Paris, 1994), Ethnicité politique. Pour une lecture réaliste de
l’identité (Paris, 1994), Mozambique. Analyse politique de conjoncture. 1990 (Paris, 1990) e Mozambique.
La révolution implosée. Etudes sur douze années d’indépendance (1975-1987) (Paris, 1987). É editor ou coautor dos livros Imperial Migrations. Colonial Communities and Diaspora in the Portuguese World
(Basingstok, 2012), L’Angola post-colonial. 1. Guerre et paix sans démocratisation. 2. Sociologie politique
d’une oléocratie (Paris, 2008), Pays lusophones d’Afrique. Sources d’information pour le développement.
Angola, Cap-Vert, Guinée-Bissau, Mozambique, São Tomé e Príncipe (Paris, 2001) e Vilas et Cidades:
Bourgs et Villes en Afrique lusophone (Paris, 1989).
[e-mail: m.cahen@sciencespobordeaux.fr]
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