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WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 1 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Conceitos de Inteligência 1 – Inteligência: Dinâmicas Operacionais “Intelligence is concerned with that component of the struggle among nations that deals with information. Intelligence seeks to learn all it can about the world. But intelligence can never forget that the attainment of the truth involves a struggle with human enemy who is fighting back and that truth is not the goal but rather only a means toward victory.” Abraham Shulsky, Silent Warfare, 1992, p. 197. Esse primeiro capítulo discute as principais dinâmicas operacionais que caracterizam as atividades de inteligência. Sem isso, qualquer discussão sobre os requisitos de agilidade e transparência no processo de institucionalização dos serviços de inteligência ficaria prejudicada. Como avaliar, por exemplo, se as comissões de supervisão congressual atualmente existentes são adequadas sem que se tenha uma noção razoável sobre o que, afinal, tais comissões deveriam estar supervisionando? Como saber se os governantes poderão receber as informações solicitadas e consideradas vitais sem se ter uma noção conceitual mínima sobre os diversos métodos, procedimentos, fontes, tecnologias e técnicas através dos quais os serviços de inteligência coletam, analisam e distribuem informações? Além de estabelecer pontos de partida para os demais capítulos, o texto que segue examina um problema específico: se a dinâmica operacional das atividades de inteligência é caracterizada por interações conflitivas entre atores que buscam suplantar os procedimentos de segurança do adversário e obter informações sem o seu consentimento ou conhecimento, como então essa dinâmica delimita as expectativas sobre a agilidade das atividades de inteligência no mundo contemporâneo? O capítulo está dividido em cinco seções principais. Na primeira seção a atividade de inteligência é definida de forma restritiva como um tipo de conflito que lida com a obtenção/negação de informações. Uma vez obtidas as informações de fontes diversas e através de meios e técnicas especializadas, uma segunda dimensão característica das atividades de inteligência é a produção e disseminação de análises sobre problemas e atores considerados relevantes pelos usuários em seus processos de formulação, decisão e execução de políticas públicas (policymaking) nas áreas de política externa, defesa nacional e provimento de ordem pública. Ainda na primeira seção, discute-se brevemente a nebulosa fronteira entre o trabalho de inteligência e outros tipos de atividade informacional em dinâmicas conflitivas (especialmente as chamadas informações de combate). A segunda seção apresenta o chamado ciclo da inteligência, uma noção bastante utilizada na literatura para descrever as principais características operacionais da atividade. Apesar de chegar a ser dividido em até dez etapas ou “passos” diferentes dependendo do autor, a idéia de um ciclo na atividade de inteligência refere-se essencialmente a duas etapas, a primeira, de coleta de informações, sendo caracterizada pela especialização funcional entre as diversas disciplinas de coleta segundo fontes singulares, e a segunda, caracterizada pela integração das informações obtidas de fontes diversas em análises e relatórios disseminados para os usuários finais. As cinco áreas mais importantes de especialização na coleta de inteligência estão dividas entre fontes humanas (humint), inteligência obtida a partir da interceptação de comunicações e de sinais eletromagnéticos (sigint), inteligência obtida a partir de imagens (imint), inteligência extraída de medidas e identificação de uma variedade de outros sinais (masint) e a inteligência obtida a partir da vasta diversidade e quantidade de fontes ostensivas, impressas ou eletrônicas (osint). As características operacionais dessas disciplinas especializadas de coleta, bem como os problemas de integração entre a fase de coleta e processamento de informações e a fase posterior de análise e disseminação dos relatórios e produtos analíticos, discutidos nessa segunda seção do capítulo, permitirão ao leitor ter uma visão mais sistemática do que fazem, afinal, os serviços de inteligência. Entretanto, a apresentação mais ou menos convencional do ciclo da atividade de inteligência deixa de lado algo decisivo: a dialética existente entre inteligência e segurança. Assim, a terceira seção do capítulo procura explicitar os principais níveis do conflito entre segurança informacional (infosec) e inteligência (intelligence), a partir dos quais torna-se compreensível a chamada área de contrainteligência (counterintelligence). Feito isso, a quarta seção do capítulo trata da polêmica noção de WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 1 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA operações encobertas (covert operations) e de sua relação problemática com as demais dimensões da atividade de inteligência. Finalmente, na conclusão do capítulo procura-se sintetizar quais seriam as expectativas razoáveis sobre a utilidade geral da atividade de inteligência para os usuários finais, sejam eles governantes no poder executivo, parlamentares, diplomatas, chefes de polícia ou comandantes militares. 1.1 - O que é inteligência? Há dois usos principais do termo inteligência fora do âmbito das ciências cognitivas. Uma definição ampla diz que inteligência é toda informação coletada, organizada ou analisada para atender as demandas de um tomador de decisões qualquer. Para a Ciência da Informação, inteligência é uma camada específica de agregação e tratamento analítico em uma pirâmide informacional, formada, na base, por dados brutos e, no vértice, por conhecimentos reflexivos. A sofisticação tecnológica crescente dos sistemas de informação que apóiam a tomada de decisões tornou corrente o uso do termo inteligência para designar essa função de suporte, seja na rotina dos governos, no meio empresarial ou mesmo em organizações sociais. Nesta acepção ampla, inteligência é o mesmo que conhecimento ou informação analisada. Certamente é possível teorizar sobre a natureza da informação e sobre o impacto dos fluxos totais de informação na economia, no Estado e na vida social de modo geral. Porém, a inteligência de que trata esse trabalho refere-se a conjuntos mais delimitados de fluxos informacionais estruturados. Nesse caso, uma definição mais restrita diz que inteligência é a coleta de informações sem o consentimento, a cooperação ou mesmo o conhecimento por parte dos alvos da ação. Nesta acepção restrita, inteligência é o mesmo que segredo ou informação secreta. Mantive ao longo da pesquisa uma forte ancoragem na definição restrita de inteligência, aplicando-a ao estudo dos serviços governamentais que atuam nessa área. Ignorar a definição restrita implicaria perder de vista o que torna afinal essa atividade problemática. No mundo real, porém, as atividades dos serviços de inteligência são mais amplas do que a espionagem e também são mais restritas do que o provimento de informações em geral sobre quaisquer temas relevantes para a decisão governamental. Isso coloca uma dificuldade muito concreta, não meramente semântica, para uma conceituação precisa da atividade de inteligência que permita diferenciá-la, simultaneamente, da noção excessivamente ampla de informação e da noção excessivamente restrita de espionagem. Para superar essa discrepância entre a definição restrita e o leque de atividades concretamente desenvolvidas pelos serviços de inteligência, é preciso levar em conta uma segunda dimensão do conceito restrito de inteligência que tomarei como ponto de partida para esse trabalho. Enquanto a primeira dimensão destaca os meios especiais utilizados para coletar informações sem a cooperação e/ou o conhecimento de um adversário, essa segunda dimensão é analítica e diz basicamente que inteligência diferencia-se da mera informação por sua capacidade explicativa e/ou preditiva. A combinação dessas duas faces ou dimensões fundamentais do conceito de inteligência traduz-se numa organização característica do processo de trabalho aí envolvido. Essa organização foi descrita de forma mais precisa por Michael Herman (1996) como um processo de trabalho seqüencial, separado entre um estágio de coleta que é especializado segundo as fontes e meios utilizados para a obtenção das informações (single-sources collection), seguido de um estágio de análise das informações obtidas a partir das diversas fontes singulares e de outros fluxos não estruturados (allsources analysis). Apesar da tensão potencial entre as duas dimensões do conceito (operacional e analítica), não me parece que as associações históricas entre inteligência e os aspectos mais ásperos da política sejam meramente idiossincráticas, acidentais ou espúrias. A associação persistente entre inteligência e conflito é forte justamente porque as duas dimensões do conceito são indissociáveis na práxis das organizações encarregadas do provimento desse tipo de informação e conhecimento. Tanto as dificuldades práticas quanto os critérios para uma diferenciação da atividade que justifique essa associação entre inteligência e conflito podem ser demonstrados através de duas delimitações epistêmicas, cada uma delas baseada em uma das faces do conceito. Em relação à dimensão analítica do conceito, a diferença entre as análises e estimativas elaboradas no âmbito das atividades de inteligência e quaisquer outras análises de órgãos de assessoramento técnico governamental está nos fins a que se destinam as análises de inteligência: aumentar o grau de conhecimento sobre os adversários e os problemas que afetam a segurança estatal e nacional WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 2 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA (situational awareness). Diferentemente de institutos de geografia e estatística ou de centros de pesquisa econômica aplicada, serviços de inteligência estão voltados para a compreensão de relações adversariais e por isso a maioria de seus alvos e/ou problemas são principalmente internacionais e “difíceis”. Inteligência lida com o estudo do “outro” e procura elucidar situações nas quais as informações mais relevantes são potencialmente manipuladas ou escondidas, onde há um esforço organizado por parte de um adversário para desinformar, tornar turvo o entendimento e negar conhecimento. Os chamados serviços de inteligência de segurança (security intelligence) têm muitos alvos puramente domésticos, mas mesmo esses compartilham a condição de “outro” aos olhos do arcabouço constitucional e da ordem política constituída. O argumento aplica-se mesmo ao estudo de tendências, fatos e problemas não diretamente relacionados a um ator específico. Nem todos os problemas nacionais e internacionais possivelmente relevantes para um governo são adequadamente tratados por serviços de inteligência. Mesmo que a lista de temas sobre os quais as agências precisam informar seus usuários seja crescente, indo desde aspectos culturais de outras sociedades até detalhes sobre tecnologias de uso dual, novos itens deveriam ser incorporados à agenda de trabalho das agências de inteligência somente quando essas tivessem condições de “agregar valor” em áreas que não são de sua especialidade, mas nas quais suas fontes e métodos fossem julgados necessários pelos usuários civis e militares. Enfim, quanto mais ostensivas (públicas) as fontes de informação, quanto menos conflitivos os temas e situações, menos as análises de inteligência têm a contribuir para o processo de tomada de decisão governamental. Esse é um critério que realça o valor de uma definição restrita de inteligência. A fronteira do trabalho analítico em inteligência precisa ser traçada em relação a alguma conexão com a relevância dos conteúdos analisados para os processos de decisão governamental em política internacional, defesa nacional e provimento de ordem pública. Em relação à dimensão operacional do conceito, a diferença entre a coleta de informações para fins de produção de inteligência e outras operações governamentais que envolvem a aquisição sistemática de informações sobre atores e problemas relevantes para a segurança nacional é mais nebulosa, embora não impossível de ser traçada. Duas situações típicas em que se pode visualizar essa diferença são as próprias relações diplomáticas entre Estados e as operações militares. Normalmente, os países mantêm relações diplomáticas e cada Estado soberano permite que as representações formais dos demais Estados em seus territórios enviem relatórios para seus governos e países de origem. É certo que oficiais de inteligência usam cobertura diplomática, assim como é possível que certas fontes mais confidenciais dos embaixadores superponham-se às fontes dos espiões. Entretanto, as diferenças entre uma atividade e outra são relativamente claras, especialmente no que diz respeito ao grau de fragilidade das fontes diplomáticas ou secretas de informação em relação às contramedidas de segurança dos alvos. A maioria das fontes de um diplomata são ostensivas e não cessam o fluxo informacional quando o governo do país anfitrião aumenta seus procedimentos de segurança, o que tende a ocorrer com as fontes dos oficiais de inteligência. Basta dizer que diplomatas, adidos militares ou inspetores internacionais suspeitos de espionagem são declarados personae non grata, expulsos do país de hospedagem e devolvidos aos seus países de origem com base na Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961). Os esforços de obtenção de informações conduzidos através de canais diplomáticos e através de operações de inteligência são reconhecidos como diferentes pelos atores envolvidos, principalmente com base nos distintos meios utilizados. No caso das operações militares, talvez seja mais adequado falar de um continuum entre informações de combate e inteligência. Ainda assim, mesmo em situações de combate algumas especificidades marcam a atividade de inteligência. A mais óbvia é o grau de controle que as organizações de inteligência têm sobre cada tipo de fluxo informacional. No caso das informações de combate, tratam-se normalmente daqueles dados obtidos em função do contato direto das tropas com o inimigo - e que são utilizados imediatamente para alerta operacional ou para a tomada de decisão sobre ações imediatas. Tais dados são controlados pelos staffs de operações (e não de inteligência) das estruturas de comando das forças. Ainda que alguns desses dados possam mais tarde ser integrados aos fluxos informacionais que alimentam a etapa de produção e disseminação de relatórios de inteligência, as chamadas informações de combate (combat informations) permanecem uma atividade distinta das atividades de inteligência. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 3 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Apesar desse critério pragmático sobre quem controla os meios de coleta e os fluxos informacionais resultantes, nem sempre é fácil aplicar o critério. Na Guerra do Golfo Pérsico de 1991, a coalizão sob mandato das Nações Unidas era apoiada por satélites e analistas norte-americanos controlados pela CIA e pelas agências de inteligência do Pentágono, além de contar com recursos comandados pelos staffs de inteligência no teatro de operações. Tanto o trabalho de inteligência quanto a gerência de informações de batalha dependia fortemente dos sistemas de controle e comando aerotransportados, como os AWACS (Airborne Warning and Control Systems) e os JSTARS (Joint Surveillance Target Attack Radar Systems), subordinados ao comando aliado no teatro de operações. Ou seja, com uma maior integração das operações militares conjuntas, o controle operacional de recursos específicos de inteligência e de informações de combate pode mudar de esfera de comando dependendo das necessidades, como no caso das unidades militares de coleta de inteligência tática empregadas eventualmente pela artilharia, ou dos satélites que transmitem imagens e/ou decodificações processadas diretamente sob demanda dos comandantes de unidades no teatro de operações. Comunicações em tempo quase-real e a crescente sofisticação dos recursos disponíveis para a obtenção de informações de combate (aquisição de alvos, alerta avançado e operações de guerra eletrônica) também contribuem para a criação de novas áreas de sombra entre inteligência e informações operacionais de combate, especialmente entre as áreas de inteligência de sinais e de operações de suporte de guerra eletrônica. Em particular, quando se trata da localização, identificação e produção de contramedidas às emissões eletromagnéticas dos radares e sistemas adversários, é muito difícil saber onde começa uma coisa e termina outra. Mesmo assim, pode-se tentar diferenciá-las. Durante a II Guerra Mundial, por exemplo, a superioridade informacional foi um fator importante para o resultado das batalhas da Inglaterra e do Atlântico. Porém, na Batalha da Inglaterra foram decisivas as informações de combate imediatamente produzidas pelos radares britânicos, enquanto na Batalha do Atlântico o fator decisivo foi o esforço anglo-americano de longo prazo na decodificação das cifras e códigos secretos alemães na área de inteligência de sinais. Recentemente, o conceito de guerra informacional (IW) passou a ser empregado para abarcar tanto a obtenção e a negação de informações de combate quanto a inteligência propriamente dita, mas trata-se ainda de uma mudança em curso. Do ponto de vista operacional, portanto, os critérios mais importantes para a distinção entre inteligência e outros tipos de aquisição de informações são o grau de intervenção humana requerido para a análise e disseminação dos dados obtidos, associado ao grau de vulnerabilidade das fontes de informação às contramedidas de segurança e à conseqüente necessidade de segredo para a proteção das atividades de inteligência. Essas características analíticas e operacionais da atividade governamental de inteligência oferecem um ponto de partida para o estudo dos processos de institucionalização desses serviços no Estado contemporâneo. Mas é necessário avançar mais, e na próxima seção serão consideradas as etapas fundamentais do chamado ciclo da inteligência. 1.2 - Ciclo da inteligência: As descrições convencionais do ciclo da inteligência chegam a destacar até dez passos ou etapas principais que caracterizariam a atividade, a saber: 1) Requerimentos informacionais. 2) Planejamento. 3) Gerenciamento dos meios técnicos de coleta. 4) Coleta a partir de fontes singulares. 5) Processamento. 6) Análise das informações obtidas de fontes diversas. 7) Produção de relatórios, informes e estudos. 8) Disseminação dos produtos. 9) Consumo pelos usuários. 10) Avaliação (feedback). Entretanto, na maior parte dessa seção serão destacadas basicamente as duas etapas fundamentais de coleta (single sources) e de análise (all- sources). A própria idéia de ciclo de inteligência deve ser vista como uma metáfora, um modelo simplificado que não corresponde exatamente a nenhum sistema de inteligência realmente existente. Por outro lado, essa falta de acuidade descritiva não é o que mais importa, pois a caracterização das atividades de inteligência enquanto um processo de trabalho complexo e dinâmico é importante para que se possa distingüir as mudanças qualitativas que a informação sofre ao longo de um ciclo ininterrupto e interrelacionado de trabalho. A principal contribuição da idéia de ciclo de inteligência é justamente ajudar a compreender essa transformação da informação e explicitar a existência desses fluxos informacionais entre diferentes atores (usuários, gerentes, coletores, analistas etc). Como a atividade de inteligência é ela mesma uma função subsidiária dos processos de formulação, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 4 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA decisão e implementação de política externa, de defesa e segurança pública, pode-se pensar também o ciclo da inteligência como um sub-conjunto de atividades do chamado “ciclo das políticas públicas”: um ciclo formado pelo surgimento de problemas (issues), o estabelecimento de uma agenda, a formulação de políticas e linhas de ação alternativas, os processos de tomada de decisão, a implementação e a avaliação. Nesse sentido, as informações que os serviços de inteligência coletam e analisam para os usuários deveriam ser determinadas pelas necessidades e prioridades daqueles mesmos usuários. Idealmente, os responsáveis pela tomada de decisões, sejam eles políticos eleitos, ministros, altos burocratas civis, comandantes militares ou chefes de polícia, identificam lacunas e necessidades informacionais, estabelecem prioridades e as transmitem para os dirigentes da área de inteligência. Esses, por sua vez, transformam aquelas necessidades percebidas pelos usuários em requerimentos informacionais para os setores responsáveis pela coleta e análise. Dado que mesmo os recursos dos países mais ricos são escassos, os responsáveis pelas diversas disciplinas de coleta precisam planejar a utilização dos meios técnicos e fontes humanas disponíveis para produzir a máxima sinergia possível e atender às demandas dos policymakers. O gerenciamento dos meios técnicos de coleta, dependendo das plataformas utilizadas (aviões, estações fixas de interceptação, satélites etc), é uma atividade especializada e altamente complexa. É importante destacar essa diferença entre o planejamento geral da coleta de informações e o gerenciamento dos meios técnicos, principalmente porque a atividade de inteligência tende a ser cada vez mais um tipo de produção massiva, com algumas linhas de produção operando 24h e certos produtos sendo gerados praticamente sem interferência humana (nas áreas de elint e masint por exemplo). As funções de direção, planejamento e gerenciamento constituem etapas preliminares e relativamente invisíveis (a despeito de sua importância) para o que costuma ser considerado tradicionalmente como inteligência: a coleta de informações (inclusive através de espionagem) e a produção de análises sobre temas e alvos. Antes de passar para essas etapas mais visíveis do processo de trabalho em inteligência, é preciso acrescentar ainda um comentário. Um dos problemas com a metáfora de ciclo de inteligência é que muitos autores assumem acriticamente que o ciclo é completamente dirigido pelos requerimentos informacionais dos usuários finais. Isso é problemático justamente porque induz expectativas exageradas sobre o tipo de racionalidade que orienta os processos decisórios governamentais e sobre o próprio papel da inteligência. Como lembram Michael Herman (1996: 283-304) e Mark Lowenthal (2000: 40-52), na maioria das situações os policymakers não têm tempo nem clareza para especificar os tipos de informações que eles necessitam ou irão necessitar para quais processos de tomada de decisão e implementação. Nesses casos, as listas de demandas tendem a ser genéricas (por exemplo, uma solicitação de informes sobre a “situação” na Colômbia), ou são formuladas sem que os oficiais de inteligência tenham uma idéia precisa sobre a finalidade da informação no âmbito mais geral dos desafios enfrentados pelo governo (por exemplo, um requerimento sobre o desempenho dos helicópteros de transporte de tropas de um determinado fabricante russo, sem que se comunique à área de inteligência que aquele relatório é necessário para a tomada de decisão referente às alternativas de ação em relação ao conflito na Colômbia). Ou seja, a natureza incerta da política e a pressão de padrões de pensamento derivados das experiências passadas mais ou menos recentes tendem a tornar os “requerimentos” dos usuários algo muito menos estruturado do que a suposição inicial do modelo. Esses requerimentos formais legitimam e fornecem uma autorização para que as agências mobilizem seus meios para a produção de inteligência sobre determinado problema ou alvo, mas estão longe de ser o único fator a determinar o ciclo da atividade de inteligência. Caberia, portanto, aos responsáveis pela área de inteligência utilizar um conjunto de ferramentas organizacionais e analíticas para completar, detalhar e priorizar aquelas demandas, transformando-as em requerimentos informacionais mais efetivos. Embora seja imprescindível que as agências de inteligência atuem nessa especificação para evitar uma “falha de requerimentos” que comprometeria todo o ciclo, há aqui um risco evidente de “intromissão” e autonomização das agências em áreas que seriam prerrogativas dos usuários (principals). Mesmo levando em conta tais riscos, Michael Herman (1996:288) sustenta que um papel pró-ativo das agências é preferível e compatível com a manutenção de um nível alto de responsividade, desde que acompanhado de procedimentos de avaliação sistemática da satisfação dos usuários com os produtos de inteligência recebidos e de mecanismos de controle externo. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 5 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Uma analogia freqüentemente utilizada na literatura é com as grandes empresas de notícias, tais como a Reuters, Associated Press ou CNN. Assim como essas empresas, mas levando em conta as especificidades técnicas e políticas, as agências de inteligência seriam estruturadas a partir de um ciclo informacional governado simultaneamente por iniciativa (coleta e análise de informações que o órgão avalia que seriam úteis para o usuário – ‘pushes’) e responsividade (coleta e análise de informações solicitadas diretamente pelos usuários – ‘pulls’). Segundo Lisa Krizan (1999:13-20), mesmo com uma correta utilização de ferramentas voltadas para a identificação das necessidades dos usuários (e.g. taxonomia de problemas, listas de questõeschave e matriz de tempestividade e escopo), é preciso ter em mente que os fluxos informacionais associados aos requerimentos apresentam uma grande complexidade. Além de requerimentos estruturados a partir das necessidades dos diversos tipos de usuários finais e que são comunicados para as agências de coleta pelos responsáveis nacionais da área de inteligência, é preciso considerar ainda que muitos desses usuários comunicam suas necessidades diretamente às agências de coleta. E que os próprios analistas de inteligência solicitam não apenas informações sobre os requerimentos atuais dos usuários, mas também um leque mais amplo de informações necessárias para a atualização de bases de dados e/ou a compreensão mais ampla de alvos e problemas sobre os quais os analistas estão trabalhando. Finalmente, é preciso observar que as agências de coleta também trabalham a partir de oportunidades criadas por eventuais falhas de segurança dos adversários. Portanto, as limitações procedimentais, cognitivas e mesmo a escassez de recursos mostram que o chamado ciclo da atividade de inteligência depende muito mais da iniciativa das próprias agências de inteligência do que a metáfora de um ciclo iniciado e dirigido por requerimentos formais dos usuários indicaria à primeira vista. Afinal, como também destaca Mark Lowenthal (2000:42), as “falhas de requerimento” ocorrem não apenas quando os usuários são incapazes de transmitir suas necessidades com clareza, mas principalmente quando as agências falham em perceber as necessidades cambiantes dos usuários e não respondem de forma ágil, seja por inércia burocrática ou por incapacidade de interagir adequadamente com os policymakers e comandantes. Seja como for, para além da questão dos requerimentos ainda estão os problemas relacionados aos recursos e meios de coleta, que afinal definem que informações podem ou não ser obtidas. 1.2.1 – Coleta e Processamento: As atividades especializadas de coleta absorvem entre 80% e 90% dos investimentos governamentais na área de inteligência nos países centrais do sistema internacional. A maioria desses recursos é dedicada às plataformas, sensores e sistemas tecnológicos de coleta e processamento de informações, especialmente os satélites no caso dos Estados Unidos, Rússia, China, França e outros poucos países que operam frotas desse tipo. O volume de dados brutos e informações primárias coletadas é muito maior do que os relatórios efetivamente recebidos pelos usuários finais. Segundo uma estimativa dos anos 1980, somente 10% das informações coletadas chegaria a sair dos muros dos sistemas de inteligência. Ocorre algo semelhante na indústria petrolífera, onde a estrutura de custos também reflete o risco e os investimentos mais pesados na prospecção e extração, enquanto o valor vai sendo agregado ao produto nas diversas etapas de refino. Os meios de coleta e as fontes típicas de informação definem disciplinas bastante especializadas em inteligência, que a literatura internacional designa através de acrônimos derivados do uso norteamericano: humint (human intelligence) para as informações obtidas a partir de fontes humanas, sigint (signals intelligence) para as informações obtidas a partir da interceptação e decodificação de comunicações e sinais eletromagnéticos, imint (imagery intelligence) para as informações obtidas a partir da produção e interpretação de imagens fotográficas e multiespectrais, masint (measurement and signature intelligence) para as informações obtidas a partir da mensuração de outros tipos de emanações (sísmicas, térmicas etc) e da identificação de “assinaturas”, ou seja, sinais característicos e individualizados de veículos, plataformas e sistemas de armas. Além dessas disciplinas, que envolvem tanto fontes clandestinas quanto ostensivas, quando a obtenção de informações exclusivamente a partir de fontes públicas, impressas ou eletrônicas, essa atividade de coleta é então chamada de osint (open sources intelligence). Vejamos brevemente cada uma dessas disciplinas. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 6 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Humint A fonte de informação mais antiga e barata são as próprias pessoas que têm acesso aos temas sobre os quais é necessário conhecer. O acrônimo em inglês que designa essa disciplina (humint) é um eufemismo tipicamente norte-americano, incorporado ao jargão internacional porque evita o uso do termo espionagem, muito mais pesado do ponto de vista legal e político. O acrônimo também é utilizado para indicar que a inteligência obtida a partir de fontes humanas está longe de resumir-se aos arquétipos da espionagem. É preciso diferenciar basicamente dois tipos de atores nessa área: os oficiais de inteligência, ou seja, aqueles funcionários de carreira que trabalham para um serviço de inteligência e são responsáveis pelas operações de coleta de informações, e suas fontes, algumas das quais são agentes. Uma confusão bastante comum acontece porque tende-se a chamar ambos os atores relevantes de espiões. Embora a espionagem seja considerada crime grave em qualquer ordenamento jurídico contemporâneo, as penalidades para um oficial de inteligência estrangeiro dirigindo operações em território nacional são muito diferentes do que a pena por traição, aplicada a um cidadão ou residente permanente que esteja passando informações classificadas (secretas) para uma potência estrangeira. Do ponto de vista das fontes, pode-se utilizar aqui a noção de “pirâmide” de sensitividade, quantidade e valor informacional na área de humint, desenvolvida há alguns anos por Michael Herman (1996:6166). Segundo Herman, a profissionalização e o desenvolvimento de técnicas e habilidades específicas para obter sistematicamente informações de pessoas desenvolveu-se sistematicamente ao longo dos últimos 150 anos (nesse caso, o “tradecraft” ou os “segredos do ofício” são algo literais). As atuais organizações civis e militares de humint são responsáveis pela espionagem propriamente dita, mas também por uma variedade de fontes não clandestinas. Na base da pirâmide de humint encontram-se as fontes menos glamourosas, com acesso às informações de menor sensitividade e valor isolado. Tais informações, no entanto, por sua abundância e informalidade ajudam a montar o quebra-cabeça representado por um alvo ou problema. Serviços de inteligência e de segurança mantêm programas sistemáticos de entrevistas (debriefings) com pessoas que têm acesso a países ou áreas “negadas” ou difíceis, em relação às quais podem ser úteis as informações de turistas e viajantes ocasionais, especialistas acadêmicos, contatos de negócios ou mesmo refugiados e indivíduos oriundos de minorias oprimidas. Em situações de guerra, uma fonte importante de informações são as próprias populações de áreas ocupadas e os prisioneiros de guerra (POWs) interrogados pelas unidades de inteligência das forças armadas. Em nenhum desses casos as fontes são agentes formais do serviço de inteligência e tais programas tendem a ser conduzidos por outros oficiais da organização, não pelos responsáveis pelas operações de espionagem propriamente ditas. Porém, na medida em que se passa da exploração relativamente passiva do que as fontes já sabem para uma tentativa mais ativa de solicitar certos tipos de informações (tasking), isso significa certa progressão para cima na pirâmide. Nessa camada intermediária de fontes encontram-se os informantes ad hoc, exilados políticos, partidos de oposição etc. O grau de clandestinidade nos contatos com esse tipo de fonte pode variar, indo desde a abordagem formal para o provimento de uma informação específica, até a manipulação das fontes e a obtenção de informações sem que o alvo tenha sequer consciência do relacionamento com um órgão de inteligência, muitas vezes disfarçado de contato jornalístico ou comercial. No topo da pirâmide encontram-se as fontes secretas que transmitem regularmente informações que podem não ser muito numerosas, mas tendem a ser de maior valor agregado e de alta sensitividade. Esses agentes regulares, conscientes de que espionam seu próprio governo ou organização e fornecem informações mais ou menos vitais para a segurança nacional para serviços de inteligência estrangeiros, podem ser tanto agentes recrutados pelos oficiais de inteligência quanto pessoas que se voluntariam para desempenhar tal papel (“walk-ins”). De modo geral, agentes voluntários são vistos com muita desconfiança por parte dos serviços de inteligência exterior, pois podem ser parte de operações dos serviços de contra-inteliência do país alvo e ter como missão desinformar ou infiltrar o serviço de inteligência que o aceita. Por outro lado, uma desconfiança excessiva pode impedir o acesso a uma fonte bem situada. Na verdade, os motivos pelos quais alguém começa a espionar para um adversário são bastante variados e mudam ao longo do tempo. Concordância ideológica era um fator importante no recrutamento soviético de agentes em países da NATO até depois da II Guerra Mundial, mas a maioria dos agentes mais importantes para a União Soviética nas últimas décadas da Guerra Fria espionava por dinheiro. Um declínio relativo de racionalizações WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 7 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA altruísticas e um peso crescente para compensações materiais tendeu a marcar os dois lados na medida em que a Guerra Fria avançou. Ambos os lados também utilizaram recorrentemente chantagem e pressão psicológica para recrutar agentes mais ou menos cínicos ou mais ou menos vulneráveis moralmente. Finalmente, um dos tipos mais importantes de agentes são os chamados defectors-in-place, aqueles oficiais de um governo ou líderes de uma organização que decidem mudar de lado e permanecem em suas funções fornecendo informações para seus novos controladores até que seja apanhados ou possam evadir-se. Embora os serviços especializados de humint tendam a focar sua atenção em fontes situadas no vértice dos processos decisórios e organizações mais importantes do adversário, a evidência histórica mostra que outras fontes situadas em posições menos centrais podem ser tão eficientes quanto e ainda podem garantir um fluxo de informações mais estável. Um exemplo eloqüente do uso combinado dos dois tipos de agentes foi a infiltração realizada no governo da Alemanha Ocidental por parte do serviço de inteligência exterior da Alemanha Oriental (HVA) até a década de 1970. Do ponto de vista dos serviços de inteligência responsáveis por dirigir os programas e agentes recrutados, é preciso diferenciar duas categorias básicas de oficiais de inteligência no exterior: aqueles que operam com “cobertura oficial” e os demais. Cobertura oficial refere-se à integração dos oficiais de inteligência ao corpo diplomático da embaixada ou consulado, disfarçados de adido cultural, conselheiro político, técnico, assistente do adido militar, representante do ministério da agricultura, secretário ou qualquer outro cargo governamental que dê ao oficial uma desculpa para estar naquele país e também garanta imunidade diplomática em caso de detecção de suas verdadeiras atividades, pois a lei internacional obriga que esses oficiais sejam declarados personae non grata e expulsos do país. Outras vantagens da cobertura oficial são o maior acesso às autoridades do país que está sendo espionado e a segurança fornecida pela embaixada e consulados para que os oficiais de inteligência possam manter seus arquivos e comunicarem-se com o quartel-general de seu serviço no país de origem. O oficial mais graduado dirigindo as operações de inteligência num país estrangeiro chefia a “estação” (no jargão norte-americano, ou a rezidentura, no jargão russo) local de seu serviço de inteligência. Pelo ângulo inverso, o uso excessivo de cobertura oficial facilita o trabalho das equipes de vigilância da contra-espionagem do país-alvo, limita os tipos de pessoas com as quais os oficiais de inteligência podem ter contato sem levantar suspeitas e, em casos extremos nos quais as relações diplomáticas são interrompidas, isso desestrutura o trabalho de coleta de informações. As vantagens do uso de oficiais “sem cobertura oficial” (NOCs no jargão americano, ou “ilegais” no jargão russo) estão localizadas na maior flexibilidade e eficiência das operações. Montando estórias de cobertura que podem relacionar-se a uma variedade de estratos sociais e profissionais (jornalistas, representantes comerciais, financistas, residentes estrangeiros de uma terceira nacionalidade, entomologista, membros do clero, industriais, médicos etc.), os serviços de inteligência ampliam o leque de alvos possíveis para recrutamento de agentes e informantes e dificultam o trabalho de vigilância da contra-espionagem. Por outro lado, isso pode limitar o contato com o mundo oficial, expor os quadros do serviço a um risco muito mais elevado, sem contar que a cobertura nãogovernamental exige um tempo de maturação e treinamento muito maior, assim como requisitos logísticos e comunicacionais muito mais complexos. De modo geral, inteligência obtida a partir de fontes humanas (humint) não é apenas a forma mais antiga e barata de se obter informações secretas, mas também a mais problemática. Os problemas de gerenciamento vão desde a enorme pressão sofrida por agentes recrutados, não importa o tipo de motivação que os tenha levado a espionar, até às dificuldades associadas ao controle da credibilidade da fonte e da confiabilidade/acurácia das informações. Além dos riscos representados pelas operações de contra-espionagem dos adversários, que tentam neutralizar os agentes ou então controlá-los como agentes duplos, há um risco sempre presente nas próprias fontes, tentadas a preencher certos vácuos informacionais com informações fabricadas (“paper mills”). Além de riscos de segurança e dificuldades para controlar a qualidade das informações obtidas, outras características operacionais da área de humint são derivadas dos longos processos de identificação e recrutamento de agentes, das comunicações restritas entre agentes e seus controladores e de todas as limitações cognitivas e mnemotécnicas inerentes à observação humana direta. Apesar dessas limitações, humint é insubstituível como fonte de informação. Especialmente quando se trata de descobrir as reais intenções de um ator, mensagens interceptadas (sigint) ou fotografias (imint) são evidências insuficientes. Documentos e explicações orais apresentam, ao menos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 8 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA potencialmente, um grau de compreensividade que as outras disciplinas de coleta não conseguiram até hoje obter.53 A espionagem é muitas vezes imprescindível para uma exploração eficaz de outras fontes de informações, como nos lembra o fato de que a obtenção de cópias dos livros de códigos e de materiais cifrados sempre ajudou a área de criptologia das organizações de sigint. Com base nesse traço organizacional flexível e especializado (“can do”), Michael Herman (1996:65-66) destaca a tendência das organizações especializadas em humint funcionarem como organizações multifinalitárias, indo desde a espionagem propriamente dita até o desenvolvimento pioneiro de novas formas de coleta de informações através de meios técnicos. Sigint A segunda disciplina mais antiga de coleta de informações é conhecida como inteligência de sinais ou sigint (signals intelligence). Historicamente, sigint originou-se da interceptação, decodificação, tradução e análise de mensagens por uma terceira parte além do emissor e do destinatário pretendido. Com o uso cada vez mais intenso de comunicações escritas para fins militares ou diplomáticos no mundo moderno, desenvolveram-se igualmente as disciplinas de criptografia (uso de códigos e cifras para garantir a inviolabilidade do conteúdo das mensagens) e de criptologia (a decifração e ou decodificação de mensagens interceptadas). Atualmente, a disciplina de inteligência de sinais divide-se em dois campos complementares, chamados de comint (communications intelligence) e de elint (electronics intelligence). Inteligência de comunicações, ou comint, é obtida através da interceptação, processamento e préanálise das comunicações de governos, organizações e indivíduos, excetuando-se o monitoramento das transmissões públicas de rádio e televisão, as quais caem na área de osint (ver abaixo). Além do acesso ao conteúdo das mensagens transmitidas, pode-se obter inteligência também monitorando os padrões de tráfego de mensagens entre diversos pontos (traffic analysis) e ainda através de técnicas de localização dos transmissores (direction finding - DF). Análise de tráfego e localização de transmissões são parte integrante da disciplina de comint. Por sua vez, inteligência eletrônica, ou elint, é obtida através da interceptação, processamento e préanálise de sinais eletromagnéticos não-comunicacionais, emitidos por equipamentos militares e civis, com exceção das emissões decorrentes de explosões nucleares, as quais caem na área de especialização de masint (ver abaixo). Os primeiros alvos das operações de elint foram os radares dos sistemas de defesa anti-áerea na II Guerra Mundial. Com o desenvolvimento dos mísseis e a proliferação do uso de equipamentos eletrônicos ao longo da Guerra Fria, surgiram outros alvos proritários para além dos vários tipos de radar, principalmente sistemas operacionais (aquisição de alvos, navegadores, detecção submarina, teleguiagem de armas etc.) e sistemas de comando, controle, comunicações e inteligência (C3I). De acordo com Jeffrey Richelson (1999:182-185), a facilidade com que as comunicações e/ou os sinais eletrônicos podem ser interceptados e interpretados depende de três fatores: o método de transmissão, as frequências empregadas e o uso (ou não) de medidas defensivas de segurança, especialmente criptografia. A forma mais segura de transmitir informações importantes é não transmití-las, mas políticas de “silêncio de rádio” e programas de redução das emissões esbarram nas necessidades de comunicação de organizações complexas e em falhas humanas mais ou menos inevitáveis. Num nível menos exigente, comunicações através de cabos terrestres e marítimos, especialmente cabos de fibra óptica, também são mais seguras. A interceptação desse tipo de tráfego depende do acesso físico aos cabos (“tapping”), uma operação de baixa produtividade e custos muito altos, dificultada ao extremo no caso de cabos de fibra ótica. Por outro lado, desde o advento do telégrafo sem fio, do rádio e, principalmente, das comunicações via satélite, a interceptação de sinais eletro-magnéticos transmitidos pelo ar tornou fisicamente mais simples a coleta de informações, aumentando para os alvos potenciais a importância das medidas de segurança (comsec) e a necessidade de contramedidas eletrônicas (ECM) no caso dos sistemas militares. Em função dessas medidas, as organizações de sigint enfrentam agora não apenas recursos de criptografia e de “scrambling” mais sofisticados, disponíveis comercialmente, mas também uma variedade de tecnologias, técnicas e sistemas comunicacionais de uso militar e comercial que desafiam a interceptação e decodificação. Apesar do uso crescente de comunicações corporativas através redes locais (LANs) e regionais WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 9 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA (WANs) de acesso relativamente mais difícil para os interceptadores, o volume de informações transmitido diariamente pelo ar através de bandas de frequência diversas (ELF, VLF, LF, HF, VHF, UHF, SHF e EHF) e de meios (satélites, antenas rádio etc.) que são passíveis de interceptação por sensores diversos simplesmente não tem termo de comparação e, além de gigantesco, também é igualmente crescente. Somente através da rede comercial de satélites INTELSAT (International Telecommunications Satellite Organization) passam mais de dois terços de todo o tráfego telefônico internacional, praticamente todas as transmissões internacionais de sinais de televisão, bem como a maioria das transmissões de telex, dados digitalizados, fax, e-mail, vídeo e teleconferências. Dada a disparidade de meios na área de coleta de inteligência de sinais, a capacidade de países como os Estados Unidos e, em menor escala, os demais países europeus ocidentais da NATO, Rússia e China, tende a ser muito superior do que a capacidade dos demais governos ou empresas garantirem a segurança de suas comunicações (comsec), mesmo com o barateamento das novas tecnologias de informação e comunicação (TICs). Como foi amplamente divulgado durante as investigações do Parlamento europeu em 1999 sobre o chamado Echelon, somente a rede norte-americana de dez estações fixas de vigilância das comunicações globais via satélite interceptava um volume mensal de cerca de cem milhões de mensagens, incluindo Internet, telefonia fixa, telefonia celular, transferências bancárias, transmissões de fax e outros sinais. Na verdade, considerando todos os outros sistemas e plataformas combinados, a capacidade de interceptação dos Estados Unidos é muito maior do que isso. Segundo Matthew Aid (2000:17-20), já em 1995 a agência central de sigint norte-americana (NSA) era capaz de interceptar um volume de sinais equivalente a todo o volume de informações da Library of Congress (1 quatrilhão de bits) a cada três horas de operação de suas inúmeras plataformas e sensores no mundo todo. Do ponto de vista dos governantes que utilizam tais recursos, portanto, o grande problema da área de sigint seria a falta de agilidade para processar volumes tão gigantescos de interceptações. As estimativas existentes para o caso dos Estados Unidos apontam para uma relação de um milhão de inputs para cada informação relatável. E as condições de processamento do volume de tráfego interceptado são ainda mais precárias do que a baixa proporção de material útil em relação ao volume total. Ou seja, enquanto a NSA conseguia processar 20% de tudo o que era interceptado na década de 1980, a partir da explosão das novas tecnologias (ICTs) nos anos 1990, atualmente a agência não seria capaz de processar mais do que 1% de todo o material interceptado. Processamento, decodificação, tradução, armazenamento, recuperação e disseminação de informações de sigint são áreas tão ou mais decisivas para investimento em pesquisa e desenvolvimento quanto o são as tecnologias, sensores e plataformas de coleta. Especialmente nos casos norte-americano e russo, além de grandes estações terrestres de interceptação de comunicações, também são utilizados postos de escuta nas embaixadas em capitais estrangeiras (para interceptação de comunicações oficiais de curta distância, inclusive telefonia celular), centros regionais de operações subordinados aos principais comandos militares e ainda plataformas móveis, desde aviões e drones (UAVs) até navios e submarinos equipados com sensores e pessoal especializado na coleta de sigint. Desde a década de 1960, porém, nenhuma plataforma é tão importante quanto os satélites de vigilância eletrônica e interceptação de comunicações. Essas grandes “orelhas” ou “aspiradores de sinais” começaram a ser postos em órbita espacial antes mesmo dos satélites de coleta de imagens e constituem a maioria das frotas de satélites espiões. Basicamente, existem atualmente três tipos principais de satélites de sigint: Os satélites para interceptação de sinais eletrônicos não- comunicacionais, lançados em órbitas circulares de baixa altitude, que são conhecidos como “ferrets”. No caso dos Estados Unidos, as sucessivas gerações de constelações desse tipo de satélite deram lugar, na década de 1990, a uma tentativa de consolidação de sistemas e missões com o que anteriormente era um programa separado de satélites de vigilância oceânica. Aumentando a altitude orbital para cerca de 1.126 km e diminuindo o ângulo das órbitas circulares, os novos satélites de vigilância oceânica são capazes de interceptar sinais de radares, telemetria de mísseis de cruzeiro e outras emissões de navios e submarinos a partir de seus scanners e sensores passivos de microondas, infravermelho e frequências de rádio. Segundo Jeffrey Richelson (1999:187), a partir de 1994 os Estados Unidos desenvolveram uma nova geração de satélites em órbitas circulares de baixa altitude para a vigilância eletrônica de alvos, tanto marítimos quanto terrestres. 1) WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 10 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Os satélites de interceptação de comunicações utilizam órbitas geosíncronas e ângulos de inclinação do plano orbital em relação ao equador próximos de zero grau. As órbitas geosíncronas são atingidas a uma altitude de 35.875 km. Como o período orbital aumenta dependendo da altitude, ao atingir aquela altitude o período orbital do satélite será de 1.436 minutos, próximo ou igual ao da Terra. Isso significa basicamente que um satélite em órbita geosíncrona parece estar estacionário sobre um ponto fixo acima do planeta, tornando-o ideal para a interceptação de sinais comunicacionais. Ao contrário dos satélites de baixa altitude com períodos orbitais mais curtos, adequados à vigilância eletrônica, mas muito curtos para a interceptação de comunicações, os satélites geoestacionários são especialmente desenvolvidos para comint. Cada satélite em órbita geo-estacionária cobre 42% da superfície terrestre, o que implica dizer que três satélites separados entre si por uma distância de 1200 ao longo da órbita geo-estacionária garantiriam uma cobertura permanente de quase todo o planeta. 2) Digo quase todo o planeta porque a cobertura, na prática, está restrita às regiões com latitude de 700 ao sul e ao norte. Acima dessas latitudes as órbitas geosíncronas proporcionam uma ‘visão’ muito oblíqua da superfície terrestre nos circulos polares Ártico e Antártico e os sinais comunicacionais são distorcidos pelo longo percurso através da atmosfera. 3) Como a União Soviética/Rússia tem considerável massa terrestre e grande tráfego marítimo e aéreo ao norte dessa latitude, foram os soviéticos que primeiro utilizaram um tipo de órbita altamente elíptica (conhecida como Molniya) para otimizar seus sistemas de comunicação via satélite. Com uma inclinação de 630 graus, as órbitas elípticas têm uma altitude de 450 km no perigeu e de 40.000 km de apogeu, com um tempo orbital de cerca de 12h. Isso significa que o satélite passa pelo ponto mais distante da Terra duas vezes ao dia, uma sobre a região polar da Rússia e outra sobre a região polar do Canadá. Enquanto os russos utilizam essas órbitas altamente elípticas primariamente para suas comunicações e secundariamente para coleta de sigint, os Estados Unidos desenvolveram frotas de satélites que também usam os mesmos parâmetros orbitais Molniya primariamente para interceptação de comunicações e sinais eletrônicos soviéticos/russos e secundariamente para comunicações e controle de missões de suas forças militares através do pólo norte. Em 1998, o diretor do National Reconnaissance Office (NRO) dos Estados Unidos anunciou que sua agência estava desenvolvendo um novo sistema de satélites de coleta de sigint cuja arquitetura e tecnologias de processamento, combinadas com os novos sistemas de controle terrestre das missões desenvolvidas pela National Security Agency (NSA), permitiriam a substituição e consolidação num único programa, já a partir de 2002-2003, dos três tipos de satélites atualmente em órbita. Mesmo com uma diversidade relativamente menor de tipos de fontes do que a área de humint, as fontes da área de sigint também podem ser classificadas segundo uma pirâmide de sensitividade, quantidade e valor. Como lembra Michael Herman (1996:69-74), a ruptura dos códigos e cifras mais elevados de um adversário permite um acesso aos conteúdos comunicacionais de tráfegos de mensagens que, embora não muito volumosos, têm importância equivalente ao de agentes do topo da pirâmide em humint. Numa escala intermediária encontram-se as informações decorrentes da análise de tráfego e DF (direction finding), enquanto na base da pirâmide estão as comunicações sem codificação (“plain text”) e as mensurações de parâmetros de sinais eletrônicos. As comunicações tendem a ser transmitidas em “claro” quando os riscos de interceptação são considerados baixos, ou quando o valor para o adversário é potencialmente baixo, ou ainda quando os custos da utilização de criptografia são elevados. Embora sigint seja uma área em que há um confronto muito claro entre medidas ativas de obtenção de inteligência e as medidas defensivas de segurança informacional, a mesma dinâmica marca, de um modo ou de outro, as demais disciplinas de coleta, especialmente a inteligência de imagens. Imint Das três fontes de informações mais utilizadas na área de inteligência, a chamada área de inteligência de imagens, ou imint (imagery intelligence), é a mais recente. Embora evidências visuais tenham sido importantes para as operações militares desde muito antes da invenção da fotografia, o surgimento da área de imint como uma disciplina especializada de coleta de informações é posterior ao uso da aviação militar para reconhecimento e vigilância, durante e após as duas guerras mundiais do século XX. Imagens fotográficas, imagens televisionadas e outros tipos de evidências visuais também são obtidas por oficiais de inteligência, patrulhas de reconhecimento e equipes de vigilância WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 11 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA em terra e no mar. Porém, o desenvolvimento de imint como uma disciplina especializada de coleta de informações deu-se fundamentalmente a partir da associação entre o uso de câmeras fotográficas e plataformas aero- espaciais. Segundo William Odom (1997:79) e Jeffrey Richelson (1999:150), as raízes históricas da coleta e uso de evidências visuais para a produção de inteligência remontam aos desenhos feitos por oficiais militares em missões de reconhecimento. Tanto o mapeamento cartográfico quanto o desenho (do terreno, panoramas, fortificações, portos etc) historicamente fizeram parte das habilidades necessárias para o planejamento e execução de operações militares. Entretanto, as atuais plataformas aero-espaciais para a coleta de evidências visuais têm antepassados mais recentes na companhia de aerostiers (balonistas) organizada pelos franceses depois da Revolução de 1789, ou nas tentativas semelhantes de utilização de balões para missões de reconhecimento, feitas pelas tropas da União durante a guerra civil norte-americana de 1861-1865 e, mais ao final do século XIX, pelos exércitos britânico e alemão. A partir da I Guerra Mundial, câmaras fotográficas passaram a ser instaladas em aviões enviados em missões de reconhecimento. O maior alcance das aeronaves na época da II Guerra Mundial permitiu uma utilização mais arrojada dos vôos de reconhecimento aerofotográfico, com cobertura do próprio território inimigo. Utilizando câmaras, filmes e lentes cada vez mais aperfeiçoados para fotos verticais e oblíqüas, montadas em aeronaves de caça e bombardeiros adaptados, foi possível uma exploração mais intensa e sistemática de evidências visuais na produção de inteligência. Com o aprofundamento da Guerra Fria depois de 1945, a natureza do território da União Soviética e a falta de acesso a outras fontes de informação (e.g. humana e ostensiva) levaram os Estados Unidos a intensificar as missões aero-fotográficas de grande altitude sobre o território soviético e na sua periferia mais imediata. O desenvolvimento de sistemas e plataformas especializados na coleta de inteligência de imagens acrescentou desde então uma camada específica à dinâmica competitiva e conflitiva que marcaria a Guerra Fria entre Estados Unidos e União Soviética. Os riscos diplomático-militares derivados da violação do espaço aéreo de nações soberanas em tempo de paz e, principalmente, a ameaça representada pelo aperfeiçoamento das contramedidas defensivas de detecção e interceptação dos aviões de espionagem, levaram a maioria dos países a uma utilização relativamente restrita dos vôos clandestinos de reconhecimento fotográfico. Até 1960, porém, os Estados Unidos utilizaram vários tipos de aeronaves para missões clandestinas de reconhecimento sobre o território soviético, especialmente porque durante algum tempo os aviões especializados U-2s, de alta velocidade, alcance e altitude, eram inalcançáveis pelos interceptadores soviéticos. Embora esses aviões tenham sido e ainda sejam utilizados em uma variedades de lugares e missões, o episódio da derrubada de um deles por caças soviéticos em 1960 foi o marco de uma nova etapa no desenvolvimento da área de imint. No começo daquela década os Estados Unidos e, logo depois, a União Soviética, conseguiram pela primeira vez orbitar satélites espiões capazes de sobrevoar os territórios adversários e fotografar alvos numa escala impensável com os sistemas até então disponíveis. A despeito do alto grau de segredo que cerca os programas militares de satélites de imagens, entre 1967 (quando foi assinado o Outer Space Treaty) e 1992 (quando foi assinado o Open Skies Treaty) o restrito clube das potências que dispõem de capacidades de coleta de imint a partir de plataformas espaciais aceitou mais ou menos tacitamente a inevitabilidade desses sobrevôos. Com recursos muito mais limitados do que aqueles dos quais dispõem os Estados Unidos e Rússia, esses países incluem (ou passarão a incluir nos próximos anos) a França, Japão, Índia, China, Israel, África do Sul, Canadá, Coréia do Norte e Taiwan. Ao longo das três últimas décadas, algumas das vantagens técnicas e políticas dos satélites alcançaram mesmo aos países que não têm frotas próprias, na medida em que tornaram-se disponíveis imagens vendidas comercialmente com melhor resolução. De modo geral, dois desenvolvimentos contribuiram para tornar a disciplina de imint cada vez central para dinâmica operacional das atividades de coleta de inteligência. Em primeiro lugar, os satélites de imagens podem sobrevoar o território de um país sem que isso seja considerado pela lei internacional uma violação do espaço aéreo nacional. Basicamente, satélites de imagens movimentam-se em órbitas circulares de altitude relativamente mais baixa do que os satélites de sigint (e.g. os satélites de imint norte-americanos conhecidos como KH-11 advanced operavam com 241km de perigeu e 965km de apogeu). Em órbitas circulares, a altitude orbital é definida segundo as necessidades de maior precisão das imagens coletadas ou de maior amplitude de área a ser coberta em cada passagem periódica sobre as mesmas áreas de interesse. Lançando os satélites com uma inclinação de cerca de 980 em relação ao plano orbital da Terra, pode-se rotar a WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 12 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA órbita gradualmente ao longo do ano para compensar o efeito da passagem da Terra em torno do sol. Isso garante que as imagens fotográficas sobre uma região serão obtidas sempre com as mesmas condições de luz solar, auxiliando o trabalho de fotogrametria e interpretação. As sucessivas gerações de satélites de imint foram aperfeiçoadas em relação ao tempo de permanência em órbita, à flexibilidade para o ajuste de parâmetros orbitais, aos sistemas de transmissão de dados e em relação à carga útil (payload). Enquanto os primeiros satélites registravam suas imagens em filmes que, uma vez expostos, eram ejetados e precisavam ser recolhidos depois de sua reentrada na atmosfera, com a utilização de sistemas óticos digitais a partir da década de 1980, as fotografias e outras imagens digitais passaram a ser transmitidas automaticamente para estações de controle em terra, diretamente ou através de satélites de comunicação em órbitas intermediárias. Isso permitiu o aumento da vida útil dos satélites e maior agilidade no ciclo de coleta e processamento. Depois da Guerra do Golfo de 1990-1991, houve intensa discussão no Congresso norte-americano sobre a viabilidade de se transmitirem diretamente e em tempo real as imagens de satélites para os comandantes de unidades terrestres, para aviões de combate e navios de guerra atuando no teatro de operações. Finalmente, é importante destacar uma vez mais que a amplitude da área coberta pela passagem de um único satélite de imagens corresponde a várias missões de esquadrões inteiros de aviões especializados operando em condições ideais. Em segundo lugar, vale esclarecer que a importância crescente da coleta de imagens para a produção de inteligência é determinada também pelo aperfeiçoamento tecnológico das câmaras, lentes, sensores e sistemas utilizados numa variedade de plataformas, especialmente os satélites. Aperfeiçoamentos óticos nas lentes e câmaras fotográficas aumentaram enormemente a precisão e a amplitude das fotografias analógicas e digitais, que hoje abarcam centenas de quilômetros quadrados de área e têm resolução definida na escala de centímetros. Além de explorar os limites da luz visível ao olho humano no espectro eletromagnético, a área de coleta de imagens também passou a utilizar sensores para a produção de imagens a partir de outras porções do espectro. Como as imagens baseadas na luz visível ou nas porções próximas ao infravermelho dependem do reflexo da radiação solar nos objetos e não do registro das radiações emitidas pelos próprios objetos, as imagens resultantes de sensores óticos só podem ser produzidas sob a luz do dia e, no caso das plataformas aero-espaciais, em condições metereológicas favoráveis, com poucas nuvens. A partir do final da década de 1980, classes adicionais de satélites de imint norte-americanos e soviéticos/russos passaram a contar com novos sensores que registram imagens a partir do calor emitido pelos objetos (infravermelho), tornando- os operacionais também durante a noite, e também com sensores que formam imagens a partir do uso de radares de abertura sintética (SAR). Embora com uma resolução pior do que aquela possibilitada por sensors eletro-óticos e termais, o uso de radares para a formação de imagens a partir de satélites tem como grande vantagem o fato de que as ondas de rádio não são atenuadas pelo vapor d’água presente na atmosfera, o que permite que tais sensores sejam empregados mesmo sobre alvos e regiões encobertos por nuvens. Como informa Jeffrey Richelson (1999:152), a coleta simultânea de imagens de um mesmo alvo por sensores operando em múltiplas bandas discretas do espectro eletromagnético (MSI, ou multispectral imagery) permite uma exploração sinérgica dessas evidências visuais. Além disso, também é possível empregar sensores que operam em bandas espectrais contígüas incluindo luz visível, infravermelho, termo-infravermelho, ultravioleta e ondas de rádio (HSI, ou hyperspectral imagery). Os dados produzidos por esses sistemas de coleta permitiriam a identificação da forma, densidade, temperatura, movimento e composição química dos objetos. Supõe-se que a complexidade técnica seja ainda proibitiva e que os recursos disponíveis para a exploração desse tipo de imagens sejam restritos mesmo no caso das potências centrais, o que talvez explique porque a literatura tende a incluir MSI e HSI como parte da disciplina de masint, não de imint. A despeito da crescente importância do reconhecimento e da vigilância a partir de plataformas aeroespaciais para a produção de evidências visuais (mapas, fotografias e outros tipos de imagens), existem algumas limitações extrínsecas e intrínsecas à utilização de imint como fonte de informações para a produção de inteligência. A principal limitação externa ao tipo de evidência em si mesma são os custos de obtenção. Com observou William Burrows (1999:17), com um custo de alguns bilhões de dólares para desenvolver e lançar satélites de coleta de imagens com resolução aproximada de 10cm, esse é um tipo de WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 13 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA investimento que poucos países podem fazer. Mesmo aqueles que podem necessitam avaliar cuidadosamente suas percepções de ameaça e prioridades na área de defesa nacional e política externa. Mesmo que o acesso a fotos comerciais com resolução igual ou inferior a 1m tenha sido facilitado pelo final da Guerra Fria e pela “guerra de preços” entre Rússia, Europa e Estados Unidos (afinal, sensoriamento remoto é um mercado estimado em 17 bilhões de dólares para a década de 2000), os controles de segurança nacional ainda existem e o acesso às imagens é regulado pelos interesses dos governantes dos países que têm frotas de satélites. Do ponto de vista das limitações intrínsecas à área de imint, Michael Herman (1996:76-77) destaca três aspectos importantes. Em primeiro lugar, mesmo com a utilização cada vez mais intensa de software para processamento de imagens, fotogrametria e identificação automatizada de alvos, a interpretação das imagens obtidas por satélites, aviões e drones é uma atividade essencialmente humana, que demanda pessoas com habilidades especiais cuja formação é demorada e artesanal. Em segundo lugar, por mais precisas que sejam as imagens e por mais ampla que seja a cobertura dos sistemas de reconhecimento, tratam-se principalmente de fotografias e outros tipos de imagem fixas, uma vez que as plataformas atuais estão sujeitas a um trade-off entre a quantidade de passagens sobre uma mesma coordenada e a amplitude da cobertura. Mesmo que drones e sistemas espaciais integrados com um número maior de satélites mais simples possam prover vigilância permanente sobre determinados alvos em movimento (imagens televisivas) esse ainda é um recurso limitado mesmo para os Estados Unidos e a Rússia. O terceiro e mais importante aspecto limitador do alcance da disciplina de imint decorre do fato trivial de que, independente da sofisticação dos sistemas, lentes, antenas, plataformas e mesmo da habilidade dos fotogrametristas e intérpretes, não se pode ver o que está escondido ou ainda não foi construído. Grandes alvos fixos ainda são os alvos mais vulneráveis e suscetíveis à vigilância dos sistemas de imint. Embora esse tipo de limitação resultante das contramedidas de segurança tomadas por um adversário seja comum a todas as disciplinas de coleta (no caso de imint, trata-se principalmente da camuflagem ou, como é corrente chamá-la a partir da grande expertise acumulada pelos russos, da arte da maskirovka), na área de imint isso é mais dramático justamente em função da expectativa de que a “revolução da imagem” desencadeada a partir da década de 1970 poderia tornar os adversários “transparentes” para os serviços de inteligência das superpotências. Na verdade, até aqui as novas capacidades de coleta e de contra-medidas acrescentaram apenas vários níveis de complexidade à dinâmica operacional que opõe inteligência e segurança, tema sobre o qual se deverá discutir um pouco mais adiante. Antes, porém, será necessário fazer um brevíssimo comentário sobre as áreas de masint e osint, bem como sobre a etapa da análise e disseminação dos produtos no ciclo da atividade de inteligência. Masint Na verdade, a área conhecida como inteligência derivada de mensuração e “assinaturas” (masint, ou measurement and signature intelligence) está longe de ter a mesma coerência que têm as três disciplinas de coleta mais tradicionais. O uso do termo vem se generalizando nos Estados Unidos desde 1986, como uma tentativa de classificar e agrupar uma série de atividades, programas e sensores especializados que não eram facilmente acomodados nas práticas mais estabelecidas de coleta de evidências visuais ou comunicacionais a partir do uso de meios técnicos. A unificação desse conjunto de atividades sob uma mesma rubrica deveu-se muito mais a uma necessidade organizacional do que a algum traço em comum entre os fenômenos observados, ou mesmo entre os meios técnicos utilizados para monitorá- los. No contexto norte-americano, fazem parte da área de masint desde a coleta e o processamento técnico de imagens hiperspectrais e multiespectrais, até a interceptação de sinais de telemetria de mísseis estrangeiros sendo testados, passando pelo monitoramento de fenômenos geofísicos (acústicos, sísmicos e magnéticos), pela medição dos níveis de radiação nuclear na superfície terrestre e no espaço, pelo registro e análise de radiações não intencionais emitidas por equipamentos eletrônicos e radares e, para ficar por aqui, pela coleta e análise físico-química de materiais (efluentes, partículas, resíduos, partes de equipamentos estrangeiros etc.). Segundo Jeffrey Richelson (1999:214-240), pelo menos três tipos de satélites norte-americanos carregam sensores dedicados para a coleta de masint: 1) Os satélites do Defense Support Program (DSP) são equipados com sensores infravermelhos (diferentes dos sensores utilizados para a produção de imagens) capazes de detectar o lançamento e monitorar a trajetória de mísseis WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 14 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA balísticos. Os dados derivados desses sensores permitem a identificação dos tipos de combustíveis utilizados e das assinaturas espectrais associadas a diferentes sistemas de mísseis. Em tese, quaisquer eventos terrestres que gerem suficiente radiação infravermelha para ser detectada do espaço podem ser mensurados e identificados pelos sensores dos satélites DSP. 2) Os satélites NAVSTAR Global Positioning System (GPS) são equipados com sistemas de detecção de explosões nucleares (NUDET). Embora a missão primária dos satélites NAVSTAR seja prover dados precisos sobre localização para fins de aquisição de alvos e navegação, a órbita quase-circular de 17,7 mil Km de altitude da constelação de 21 satélites NAVSTAR fez com que o Pentágono a utilizasse também para o monitoramento global de detonações nucleares, que podem ser detectadas por sensores de raios X, raios gama e pulso eletromagnético. 3) Também os satélites metereológicos de uso militar (DMSP) são equipados com sensores para radiação eletromagnética e “tracking” de fragmentos de explosões nucleares na atmosfera. Além de sensores instalados em espaçonaves, outros meios técnicos utilizados pelos Estados Unidos para a coleta de masint envolvem plataformas aero-transportadas para a detecção e recolhimento de amostras de agentes químicos e bacteriológicos na atmosfera, estações fixas para vigilância de mísseis (tais como a estação de radar “phased array” COBRA DANE, localizada na ilha Shemya no Alaska), laboratórios sismológicos do centro de inteligência técnica da Força Aérea, radares passivos embarcados em navios de guerra, para monitoramento de veículos espaciais de reentrada, redes submarinas de hidrofones para monitoramento acústico de submarinos e de espaçonaves sobrevoando o oceano etc. Infelizmente, as poucas informações disponíveis sobre a natureza das atividades de masint dizem respeito a esse país. Tal diversidade de meios de coleta e tipos de dados coletados decorre não apenas da complexidade técnico-científica dos fenômenos observados, mas também da própria escala das operações e forças militares dos Estados Unidos. Uma das principais funções da área de masint é a coleta de informações sobre características singulares – as assinaturas - de sistemas de armas, veículos de combate, aeronaves, embarcações e radares para a montagem de bancos de dados e posterior emprego em sistemas de aquisição de alvo, ou para a produção de inteligência militar e o monitoramento de tratados internacionais, especialmente na área nuclear. Osint A disseminação de bases eletrônicas de dados públicas e privadas, acessíveis via Internet, aumentou imensamente o papel da coleta de inteligência a partir de fontes ostensivas mais ou menos especializadas. A chamada inteligência de fontes ostensivas, ou osint (open sources intelligence), sempre foi importante para qualquer sistema governamental de inteligência, mas há um razoável consenso na literatura que sua importância cresceu recentemente no contexto da chamada “explosão informacional” da última década. De modo geral, osint consiste na obtenção legal de documentos oficiais sem restrições de segurança, da observação direta e não clandestina dos aspectos políticos, militares e econômicos da vida interna de outros países ou alvos, do monitoramento da mídia (jornais, rádio e televisão), da aquisição legal de livros e revistas especializadas de caráter técnico-científico, enfim, de um leque mais ou menos amplo de fontes disponíveis cujo acesso é permitido sem restrições especiais de segurança. Quanto mais abertos os regimes políticos e menos estritas as medidas de segurança de um alvo para a circulação de informações, maior a quantidade de inteligência potencialmente obtida a partir de programas de osint. Mesmo sob condições mais restritivas de segurança, o volume de informações ostensivas disponíveis tende a ser muito alto. Por exemplo, sabe-se atualmente que durante a Guerra Fria um programa conjunto da CIA e da U.S. Air Force resumia e/ou traduzia inteiramente a maioria das publicações tecno-científicas da União Soviética. Já em 1956, isso significava o resumo/tradução do conteúdo de 328 periódicos científicos e cerca de 3.000 livros e monografias por ano. Com o final da Guerra Fria, a aceleração da globalização e o advento das novas tecnologias de informação e comunicação (ICTs), a disponibilidade de fontes ostensivas aumentou enormemente. De acordo com declarações do então Deputy Director of Central Intelligence (DDCI), em 1992 o serviço de vigilância de mídia estrangeira da CIA (o Foreign Broadcast Information Service - FBIS) monitorava 790 horas semanais de programação de TV em 50 países e 29 línguas diferentes. As estações de monitoramento do FBIS eram então localizadas em lugares tão diferentes quanto Abidjan, Amã, Assunção, Bangkok, Cidade do Panama, Hong Kong, Islamabad, Key West, Londres, Mbabane, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 15 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Nicósia, Okinawa, Seul, Tel Aviv e Viena. Além de publicações tecno-científicas e mídias convencionais, em 1997 os programas de osint da CIA e da DIA já dispunham de acesso comercial a cerca de oito mil bases de dados eletrônicas via Internet, além da assinatura de dois mil periódicos eletrônicos. No caso dos Estados Unidos, os principais programas e escritórios responsáveis pela coleta de informações ostensivas são as próprias agências e departamentos encarregados da etapa de análise no ciclo de inteligência. Aliás, uma característica comum a todas as disciplinas de coleta de inteligência discutidas nessa seção é a quantidade significativa de trabalho envolvida no processamento e pré-análise de volumes crescentes de informação. As agências de coleta são obrigadas a processar volumes crescentes de informações, tais como dados de telemetria e sinais eletrônicos, processamento digital de fotos e imagens, decodificação de mensagens, tradução de materiais em língua estrangeira etc. Mesmo o teste sistemático da confiabilidade e acuidade das fontes humanas precisa ser feito antes que os relatórios de humint sejam encaminhados para os setores responsáveis pela análise e disseminação. Além da desproporção entre a quantidade de dados brutos coletados e a capacidade das organizações processarem de forma ágil as informações, uma conseqüência adicional desse fenômeno é que alguns tipos de informações efetivamente produzidas ainda na etapa de coleta, especialmente as mais efêmeras e de uso diplomático ou militar imediato, precisam ir direto para os usuários finais sem passar pela etapa de análise e produção final (all-sources analysis). Mesmo considerando essa etapa de processamento e pré-análise, pode-se concordar com a afirmativa de Michael Herman (1996), segundo a qual os coletores são especialistas em “disciplinas”, com suas fontes, tecnologias e técnicas peculiares e únicas, enquanto analistas são especialistas em temas, áreas e problemas. Os analistas têm a responsabilidade de avaliar as evidências obtidas sobre esses temas e problemas, produzir relatórios e informes e disseminá-los para os comandantes militares e os governantes. Essa é parte do ciclo da inteligência que será comentada a seguir. 1.2.2 - Análise e Disseminação: A atividade de análise e produção de inteligência assemelha-se ao que fazem outros sistemas de informação que apóiam decisões governamentais em pelo menos um aspecto: na necessária separação entre a produção de conhecimento relevante para a decisão e a defesa de uma alternativa específica de curso de ação (policy advocacy). Obviamente, isso é muito mais uma prescrição normativa do que uma realidade nos processos de tomada de decisão governamental. Ainda assim, essa e outras instituições especializadas no provimento de informações e na produção de conhecimento não justificariam sua existência se isso fosse a mesma coisa que o aconselhamento, o planejamento ou a formulação e execução de políticas. Nesse sentido, o ethos profissional da atividade de análise em inteligência e suas regras de produção de conhecimento são as mesmas que governam qualquer outra atividade de pesquisa. Também como em qualquer outra atividade desse tipo, os serviços de inteligência podem cair bem abaixo dos padrões esperados de isenção, relevância e qualidade das análises produzidas. Por outro lado, os problemas sobre os quais são elaboradas as análises variam conforme as necessidades dos usuários. Há várias formas de classificar tais necessidades e os tipos de inteligência resultantes. Tais classificações variam um pouco conforme o país e mesmo conforme o foco na área de análise, produção ou disseminação. Um dos mais influentes autores norte-americanos nessa área, o ex- professor da Universidade de Yale e ex-diretor do Office of National Estimates da CIA, Sherman Kent (1949), por exemplo, dividia os produtos analíticos segundo a função esperada e o foco temporal (presente/passado/futuro). Resultava desse critério uma separação entre inteligência sobre fatos correntes (chamada de relatorial), inteligência sobre características básicas e estáveis dos alvos (chamada de descritiva), ou sobre tendências futuras (chamada de inteligência avaliativa ou prospectiva). Um quarto tipo especial seria a inteligência sobre ameaças mais ou menos imediatas, também chamados de alertas (warning intelligence). A tipologia de Kent ainda é empregada em muitos livros e documentos governamentais. No entanto, as categorias de trabalho mais utilizadas convencionalmente na área de análise e produção de inteligência ainda são organizadas segundo disciplinas acadêmicas, dividindo os produtos finais em, por exemplo, inteligência política (e.g. como os militares russos reagirão à expansão da NATO para o leste europeu?), militar (e.g. como funcionam os sistemas de aquisição de WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 16 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA alvo das novas armas anti- balísticas norte-americanas em desenvolvimento?), científica e tecnológica (e.g. quais as prioridades atuais de pesquisa em sistemas óticos e lasers direcionais nos dez principais laboratórios europeus?), econômica (e.g. quais as conseqüências da reestruturação do sistema bancário japonês para as decisões de investimento dos países do leste asiático?) e mesmo sociológica (e.g. como a composição demográfica e religiosa do Cáucaso norte condiciona as chances do fundamentalismo wahabita expandir-se no flanco sul da Rússia?). Do ponto de vista dos alvos das operações de inteligência, eles costumam ainda ser divididos em transnacionais (terrorismo, crime organizado etc), regionais (África Austral, União Européia etc), nacionais (Estados Unidos, China etc) e sub-nacionais (grupos militantes armados etc). Segundo autores como David Kahn (1995) e Michael Herman (1996), a diferença crucial dar-se-ia justamente entre as análises produzidas sobre as “coisas” e as “capacidades” e a inteligência sobre os “significados” e “intenções”. Os diferentes meios de coleta e os distintos métodos de análise seriam mais ou menos adequados a cada um desses tipos de inteligência. Por exemplo, uma foto de satélite pode fornecer uma evidência forte e irrefutável sobre a localização precisa de um portaaviões, mas somente a interceptação e decodificação de suas comunicações pode fornecer uma forte indicação ex ante sobre qual é sua missão. Na prática, porém, a maioria dos meios de obtenção e procedimentos de análise de informações lida com os dois tipos de inteligência ao mesmo tempo. Na área de inteligência de sinais, por exemplo, quando o sistema de C3I (comando, controle, comunicações e inteligência) de uma força armada é penetrado isso garante acesso ao conteúdo das mensagens, mas também permite localizar materialmente a ordem de batalha do inimigo através da identificação dos emissores (direction finding) e do mapeamento dos parâmetros dos sinais. Aliás, de modo geral, mensagens interceptadas fornecem informações sobre intenções e significados (ordens transmitidas, planos, requisições, relatórios etc.), mas também sobre capacidades e coisas (equipamentos, logística, desempenho operacional etc.). Mas isso não quer dizer de modo algum que inteligência de sinais (sigint) seja intrinsecamente superior à inteligência de imagens (imint). O que existe são diferentes tipos de adaptabilidade a inferências analíticas e, consequentemente, uma maior afinidade entre certas disciplinas de coleta e certas áreas de análise. Por exemplo, quando a questão analítica relevante é saber se um determinado governo possui ou não ogivas químicas, amostras ou pelo menos fotos das mesmas são evidências mais fortes do que mensagens interceptadas do estado-maior mencionando sua existência. Por outro lado, a vulnerabilidade da inteligência de sinais às contramedidas defensivas de um alvo é maior do que a da inteligência de imagens. Uma força tarefa naval atravessando um oceano para fazer um ataque surpresa pode observar silêncio de rádio ou aumentar o nível de segurança de sua criptografia, mas não pode esconder-se facilmente de operações de reconhecimento aéreo, especialmente de um inimigo que disponha de cobertura de satélites para vigilância oceânica. Por isso é que se diz que a adaptabilidade das diferentes fontes de inteligência a inferências depende dos problemas analíticos a serem resolvidos. Enfim, o próprio esforço de categorizar a atividade de inteligência deve ser visto ao mesmo tempo como uma necessidade administrativa e como um imperativo epistemológico. Para dar uma idéia de como os países da NATO alocaram recursos em inteligência na década de 1990, Michael Herman (1996:54) organizou a seguinte hipótese de trabalho por categoria de investimento e não por volume de produção: Inteligência de defesa, para suporte às operações militares (SMO), suporte ao projeto de força, monitoramento das dinâmicas internacionais de armamentos e proliferação nuclear, cerca de 35%. Vigilância de conflitos internacionais e insurgências, cerca de 15%. Inteligência sobre a política interna de outros países, bem como suas respectivas políticas externas, inclusive econômicas, cerca de 20%. Suporte tático para negociações diplomáticas bilaterais, fóruns econômicos multilaterais e outras negociações internacionais, cerca de 10%. Inteligência externa e interna sobre terrorismo, cerca de 10%. Contra-inteligência, subversão e narcotráfico, 10%. Supondose que essa alocação hipotética reflita - ainda que remotamente - a realidade dos requerimentos e produtos informacionais dos países da NATO, ela indica uma grande continuidade – a despeito da retórica oficial sobre as novas ameaças - da agenda de segurança nacional dos países centrais do sistema internacional no imediato pós-Guerra Fria. Mas, voltando ao problema das dinâmicas operacionais e fluxos informacionais na atividade de inteligência, de modo geral essa etapa da análise pode ser vista como um “funil” que recebe WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 17 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA informações de fontes diversas, não necessariamente e nem principalmente secretas, analisa e produz a inteligência propriamente dita. Os produtos finais vão desde sumários diários/semanais sobre temas correntes até estudos mais aprofundados sobre tendências e problemas delimitados a partir de critérios espaciais ou funcionais. Além de avaliar tendências e tentar descrever a realidade, os produtos de inteligência visam também a antecipar eventos cruciais, tanto fornecendo alerta avançado quanto contribuindo para a formulação de políticas, planos operacionais e projetos de força. As bases de dados e a produção de inteligência para referência (bancos biográficos, de “assinaturas” de sistemas de armas, vetores e plataformas, de dados cartográficos e de elevação de terreno etc.) constituem uma camada intermediária e fundamental, que alimenta tanto os produtos analíticos de consumo mais imediato quanto as estimativas e estudos mais estruturados e voltados para o médio e longo prazo. Costuma-se dizer que a qualidade das bases de dados e o grau de preparação dos próprios analistas são os principais indicadores da qualidade de uma organização de inteligência. Uma vez produzidas as análises, elas são disseminadas para os diversos usuários finais, responsáveis pela tomada de decisões e pelo planejamento e execução de políticas. Feito isso, nada garante que os relatórios de inteligência terão qualquer impacto sobre as decisões tomadas ou não tomadas. Um ponto importante para a compreensão do ciclo da inteligência é ter claro que as análises e produtos de inteligência são apenas um dos diversos fluxos informacionais (inputs) que influenciam o processo de tomada de decisões, e que relatórios específicos podem ser mais ou menos importantes para certas decisões governamentais específicas. Disseminação tende a ser o elo mais sensível do ciclo da inteligência. Em boa parte porque a diversidade de usuários é muito grande, suas necessidades obedecem a ritmos temporais específicos e a situação torna- se mais complexa ainda porque os próprios analistas de inteligência constituem um tipo de usuário dos coletores. Além disso, como alguns relatórios de inteligência – especialmente nas áreas de sigint e imint – precisam seguir diretamente das unidades de coleta para os usuários finais, todos esses fluxos contribuem para tornar complexo e confuso o que a primeira vista parece ser um ciclo com estágios claros e papéis definidos. Nesse contexto, as etapas de disseminação e de avaliação tendem a sobrepor-se uma à outra. Embora difíceis de mensurar, existem indicadores de desempenho objetivos sobre a qualidade e o impacto dos produtos de inteligência nos processos de tomada de decisões, e também formas de monitorar o grau de satisfação dos usuários durante e após a fase de disseminação. A utilização crescente de arquiteturas virtuais de trabalho nas organizações de inteligência coloca novos desafios e possibilidades para a exploração de ferramentas de processamento, armazenamento, análise, produção, disseminação e avaliação de inteligência de forma mais segura e ágil. Obviamente os aspectos de segurança informacional são decisivos nesse tipo de utilização de redes corporativas interconectadas à Internet, mas vale destacar aqui a multiplicidade de ferramentas e serviços possibilitados pela digitalização de informações e sua disponibilização em diferentes formatos e mídias para as diversas organizações e indivíduos ao longo do ciclo. O crescimento do chamado Intelink, a rede que integra as diversas organizações de inteligência do governo norteamericano, pode bem ilustrar a centralidade das novas tecnologias. Em 1994, quando iniciou suas operações, o Intelink já operava com mais de quatrocentos servidores e centenas de milhares de usuários, sendo que apenas a camada de serviços com restrição de acesso para informações classificadas como secret, já provia acesso para 265 mil usuários interligados através de redes de fibras óticas ou via satélite. Em resumo, a complexidade dos requerimentos informacionais, os problemas de relacionamento entre usuários e produtores, os requisitos técnicos das disciplinas de coleta, as limitações decorrentes da necessária separação entre as etapas especializadas do ciclo, os problemas de mensuração e de obtenção de feedback sobre a qualidade e a eficiência da inteligência disseminada para os processos decisórios relevantes, tudo isso diz respeito à dinâmica operacional “interna” do ciclo da atividade de inteligência. Na próxima seção será preciso comentar um pouco sobre uma outra dinâmica, relativa ao confronto entre inteligência e segurança. 1.3 – Segurança de Informações e Contra- Inteligência: WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 18 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA A dinâmica operacional mais elementar da área de inteligência, e também a menos compreendida porobservadores externos, é aquela engendrada a partir do seu conflito com as medidas de segurança que são tomadas por um alvo potencial para proteger suas informações. Partindo da definição restrita de inteligência adotada no começo desse capítulo – e correndo de novo o risco da simplificação exagerada – enquanto a inteligência procura conhecer o que os comandantes e governantes que a dirigem necessitam saber sobre as ameaças e problemas relativos à segurança do Estado e dos cidadãos, a área de segurança de informações (infosec, ou informations security) procura proteger as informações que, uma vez obtidas por um adversário ou inimigo – por exemplo através das operações de inteligência de um governo estrangeiro -, poderiam tornar vulneráveis e inseguros o Estado e os cidadãos. A área de inteligência e a área de segurança exercem funções simétricas e mutuamente dependentes. A incompreensão dessa dinâmica conflitiva freqüentemente resulta de um senso comum que iguala inteligência e segurança como se fossem uma e a mesma coisa. Não se trata da mesma coisa e, embora existam confusões terminológicas em abundância nessa área, tampouco creio que o problema seja apenas nominal. Do ponto de vista operacional, enquanto a principal missão da área de inteligência é tentar conhecer o “outro”, a principal missão da área de infosec é garantir que os “outros” só conhecerão o que quisermos que eles conheçam sobre nós mesmos. As duas missões são cumpridas no Estado contemporâneo por organizações distintas, sendo que segurança pode ser considerada uma função gerencial nas organizações civis e uma responsabilidade do comando nas organizações militares. Mas a confusão ocorre porque as duas atividades existem simultaneamente e interagem de forma mais ou menos sinérgica para cada ator envolvido num conflito informacional. Por outro lado, a dialética entre inteligência e segurança é mais complexa do que a mera dicotomia ofensivo/defensivo é capaz de descrever. Pode-se pensar a segurança informacional como sendo formada por três componentes relativamente autônomos entre si: contramedidas de segurança (SCM), contra-inteligência (CI) e segurança de operações (OPSEC). O primeiro componente é formado pelas medidas de proteção que “espelham” as capacidades adversárias de obtenção de informações. Tais medidas vão desde programas de classificação de segredos governamentais, armazenamento especial, regras de custódia e transmissão de documentos, restrições físicas de acesso aos prédios e arquivos para pessoas não autorizadas, investigações do pessoal empregado antes da concessão de credenciais de acesso às informações classificadas e vigilância sobre seus contatos com pessoal externo e estrangeiros, até as várias políticas e camadas de segurança eletrônica nas redes de computadores e o uso de criptografia para a preservação da segurança das comunicações (comsec). Na área militar, esse conjunto de contramedidas de segurança (SCM, ou security countermeasures) inclui ainda o uso de camuflagem para evadir-se dos sensores de imint das forças inimigas, reduções de emissões não-intencionais e de “assinaturas” como medidas contra masint, treinamento para resistir a interrogatórios e outras medidas preventivas contra a coleta de humint. Programas de sensibilização e educação na área de proteção ao conhecimento enquadram-se nessa primeira “família” de ações na área de infosec. O segundo conjunto de medidas de infosec depende da identificação das operações de coleta de inteligência de um adversário, da detecção e neutralização dos meios intrusivos de obtenção de informações utilizados por um governo ou organização considerados hostis. Embora o foco tradicional da área de contra-inteligência (CI, ou counterintelligence) tenha sido na contra-espionagem, o alcance das medidas de neutralização das operações de coleta de inteligência de um adversário vão muito além da identificação e repressão de suas redes de coleta de humint. Como escreveu Michael Herman (1996:168), um agente pode ser preso, um oficial de inteligência estrangeiro atuando sob cobertura diplomática pode ser expulso do país depois de declarado persona non grata, mas também os microfones e escutas telefônicas podem ser “varridos” eletronicamente e desativados, os aviões de imint e sigint podem ser abatidos ou forçados a pousar, navios de coleta de sigint podem ser capturados em caso de violação de águas territoriais etc. Para todas essas medidas, os conhecimentos acumulados pela área de contra-inteligência são fundamentais. Em terceiro lugar, por segurança das operações (opsec) entende-se aqui o conjunto de procedimentos que visam a identificar quais as informações sobre equipamentos, operações, capacidades e intenções seriam críticas para um adversário obter e, a partir dessa análise, propor um conjunto de medidas para negar ativamente tais informações ao adversário. Embora opsec envolva também alguns programas de redução de ruídos e emissões não-intencionais, silêncio de rádio, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 19 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA camuflagem contra imint e outros, que poderiam tornar confusas as fronteiras entre esse componente e as contramedidas passivas de segurança (SCM), essa área de segurança de operações destaca-se fundamentalmente por sua dimensão ativa, especialmente aquilo que a literatura militar chama de deception operations, utilizadas para desorientar e induzir ao erro um inimigo através do uso de logro, engano, dolo, ocultação e dissimulação, fazendo-o produzir uma análise consistente mas equivocada da situação. Embora a grosso modo esses três componentes da área de segurança de informações contenham medidas de defesa contra operações de inteligência adversárias que podem ser classificadas num gradiente que vai das mais defensivas (criptografia ou uso de “firewalls” eletrônicos, por exemplo) para as mais ofensivas (tais como “cegar” um sensor de imagens com a utilização de laser, forjar um fluxo de mensagens para deception ou manipular agentes duplos...), na verdade a principal razão para diferenciá- las entre si é de natureza organizacional. Segundo George Jelen (1992:391), as culturas organizacionais das áreas de contramedidas de segurança (SCM), contra-inteligência (CI) e segurança de operações (OPSEC) evoluiram separadamente ao longo do século XX, e as tentativas de integração das três numa doutrina de segurança informacional (infosec) ainda são muito recentes e controversas. Em particular, ainda é muito comum a literatura referir-se à contra-inteligência para designar o conjunto de funções descritas nessa seção, invertendo o uso dos termos e considerando infosec como uma parte do trabalho de contra-inteligência. Isso é mais comum ainda entre os autores norte-americanos e nos países mais influenciados por aqueles autores. Na verdade, saber se a segurança de informações (infosec) é parte da contra-inteligência ou viceversa é a face menos importante do problema, pois não se trata tanto da escolha de nomes e sim da clareza que se deve ter ao escolhê-los, clareza sobre as especificidades operacionais, as responsabilidades organizacionais e os fins a que se destinam cada componente que está sendo estudado. De modo geral, as funções de contra-inteligência são alocadas sob a responsabilidade das organizações de inteligência exterior e interna (também chamada de inteligência doméstica ou de segurança), enquanto as funções de segurança são alocadas sob a responsabilidade de organizações civis e militares especializadas em soluções de segurança. Por sua vez, opsec é uma das missões e objetivos das seções de operações nos estados-maiores das organizações militares. Assim, o melhor é sempre procurar respeitar a evolução peculiar de cada componente num determinado país, procurando aumentar o grau de coordenação e sinergia entre eles. Até porque cada um deles tem suas próprias complexidades internas. Por exemplo, tal como apresentada aqui a noção de contra- inteligência remete ao esforço mais geral de obtenção de inteligência sobre as capacidades, intenções e operações dos serviços de inteligência adversários. Como esse foco em suas contra-partes só pode ser atingido tendo em vista o contexto mais geral em que operam aqueles serviços, contra-inteligência tende a constituir um inteiro subciclo das operações de inteligência, especialmente por causa da diversidade de fontes tecnológicas e humanas utilizadas na obtenção de um escopo variado de informações que precisam ser analisadas e incorporadas aos acervos de conhecimento das organizações de inteligência “positiva”, mas também das instituições responsáveis pela área de segurança de informações (infosec) de um país ou organização. Por isso mesmo, contra-inteligência poderia ser considerada apenas como uma das chamadas disciplinas defensivas da área de infosec, muito mais do que inteligência “ofensiva” propriamente dita. No entanto, embora a contra-inteligência envolva um leque bem mais amplo de atividades do que a contra-espionagem, esta sim voltada principalmente para a prevenção, detecção, neutralização, repressão ou manipulação/infiltração de atividades hostis de espionagem, é precisamente essa dimensão ativa da contra-espionagem que distingue a contra-inteligência dos demais aspectos da segurança de informações (infosec) e recomenda sua alocação sob responsabilidade dos serviços de inteligência externos e internos de um país. O resultado dessa dupla missão da contra-inteligência é que ela pertence simultaneamente à função de inteligência e à função de segurança de um país ou organização. Aceitando-se a premissa de que a atividade de inteligência é em grande parte definida pelo conflito informacional com os sistemas de segurança adversários, pode-se pensar na atividade de contrainteligência como um subconjunto do conflito principal, como aquelas matreshskas, as bonecas russas de encaixe. Utilizando uma situação extrema para ilustrar o argumento, a dinâmica WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 20 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA operacional tende a tomar a forma de uma série de conflitos aparentemente intermináveis, com os serviços de inteligência de um lado (digamos, A) tentando suplantar as redes de segurança de outro (digamos, B) e sendo, por sua vez, assediados pelos serviços de contra-inteligência do adversário (B), que precisam penetrar os serviços de inteligência de A para descobrir o que eles querem e o que eles sabem, o que leva então os serviços de contra-inteligência de A a tentarem infiltrar-se nos serviços de contra-inteligência de B para tentar garantir a segurança de suas próprias operações de inteligência (de A) no jogo principal, e assim sucessivamente. Como no mundo real os conflitos entre inteligência e segurança, contra-inteligência e inteligência, contra- inteligência e contra-contrainteligência não acompanham essa tendência de “descida” aos extremos, o que impede que tais regressões sejam infinitas e garante a centralidade do conflito principal são os objetivos políticos e a limitação dos recursos que podem ser dedicados. Ainda assim, essa é realmente uma das áreas mais nebulosas e esotéricas na práxis dos serviços de inteligência contemporâneos. Finalmente, é preciso lembrar que os serviços de inteligência podem fornecer valiosas contribuições para a segurança informacional (infosec) de seu próprio país ou organização, afinal, eles são os especialistas na superação das redes de proteção adversárias, e ganhos ofensivos traduzem-se em aprendizado defensivo. Os serviços de inteligência e de contra-inteligência têm a responsabilidade de avaliar as ameaças, estudar as operações adversárias, fazer inferências operacionais e sugerir normas e técnicas de proteção que aumentem a segurança informacional das forças amigas. Em algumas áreas de coleta de inteligência, como sigint, isso é tão intenso que a própria organização também é a principal responsável pelo provimento de segurança das comunicações (comsec). O inverso é verdadeiro, ou seja, melhores capacidades defensivas no conflito informacional também ajudam a obtenção de inteligência, mas de forma muito menos direta, apenas liberando recursos e aumentando a confiabilidade do sistema para os usuários finais responsáveis pelos processos de tomada de decisão nas áreas de política externa, defesa e policiamento. Ainda que as ameaças de inteligência sejam mais difíceis de se identificar no atual contexto internacional, o que necessariamente obriga a uma redefinição das missões de contra-inteligência, os temas associados à segurança informacional (infosec) são cada vez mais centrais e deveriam ser pensados a partir de suas interações com a área de inteligência como um todo. 1.4 – Operações Encobertas: As chamadas operações encobertas recebem nomes distintos e abarcam atividades variadas em diferentes países, mas têm sido amplamente utilizadas pelas principais potenciais internacionais ao longo do século XX, sendo ainda mais controversas do que as operações de inteligência mais convencionais. Nos Estados Unidos, são chamadas de ações encobertas (CA, ou covert actions), na União Soviética eram abarcadas pelas chamadas medidas ativas (aktivnye meropriiatiia) e, na Inglaterra, atendem pelo singelo nome de ações políticas especiais (special political actions). Embora não seja possível desenvolver aqui uma análise mais completa da rationale e dos problemas associados a esse tipo de atividade, pelo menos dois aspectos merecem um breve comentário. O primeiro aspecto diz respeito aos tipos de operações compreendidas pelo conceito, enquanto o segundo remete para a relação existente entre tais operações encobertas e as atividades de coleta, análise e contra- inteligência discutidas até aqui. Operações encobertas são utilizadas por um governo ou organização para tentar influenciar sistematicamente o comportamento de outro governo ou organização através da manipulação de aspectos econômicos, sociais e políticos relevantes para aquele ator, numa direção favorável aos interesses e valores da organização ou governo que patrocina a operação. As duas características principais das operações encobertas enquanto recurso de poder são, segundo Mark Lowenthal (2000:111-113) e Abram Shulsky (1992:83-85), o seu caráter instrumental para a implementação de políticas e o requisito de plausibilidade na negação da autoria (“plausible deniability”). A primeira característica enquadra as operações encobertas enquanto ferramentas coercitivas na implementação de uma política externa, tal como o são, por exemplo, os embargos econômicos ou o leque de opções relativas ao uso ou a ameaça de uso da força. A segunda carcaterística enfatiza a negação da autoria, mais do que a clandestinidade da operação em si mesma. É possível classificar as operações encobertas segundo a escala e intensidade do uso de meios de força e o grau de plausibilidade da negação de autoria. Quanto maior a escala das operações e o papel do uso da força, menor é a probabilidade de que a negação da autoria da operação seja plausível. Quatro tipos de operações encobertas podem ser destacados. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 21 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA O primeiro tipo é o mais extremado, envolvendo o apoio a grupos já existentes (ou o financiamento e a organização de grupos) para a condução de guerra subterrânea, operações paramilitares, guerrilhas, campanhas de contra-insurgência ou terrorismo. O envolvimento de um governo, nesses casos, pode variar desde o suporte financeiro e o fornecimento de armas, munições, explosivos e equipamentos, até um engajamento mais direto em logística, treinamento, inteligência e forças combatentes especializadas em operações especiais (“special ops”). Exemplos históricos desse tipo de operações incluem, dentre muitos outros, a guerra “secreta” conduzida pelos Estados Unidos no Laos (1960-1975) e a campanha britânica de contra-insurgência na Malásia (1950s). Um segundo grupo de operações encobertas envolve os chamados “wet affairs”, desde o apoio a golpes de Estado e tentativas de assassinatos de líderes das forças adversárias (ou de governantes), até incursões militares irregulares numa fronteira, sabotagem e perpetração de atos terroristas isolados. Exemplos de operações desse tipo são os golpes de Estado patrocinados pela CIA no Irã (1953) e na Guatemala (1954), a campanha norte-americana de desestabilização do governo Allende no Chile (1970-1973), o assassinato de lideranças palestinas pelos serviços secretos israelenses nos anos 1980, ou o afundamento do navio Rainbow Warrior, do grupo Greenpeace, pelos serviços secretos franceses em 1985. O terceiro tipo envolve operações de sabotagem econômica e política contra forças adversárias ou, por outro lado, o fornecimento de assistência secreta a governos e forças aliadas, tais como partidos políticos, organizações não-governamentais, meios de comunicação etc. A campanha da CIA para prevenir a vitória dos comunistas nas eleições italianas de 1947 é um exemplo desse tipo de operação, assim como o são a venda clandestina de armas para o Irã (conduzida pela presidência dos Estados Unidos em 1986, com a intermediação israelense e saudita), o treinamento das forças de segurança e inteligência dos regimes pós-revolucionários do Iêmen do Sul e de Moçambique, nos anos 1970, pelo serviço de inteligência exterior da Alemanha Oriental, ou ainda a ajuda do Partido Comunista da União Soviética a cerca de cem partidos e grupos aliados em países estrangeiros até a década de 1980. Por sua vez, o quarto tipo de operações encobertas abarca um conjunto de medidas para tentar influenciar as percepções de um governo ou mesmo da sociedade como um todo, através de agentes de influência, desinformação, falsificação de dinheiro ou documentos, além dos vários tipos mais ou menos encobertos de propaganda. Esse é o tipo mais comum de operação encoberta e existem inúmeros exemplos, talvez os mais famosos sejam as rádios Free Europe e Liberty, estabelecidas clandestinamente pela CIA na Europa em 1949 e 1951, respectivamente, e transferidas em 1973 para um novo órgão federal do governo norte- americano, o Board of International Broadcasting. A intensidade do recurso aos vários tipos de operações encobertas variou de país para país ao longo da Guerra Fria e, aparentemente, declinou de modo geral na primeira década após o colapso da União Soviética. Segundo a estimativa de John Hedley (1995:05), operações encobertas representavam cerca de 2% das atividades e gastos da CIA na primeira metade da década de 1990. Segundo Jeffrey Richelson (1999:349-360), as operações norte-americanas mais importantes daquele país em anos recentes estiveram dirigidas contra os governos do Iraque, Líbia e Iugoslávia, além daquelas voltadas para o suporte a governos aliados no combate a insurgências, e ainda operações de guerra informacional (IW), sabotagem e ações paramilitares no combate a grupos transestatais nas áreas de narcotráfico, terrorismo e proliferação de armas de destruição massiva (WMD). Em 1998, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o Iraq Liberation Act, uma ampliação das operações encobertas para a derrubada do regime de Saddam Hussein que, naquele ano, chegou a um orçamento de 97 milhões de dólares. A principal rationale para a utilização das operações encobertas é o cálculo de custos e benefícios associados a um envolvimento aberto de um governo ou organização em processos políticos e/ou militares instáveis e importantes, ou quando a diplomacia é insuficiente e o uso aberto da força pode ser contra-producente ou arriscado. Tal “economia de meios” como justificativa para o recurso às operações encobertas, no entanto, parece estar muito mais ligada à flexibilidade e proteção política (“plausible deniability”) prometidas pelos serviços secretos para os governantes ou líderes da organização. Mesmo em operações de larga escala como o suporte norte-americano aos Contra na Nicarágua e aos Mujahedins no Afeganistão durante os anos 1980, ainda que as operações em si mesmas fossem largamente “abertas”, o governo de Washington podia seguir negando seu envolvimento oficial em fóruns internacionais e junto à opinião pública e meios de comunicação. Mas, independentemente dos cálculos políticos e dos problemas de execução desse tipo de atividade, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 22 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA ainda resta problematizar a sua relação com as demais atividades na área de inteligência. Afinal, se inteligência é entendida como um input informacional para processos de decisão e implementação das políticas externa, de defesa e de provimento de ordem pública, operações encobertas certamente não têm primariamente uma função informacional. A alocação dessas atividades sob a responsabilidade dos serviços de inteligência em muitos países resulta de escolhas históricas e também da “capacidade instalada” das agências de humint para gerir contatos e segredos em territórios estrangeiros. Nesse caso, uma visão mais restritiva do conceito de inteligência torna mais fácil compreender tal associação. Por outro lado, certamente há algo de arbitrário nessa ligação operacional entre espionagem, humint e operações encobertas. Como exemplo dessas escolhas e/ou acidentes históricos, basta lembrar que na tradição britânica o serviço secreto conduziu operações encobertas (além da espionagem propriamente dita) desde sua criação no começo do século. Mesmo assim, durante a II Guerra Mundial o governo britânico alocou as operações encobertas de tipo paramilitar sob a responsabilidade de um Special Operations Executive (SOE), enquanto a propaganda clandestina era feita pelo Political Warfare Executive (PWE), ambas as organizações estando fora do comando do serviço de inteligência. E, nos Estados Unidos, somente depois de 1952 foram alocadas em uma mesma agência governamental a espionagem internacional e a execução de operações encobertas (no que é hoje o Diretório de Operações da CIA). Na maioria dos países que possuem tais capacidades, as operações encobertas são responsabilidade dos serviços de inteligência, que obtêm das tropas especiais de elite das forças armadas os recursos humanos e materiais que lhes faltam internamente na medida em que as operações de influência afastam-se do terreno da propaganda e aproximam-se das ações paramilitares e de guerrilha. A condução dessas operações tende a impactar a dinâmica operacional das funções mais diretamente informacionais da área de inteligência em níveis variados, além de ser um tipo de missão que contribui para a cristalização de uma divisão entre duas culturas organizacionais bastante distintas, entre as pessoas de “ação” (chamadas pejorativamente de “knuckle-draggers”, ou “gorilas” nos Estados Unidos) e as pessoas de “análise” (chamadas pejorativamente de “weenies”, ou “fracotes”, no mesmo país). Embora esse seja o menor dos problemas causados pelas operações encobertas sobre a política internacional, é um tema que afeta diretamente as dinâmicas operacionais da área de inteligência enquanto objeto de estudo da Ciência Política. 1.5 – Conclusão: A função da Inteligência Discutidas as quatro dinâmicas operacionais mais importantes que caracterizam as atividades de inteligência no Estado contemporâneo, uma síntese do que foi discutido até aqui pode ser oferecida como resposta à seguinte pergunta: Por que os governos têm serviços de inteligência? A resposta mais óbvia e direta é que os governantes esperam maximizar poder através do desenvolvimento de capacidades de inteligência. De modo geral, a literatura destaca oito utilidades principais que os governos teriam para esses sistemas, que seriam também a principal justificativa pública utilizada para a sua manutenção. Em primeiro lugar, esperar-se-ia que a inteligência contribuísse para tornar o processo decisório governamental nas áreas relevantes de envolvimento (política externa, defesa nacional e ordem pública) mais racional e realista, ou seja, menos baseado em intuições e convicções pré-concebidas e mais baseado em evidências e reflexão. Em segundo lugar, que o processo interativo entre policymakers (responsáveis pelas políticas públicas, sejam eles funcionários de carreira, dirigentes nomeados ou políticos eleitos) e oficiais de inteligência produzisse efeitos cumulativos de médio prazo, aumentando o nível de especialização dos tomadores de decisões e de suas organizações. Em terceiro lugar, que a inteligência pudesse apoiar diretamente o planejamento de capacidades defensivas e o desenvolvimento e/ou aquisição de sistemas de armas, de acordo com o monitoramento das sucessivas inovações e dinâmicas tecnológicas dos adversários. Em quarto lugar, que apoiasse mais diretamente as negociações diplomáticas em várias áreas, não tanto afetando a definição da política externa mas propiciando ajustes táticos derivados da obtenção de informações relevantes. Em quinto lugar, que a inteligência fosse capaz de subsidiar o planejamento militar e a elaboração de planos de guerra, bem como suportar as operações militares de combate e outras (operações de paz, assistência, missões técnicas etc). Em sexto lugar, que a inteligência possa alertar os responsáveis civis e militares contra ataques surpresa, surpresas diplomáticas e graves crises políticas internas que podem nunca ocorrer, mas para as quais os WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 23 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA governantes preferem “assegurar-se” ao invés de arriscar. Em sétimo lugar, sistemas de inteligência deveriam monitorar os alvos e ambientes externos prioritários para reduzir incerteza e aumentar o conhecimento e a confiança, especialmente no caso de implementação de tratados e acordos internacionais sem mecanismos de inspeção in loco. Finalmente, sistemas de inteligência serviriam para preservar o segredo sobre as necessidades informacionais, as fontes, fluxos, métodos e técnicas de inteligência diante da existência de adversários interessados em saber tais coisas. Por mais incompleta e telegráfica que seja essa lista, ela implica um papel menos “dramático” do que se poderia pensar para a atividade de inteligência enquanto dimensão do poder estatal. Claro que casos como o do telegrama Zimmerman ou a ruptura dos códigos alemães na II Guerra têm impacto direto sobre o curso dos acontecimentos históricos, mas eventos assim são relativamente raros. Normalmente, a atividade de inteligência visaria a otimizar a posição internacional de um país ou organização, não a transformá-la radicalmente. Mesmo na guerra, onde o impacto da inteligência é mais imediato, também predominam os efeitos de otimização. A superioridade informacional proporcionada pelas dinâmicas operacionais da atividade de inteligência permite, ao menos em tese, uma gestão mais eficiente dos recursos humanos e dos materiais, aumenta a sobrevivência das forças em combate (survivability) e contribui para o bom desempenho das funções de comando. Implica dizer que a capacidade de inteligência de uma força armada precisa ser avaliada em termos de seu valor absoluto (grau de aproximação em relação a algum tipo de critério sobre o que seria a realidade) e relativo (contraste com a inteligência disponível para os comandantes das forças inimigas). Embora inteligência seja apenas uma das dimensões que afetam a performance do comando na guerra, ela pode constituir um fator crítico na condução das operações, pois permite agilizar o ciclo de tomada de decisões e resposta dos comandantes das forças amigas, ao mesmo tempo que opera desorganizando moral e analiticamente o ciclo de tomada de decisões do comando inimigo, reduzindo sua capacidade de resposta às iniciativas e eventualmente destruindo sua vontade de seguir lutando. Em particular, inteligência superior é um fator crítico na guerra de comando e controle (C2 warfare), na medida em que cria fricção e aumenta a entropia no chamado ciclo OODA (ObservOrient-Decide-Act) das forças inimigas. Por vezes, no entanto, a atividade de inteligência também causa efeitos transformadores sobre a própria natureza das operações militares. A Blietzkrieg alemã contra a França em 1940, bem como o impacto da ruptura dos códigos de comunicação alemães no Mar do Norte em 1915-1918 ou no Atlântico em 1943-1945, que alteraram a dinâmica da guerra naval, ou ainda o papel da inteligência de imagens no uso da artilharia e do bombardeio desde a II Guerra Mundial até a Guerra da Iugoslávia de 1999, são todos exemplos de efeitos transformadores da natureza dos engajamentos, efeitos que foram além da mera otimização do uso de recursos escassos. É importante destacar, porém, que tais efeitos de “transformação” resultam tanto ou mais da eventual qualidade superior dos processos de análise, produção e disseminação de inteligência, do que da mera quantidade de informações coletadas. Pelo contrário, o excesso de informações captadas por uma infinidade de sensores e canalizadas através das múltiplas instâncias de comando pode contribuir para sobrecarregar as instâncias de comando e planejamento. Para David Kahn (1995:95), a função predominante de otimização de recursos materiais e psicológicos seria uma das três características centrais da inteligência, observável nas áreas civil e militar. As outras duas características seriam mais visíveis no âmbito militar e envolveriam, por um lado, o reconhecimento do papel auxiliar da inteligência em relação à capacidade combatente e, por outro lado, a associação eletiva entre a defesa e a inteligência. Segundo George O’Toole (1990:39-44), dessa “lei de Kahn” desdobram-se quatro corolários: 1) a ênfase na defesa tende a ser acompanhada pela ênfase na inteligência. 2) a ênfase no ataque tende a ser acompanhada pela ênfase na contra-inteligência para garantir segurança operacional e surpresa. 3) em situações de impasse e equilíbrio de forças os dois lados tendem a enfatizar a busca de inteligência. 4) as operações ofensivas que adquirem características defensivas tendem a aumentar a ênfase na inteligência. Sem recusar completamente essa hipótese, Michael Herman (1996) chama a atenção para evidências históricas que poderiam enfraquecer-lhe a universalidade. Por exemplo, a qualidade superior da inteligência de que dispunham os alemães na invasão da Noruega em 1940, ou os WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 24 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA japoneses no ataque contra a frota norte-americana do Pacífico em Pearl Harbor em 1941, ou ainda e de modo mais geral, a superioridade da inteligência aliada a partir da metade da II Guerra, situações que evidenciam que a inteligência pode favorecer tanto o ataque quanto a defesa. Mais ainda, Michael Herman afirma que a superioridade em inteligência reflete em parte uma superioridade militar já existente. Afinal, imagens são melhor obtidas pelo lado que possui superioridade aérea, assim como são as forças vitoriosas no campo de batalha que tendem a extrair mais informações úteis de prisioneiros de guerra e documentos capturados, bem como é o exercício do comando do mar que potencializa a obtenção de material criptográfico crucial para a decodificação e decifração de sinais. Não se trata de substituir o entendimento equivocado de que a inteligência é a arma do fraco pelo argumento simétrico (e igualmente equivocado) de que a inteligência sempre favorece o forte. Tratase, sim, de destacar que o desenvolvimento de capacidades de inteligência é demorado e depende das experiências prévias de cada país. Em resumo, inteligência não garante a vitória num confronto entre vontades e nem pode dizer o que vai ocorrer no futuro. Como ocorre em qualquer sistema de informação, os fluxos de inteligência são parcialmente estruturados e se prestam a um gerenciamento bastante incerto. Além disso, a complexidade técnica e os grandes volumes de informações processados dificultam a integração das etapas do ciclo da inteligência e o atendimento ágil das necessidades dos usuários. Finalmente, os riscos associados às contra-medidas de segurança e às operações de contra- inteligência obrigam a coleta de inteligência a conviver com uma forte dose de segredo, auto-refreamento e redundância, que impõe limites muito claros à agilidade e também à transparência na condução das operações. Embora possa ser decisiva em certos momentos especiais na guerra e na paz, em geral os governos contam com a inteligência para reduzir a incerteza nas decisões sobre política externa, defesa nacional e ordem pública, para aumentar a segurança nacional e para posicionarem-se melhor no sistema internacional. 2 – Inteligência: Perfil Organizacional “The intelligence and security activities of the nations (…) are the products of many factors – national interests, international obligations (…), the technology available for intelligence collection, and the resources a particular nation can afford to devote to intelligence and security activities.” Jeffrey T. Richelson, Foreign Intelligence Organizations, 1988, p. 307. Sistemas governamentais de inteligência consistem de organizações permanentes e atividades especializadas na coleta, análise e disseminação de informações sobre problemas e alvos relevantes para a política externa, a defesa nacional e a garantia da ordem pública de um país. Serviços de inteligência são órgãos do poder executivo que trabalham prioritariamente para os chefes de Estado e de governo e, dependendo de cada ordenamento constitucional, para outras autoridades na administração pública e mesmo no parlamento. São organizações que desempenham atividades ofensivas e defensivas na área de informações, em contextos adversariais onde um ator tenta compelir o outro à sua vontade. Nesse sentido, pode-se dizer que essas organizações de inteligência formam, juntamente com as forças armadas e as polícias, o núcleo coercitivo do Estado contemporâneo. Serviços de inteligência não são meros instrumentos passivos dos governantes, agentes perfeitos de sua vontade ou mesmo materializações de um tipo-ideal de burocracia racional-legal weberiana. Antes de mais nada, porque sua atuação impacta as instituições e o processo político de muitas formas e porque essas organizações têm seus próprios interesses e opiniões acerca de sua missão. Embora o tema da intervenção dos serviços de inteligência e de segurança na vida política mais geral seja de grande interesse, tratar os serviços de inteligência como variáveis independentes que influenciam as instituições políticas tende a ser um esforço frustrante quando se sabe tão pouco sobre a origem e o desenvolvimento desses serviços. Por isso, no texto que segue os serviços de inteligência serão considerados como variáveis dependentes. Como não existem ainda estudos sistemáticos sobre o processo através do qual os serviços de inteligência chegaram ou poderiam chegar a tornar-se organizações dotadas de “valor e estabilidade”, ou seja, instituições, o procedimento expositivo adotado procurará responder sistematicamente à pergunta sobre a origem, o desenvolvimento e a atual configuração organizacional dos sistemas nacionais de inteligência, mas sem deixar de explicitar as lacunas existentes no conhecimento a respeito. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 25 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA O capítulo está organizado em cinco seções principais. A primeira seção discutirá o contexto institucional a partir do qual é possível entender o surgimento dos serviços de inteligência. A segunda seção discutirá o processo de diferenciação organizacional da atividade de inteligência desde suas matrizes históricas na diplomacia, na guerra e no policiamento. A terceira seção discutirá o processo de expansão vertical e horizontal da atividade de inteligência no Estado contemporâneo, o qual resultou, já na segunda metade do século XX, na formação de sistemas nacionais de inteligência. Na quarta seção serão feitas considerações analíticas sobre o processo de formação dos sistemas nacionais e serão descritos de forma muito breve - e a título de exemplo - os sistemas de inteligência dos Estados Unidos e da Grã-Bretanha, sua estrutura organizacional e seus custos anuais. Nas considerações finais do capítulo serão sumarizados os principais constrangimentos organizacionais ao desempenho ágil dos sistemas de inteligência. 2.1 - O Estado Moderno e a Função de Inteligência: As primeiras organizações permanentes e profissionais de inteligência e de segurança surgiram na Europa moderna a partir do século XVI. Tais organizações surgiram no contexto da afirmação dos Estados nacionais como forma predominante de estruturação da autoridade política moderna. Como se sabe, o processo de afirmação dos Estados nacionais europeus foi marcado por importantes conflitos sociais, descontinuidades históricas e uma intensa competição entre os Estados nacionais e desses Estados com outros tipos de unidades políticas, particularmente os impérios, as cidades-estado e as ligas de cidades. A melhor explicação disponível sobre essa dinâmica é fornecida por Charles Tilly, em seu livro Coercion, Capital and European States (1992). O argumento de Tilly pode ser resumido assim: a posse concentrada de meios de coerção foi utilizada por grupos sociais previamente dominantes na ordem feudal, em alguns casos aliados à burguesia ascendente nas cidades, para aumentar a população e o território sobre os quais pretendiam exercer poder. A gênese desse processo está relacionada a pressões impostas pelos califados árabes e pelas movimentações de povos na estepe oriental da Europa, que forçaram os governantes europeus a redefinirem competitivamente suas bases de dominação política e sua infraestrutura econômica. Quando uma coalizão que tentava expandir sua base de recursos encontrou grupos com meios de força comparáveis e que tornavam muito elevados os custos da dominação, a guerra foi o mecanismo de resolução do impasse. Conquistadores transformaram-se em governantes quando tentaram exercer um controle estável sobre as populações e territórios cada vez mais extensos, única forma de garantir um acesso regular aos bens e serviços ali produzidos. Nas diversas regiões da Europa e depois do mundo, os governantes mais poderosos fixaram os termos da guerra e coube aos governantes menos poderosos escolher entre a acomodação e o esforço extenuante de preparação para a guerra. Para todos os governantes, a guerra e a preparação para a guerra dependeram da extração de recursos essenciais (dinheiro, soldados, provisões, armas etc.) que suas populações não estavam dispostas a entregar sem compensações ou, no mínimo, o fariam a um elevado custo político. Assim, além dos limites estabelecidos pela dinâmica conflitiva entre as diversas unidades políticas mais ou menos similares, a forma de organização política interna de cada Estado foi condicionada pela organização das principais classes sociais e, principalmente, pelos conflitos entre os grupos sociais e de alguns daqueles grupos sociais (especialmente proprietários e trabalhadores) com as elites políticas governantes. Na medida em que os custos da guerra aumentaram e os conflitos sociais intensificaram-se com a industrialização, os construtores de Estados (state-builders) foram compelidos a barganhar direitos políticos e favores econômicos por recursos, que variaram desde impostos até a prestação de serviço militar. Essa barganha foi em grande medida tornada irreversível por sua fixação legal e transformação em costume quase-legal e esteve na gênese do que hoje chama-se cidadania. No entanto, o tipo de Estado que predominou em cada período e região dependeu da combinação entre diferentes taxas de acumulação e concentração de meios de coerção (controlados pelos governantes) e diferentes taxas de acumulação e concentração de capital (controlado por agentes privados). Em diferentes regiões da Europa os governantes utilizaram estratégias extrativas e de dominação que podem ser caracterizadas como de intensa aplicação de coerção (áreas de poucas cidades e predominância agrícola) ou como de intensa inversão de capital (áreas de muitas cidades e predominância comercial, com produção voltada para o mercado). As diferentes estratégias de WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 26 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA intensa coerção e de “coerção capitalizada” poderiam ajudar a entender, ainda que remotamente, as diferenças doutrinárias e organizacionais entre os primeiros serviços de inteligência e segurança surgidos, por exemplo, na Rússia e na Inglaterra no século XVI. A variação na escala da guerra, bem como a formação, a partir do século XVII, de um sistema europeu de Estados soberanos foram dois fatores determinantes para a vantagem comparativa daqueles Estados que apresentaram trajetórias de “coerção capitalizada”. Segundo Charles Tilly (1996:45-88), esse tipo de trajetória ocorreu quando coalizões de burocratas, capitalistas e estadistas foram mais eficientes na gestão da guerra, beneficiaram-se de instituições jurídicas e administrativas mais fortemente racionalizadas, mantiveram-se mais estavelmente associados às classes sociais internas através da constitucionalização do exercício do poder e estiveram mais intensamente envolvidos na construção de infra- estrutura econômico-social, provimento de serviços e adjudicação de conflitos. Ao cabo desse processo, já bem avançado o século XIX, os diversos tipos de Estados começaram a convergir para o que passou então a ser reconhecido como o modelo de Estado nacional soberano, caracterizado pela autoridade exclusiva e constitucionalmente delimitada sobre um território e uma população, bem como pelo monopólio do uso legítimo da força. Eventualmente, o resultado desse processo levou à prolongada hegemonia dos Estados capitalistas com sistemas políticos democráticos no sistema internacional, primeiro com a Inglaterra e depois com os Estados Unidos. Esse é um tipo de narrativa sobre o surgimento e a mudança institucional que combina uma dinâmica evolutiva (a guerra como mecanismo de seleção) com uma forte ênfase intencional (interação entre grupos sociais delimitados produzindo consequências mais ou menos desejáveis sobre normas e organizações adaptativas). Como lembra Robert Goodin (1996:24-37), é inegável que o acaso e os acidentes também jogam um papel no desenho institucional de políticas, mecanismos sociais e sistemas. Porém, mesmo nos casos em que esse papel é mais evidente, é difícil isolar o puro acaso daquilo que são as consequências não intencionais de ações perfeitamente racionais ou, por outro lado, daquilo que são resultados agregados de interações entre diversos atores, resultados esses que diferem das intenções iniciais de qualquer ator em particular. É extremamente difícil precisar a exata combinação entre acaso, evolução e intencionalidade no desenho inicial e na trajetória de qualquer organização ou procedimento, seja ele o Estado moderno ou os serviços de inteligência. Feita a ressalva, assumo provisoriamente que o surgimento dos serviços de inteligência modernos foi predominantemente um fenômeno causado por atos intencionais. Os reis e ministros dos Estados europeus modernos, em seu processo de competição com outros governantes e no esforço de implementar sua dominação sobre territórios e populações cada vez mais amplos, mobilizaram recursos e criaram organizações especializadas na obtenção de informações. A criação de serviços secretos (mais tarde conhecidos como serviços de inteligência) foi uma das respostas às necessidades mais gerais dos governantes em termos de redução dos custos de transação associados à obtenção de informações. Do ponto de vista das explicações disponíveis sobre por que organizações e instituições surgem, a construção de serviços de inteligência pode ser interpretada em parte como um resultado direto do puro cálculo estratégico de governantes perseguindo fins previamente dados (vencer a guerra e ampliar sua dominação), e em parte como uma resultante mais ou menos imprevisível do esforço desses mesmos governantes para adequarem seus fins a um contexto situacional que precisava ser melhor compreendido e no qual seu próprio papel enquanto sujeitos políticos interessados era pouco claro. Num contexto internacional altamente competitivo, incerto e marcado por altos custos de obtenção de informações necessárias à compreensão das intenções e capacidades de outros atores relevantes, os governantes modernos lançaram mão de vários instrumentos que pudessem reduzir tais custos, desde casamentos e outras formas de alianças dinásticas até o uso de serviços secretos. Dada a trajetória de afirmação do Estado moderno descrita por Charles Tilly, proposições adicionais sobre a natureza das novas organizações de inteligência deveriam considerar não apenas sua função primária (prover informações), mas também as funções secundárias associadas ao uso dessas informações para a dominação e a maximização de poder em diferentes períodos e contextos nacionais. Nesse sentido, os serviços de inteligência modernos teriam surgido com uma dupla face, informacional e coercitiva a um só tempo. Essa dupla natureza (informacional e coercitiva) caracteriza ainda hoje os sistemas nacionais de inteligência existentes. É preciso reconhecer, porém, que há pouca evidência histórica disponível para ilustrar essa suposição, especialmente em relação aos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 27 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA séculos XVI-XVIII. Mesmo do ponto de vista teórico, os dois autores contemporâneos mais importantes que mencionam algo a respeito tendem a enfatizar características e funções opostas. Por um lado, Anthony Giddens discute, em seu livro National-State and Violence (1987), como o controle governamental de informações relevantes sobre a população e os recursos de cada país foi crucial para a gênese e a consolidação da autoridade soberana do Estado nacional, tanto no plano interno como no plano internacional ou sistêmico: “(…) modern societies have been ‘information societies’ since their inception. There is a fundamental sense, as I have argued, in which all states have been ‘information societies’, since the generation of state power presumes reflexively monitored system reproduction, involving the regularized gathering, storage, and control of information applied to administrative ends. But in the nation-state, with its peculiarly high degree of administrative unity, this is brought to a much higher pitch than ever before. (...) Records, reports and routine data collection become part of the day-to-day operation of the state, although of course not limited to it.” GIDDENS (1987:178). Por outro lado, Charles Tilly mencionou o papel dos serviços de inteligência enquanto um meio direto de coerção: “Governantes (...) enfrentaram alguns problemas comuns, mas o fizeram de modo diferente. Forçosamente, distribuíram os meios de coerção de forma desigual por todos os territórios que tentaram controlar. Na maioria das vezes, concentraram a força no centro e nas fronteiras, tentando manter a sua autoridade entre um e outro por meio de grupos coercivos secundários, leais aplicadores locais de coerção, patrulhas volantes, e pela disseminação de órgãos de inteligência”. TILLY (1996:72). Note-se que Tilly enfatiza a função coercitiva em detrimento do papel informacional dos órgãos de inteligência, enquanto Giddens fala da importância dos sistemas de informação indiferenciadamente, sem atentar para o que há de específico no caso dos serviços de inteligência. Como o foco de ambos é o Estado moderno e não os serviços de inteligência, é compreensível que tenham destacado apenas a faceta do fenômeno que servia mais imediatamente a seus propósitos. No caso do comentário de Tilly, entretanto, há dois riscos mais sérios. Em primeiro lugar, tratar os serviços de inteligência genericamente como organizações repressivas impede que se compreendam suas especificidades (o papel central do segredo e do conhecimento) em relação às principais organizações de força do Estado, tais como as forças armadas e as polícias. Em segundo lugar, há o risco de se tratar os serviços de inteligência contemporâneos como se fossem a mera continuidade das primeiras organizações modernas, que teriam surgido totalmente prontas e imutáveis como resultado da vontade de poder de déspotas iluminados. Na verdade, a trajetória moderna dos serviços de inteligência é marcada por grandes descontinuidades entre os primeiros serviços secretos surgidos no contexto do Absolutismo e as inúmeras organizações que configuram atualmente os sistemas nacionais de inteligência e segurança. É justamente essa diversidade de funções e perfis organizacionais que torna equivocado caracterizar os serviços de inteligência exclusivamente como organizações de força do Estado. Como parte do núcleo coercitivo do Estado contemporâneo, os serviços de inteligência desempenham um papel predominantemente informacional, com algumas funções diretamente coercitivas sendo exercidas por unidades específicas no sistema. Além da descontinuidade histórica e da diversidade de funções exercidas por diferentes componentes dos sistemas nacionais, um outro problema na caracterização dos modernos serviços de inteligência é que as macro-funções desempenhadas por eles são apenas uma parte da explicação sobre por que eles surgiram e qual é seu perfil organizacional atual. A outra parte da explicação é política, não funcional. Para Amy Zegart (1999:42), o desenho inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de segurança nacional seria fortemente condicionado por três fatores, em ordem decrescente de importância: a) as escolhas estruturais feitas no surgimento da agência; b) os interesses e preferências cambiantes dos atores relevantes; c) os eventos externos que, dependendo da intensidade e do timing, podem forçar a mudança organizacional. A formação dos sistemas nacionais de inteligência acompanhou as linhas mais gerais da delimitação WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 28 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA de identidades nacionais, construção do Estado (state-building), institucionalização democrática, utilização de sistemas de informação e usos de meios de força na era moderna. Mas, para ir além da contextualização proporcionada pelo livro de Charles Tilly seria necessário conhecer não apenas os resultados contingentes de inúmeros conflitos político-burocráticos no momento do surgimento de cada organização, mas também como os atores relevantes modificaram seus interesses, preferências e cálculos de custo e benefício diante dos eventos decisivos que marcaram a trajetória de cada organização. Seria preciso, também, ser capaz de reconhecer os diferentes ritmos da formação de sistemas nacionais em cada país e, dentro de cada país, como o “crescimento institucional” variou para cada tipo de organização. Lamentavelmente, isso está muito além do que o estágio atual da pesquisa nessa área permite. É possível, no entanto, dar um passo além e especificar melhor as matrizes organizacionais dos atuais serviços de inteligência. Para isso, na próxima seção serão utilizados dados referentes a diferentes países e a diferentes momentos históricos para a composição de um primeiro esboço interpretativo. 2.2 - Origens: Diplomacia, Guerra e Policiamento O surgimento dos sistemas nacionais de inteligência está associado, segundo Michael Herman (1996:02-35), ao lento processo de especialização e diferenciação organizacional das funções informacionais e coercitivas que eram parte integral da diplomacia, do fazer a guerra, da manutenção da ordem interna e, mais tarde, também do policiamento na ordem moderna. Embora as primeiras organizações surgidas em cada uma dessas matrizes tenham desaparecido e as organizações atuais tenham uma escala de operações muito maior e mais complexa do que seus precedentes históricos, pode-se obter uma visão mais concreta da dupla natureza dos serviços de inteligência analisando-se cada uma dessas três matrizes organizacionais separadamente. 2.2.1 - Diplomacia e Inteligência Externa: As relações diplomáticas permanentes que se tornaram comuns na Europa entre os séculos XVI e XVII, seguindo os passos da diplomacia renascentista, serviam tanto para a representação e a negociação dos interesses coletivos das unidades políticas quanto para a obtenção e comunicação de informações. Aliás, foi somente em meados do século XVII que as três grandes potências européias da época (Inglaterra, França e Espanha) passaram a contar com arquivos diplomáticos organizados e utilizáveis para a recuperação de informações. As chancelarias também passaram a coletar novas informações, tanto ostensivamente como por meios encobertos. No caso da Inglaterra, desde que Francis Walsingham tornou-se secretário de Estado de Elizabeth I em 1573, uma das funções mais importantes da secretaria passou a ser o controle do que era chamado então de “the intelligence”. O termo não significava apenas a provisão de informações extraordinárias sobre potências inimigas (especialmente sobre a frota espanhola antes de 1587) ou conspiradores internos (como os jesuítas e outros, perseguidos com base no Treason Act de 1351), mas incluía também um suprimento regular de notícias internacionais e informações sobre o mundo. A maior parte dessas notícias era relativamente rotineira e não provinha de fontes secretas, embora isso deva ser relativizado porque a própria distinção moderna entre domínio público e secreto não era clara naquele período. Até o surgimento dos jornais privados e do advento da liberdade de imprensa, os governos tendiam a ver toda a informação sobre a população, a administração e os recursos do país como propriedade real, portanto secreta em alguma extensão. Assim, os governos consideravam aceitável que seus embaixadores residentes em outros países tentassem obter aquelas informações por todos os meios disponíveis, inclusive recrutando espiões e interceptando clandestinamente as mensagens de terceiros. Isso não foi alterado substancialmente sequer pelas novas práticas introduzidas depois da Paz de Westfália (1648). Na Inglaterra, as redes de agentes controladas quase pessoalmente pelo Secretário de Estado continuaram a existir muito depois da morte de Sir Walsingham em 1590, tanto sob Cromwell como depois da restauração e da Revolução Gloriosa (1688), indicando que as novas atividades eram tomadas como necessárias à afirmação da autoridade do Estado nacional emergente e não meramente um capricho dos diferentes regimes políticos. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 29 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA O próprio aumento do tráfego diplomático, juntamente com o surgimento de serviços de correio na Europa moderna, demandaram um uso regular de cifras e códigos secretos de escrita (criptografia) para proteger as comunicações entre as chancelarias e suas embaixadas. Com isso, surgiram as primeiras organizações especializadas na interceptação clandestina e decodificação (criptologia) de mensagens, as chamadas “câmaras negras” (black chambers). Não obstante a notável continuidade histórica do cabinet noir francês, instituído por Henrique IV em 1590 e famoso sob a direção do cardeal Richelieu no século seguinte, o exemplo inglês é mais típico inclusive pela descontinuidade entre as primeiras organizações e os serviços de inteligência atuais. Em 1782, com a separação das funções do secretário de Estado em dois escritórios distintos, o Foreign Office para os assuntos exteriores e o Home Office para os assuntos internos da Inglaterra, essa divisão das funções antes atribuídas ao secretário de Estado refletiu-se na divisão da atividade de inteligência ao longo das mesmas linhas interna e externa. Além disso, a própria coleta de informações sobre o exterior foi dividida em duas atividades separadas, a espionagem e a criptologia, sendo que o escritório secreto de criptologia foi transferido para o serviço postal inglês, onde os despachos diplomáticos e a correspondência considerada sensível continuaram regularmente sendo interceptados, copiados, reenviados e, quando necessário e possível, decodificados até 1844. No final do século XVIII o parlamento britânico passou a votar uma verba secreta anual para financiar as operações de inteligência do Foreign Office e do Secret Office and Deciphering Branch (criptologia), dinheiro empregado também para comprar apoios políticos e militares no continente. Aquele Secret Service Fund foi administrado pelo War Office até o começo do século XX, quando se formaram as atuais agências britânicas de inteligência. Desdobramentos organizacionais desse tipo continuaram a ocorrer mais tarde e, de modo geral, as funções secretas de negociação, conspiração, inteligência e espionagem exercidas desde a época Elizabethana pela diplomacia britânica, assim como pela francesa, austríaca, piemontesa, prussiana ou russa, estão na origem dos serviços especializados formados entre a segunda metade do século XIX e os anos iniciais da Guerra Fria. Há, no entanto, diferenças cruciais na escala das atividades e na dimensão das organizações. Enquanto a agência central de criptologia do governo britânico nos dias de hoje, o Government Communications Headquarters (GCHQ), empregava 6.076 funcionários e tinha um orçamento de centenas de milhões de libras esterlinas em 1995, no seu auge durante o século XVIII, o Secret Office and Decyphering Branch possuía um total de nove empregados e só passou a ter um modesto orçamento regular a partir de 1782. Além da escala comparativamente diminuta das operações de coleta, a análise e validação das informações obtidas eram feitas de forma completamente ad hoc. Não havia staffs separados e especializados de analistas, pois a própria atividade de inteligência não se separava da formulação e implementação de políticas e linhas de ação. Para acompanhar a formulação sintética de Michael Herman (1996:13), pode-se dizer que para os reis e seus ministros a atividade de inteligência era parte integral das funções regulares do estadista, sendo inseparável do exercício do poder A separação progressiva entre as funções de inteligência e de formulação e implementação de políticas (policymaking) foi tão lenta quanto a separação entre as atividades diplomáticas legítimas e as operações secretas de influência e espionagem. Em 1939, por exemplo, o embaixador francês em Berlim ainda dispunha de fundos secretos destinados à compra de informações. Em tese, porém, hoje em dia tratam-se de dois ramos separados e especializados da ação estatal no plano internacional. Dado que a maioria dos alvos dos serviços de inteligência é externa, deriva daí uma acentuada disputa burocrática pelo controle dos fluxos de informação do exterior para os governantes. É bem conhecida a rivalidade existente entre a Central Intelligence Agency (CIA) e o State Department nos Estados Unidos, o que também ocorre entre o Secret Intelligence Service (SIS) e o Foreign and Commonwealth Office (FCO) na Grã-Bretanha. Atualmente, muitos países mantêm organizações de inteligência subordinadas aos seus ministérios de relações exteriores para apoiar especificamente o acompanhamento de crises, negociações de acordos, tratados internacionais etc. Esse é o caso do Bureau of Intelligence and Research (INR) do Departamento de Estado norte-americano, que faz parte do sistema de órgãos de inteligência do governo dos Estados Unidos embora não realize operações próprias de coleta de informações (a não ser aquelas ostensivamente disponíveis ao público nos países com representação diplomática dos Estados Unidos). O INR recebe informações coletadas por outras agências e as analisa para o Secretário de Estado. Na Inglaterra, o departamento de análise e pesquisa do FCO cumpre funções semelhantes, embora não seja membro formal do sistema nacional de inteligência daquele país. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 30 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Além de ter gerado suas próprias organizações específicas de inteligência, a diplomacia moderna também esteve na origem remota de muitas das chamadas agências nacionais de coleta de inteligência externa (foreign intelligence). Nacional, nesse contexto, indica apenas que se tratam de organizações que respondem diretamente ao primeiro-ministro, presidente ou secretário-geral, e que prestam serviço para o governo como um todo e não somente para um ministério específico. São exemplos desse tipo de organização a CIA norte-americana e o SIS britânico, citados anteriormente, bem como a Direction Générale de la Sécurité Extérieure (DGSE) francesa, o HaMossad le Modiin ule-Tafkidim Meyuhadim (MOSSAD) israelense, o atual Sluzhba Vnezhney Rasvedki (SVR) russo, o Servizio perle Informazioni Generali e Sicurezza (SISDE) italiano ou ainda o Bundesnachrichtendienst (BND) alemão. Muitos outros serviços poderiam ser citados, mas bastam alguns exemplos de organizações mais conhecidas e ainda atuantes hoje em dia. Os serviços de inteligência exterior são “clássicos”, pois têm como característica comum o fato de serem os principais responsáveis pela espionagem propriamente dita e também pela coleta de informações a partir de fontes ostensivas fora do território nacional. Eles diferem bastante de um país para outro em termos organizacionais, na escala de operações e pela composição predominantemente civil ou militar de seus oficiais de inteligência. Mas isso não impede que cada um desses serviços veja a si próprio como primus inter pares dentro do sistema de inteligência de seus respectivos países. Por outro lado, a despeito de suas raízes na diplomacia secreta presente na trajetória de qualquer Estado antigo ou moderno, há uma grande descontinuidade históricoorganizacional entre as primeiras redes modernas de agentes à maneira da Inglaterra Elizabethana e os atuais serviços de inteligência exterior, que surgiram e se desenvolveram somente no século XX. Nesse sentido, embora a primeira imagem quando se fala de serviços de inteligência remeta às organizações responsáveis por humint, tais como o SIS e o MOSSAD, na maioria dos países esse componente dos sistemas nacionais de inteligência não é o maior, o mais antigo ou o que produz maior volume de informações de valor crítico. Por exemplo, as organizações militares de inteligência surgiram já na segunda metade do século XIX, tendo se tornado muito maiores e mais numerosas do que os serviços de inteligência exterior. Essa segunda matriz de origem dos atuais serviços de inteligência será considerada a seguir. 2.1.1 - Guerra e Inteligência de Defesa: No caso da guerra, o registro da presença de atividades de inteligência é muito mais antigo. Relatos sobre o uso de espiões militares remontam ao velho testamento da Bíblia, assim como figuram prescritivamente no manual de Sun Tzu sobre a arte da guerra, o Ping- fa, escrito na China no começo do século IV a.C. Na verdade, o reconhecimento do campo de batalha e do inimigo sempre foi considerado um elemento essencial da capacidade de comando do general. Entretanto, desde a época dos speculatores utilizados pelas legiões romanas de César até os corpos de guias usados pelos franceses e britânicos durante as Guerras Napoleônicas, a inteligência militar foi exercitada num contexto institucional que Martin Van Creveld (1985:17-57) chamou de a “idade da pedra do comando”. Foi somente com as mudanças radicais introduzidas na área militar durante o período da Revolução Francesa e de Napoleão que começou a mudar o significado da inteligência para o comando. O quartel-general móvel de Napoleão, pelo menos desde 1805, consistia de três elementos principais e independentes entre si, a Maison privada do próprio imperador, o État Majeur de l’Armée e o quartelgeneral administrativo. Paradoxalmente, o órgão mais importante para o comando do Grand Armée era a Maison, à qual estava subordinado um bureau de estatística encarregado da inteligência estratégica sobre os inimigos, bem como um bureau topográfico, encarregado de recolher as informações das várias fontes e prepará-las, inclusive cartograficamente, para que Napoleão as estudasse diariamente. As fontes de informação eram diversas, desde mapas, jornais e livros, passando por informantes e espiões plantados em cada cidade importante, até correspondências interceptadas e decodificadas pelo cabinet noir (criado em 1590). A inteligência operacional durante as campanhas era obtida também pelas patrulhas de cavalaria das unidades e passada para o bureau topográfico através do estado- maior, que incluía em sua organização uma seção para interrogar prisioneiros, camponeses e desertores. O próprio Imperador tinha uma rede pessoal de fontes de inteligência, seus officiers d’ordonnance e generais ajudantes que ele enviava em missões especiais. Entretanto, embora organizada numa escala massiva como nunca antes havia existido, os métodos e as tecnologias de inteligência disponíveis para Napoleão permaneciam em grande medida WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 31 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA os mesmos da Antigüidade. Além de imperador e comandante militar, Napoleão era seu próprio oficial de inteligência. Como destaca Van Creveld (1985:68), essa capacidade de Napoleão para analisar e processar informações pessoalmente, eliminando muitos passos e camadas organizacionais intermediárias, ajuda a explicar a velocidade e a decisão da forma napoleônica de fazer a guerra e comandar o Grand Armée. Por outro lado, alerta Creveld, isso também poderia induzir a tomadas de decisão repentinas, baseadas em desejos mais do que em análise, em segundos pensamentos ou mesmo na falta de pensamento adequado. Apesar desses problemas, a mudança na utilização da inteligência foi parte integrante da revolução nas estruturas de comando iniciada pelas Guerras Napoleônicas e que duraria praticamente até o final da I Guerra Mundial. Ao longo do século XIX, a mobilização de exércitos com milhões de soldados e a construção de grandes marinhas, as novas tecnologias de armamentos e de propulsão, o uso de ferrovias e telégrafos (mais tarde rádios), enfim, a nova escala e a complexidade da gestão do fenômeno bélico modificaram profundamente as estruturas de comando, controle, comunicações e inteligência (C3I) das forças armadas. O modelo mais influente de estruturação do comando foi o do estado-maior geral prussiano, que começou a afirmar-se desde 1815 e alcançou grande prestígio internacional após as vitórias da Prússia sobre a Áustria (1866) e a França (1870). Como lembra Martin Van Creveld: “It was not until the middle of the nineteenth century that the traditional coup d’oeil with its implications of immediate personal observation gave way to the German-derived ‘estimate of the situation’, implying map study and written reports”. CREVELD (1985:57). A inteligência militar no século XX reteve algo dessa nova exigência de cientificidade e abrangência destacada por Van Creveld. Em comparação com a linha evolutiva derivada da diplomacia secreta dos séculos XVI a XVIII, pode-se dizer que a inteligência militar acrescenta à conspiração e espionagem uma nova dimensão, a da coleta sistemática de informações básicas e menos perecíveis, seguida pela análise dos fatos e idéias novas tendo como pano de fundo aqueles acervos informacionais, redundando na apresentação de relatórios de inteligência orientados para tornar mais racionais e “informadas” as decisões de comando. No começo do século XX, a maioria dos países europeus havia adotado alguma versão de estadomaior geral que incluía esferas de responsabilidade formalmente separadas em seções (operações, planejamento, inteligência, logística, comunicações etc.). Cabe notar, entretanto, a observação de Creveld de que, mesmo no caso prussiano, na prática ainda não havia uma especialização completa de funções divididas entre as seções de operações, doutrina e inteligência. Isso teria implicado, pelo menos até a I Guerra Mundial, em significativa superposição das atribuições dessas seções no estado-maior geral alemão. De modo geral, a experiência da I Guerra Mundial forçou uma maior especialização, principalmente quando às funções de inteligência exercidas pelos bureaus militares de estatística e de topografia desde a primeira metade do século XIX somaram-se as novas seções de “exércitos estrangeiros” (foreign armies), responsáveis pelo estudo das forças armadas dos inimigos potenciais ou efetivos. O relativo atraso da Inglaterra e dos Estados Unidos na adoção do modelo de estados-maiores gerais refletia diferenças constitucionais e políticas, mas também o tamanho bem menor de suas forças armadas até meados do século XIX. Isso se refletiu na demora na criação de staffs e unidades militares de inteligência. No caso inglês, por exemplo, somente depois da Guerra da Criméia (18531856) foram enviados adidos militares permanentes para outros países para observar as forças armadas. Ao mesmo tempo, foi criado um Topographical and Statistical Department subordinado diretamente ao War Office. Em 1873, aquele departamento foi renomeado como Intelligence Branch, seguido da criação de um departamento separado de inteligência para o subcontinente indiano em 1878. Por sua vez, o almirantado (Admiralty) criou um comitê de inteligência em 1882, no mesmo ano em que a Marinha dos Estados Unidos criava a mais antiga organização de inteligência ainda em atividade naquele país, o Office of Naval Intelligence (ONI). No caso britânico, em 1887 foram nomeados pela primeira vez diretores de inteligência no War Office e no Admiralty. A criação de um estado-maior geral após a guerra dos Bôeres (1899-1902) amalgamou o cargo de diretor de inteligência militar (DMI) com o de diretor de operações militares (DMO), num movimento pendular que reflete a instabilidade da nova função de inteligência destacada por Creveld, um indicador de que a institucionalização dos seviços de inteligência ainda estava distante. A posição autônoma do diretor WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 32 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA de inteligência no War Office britânico só voltou a ser restaurada como função independente em 1915. Mesmo então a separação não era completa e a inteligência de sinais (sigint) derivada da interceptação e decodificação de mensagens permaneceu insulada das outras fontes de informações até bem depois da batalha da Jutlândia. As disputas pelo controle dos fluxos informacionais e a precária especialização e coordenação das equipes de analistas foram um problema para a inteligência militar até pelo menos a II Guerra Mundial, como atesta o exemplo norte-americano em Pearl Harbor. Mesmo levando em conta essa separação lenta entre inteligência e as funções de planejamento e operações, as organizações permanentes e especializadas de inteligência militar tornaram-se parte estável das estruturas de comando, controle e comunicações das forças armadas bem antes que surgissem as organizações nacionais de inteligência externa. Depois da II Guerra Mundial, além do staff da seção de inteligência do estado-maior geral, em cada força singular foram sendo criadas unidades especializadas ou staffs de inteligência para os níveis inferiores de comando da força. Além disso, muitos países que possuem ministérios da defesa e uma maior integração das forças armadas criaram também agências de inteligência de defesa (defense intelligence) para apoiar os estados-maiores integrados (joint) e os ministros. São exemplos atuais dessa nova “camada” organizacional o Glavnoye Razvedyvatelonoye Upravlenie (GRU) russo, a Defense Intelligence Agency (DIA) norte- americana, o Servizio perle Informazioni e la Sicurezza Militare (SISMI) italiano, o Agaf Modiin (AMAN) israelense e o Defence Intelligence Staff (DIS) britânico. Com exceção do GRU, instituído entre 1918 e 1924, as demais organizações mencionadas datam do segundo pós-guerra. Cada uma dessas organizações centrais de inteligência de defesa apresenta uma escala e abrangência de capacidades operacionais nas áreas de coleta e análise de informações no exterior que é comparável com a dos serviços nacionais de inteligência exterior de seus países. Em função disso, é conhecida a rivalidade entre a DIA e a CIA, no caso dos Estados Unidos, ou entre o AMAN e o MOSSAD, no caso de Israel, para citar apenas dois exemplos. Quando se somam a essas organizações centrais de inteligência de defesa os recursos e agências de inteligência das Marinhas, Exércitos, Forças Aéreas e outras forças singulares e comandos integrados (joint commands), fica evidente que o componente militar dos sistemas nacionais de inteligência é de longe o maior e mais complexo do ponto de vista organizacional, correspondendo a algo entre cinqüenta e oitenta por cento de todos os recursos de inteligência de qualquer país. Uma descrição satisfatória sobre as relações entre esses orgãos centrais de inteligência militar e as demais organizações, centros e unidades de cada força singular em vários países exigiria um livro inteiro. Sobre o significado da formação de subsistemas de inteligência militar para a configuração final dos sistemas nacionais e a agilidade no ciclo das atividades de inteligência, serão feitas algumas considerações adicionais na seção 2.3. Antes, porém, é preciso destacar ainda uma outra matriz organizacional dos serviços de inteligência contemporâneos. 2.2.2 - Policiamento e Inteligência de Segurança: A terceira matriz histórica dos serviços de inteligência contemporâneos se distingue das duas anteriores por sua ênfase nas chamadas ameaças internas à ordem existente. Trata-se da inteligência de segurança (security intelligence), conhecida também como inteligência interna ou doméstica. As origens das atuais organizações de inteligência de segurança remontam ao policiamento político desenvolvido na Europa na primeira metade do século XIX, decorrente da percepção de ameaça representada por movimentos inspirados na Revolução Francesa e pelo nascente movimento operário anarquista e socialista. As forças especializadas em manutenção da ordem interna desenvolveram técnicas e recursos de vigilância, infiltração, recrutamento de informantes e interceptação de mensagens para a repressão política dos grupos considerados subversivos. Embora o temor da revolução popular tenha diminuído um pouco depois de 1848, o processo mais geral de profissionalização das polícias e a emergência de unidades de investigação criminal continuaram ampliando as capacidades de detecção, captura, interrogação, periciamento técnico, vigilância e armazenamento de informações sobre novas áreas criminais e segmentos populacionais. A “cientificização” do combate ao crime a partir do século XIX WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 33 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA estendeu-se ao policiamento político e à repressão contra a “subversão”. Conforme Jeffrey Richelson (1986:01-04), a primeira organização permanente voltada para a obtenção de inteligência sobre os “inimigos internos” visando a sua repressão foi a terceira seção do departamento de segurança do Estado, instituída na Rússia imperial em 1826. Os dois precedentes mais importantes da terceira seção foram a Oprichnina (1565- 1572), a cavalaria negra instituída pelo primeiro czar de todas as Rússias, Ivan o Terrível, bem como a organização Preobazhensky (16971729), criada por Pedro I para investigar, prender, interrogar sob tortura e aplicar penas contra traidores e outros suspeitos de crimes contra o czar e o Estado. Embora a repressão mais ou menos sistemática dos dissidentes e críticos seja um traço característico de todos os Estados, o policiamento político organizado foi uma especialidade russa na era moderna. Na segunda metade do século XIX, a dinastia Romanov contratou o prussiano Wilhelm Stieber para reorganizar a polícia política. Depois do atentado à bomba que matou o czar Alexandre II em 1881, a Okhrannoye Otdyelyenye (conhecida como Okhrana) consolidou-se como uma força policial “especializada”, independente tanto dos ministérios do interior e do exterior quanto dos incipientes recursos de inteligência das forças armadas. Considerada mais cruel do que eficiente inclusive por seus adversários bolcheviques, de qualquer modo a polícia secreta do czar tornou-se o símbolo de toda uma era. A experiência russa da Okhrana também nos ajuda a entender a persistente associação entre inteligência e repressão política ao longo do século XX. Embora organizações como a Okhrana russa ou a Sûreté Générale francesa (instaurada ainda sob Napoleão Bonaparte) inicialmente não conduzissem operações de espionagem e obtenção de inteligência contra alvos estrangeiros, a busca de informações e a perseguição de adversários do regime no exílio rapidamente estenderam o policiamento político ao exterior. Em 1870, a Sûreté tinha mais de sessenta agentes operando em estações em Viena, Amsterdã, Hamburgo e outras cidades européias. A primeira base permanente da Okhrana no exterior data de 1882, menos de um ano após sua reorganização. Além de caçar revolucionários russos exilados a Okhrana também passou a tentar monitorar as atividades de órgãos de segurança e inteligência estrangeiros, tais como a própria Sûreté, atuando em território russo. Como resultado dessa dinâmica, no começo do século XX já havia considerável superposição de missões e alvos entre as polícias políticas e as organizações de inteligência voltadas para o exterior, que naquela época ainda eram principalmente militares. As polícias políticas controlavam redes próprias de agentes recrutados nas embaixadas estrangeiras situadas nas capitais de seus países, interceptavam comunicações dos grupos dissidentes e das embaixadas estrangeiras, além de tentarem estabelecer redes de agentes e informantes em outros países. Principalmente depois da I Guerra Mundial e da Revolução Russa, as polícias políticas e serviços secretos de cada país passaram a vigiar regularmente as atividades dos serviços de inteligência estrangeiros dentro do território nacional. Com isso, além da inteligência de segurança (security intelligence) propriamente dita, essas organizações especializaram-se também em contraespionagem e contra-inteligência (counterintelligence). Com o processo de descolonização durante a Guerra Fria e com o terrorismo nos anos setenta, certas operações de suporte à contra-insurgência, contra-medidas defensivas e antiterrorismo foram acrescentadas ao leque de missões desse tipo de organização. Nas últimas duas décadas, o crime organizado, o tráfico de drogas e crimes eletrônicos (incluindo fraude financeira e lavagem de dinheiro) adquiriram tal importância na agenda de segurança de alguns países, que a busca por informações extrapolou os limites da rotina da investigação criminal. Essa expansão das missões ocorreu de forma mais ou menos concomitante com a transformação dos antigos serviços secretos e polícias políticas em serviços de inteligência de segurança (security intelligence), principalmente nos países democráticos. Não há, entretanto, nada parecido com um modelo organizacional internacionalizado nessa área. Em alguns países, as organizações de security intelligence são separadas organizacionalmente das polícias e da inteligência externa. Atualmente, organizações como o Canadian Security Intelligence Service (CSIS), a Direction de la Surveillance du Territoire (DST) francesa, o Bundesamt für Verfassungsschutz (BfV) alemão e o Sherut ha’Bitachon ha’Klali (SHIN BET) israelense exemplificam essa separação. Já em outros países, a inteligência interna ou de segurança é um departamento especializado das próprias forças policiais. Esse é o caso dos Estados Unidos com a divisão de segurança nacional (inteligência) do Federal Bureau of Investigation (FBI). WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 34 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Na prática, porém, pode-se dizer que em todos os países as missões de inteligência de segurança, contra-inteligência e inteligência policial dificilmente estão subordinadas a uma única agência. No Japão, por exemplo, essas atividades são compartilhadas de forma tensa pela Agência de Investigação e Segurança Pública (Koan Chosa Cho) e a unidade de combate à subversão da Agência Nacional de Polícia (Keisatsu Cho). Em alguns outros países ainda, a inteligência interna ou de segurança chegou mesmo a desdobrar-se diretamente das forças armadas. Esse é precisamente o caso da Inglaterra. Como se sabe, a criação da polícia metropolitana de Londres em 1829 foi o primeiro passo na lenta consolidação de uma estrutura de forças policiais locais ao longo do século XIX na Inglaterra, onde as polícias tiveram pouca influência direta na formação do serviço de inteligência de segurança. Segundo Michael D. Lyman (1999:63-98), embora fossem recrutados alguns informantes e a correspondência pessoal de suspeitos de subversão fosse interceptada, algum policiamento especializado contra ameaças internas só teria começado em 1883, com a criação de uma seção especial na polícia metropolitana de Londres para colher informações e reprimir os feninianos irlandeses. Em 1909, com a criação do Secret Service Bureau subordinado ao War Office, a inteligência de segurança e a contra-espionagem passaram crescentemente para a esfera da seção doméstica do bureau militar (conhecida como MI-5, ou quinta seção da inteligência militar). Em 1931, a seção de inteligência exterior (MI-6) e a seção de inteligência doméstica doméstica (MI-5) do War Office foram separadas definitivamente em duas agências independentes, respectivamente o Secret Intelligence Service (SIS) e o Security Service (que permaneceu sendo conhecido como MI-5). Após diversas batalhas burocráticas com a polícia metropolitana, as funções de inteligência de segurança foram completamente transferidas para o Security Service depois da II Guerra Mundial. Uma exceção importante foi a jurisdição sobre o combate ao Irish Republican Army (IRA), que permaneceu separada por vários ramos do governo britânico. Somente em 1992 o Secret Service (MI-5) passou a centralizar as operações de inteligência e repressão contra o IRA, mas mesmo assim só no restante do território britânico, pois no território da Irlanda do Norte o papel do MI-5 continua secundário em relação ao do special branch do Royal Ulster Constabulary (RUC). Refletindo o processo de expansão das missões dos serviços de inteligência interna (security intelligence) mencionado mais acima, em 1999 as áreas de trabalho do Security Service britânico dividiam-se oficialmente em: terrorismo relacionado com a Irlanda do Norte (30,5%); terrorismo internacional (22,5%); contra-espionagem (20,5%); segurança (11,5%); crimes graves (7%); proliferação de armas (3,5%); assistência a outras agências (4,5%). Em comparação com anos anteriores, em que três quartos dos recursos do MI-5 eram dedicados ao contra-terrorismo e ao IRA, a atual distribuição de prioridades enfatiza a contra-inteligência e o combate ao crime organizado. Isso resulta em parte da diminuição relativa da escala de conflitos na Irlanda do Norte e também da percepção britânica de que o país segue sendo alvo de operações de espionagem internacional. O caso inglês apresenta, pois, diferenças de desenho organizacional e de timing em relação aos casos francês e russo, onde os serviços de inteligência de segurança surgiram das polícias secretas atuantes já na primeira metade do século XIX, mas também é diferente do caso norte- americano, onde a própria polícia federal (FBI) é a principal agência de inteligência de segurança, ou ainda em relação ao caso canadense, onde um serviço de inteligência de segurança (CSIS) foi criado apenas em 1984 como uma resposta às investigações parlamentares sobre violações de direitos humanos cometidas pela divisão de segurança da Royal Canadian Mounted Police (RMPC). Talvez mais importante do que a especificidade do caso inglês seja o que ele tem em comum como os demais países em qualquer uma das três matrizes: a dificuldade de se estabelecer fronteiras organizacionais bem definidas nas diferentes áreas e missões de inteligência. Na próxima seção se poderá ver como isso está relacionado com a própria lógica de expansão recente dos serviços de inteligência e seus reflexos na configuração de diferentes tipos de sistemas nacionais. 2.1 – Lógica de Expansão dos Sistemas de Inteligência: WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 35 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Três tipos diferentes de organizações especializadas foram destacados na seção anterior: inteligência externa (foreign intelligence), inteligência militar (military intelligence) e inteligência interna (security intelligence). Além desses componentes organizacionais principais, presentes na maioria dos Estados, a formação de sistemas nacionais de inteligência está associada a dois movimentos adicionais de expansão organizacional e especialização funcional que vêm ocorrendo nas últimas décadas: 1) Um movimento de expansão vertical envolvendo a formação de subsistemas de inteligência policial e de inteligência militar. 2) Um movimento de expansão horizontal, com o surgimento de novas agências especializadas em diferentes disciplinas de coleta e análise ao longo do continuum operacional que caracteriza o ciclo da inteligência. A expansão das missões dos serviços de inteligência interna (security intelligence), inicialmente restrita ao policiamento político de dissidentes e mais tarde abarcando a contra-inteligência, o contraterrorismo e inteligência sobre o crime organizado, acabou por aproximar esses serviços das unidades investigativas das polícias encarregadas de dinâmicas criminais mais complexas, tais como o narcotráfico, fraudes financeiras, lavagem de dinheiro e outros crimes eletrônicos (cybercrimes). Em muitas polícias também existem agora unidades especializadas de inteligência sobre crime, utilizando informações coletadas de fontes diversas (inclusive imint e sigint) e métodos analíticos mais sofisticados (principalmente nas áreas de georreferenciamento de dinâmicas criminosas e de visualização de interrelacionamentos entre criminosos). Essa expansão vertical do uso de métodos e técnicas de inteligência para a base dos sistemas policiais, em combinação com uma maior integração e busca de sinergia entre as unidades de inteligência policial e as agências nacionais de inteligência de segurança pode ser apontada como uma tendência na direção da formação de subsistemas de inteligência de segurança. Na Inglaterra, essa tendência de maior integração se traduz na formação de times mistos de agentes do Security Service com quadros das seções especiais (special branches) da polícia metropolitana de Londres e de outras 51 forças policiais regionais, além do special branch do RUC, responsável por inteligência e operações encobertas na Irlanda do Norte. O terrorismo, o crime organizado e a ameaça de espionagem são áreas que atravessam a tradicional dicotomia interno/externo. No caso britânico, isso implica o envolvimento eventual dos serviços de coleta de inteligência exterior (SIS e GCHQ), além do próprio FCO e do Tesouro, nesses comitês interagências. Nos Estados Unidos, também existem agora unidades de inteligência especializadas nos departamentos de polícia, destacando-se aí a divisão de inteligência do New York Police Department (NYPD/DI). Organizações constabulares como a Guarda Costeira (U.S. Coast Guard) também possuem unidades de inteligência que interagem, de um lado, com os serviços de inteligência da Marinha e dos Fuzileiros Navais, no âmbito do National Maritime Intelligence Center (NMIC), e, por outro lado, com o FBI e outras agências de “imposição da lei” (law enforcement), tais como a Drug Enforcement Administration (DEA) e o Immigration & Naturalization Service (INS). Dada a miríade de organizações policiais, constabulares e de law enforcement nos Estados Unidos, além dos mecanismos de divisão de poderes entre autoridades distintas, tanto no âmbito federal como nos cinqüenta estados, no distrito federal, cidades e centenas de condados, o grau de integração vertical de um subsistema de inteligência de segurança, contra-inteligência e inteligência policial naquele país provavelmente é baixo. Mas a tendência de maior integração sem dúvida existe, e seu sinal mais visível está na criação de centros especializados com pessoal fornecido por várias agências e foco de ação nas áreas de delimitação jurisdicional mais difícil. Exemplos desse tipo de estrutura são o National Drug Intelligence Center (NDIC), o National Counterintelligence Center (NACIC), o El Paso Intelligence Center (EPIC), situado no Novo México e dedicado ao problema da imigração ilegal, e a Finantial Crimes Enforcement Network (FinCEN). Um fenômeno semelhante de verticalização de capacidades nacionais ocorre na área de inteligência militar. Como foi mencionado na seção anterior, nos países em que foram criados comandos integrados (joint commands) e estruturas mais desenvolvidas de suporte nos ministérios de defesa, isso tendeu a ser acompanhado da criação de agências centrais de inteligência de defesa. Em alguns casos, a criação dessas agências não significou que o exército, a marinha e a aeronáutica deixassem de manter suas próprias organizações centralizadas responsáveis pela produção de inteligência para o estado-maior e o comandante de cada força. Além das organizações centrais de inteligência em cada força, compõem ainda o subsistema de inteligência militar as unidades militares especializadas, por vezes em nível de batalhão ou até mesmo brigadas no caso da força terrestre, ou de esquadrões e alas no caso da força aérea, que atendem às necessidades de inteligência dos níveis inferiores de comando. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 36 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA No caso dos Estados Unidos, o que ocorreu depois da Guerra do Golfo (1990-1991) foi um aumento relativo na integração do subsistema de inteligência militar, através de medidas de consolidação organizacional, da clarificação de linhas de comando e de novas doutrinas de emprego com ênfase no suporte à capacidade de combate das forças e na performance dos comandos integrados (joint commands). Em termos de consolidação organizacional, pode-se mencionar o caso da Marinha daquele país, que possuía em 1991 sete organizações distintas de inteligência e em 1993 já havia transferido os recursos e atribuições para apenas duas que restaram, o próprio Office of Naval Intelligence (ONI) e o Naval Security Group Command (NSGC), responsável por inteligência de sinais (sigint) e segurança de comunicações (comsec). Esse tipo de consolidação organizacional, embora com menor intensidade, ocorreu também nas outras forças singulares. A maior clarificação de linhas de comando é mais visível no caso do exército. Por um lado, o novo National Ground Intelligence Center (NGIC) consolidou em 1995 os recursos e as atribuições de três organizações anteriormente separadas, empregando civis e pessoal uniformizado de unidades numeradas responsáveis por diretórios específicos do centro (por exemplo, o 902nd MI Group para a contra- inteligência e o 203rd MI Battallion para a análise de material bélico estrangeiro). Todas as unidades especializadas de inteligência e segurança do exército subordinam-se agora ao comandante-em-chefe do Intelligence and Security Command (INSCOM). Por seu turno, o próprio comandante do INSCOM reporta-se ao Army Deputy Chief of Staff for Intelligence (DCSI) em todos os assuntos de inteligência. Apenas na área de inteligência de sinais e de segurança de comunicações há uma duplicidade nas linhas de comando, pois o comandante do INSCOM reporta-se também diretamente ao diretor da National Security Agency (NSA). Aliás, foi na área de sigint que os Estados Unidos parecem ter obtido o maior grau de integração vertical dos recursos militares de inteligência. Na condição de principal autoridade nacional na gestão da disciplina de inteligência de sinais, o diretor da NSA exerce simultaneamente a função de Chief of the Central Security Service (CSE), o que significa basicamente que ele tem autoridade orçamentária sobre os gastos das forças singulares com recursos de criptologia/criptografia e mantém controle operacional (opcon) sobre os comandos e unidades de segurança de comunicações e interceptação de sinais do exército (INSCOM), da marinha (NSGC), da força aérea (AIA) e dos fuzileiros navais (ACSC4I). Por outro lado, esse tipo de integração, baseada na definição de “gerentes nacionais” responsáveis por certas disciplinas em inteligência, também poderia bem ser um exemplo do segundo movimento de expansão organizacional referido acima. Afinal, além das três matrizes históricas e da formação de subsistemas de inteligência policial e militar, os sistemas nacionais de inteligência atualmente existentes resultam também de uma expansão “horizontal”, decorrente de especializações funcionais crescentes e, no limite, da separação organizacional ao longo do continuum coleta-análise de informações. A especialização principal se deu nas técnicas e tecnologias adequadas às diversas fontes de informação. Novos métodos de coleta e processamento, novas plataformas e sistemas modificaram as estruturas de custos e a composição da força de trabalho envolvida na atividade de inteligência. No que hoje se chama de coleta de informações de fontes especializadas (single-source collection), por exemplo, existem atualmente órgãos ou unidades especializadas em obter informações a partir de fontes humanas (humint), a partir da interceptação e decodificação de comunicações e sinais eletromagnéticos (sigint), a partir da produção e processamento de imagens fotográficas ou multiespectrais (imint), da mensuração de assinaturas e outras características técnicas (masint), bem como da coleta de fontes ostensivas como jornais, televisão, Internet e livros (osint). No subsistema de inteligência de segurança mencionado anteriormente, há organizações especializadas em contrainteligência, em medidas defensivas de segurança, em inteligência interna (security intelligence) e inteligência policial. Finalmente, uma vez traçada a linha burocrática, orçamentária e legal que estabelece quais órgãos governamentais fazem parte oficialmente dos sistemas nacionais de inteligência, é preciso levar em conta também as agências situadas na periferia dos subsistemas de inteligência e segurança militar e policial, ou mesmo os recursos temporariamente alocados sob controle operacional das agências, por exemplo, adidos militares, laboratórios de análise, contatos diplomáticos, aviões e navios em missões de coleta de informações etc. Devido ao grande volume de informações coletadas por plataformas tecnológicas e organizações diversas, a produção de inteligência “finalizada” sobre um alvo ou tema passou a ser um problema crescente e levou à criação, em alguns países, de organizações dedicadas apenas à análise e avaliação (all-sources analysis and assessments) das informações coletas de fontes diversas por organizações especializadas em cada tipo de fonte ou “disciplina” da área de coleta. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 37 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA O duplo movimento de expansão vertical e horizontal dos serviços de inteligência gerou demandas gerenciais e de coordenação impensáveis mesmo durante a II Guerra Mundial e boa parte do período da Guerra Fria. Obviamente, o grau de complexidade organizacional de cada sistema nacional de inteligência varia muito, indo desde sistemas com dezenas de agências, como os Estados Unidos e a Rússia, até países como Canadá e Itália, que têm apenas duas organizações principais de inteligência e segurança. Entretanto, a própria idéia de que os recursos e capacidades de inteligência de um país formem “sistemas organizacionais” implica a suposição de que são gerenciados de forma mais ou menos integrada. Uma camada organizacional bastante recente no processo de “crescimento institucional” dos sistemas de inteligência são as instâncias de coordenação, gestão de recursos e supervisão das políticas nacionais para o setor. A justificativa principal para incluir essas instâncias de coordenação num tipo ideal de organização dos sistemas nacionais de inteligência não é simplesmente o fato delas existirem em Londres ou Washington, mas sim a percepção de que tendem a exercer um papel crescente também em outros países. Até aqui, tratou-se de descrever a lógica de expansão da atividade moderna de inteligência desde suas matrizes na diplomacia, no fazer a guerra e no policiamento até a formação de sistemas nacionais de inteligência mais ou menos complexos. No restante dessa seção, serão apresentadas duas direções possíveis para uma futura explicação mais completa das causas dessa expansão. A primeira abordagem relaciona o desenvolvimento das organizações de inteligência com o fortalecimento mais geral das capacidades institucionais do Estado, sustentando basicamente que uma “oferta” maior de serviços de inteligência depende basicamente da maior ou menor disponibilidade de recursos em cada país. A segunda abordagem relaciona o surgimento e o desenvolvimento das organizações de inteligência com os atributos específicos das organizações de segurança nacional em regimes democráticos, que seriam bastante diferentes das demais burocracias governamentais voltadas para assuntos internos dos países. Embora bem mais sofisticada do que a afirmação grosseira do parágrafo anterior, a tese de David Bayley (1975:349-351) sobre a formação dos sistemas nacionais de polícia exemplifica bem esse tipo de abordagem. Por sistemas nacionais de polícia, o autor entende diferentes arranjos institucionais para o provimento de ordem pública, a garantia da observância às leis e a proteção da vida e do patrimônio da população. Assumindo como premissa que cada caso nacional é único, Bayley analisou através de estudo histórico-comparativo quais seriam as variáveis mais importantes na explicação dos atributos de cada sistema policial e também na explicação do por quê as características atuais (em 1975) mais importantes dos sistemas nacionais de polícia emergiram em determinados períodos históricos relativamente bem determinados na Inglaterra (1829- 1889), França (1667-1700), Alemanha (1742-1871) e Itália (1815-1870). As sete variáveis independentes analisadas por Bayley foram o papel do crescimento populacional e sua distribuição ao longo do continuum rural-urbano, a extensão da criminalidade e da insegurança entre a população, a revolução industrial e/ou outras transformações sociais ou econômicas desse porte, a ocorrência de revoluções e/ou outras transformações políticas desse porte, a presença de ameaças externas ou a ocorrência de guerras e mobilizações militares e, finalmente, o impacto de uma ideologia qualquer (absolutismo, liberalismo, nacionalismo, socialismo etc). Segundo esse autor, as características bastante diferentes dos sistemas policiais na Inglaterra, França, Alemanha e Itália não foram determinadas pelo crescimento populacional, grau de urbanização, taxas agregadas de criminalidade, ritmos de industrialização ou por alguma ideologia específica. As variáveis mais importantes teriam sido institucionais e políticas, desde a erosão das bases comunitárias da autoridade até as preferências dos atores mais poderosos em relação às demandas por lei e ordem, passando pela maior ou menor resistência popular à penetração do governo e pela transformação interna na organização do Estado. De todas essas, a associação mais clara é aquela existente entre a expansão da capacidade do Estado e a emergência de sistemas nacionais de polícia. As transformações do Estado a que se refere Bayley estão relacionadas com a diminuição dos custos de extração de recursos da sociedade e com o aumento geral dos níveis de produção administrativa (outputs) e consolidação da autoridade política, o que teria permitido um aumento no nível de “oferta” de serviços policiais e o amadurecimento, entre 1660 e 1890, de sistemas nacionais de polícia na Europa. A ênfase excessiva nos recursos disponíveis e na evolução funcional dos sistemas policiais deixa muitas variáveis relevantes de lado (as preferências dos atores e as diferenças de desempenho WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 38 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA institucional, por exemplo), mas a partir desse tipo de ênfase pode-se dizer, no mínimo, que a formação recente de complexos (e caros) sistemas nacionais de inteligência também correspondeu a um período de expansão geral das capacidades estatais nas últimas décadas. Um indicador grosseiro dessa expansão é o crescimento do gasto público como parcela do PIB, seja do gasto público total ou, o que no caso é mais significativo, do gasto dos governos centrais. Segundo o World Development Report publicado pelo Banco Mundial em 1997, no período entre 1960 e 1995 o gasto governamental total nos países da OCDE subiu em média de um patamar inferior a 20% para quase 50% do PIB. Em 1994, somente o gasto dos governos centrais representava em média mais de 35% do PIB nos países da OCDE. No caso dos Estados Unidos, até a década de 1930 o gasto federal manteve-se num patamar de cerca de 4% do PNB, enquanto em 1995 ele já representava 22,1% do PNB. Em 1997, para um PIB de 8,11 trilhões de dólares, foram realizados naquele país gastos federais de 1,60 trilhão de dólares em valores correntes. Mais de 55% desses gastos foram feitos com serviços sociais (previdência, saúde, educação, habitação, serviços comunitários e bem-estar social), enquanto os gastos militares representaram cerca de 17% dos gastos federais totais (ou US$ 258,3 bilhões). A curva de gastos sociais ultrapassou a curva de gastos militares nos Estados Unidos apenas ao final da década de sessenta do século XX, e o crescimento médio dos gastos militares entre 1960 e 2000, já ajustada a inflação, manteve-se positivo apesar do declínio relativo após o final da Guerra Fria. Por sua vez, a curva de gastos com inteligência acompanhou a evolução dos orçamentos militares depois da II Guerra Mundial. Não há relação direta conhecida entre o PIB de um país e seus gastos com inteligência, mas parece haver alguma razão entre gastos com defesa e gastos com inteligência, embora essa proporção também varie significativamente. Como não há dados confiáveis sobre orçamentos de inteligência em nenhum país do mundo, antes de mais nada porque esses gastos são secretos e, mesmo nos casos em que o volume total de gastos é conhecido, as proporções alocadas para cada tipo de atividade e de organização são apenas estimadas por observadores externos aos governos. No caso dos Estados Unidos e da União Soviética/Rússia, os gastos com inteligência chegaram a cerca de 10% dos gastos totais com defesa na década de 1980, recuando um pouco ao longo dos anos 1990. Michael Herman (1996:37) estima que os gastos com inteligência nos países da Europa ocidental oscilem entre 3% e 5% do total de gastos militares. Simplesmente não existem tais estimativas sobre os gastos consolidados com inteligência nos países mais industrializados do Terceiro Mundo ou da Europa Oriental. Com todas essas restrições, assume-se aqui, em caráter provisório, um gasto nacional médio com atividades de inteligência em torno de 5% dos gastos nacionais com defesa. A diferença dos Estados Unidos e da Rússia em relação a todos os demais países deve-se à sua condição de superpotências durante a Guerra Fria e ao custo de desenvolvimento e manutenção de suas frotas de satélites espiões. Como regra geral, pode-se concordar com Michael Herman (1996:3840) quando ele diz que a maior parte dos investimentos e do custeio na área de inteligência vai para as agências de coleta, enquanto a análise e disseminação tendem a ser itens de despesa relativamente menores. Nos anos 1990, a diminuição dos orçamentos de inteligência foi significativamente menor do que a diminuição dos orçamentos de defesa, tanto nos países da NATO como nos antigos membros do Pacto de Varsóvia. Tampouco há indicações de que os gastos com inteligência tenham diminuído em qualquer país importante da Ásia, América Latina ou da vasta região que vai do norte da África até a Ásia central. A segunda abordagem relevante para explicar a formação dos sistemas nacionais de inteligência é uma versão modificada do Novo Institucionalismo, desenvolvida por Amy Zegart (1999) ao analisar o surgimento e a evolução de três agências de segurança nacional dos Estados Unidos: o National Security Council (NSC), o Joint Chiefs of Staff (JCS) e a Central Intelligence Agency (CIA).171 Segundo Zegart, o mesmo conjunto de premissas neo-institucionalistas sobre a importância das regras do jogo, sobre racionalidade e dilemas de ação coletiva, sobre custos de transação e sobre a natureza dos atores conduz a conclusões diferentes quando se trata de analisar agências de segurança nacional em contextos democráticos. Para diferenciar as agências governamentais internas (de regulação e/ou prestação de serviços) das agências de segurança nacional, a autora considera quatro variáveis fundamentais: 1) densidade do WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 39 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA ambiente formado pelos grupos de interesse na área de atuação de cada agência; 2) disponibilidade de informações sobre as atividades de cada agência; 3) autoridade do legislativo ou do executivo para o estabelecimento de diretrizes; 4) grau de interdependência burocrática e clareza jurisdicional. Com base em evidências empíricas e num exercício taxonômico competente, Zegart estabele uma dicotomia baseada em dois tipos opostos de agências governamentais. Em um extremo estariam as agências governamentais que atuam em áreas de políticas públicas regulatórias e distributivas. O meio-ambiente social dessas áreas de políticas públicas é caracterizado por um grande número de grupos de interesse, poderosos e consolidados. Esses grupos encarregam-se de fornecer incentivos e sanções aos parlamentares para que eles se envolvam nas disputas sobre a estrutura e a atuação das agências de um dado setor. A disponibilidade de informações sobre as atividades da agência é alta e os obstáculos para a obtenção dessas informações são de tipo administrativo. Para a terceira variável, Zegart destaca então o papel central do Congresso nas decisões sobre a criação, o desenho organizacional e o volume de serviços (outputs) das agências governamentais domésticas. A quarta variável é a mais problemática. Segundo a autora, agências governamentais voltadas para o público nacional apresentam uma clara delimitação de funções (saúde, educação, transportes etc.) e têm grande independência operacional umas das outras. No outro extremo estariam as agências de segurança nacional, caracterizadas em primeiro lugar pela fraca presença de grupos de interesse em seu ambiente de atuação. Mesmo nas áreas em que existem tais grupos (lobby de fabricantes privados de armamentos ou grupos de imigrantes, por exemplo), eles são relativamente menos numerosos, menos poderosos e orientados para resultados políticos específicos (e.g. obter um dado contrato para desenvolver um novo sistema de armas) e não para influenciar o desenho organizacional de uma agência ou o nível geral de gastos orçamentários de um setor. Como muitas das atividades das agências de segurança nacional são conduzidas em segredo, existem barreiras legais e procedimentais para o acesso público às informações relevantes. Com custos de obtenção de informações mais altos e um ambiente rarefeito de grupos de interesse, há poucos incentivos positivos para os parlamentares participarem ativamente das disputas sobre a organização ou as ênfases operacionais das agências de segurança nacional. Finalmente, em relação ao grau de interdependência burocrática, ele seria bem maior na área de segurança nacional por causa da justaposição de temas e funções que impedem uma clara delimitação jurisdicional entre as diferentes agências do setor. A partir dessa delimitação de características específicas das agências de segurança nacional, Amy Zegart faz três proposições que poderiam ser testadas através de pesquisas adicionais: 1) Ao contrário do que ocorre com as demais agências governamentais, cuja criação é fortemente influenciada pelos grupos de interesse e pelo Congresso, no caso das agências de segurança nacional a decisão de criar uma nova agência, assim como as escolhas de seu desenho organizacional e suas regras de funcionamento, é fortemente concentrada no poder executivo. 2) Devido ao elevado grau de interdependência burocrática e por causa da precária delimitação de jurisdições, as agências de segurança nacional que já existem em um dado momento lutam entre si e com as equipes de assessores presidenciais para influenciar a definição presidencial sobre as missões, recursos e o desenho organizacional do novo órgão. O desenho final das novas agências que estão sendo criadas depende dos resultados desses embates. 3) Além de envolver-se pouco nas disputas em torno da criação de novas agências de segurança nacional, os parlamentares e o Congresso também procuram evitar o envolvimento em atividades de supervisão sobre as atividades dessas agências, pois lhes faltam os instrumentos e os incentivos para isso. Deixando de lado por enquanto as implicações dessa terceira proposição para a discussão sobre os mecanismos de controle externo de agências de segurança nacional e sobre os impactos da instituição do segredo governamental no desenvolvimento dos serviços de inteligência (temas que serão discutidos no capítulo 3 sobre Segurança Nacional, Segredo e Controle), note-se que até aqui Zegart fala de agências de segurança nacional sem levar em conta as diferenças entre as próprias organizações desse tipo. Ao estudar os diferentes padrões de evolução das três agências na segunda metade do século XX (NSC para policymaking, JCS para comando das forças armadas e CIA para inteligência externa), Zegart conclui que três fatores, em ordem decrescente de importância, determinariam o desenho inicial e o desenvolvimento posterior de organizações na área de segurança nacional: 1) As escolhas sobre desenho organizacional e regras de funcionamento feitas na época da criação da agência. 2) Os interesses, opiniões e linhas de ação dos atores relevantes, que mudam ao longo do tempo através das próprias interações. 3) Os eventos externos que, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 40 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA dependendo da intensidade e do timing, podem forçar a mudança organizacional sem que os atores tenham controle sobre as variáveis ambientais. Quando contrastado com a abordagem histórico-estrutural de Bayley, o modelo institucional das “Agências de Segurança Nacional” de Zegart adiciona à explicação sobre a expansão dos sistemas de inteligência as escolhas dos atores relevantes (grupos de interesse, legisladores, burocracias e governantes) e as condições de incerteza em que essas escolhas são feitas, que forçam cada ator a adaptar suas preferências aos constrangimentos impostos pelos demais atores e pelo ambiente. No caso dos serviços de inteligência e de segurança, seria preciso incorporar ao modelo as próprias dinâmicas operacionais que caracterizam a atividade, tais como discutidas no capítulo anterior. Como se trata da componente informacional de um conflito em que um ator tenta dobrar a vontade de outro, o surgimento e o padrão evolutivo de sistemas de inteligência também refletem essas interações adversariais com as organizações similares de outros governos ou mesmo de atores não-estatais. Em síntese, os serviços de inteligência e de segurança foram criados e se desenvolveram porque os governantes pretendiam resolver certos problemas informacionais associados ao provimento de defesa nacional e ordem pública, mas em cada país e em cada área de especialização funcional a disponibilidade de recursos variou, a competição interburocrática por jurisdição foi mais ou menos aguda, e a capacidade de um serviço de inteligência impor parâmetros às dinâmicas conflitivas entre organizações similares subordinadas a diferentes governos foi decisiva para a configuração final de cada sistema nacional. Para um exemplo das possíveis configurações organizacionais dos sistemas nacionais de inteligência, na próxima seção serão mencionadas muito brevemente as principais agências norteamericanas e britânicas de inteligência. 2.3 – Inteligência: Organização dos Sistemas Nacionais de Nas últimas três ou quatro décadas do século XX formaram-se sistemas governamentais de inteligência nos países mais importantes do mundo. Dotados de maior ou menor complexidade estrutural quando considerados de forma concreta, o desenho organizacional ideal-típico de tais sistemas envolve os seguintes componentes: alguma instância central de coordenação, uma ou mais agências principais de coleta de informações (normalmente imagens e sinais estão separados de humint e fontes ostensivas), alguma instância central de análise, unidades departamentais de análise com laços mais ou menos definidos com as organizações centrais de coleta de inteligência, poderosos subsistemas de inteligência de defesa e de segurança, algum órgão de formação e treinamento e, mais recentemente, órgãos mais ou menos colegiados para coordenação e instâncias de supervisão externa, seja no próprio poder executivo, no legislativo ou, mais raramente, no judiciário. Utilizando algumas variáveis muito genéricas, tais como o grau de centralização da autoridade sobre as unidades do sistema, o grau de integração analítica da inteligência disseminada para os usuários, a maior ou menor separação entre as funções de inteligência e de policymaking, além da efetividade dos mecanismos de accountability no poder executivo e no legislativo, seria o caso de se fazer comparações internacionais mais amplas para se tentar obter uma posição relativa dos casos analisados entre si e em relação ao desenho organizacional ideal-típico. Infelizmente, esse é um desafio que está além dos limites desse trabalho. Apenas como indicação polêmica para tratamento posterior, me parece que há pelo menos três tipos básicos de sistemas nacionais de inteligência: um modelo “anglo-saxão”, caracterizado por alta centralização da autoridade sobre as unidades do sistema, alto grau de integração analítica, média separação entre inteligência e política, além de média efetividade dos mecanismos de accountability e supervisão. Nesse modelo poderiam ser incluídos os sistemas nacionais de inteligência e segurança de países como Estados Unidos, GrãBretanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e, com muitos cuidados, Índia e África do Sul. 1) 2) Um modelo “europeu continental”, caracterizado por média centralização da autoridade sobre as unidades do sistema, média integração analítica dos produtos de intel, alto envolvimento da atividade de inteligência com as instâncias de policymaking e, finalmente, uma baixa efetividade dos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 41 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA mecanismos de accountability e supervisão (oversight). Nesse modelo poderiam ser incluídos os sistemas nacionais de inteligência e segurança de países como França, Alemanha, Rússia, Polônia, Itália e, com muitos cuidados, Brasil e Argentina. 3) Um modelo “asiático”, caracterizado por baixa centralização da autoridade sobre as unidades do sistema, alta integração analítica dos produtos de intel, médio envolvimento da atividade de inteligência com as instâncias de policymaking e, de forma ainda mais pronunciada do que no tipo “europeu continental”, uma baixa efetividade dos mecanismos de accountability e supervisão. Nesse modelo poderiam ser incluídos os sistemas nacionais de inteligência e segurança de países como China, Japão, Coréia do Sul, Taiwan, Coréia do Norte e, com muitos cuidados, Indonésia e Vietnã. Obviamente, há uma grande dose de arbitrariedade e improriedade nessa caracterização grosseira. Repito aqui as ressalvas que fiz em nota à Introdução do trabalho: A forma mais corriqueira de classificação encontrada na literatura ainda consiste na dicotomia entre um modelo descentralizado com supervisão congressual (Estados Unidos) e um modelo centralizado sem controles públicos (União Soviética). Dada a evidente função ideológica dessa dicotomia, a classificação aqui proposta me parece claramente superior. Uma taxonomia mais refinada foi utilizada por Michael Herman (1996:04), na qual o autor inglês elabora um tipo ideal a partir da abstração de traços organizacionais e operacionais observados na experiência anglo-saxã, para em seguida analisar como as regularidades se aplicam aos diversos sistemas nacionais a partir de círculos concêntricos: mais intensamente no núcleo anglo-saxão, medianamente no caso da Europa ocidental e Israel e de forma bastante fraca no caso dos países comunistas e ex-comunistas. Embora o trabalho de Herman tenha o mérito de ser a melhor obra disponível sobre problemas teóricos da área de inteligência, seu teste dos “círculos concêntricos” não chega a ser realizado. Certo, tampouco há aqui qualquer teste efetivo da classificação triádica (anglo-saxão, europeu continental e asiático), mas a prefiro pois a formulação de Herman parece ser um refinamento que não rompe no essencial com a dicotomia liberal da Guerra Fria. Particularmente problemático na classificação aqui proposta é sua dificuldade em livrar-se da referência geográfica que tende a ser bastante enganadora: o Paquistão e a Índia ficam na Ásia, mas seus aparatos de inteligência são bastante diferentes entre si. Além disso, o Paquistão é o principal aliado dos Estados Unidos na Ásia central e no subcontinente indiano, mas é a Índia que adota mais claramente o modelo anglo-saxão em seu sistema de inteligência. O caso de Israel, caracterizado por baixa centralização da autoridade sobre as unidades do sistema, baixa integração analítica dos produtos de intel das várias agências, baixo envolvimento da atividade de inteligência com as instâncias de policymaking, alta responsividade das unidades do sistema aos governantes e média efetividade dos mecanismos de accountability e controle externo, é inclassificável nos três modelos disponíveis. Da mesma forma, uma virtual categoria de “outros” ficaria ainda com dezenas de países do Mahgreb/Machrek, países latino-americanos, africanos, asiáticos e da Europa Oriental. Enfim, há uma enorme tarefa de pesquisa pela frente nessa área para quem puder realizar estudos comparativos adicionais. Mesmo com essas evidentes dificuldades, adoto provisoriamente a classificação triádica a partir da constatação preliminar de que a estrutura organizacional e os procedimentos operacionais dos serviços de inteligência japoneses e chineses se parecem mais entre si do que o sistema japonês se parece com o anglo-americano ou que o sistema chinês se parece com o soviético-russo. De todo modo, assim como no caso das capacidades militares, em termos de recursos de inteligência há que se observar a enorme disparidade entre os casos norte-americano e russo e todos os demais sistemas nacionais de inteligência. O papel da escala de operações e dos volumes de recursos disponíveis, destacado na abordagem de Bayley sobre os sistemas policiais, pode ser melhor visualizado através do contraste entre dois sistemas nacionais de inteligência pertencentes a um mesmo “modelo anglo-saxão”: Estados Unidos e Grã-Bretanha. As descrições sumárias desses dois casos encerram essa seção. Não ignoro as diferenças constitucionais e os diferentes contextos institucionais que influenciaram tão decisivamente a configuração dos sistemas de inteligência na monarquia parlamentarista inglesa e na república federativa e presidencialista norte-americana. Mas o foco aqui será apenas a apresentação direta de cada caso, destacando sempre que possível o volume de gastos e o número de funcionários empregados, pois constituem um indicador razoável da capacidade dos governos em uma determinada área. Mesmo isso, no entanto, esbarra no segredo que cerca a área de inteligência, pois não é possível uma qualificação mais precisa do perfil dos gastos dentro de cada programa ou WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 42 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA agência, assim como da composição interna da força de trabalho empregada. Mesmo com tantas restrições, espera-se que a apresentação sumária dos dois casos ajude o leitor a ter uma idéia mais concreta do que são sistemas nacionais de inteligência e da variedade de configurações possíveis. 3 - Segurança Nacional, Segredo e Controle Os governantes tendem a justificar institucionalmente e a delimitar as funções dos serviços de inteligência em termos de sua necessidade para a segurança nacional. As prioridades, recursos, estruturas organizacionais, missões e alvos das operações de inteligência e de contra-inteligência são definidos e hierarquizados, na melhor das hipóteses, segundo a escala de preferências dos responsáveis pela segurança nacional. Entretanto, a própria noção de segurança nacional é problemática, pois tanto o seu significado quanto as conseqüências práticas de seu uso estão longe de ser auto-evidentes. Daí ser inconsistente pretender resolver o debate sobre a justificação pública do valor da atividade de inteligência apenas referindo-se genericamente às necessidades da segurança nacional. Em particular, a recorrente utilização da noção de segurança nacional como um princípio de justificação de práticas políticas repressivas e autoritárias torna questionável a compatibilidade entre tal noção e uma concepção democrática de governo e de resolução de conflitos nas sociedades contemporâneas. Por outro lado, dada a irredutibilidade da segurança coletiva à segurança individual, não é possível simplesmente abandonar o conceito de segurança nacional. Considerando essa dupla dificuldade, pretendo argumentar que a tensão entre segurança estatal e segurança individual é ineliminável no contexto atual e que isso tem repercussões decisivas para se pensar o papel das organizações de inteligência e de segurança no Estado contemporâneo, particularmente o problema da transparência dos atos governamentais nesse tipo de atividade. Na primeira seção do capítulo são sistematizadas as justificativas políticas e os principais riscos e tensões associados à noção de segurança nacional. Isso será feito através da análise crítica de duas tentativas recentes de superação dos impasses da noção convencional de segurança nacional: 1) o fracasso da tentativa liberal de delimitar juridicamente as situações em que os governantes poderiam mobilizar as razões da segurança nacional para justificar práticas políticas. 2) as possíveis conseqüências não antecipadas pelas propostas de substituição do conceito de segurança nacional pelo conceito de segurança humana como base para as políticas públicas nas áreas de defesa e inteligência. A segunda seção discute o segredo governamental como um dos pilares da segurança nacional. Analisa também o papel do segredo nas operações de inteligência, bem como o papel das agências de inteligência na formação de um sistema de segredo governamental, além dos custos do segredo em termos de eficiência e controle público. A terceira seção parte das reflexões sobre segurança nacional e segredo governamental para avaliar os limites e os desafios dos mecanismos de supervisão e prestação de contas (accountability) que garantiriam o controle externo sobre os serviços de inteligência. Finalmente, nas considerações finais do capítulo são sumarizados os principais desafios relacionados à transparência no processo de institucionalização dos serviços de inteligência em contextos democráticos. 3.1 - Segurança Nacional: Como ponto de partida para a discussão, serão apresentadas algumas definições mínimas sobre segurança, segurança nacional e ameaças. Essas definições mínimas serão posteriormente contrastadas com a concepção liberal de segurança nacional e com a abordagem da segurança humana. Ao final da seção serão oferecidas algumas indicações provisórias sobre a abordagem dos problemas de segurança nacional realizada a partir da chamada “teoria dos complexos de segurança”. Segurança seria então uma condição relativa de proteção na qual se é capaz de neutralizar ameaças discerníveis contra a existência de alguém ou de alguma coisa com razoável expectativa de sucesso. Em termos organizacionais, segurança é obtida através de padrões e medidas de proteção para conjuntos definidos de informações, sistemas, instalações, comunicações, pessoal, equipamentos ou operações. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 43 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA As medidas de proteção devem guardar certa proporcionalidade em relação às ameaças percebidas contra a existência, efetividade e autonomia de quem - ou do que - está sendo protegido. Na ausência de proporcionalidade, a busca de segurança torna-se ela própria uma ameaça à efetividade, autonomia e, no limite, à própria existência do "objeto" da proteção. O requisito de proporcionalidade serve principalmente para problematizar a noção de segurança enquanto uma condição absoluta de ausência de ameaça ou mesmo de incerteza. A proteção total de tudo e/ou de todos, contra tudo e/ou todos, é algo não apenas impossível do ponto de vista material e psicológico, mas indesejável enquanto pretensão totalitária. Ter isso claro é crucial para iniciar qualquer discussão sobre segurança nacional. Por segurança nacional, entende-se aqui uma condição relativa de proteção coletiva e individual dos membros de uma sociedade contra ameaças à sua sobrevivência e autonomia. Nesse sentido, o termo refere-se a uma dimensão vital da existência individual e coletiva no contexto moderno de sociedades complexas, delimitadas por Estados nacionais de base territorial. No limite, estar seguro nesse contexto significa viver num Estado que é razoavelmente capaz de neutralizar ameaças vitais através da negociação, da obtenção de informações sobre capacidades e intenções, através do uso de medidas extraordinárias e do leque de opções relativas ao emprego de meios de força. A dupla face dessas ameaças, interna e externa, implica algum grau de complementaridade e de integração entre as políticas externa, de defesa e de provimento da ordem pública. A segurança nacional, como uma condição relativamente desejável a ser obtida através dessas políticas públicas, fornece a principal justificativa para o exercício da soberania e o monopólio estatal do uso legítimo de meios de força. A grande maioria dos ordenamentos constitucionais contemporâneos reconhece a agressão militar, a espionagem, as operações encobertas, a invasão territorial e o bloqueio econômico como ameaças externas vitais, capazes de engendrar respostas dissuasórias proporcionais por parte dos Estados ameaçados. Ameaças internas seriam, caracteristicamente, os apoios internos àquelas ameaças externas, acrescidas da problemática noção de "subversão" (uso sistemático da violência para forçar mudanças sociais, políticas e legais).193 Nas últimas décadas, foi acrescentada uma nova categoria de ameaças transnacionais ou transestatais à segurança nacional, tais como o crime organizado, o narcotráfico e o terrorismo. Apesar da definição de segurança nacional e da delimitação jurídica das ameaças, apresentadas nos dois parágrafos anteriores, é importante insistir que o significado do termo e as conseqüências práticas de sua utilização variam enormemente em diferentes contextos políticos e institucionais. Longe de resolver os problemas, qualquer definição constitui apenas um ponto de partida muito precário para a reflexão. Na verdade, a própria insistência em um conceito abstrato e atemporal de segurança nacional, aplicável a quaisquer contextos e circunstâncias, torna-se parte do problema, pois tende a separar arbitrariamente a chamada “baixa” política dos conflitos de opinião e de interesses daquilo que seria a “alta” política relativa aos problemas de segurança e de uso da força nas relações entre Estados (e também nas relações sociais dentro dos Estados). Em geral, essa insistência num conceito absoluto de segurança nacional tende a “despolitizar” de forma autoritária o conceito, desautorizando a própria discussão sobre o tema. Em se tratando de regimes democráticos, é preciso um esforço na direção contrária, trazendo os temas de segurança, defesa, inteligência e policiamento para a agenda regular dos debates políticos sobre políticas públicas. Certamente há restrições para isso, especialmente aquelas relacionadas ao segredo governamental (que serão discutidas na próxima seção), mas não há motivo para se pensar que tais temas sejam dotados de qualquer tipo de sacralidade que impeça a pesquisa teórica ou empírica nessa área importante de atuação do Estado. Um passo importante para avançar a discussão sobre segurança pode ser dado através da avaliação de duas tentativas recentes de superação dos impasses da segurança nacional: A tentativa frustrada de resolver a tensão entre segurança estatal e segurança individual pela via estritamente jurídica e normativa. Essa tem sido a posição liberal típica no debate internacional e, embora ela contribua para uma avaliação dos riscos inevitáveis para a democracia, ocasionados pela operação de organizações de força e de inteligência responsáveis pela segurança nacional, tem sido incapaz de ir além da delimitação jurídica das ameaças consideradas legalmente válidas para que um governo possa alegar razões de “segurança nacional” para seus atos. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 44 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA 1) Os riscos de se tentar resolver a ambigüidade moral do conceito de segurança nacional através do recurso ao conceito de segurança humana (human security). A crítica dessa tentativa permitirá que se tenha uma avaliação mais precisa dos riscos de perda de eficiência na operação das forças armadas e dos serviços de inteligência, principalmente em função da expansão excessiva do leque de requerimentos defensivos e informacionais resultantes da adoção do conceito de segurança humana como um parâmetro para o planejamento de políticas de segurança. Além de resultar em perda de eficiência, uma eventual ancoragem das missões das forças armadas e dos serviços de inteligência no conceito de segurança humana traz riscos adicionais para a política democrática ao “securitizar” temas e problemas não relacionados ao uso potencial da força (educação, meio ambiente, saúde etc.). Em relação ao primeiro tema, é preciso começar notando, junto com autores como Barry Buzan (1991:35-56) e Charles Tilly (1998:397-412), que as relações de segurança são inextrincáveis entre os diferentes níveis de análise (sistêmico, estatal e individual) das relações internacionais. O sistema internacional como um todo, subsistemas regionais e funcionais, atores unitários tais como Estados ou organizações intergovernamentais, subunidades como agências governamentais e grupos sociais, ou mesmo indivíduos, afetam uns a segurança dos outros de maneiras variadas. Mudanças políticas internas em um país, por exemplo, alteram as intenções e a capacidade diplomática e militar daquele país no ambiente internacional, alterando assim a distribuição de poder no sistema internacional. Por sua vez, um traço estrutural do sistema internacional (a ausência de governo mundial, ou anarquia) produz conseqüências para o comportamento das unidades do sistema (mecanismo de self-help ou autodefesa) que, por sua vez, afeta os grupos e indivíduos nos Estados. Entretanto, a relevância do conceito de segurança varia bastante ao longo dos níveis de análise. Isso acontece porque problemas de segurança referem-se mais diretamente às relações políticas de amizade e inimizade (ameaças) que acompanham a escala dos “objetos referentes” ao longo dos diferentes níveis de análises. Argumentando em termos pragmáticos, Barry Buzan, Ole Wæver e Jaap de Wilde (1998:35-42) sustentam que os objetos referentes de uma ameaça precisam ser de uma escala intermediária entre o indivíduo e a humanidade para que consigam obter atenção e legitimar seus clamores de segurança, mobilizando a ação de outros atores nas relações internacionais. Indivíduos e pequenos grupos sociais raramente têm conseguido obter atenção pública para suas necessidades de segurança, assim como têm fracassado as tentativas de afirmar a humanidade inteira como um referente adequado para problemas de segurança (não obstante o temor do holocausto nuclear durante a Guerra Fria ou a percepção de ameaça sobre a degradação ambiental à escala global nas últimas décadas). Note-se que esses autores reconhecem a primazia analítica dos Estados em relação aos problemas de segurança, mas não a consideram exclusiva, inevitável ou perene. Por sua vez, Laurence Lustgarten e Ian Leigh (1994:03-35) reconhecem que, embora em termos axiomáticos apenas a segurança dos indivíduos conte do ponto de vista moral, em termos empíricos o fator singular mais importante e abrangente no condicionamento das ‘chances de vida’ de um indivíduo ainda é o seu ‘pertencimento’ a um Estado nacional (cidadania). A inserção dos indivíduos na família, mercado, classe social, etnia, gênero ou faixa etária não teriam impactos similares em termos de segurança para a sua existência pessoal. Embora essa seja uma posição disputável pelo menos em relação à classe social, ela tem a vantagem de tornar evidente por que as preocupações com a segurança do Estado não são meras derivações ou extensões das preocupações com a segurança dos indivíduos. Estados têm primazia como objetos de segurança porque sua existência é uma condição necessária para a realização de qualquer valor individual ou coletivo num sistema internacional caracterizado pela anarquia. Daí que o direito internacional público identifique a segurança nacional com a segurança estatal. Independente das suas diferenças em relação a qualquer um dos quatro componentes que definem os Estados enquanto uma “classe de objetos” (a base física formada por uma população e território, as instituições de governo, alguma idéia justificadora que torna aquelas instituições legítimas aos olhos da população e a soberania, que se desdobra em exercício exclusivo da autoridade interna e controle de fluxos diversos de interações com outras unidades soberanas), todos os Estados têm como preocupações fundamentais a continuidade de sua existência organizacional, a manutenção de sua integridade territorial, a sobrevivência de sua população e a independência em relação a outros governos. O desempenho relativo de um Estado no provimento de ordem pública e na defesa nacional constitui o elemento mínimo a partir do qual se pode julgar WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 45 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA suas pretensões de obter lealdade e obediência por parte dos cidadãos. Entretanto, os fatores que determinam se a vida das pessoas será ou não “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” são muito mais complexos e diversificados do que a condição necessária, porém insuficiente, de segurança decorrente do cumprimento eficaz das tarefas ‘hobbesianas’ de provimento de ordem pública e de defesa nacional. O mecanismo de reciprocidade entre proteção estatal e consentimento dos indivíduos se mantém no mundo contemporâneo, embora os recursos de poder, as demandas, opiniões e direitos dos cidadãos também sejam muito mais complexos e diversificados do que eram os dos súditos. No mínimo, isso significa que os meios e os métodos através dos quais o Estado garante as condições elementares de segurança são relevantes para a segurança individual e coletiva (“nacional”) dos habitantes de uma unidade política qualquer. Ou seja, o mesmo Estado que obtém legitimidade do fato de ser o principal responsável pela segurança nacional, freqüentemente torna-se ele próprio uma fonte de ameaça mais ou menos direta para a segurança dos indivíduos, grupos e da própria nação. Ameaça direta quando o governo mobiliza os meios de força sob seu controle contra alvos individuais ou grupos que fazem parte da população que supostamente deveria estar sendo protegida, os quais não infringiram nenhuma lei ou ameaçaram violentamente a ordem pública. A aplicação intensa de coerção fez parte da trajetória típica da construção estatal moderna na maioria dos países e, ainda hoje, quando os interesses do Estado se chocam com os de algum grupo ou indivíduo, os governantes e suas burocracias têm recursos de poder para tentar impor, mais ou menos coercitivamente, sua vontade em nome da ordem pública, da moralidade ou da segurança nacional. Além da violência direta em escalas variadas (da prisão ilegal, tortura e assassinato de dissidentes do regime até o genocídio de vastos contingentes populacionais), o Estado também ameaça a segurança dos indivíduos sempre que o sistema de justiça criminal e o policiamento são ineficientes ou arbitrários e crimes contra a vida e o patrimônio das pessoas podem ser cometidos impunemente, ou quando os governantes implementam políticas externas e de defesa que aumentam enormemente o divórcio entre a segurança individual e a segurança do Estado (por exemplo, no caso da dissuasão nuclear baseada na destruição mútua assegurada, em que parte da população é entregue como refém para estabilizar a interação estratégica). De forma mais indireta ainda, a luta entre diferentes grupos pelo controle dos recursos estatais que permitem governar uma população e um território (guerra civil, revolução ou qualquer outro tipo de “soberania múltipla”) ameaça a segurança de indivíduos e setores da população que não estão diretamente envolvidos no confronto. Esta tensão entre segurança individual e segurança estatal é um traço imanente da ordem política moderna e manifesta-se com maior ou menor intensidade dependendo da natureza do regime político e da inserção conjuntural de cada país no sistema internacional. Quando são levadas em conta as diferenças entre os Estados (tamanho da população e do território, diferentes ideologias justificadoras, instituições de governo e graus de desempenho em relação aos atributos da soberania), a tradução prática da noção de segurança nacional torna-se potencialmente tão diversa quanto a diversidade dos Estados existentes e suas respectivas relações com suas populações e com os outros Estados. No caso dos países cujas instituições de governo são as da democracia representativa e a ideologia justificadora da Constituição é liberal e democrática (poliarquias), embora seja razoável esperar que a tensão entre segurança individual e segurança estatal seja menor do que nas ditaduras, permanece como um problema empírico analisar suas manifestações específicas. Constatando essa dupla face do Estado, protetora e ameaçadora da vida e da liberdade individual a um só tempo, Lustgarten e Leigh (1994:0810) tentam religar o conceito de segurança nacional com a democracia propondo que se considere a proteção dos direitos humanos como uma dimensão central da própria segurança estatal. Afinal, as ações tomadas pelas instituições governamentais para tentar garantir a segurança nacional precisam levar em conta a natureza mesma das instituições que se pretende proteger e de suas bases de legitimação. É comum que atos governamentais tomados em nome da segurança nacional sejam considerados válidos ou não em si mesmos, embora gerem preocupações secundárias por suas implicações para a democracia e os direitos humanos. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 46 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Porém, dizem Lustgarten e Leigh, ao invés de um jogo de soma zero no qual os ganhos de segurança estatal impliquem em perdas de segurança individual e vice-versa, essa contradição poderia ser resolvida se as instituições evitassem medidas de segurança que limitam ou sacrificam liberdades civis e políticas, considerando que elas atingem não apenas os indivíduos e grupos que são os alvos diretos dessas medidas, mas trazem também perdas para as liberdades de todos e afetam negativamente a segurança nacional na medida em que enfraquecem as bases da legitimidade de um Estado fundamentado em instituições democráticas representativas e valores correspondentes. Isso não quer dizer que as democracias não sejam capazes, não devam ou jamais tenham adotado medidas de segurança que acarretam limitações a certos direitos civis e políticos individuais, tais como o direito de reunião, a garantia de inviolabilidade de correspondências e comunicações, o direito de viajar e movimentar-se livremente em áreas públicas, o direito à informação governamental, a liberdade de imprensa, a inviolabilidade doméstica contra buscas e apreensões sem mandato judicial etc. Mas, para pretender obter o consentimento do público para essas medidas repressivas, o governo que as propõe e implementa alegando ameaças à segurança nacional precisaria justificá-las em termos da gravidade real e da proximidade da ameaça, da eficácia das medidas propostas para neutralizar a ameaça percebida, do número de pessoas e interesses atingidos pelas medidas repressivas e do porquê a operação regular dos meios estatais de coerção não é suficiente. Tipicamente, nas democracias, tais medidas deveriam ser consideradas apenas excepcionalmente (vide os institutos do estado de defesa e do estado de sítio no caso da Constituição brasileira), deveriam ser temporárias, não poderiam implicar qualquer autorização para a violação do direito à vida e à integridade física dos atingidos, precisariam ser autorizadas pelo poder legislativo nacional e as responsabilidades legais das autoridades envolvidas não seriam suspensas durante sua vigência. Embora o ponto dos dois autores britânicos seja consistente com os fundamentos liberais do direito positivo, encontrando ainda uma razoável tradução na prática política das poliarquias institucionalizadas, sua tentativa de solucionar o trade-off entre segurança individual e segurança estatal a partir da proposição normativa de se “pesar” os direitos humanos nos dois lados da balança encontra sérios obstáculos. Primeiro, porque mesmo nos casos excepcionais previstos pelas constituições democráticas, o dispositivo constitucional sobre as medidas de segurança não faz mais do que fixar alguns parâmetros bastante genéricos e frouxos para o processamento de uma disputa essencialmente política sobre a gravidade das ameaças, sobre a gravidade das medidas propostas e sobre o exercício efetivo de coerção. Ou seja, a tensão entre segurança estatal e individual se mantém - pois está baseada numa contradição inerente ao exercício da autoridade num mundo complexo e burocratizado - e sua natureza política impede que a mera proposição normativa da subsunção das medidas de segurança à proteção aos direitos humanos possa resolvê-la. Segundo, a relação entre segurança estatal e democracia não é direta, especialmente no caso da capacidade de neutralizar ameaças externas. No longo prazo, e em termos muito agregados, o desenvolvimento econômico e a democracia - que em grande parte decorre da ultrapassagem de certo limiar de desenvolvimento econômico - têm impactos positivos sobre a capacidade defensiva de um país. Mesmo assim, é importante destacar que o binômio desenvolvimento e segurança, característico dos regimes autoritários na América Latina nas décadas de sessenta e setenta, implicava na verdade a construção de “capacidades” nacionais e desempenhos específicos em duas áreas muito diferenciadas e nem sempre intercambiáveis. Os ganhos em desenvolvimento não se traduzem automaticamente em ganhos de capacidade defensiva e segurança, como se isso pudesse ocorrer independentemente das escolhas políticas concretamente encaminhadas pelos governantes no que diz respeito às políticas externa e de defesa. Da mesma forma, a natureza democrática ou não de um regime político não resolve por si mesma todos os problemas associados à segurança estatal. Basta dizer que a afirmação segundo a qual o Canadá não é apenas diferente da China, mas sim muito mais democrático do que ela, não equivale à afirmação, bem mais disputável, de que o Estado canadense considerado isoladamente é mais capaz do que o Estado chinês para respaldar seus valores e interesses ou para neutralizar ameaças vitais através do uso de meios de força. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 47 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Nesse sentido, a posição de Barry Buzan sobre a irredutibilidade da segurança estatal à segurança individual e vice-versa é mais realista que a posição de Laurence Lustgarten e Ian Leigh. Isso pode ser observado mesmo considerando-se o lado inverso da questão, sobre como a diminuição relativa da capacidade defensiva externa de um Estado não se traduz automaticamente em perda de autoridade do Estado em relação aos cidadãos. Segundo Buzan (1991:51), dificilmente o declínio na capacidade defensiva de um Estado no sistema internacional - por exemplo, decorrente do advento das armas nucleares e do bombardeio estratégico - faz declinar igualmente a autoridade do Estado sobre seus cidadãos. Infelizmente, o contrário também é verdadeiro, pois dificilmente variações nos níveis de segurança individual dos membros de uma população chegam a comprometer por si mesmos a estabilidade e a capacidade defensiva do Estado como um todo. Em resumo, a abordagem liberal do conceito de segurança nacional tende a afirmar precipitadamente que os Estados são inseguros porque – e apenas na medida em que - suas instituições governamentais são autoritárias ou quando Estados autocráticos ameaçam Estados democráticos. Por sua vez, os autores que recorrem à noção de segurança humana (human security) tendem a sustentar equivocadamente que os Estados são inseguros porque - e apenas na medida em que suas populações são pobres e excluídas ou quando Estados ricos ameaçam Estados pobres. Formulado em sua máxima abrangência no Relatório sobre o Desenvolvimento Humano do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (UNDP) publicado em 1994, o conceito de segurança humana procurou articular uma série de tentativas anteriores de alargar e substituir a noção de segurança nacional vigente durante a Guerra Fria. Desde os anos 1970 e 1980, muitos autores e comissões internacionais vinham falando dos problemas associados à segurança social, segurança ambiental, segurança global (ameaça de holocausto nuclear), segurança alimentar e segurança individual (fosse ela ameaçada pela doença, crime ou repressão estatal). Com o final da Guerra Fria e a intensificação dos debates sobre desenvolvimento sustentável no começo da década de noventa, a inclusão de novos temas na agenda de segurança foi reivindicada a partir desse conceito sintético de segurança humana. Em relação à noção anterior de segurança nacional, o novo conceito teria algumas diferenças fundamentais segundo seus proponentes. Do ponto de vista dos “objetos” da segurança, há uma postulação explícita para que se abandone o Estado como o referente empírico mais importante para a consideração de problemas de segurança, colocando em seu lugar as demandas de segurança dos indivíduos, dos grupos sociais destituídos (minorias étnicas, pobres, outros segmentos excluídos na população), da humanidade como um todo e até mesmo da biosfera. A própria definição do que seriam os problemas “reais” de segurança deveria deslocar-se, segundo a abordagem da human security, da capacidade de neutralizar ameaças de tipo predominantemente militar para a neutralização das ameaças à vida humana que são resultantes da degradação ambiental, da instabilidade econômica e da desintegração de laços sociais. Modificando-se a percepção do que seriam as ameaças “reais” à segurança das pessoas, os instrumentos e instituições capazes de prover segurança também deixariam de depender principalmente dos meios de força controlados pelos Estados soberanos de base territorial e suas alianças militares tradicionais, tais como a organização do Pacto de Varsóvia e a Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Na nova abordagem, principalmente em função do novo perfil das ameaças percebidas, seriam centrais as agências especializadas do sistema das Nações Unidas (UN), bem como outras organizações integradoras multi- estatais ou multinacionais, além das organizações nãogovernamentais (NGOs) operando em bases transnacionais ou subnacionais. Segundo a síntese de Jean Daudelin (1999:17), os componentes centrais dessa redefinição do conceito de segurança seriam a individualização, desmilitarização, globalização e democratização dos problemas e soluções de segurança humana. Nesse caso, as objeções que tenho dizem respeito à produtividade analítica do conceito de segurança humana vis-à-vis o conceito de segurança nacional, mas também à própria validade da prescrição subjacente a essa mudança de ênfase. As objeções analíticas dirigem-se para a perda de coerência intelectual de um programa de pesquisas que pretendesse partir da noção de que existem “problemas de segurança sempre que a vida dos indivíduos estiver ameaçada”, o que ocorreria na proporção direta em que tudo aquilo que de alguma forma determina se a vida dos indivíduos será ou não “solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” fosse transformado em objeto da alçada dos estudos e políticas de segurança. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 48 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Em artigo sobre o renascimento dos estudos de segurança publicado há alguns anos, Stephen Walt (1991:213) já havia alertado que a inclusão de tópicos como fome, AIDS, poluição, abuso infantil ou recessão econômica no âmbito do programa de pesquisas sobre “segurança” serviria apenas para dificultar a investigação especializada desses importantes problemas e não acrescentaria nada ao necessário estudo dos problemas específicos relacionados ao uso da força na dinâmica política das relações interestatais, subnacionais e transnacionais. Certos temas de relações internacionais, não diretamente ligados à dinâmica do combate ou aos aspectos logísticos e estratégicos, tais como a economia da proliferação de armamentos - desde minas antipessoais e armas ligeiras até armas químicas, biológicas e nucleares (WMD) - ou a aplicação de justiça em casos de crimes contra a humanidade, são claramente uma parte integrante dos estudos estratégicos. De modo geral, temas econômicos, médicos ou ambientais tendem a fazer parte da agenda de pesquisa dos Estudos Estratégicos quando estão relacionados, ainda que indiretamente, ao uso da força. Mas é preciso ter claro que o estudo da segurança, na medida em que se afasta dos Estudos Estratégicos, tende a disputar agendas de pesquisa e a tentar mesmo substituir a disciplina de Relações Internacionais como um todo. De qualquer modo, a função primária do conceito de human security tem sido menos a de estruturar um programa de pesquisas e mais a de orientar a política externa de alguns países, organizações não-governamentais e agências multilaterais. Mesmo como opinião no debate político (policy advocacy), a abordagem da segurança humana enfrenta problemas de legitimação e dilemas morais semelhantes aos já enfrentados pelo conceito de segurança nacional. Em primeiro lugar, ela assume acriticamente que segurança é sempre uma boa coisa, um estado desejável para quaisquer relacionamentos. Em segundo lugar, a ampliação excessiva do conceito de segurança permite que novas regras estabelecidas no âmbito de organizações inter-governamentais (UN, NATO etc) onde predominam os interesses dos países membros mais poderosos autorizem uma intervenção dos países mais poderosos nos países mais fracos por uma variedade crescente de motivos. Ora, ainda que, em geral, a segurança seja um estado melhor do que a insegurança (quando não há contramedidas eficazes disponíveis contra as ameaças vitais), não se deve perder de vista que o que se chama de segurança no sistema de relações interestatais é um tipo de estabilização relativamente precária de relações conflitivas e ameaçadoras. No caso das relações interestatais, essa estabilização só é obtida às custas da mobilização de recursos coercitivos e medidas excepcionais que aumentam as tensões entre segurança individual e segurança estatal. Ao reivindicar a “securitização” de temas como o combate à pobreza, o controle epidemiológico de doenças, a melhoria da educação e a luta contra a degradação ambiental, a abordagem da human security pretendia trazer esses temas para o centro da agenda, obtendo o mesmo tipo de prioridade e tratamento especial dos temas tradicionais de segurança, especialmente a defesa militar externa e o provimento de ordem pública dentro dos países. Mas os riscos associados a esse procedimento parecem não despertar preocupação nos primeiros formuladores dessa abordagem. Um exemplo contemporâneo dos problemas advindos da securitização indiscriminada de quaisquer temas socialmente relevantes seria o caso da espionagem econômica, que ainda encontra dificuldades para justificar-se nos países democráticos em função do imperativo da separação entre interesses públicos e privados, mas que poderia legitimar- se com base no conceito de human security, aprofundando a securitização do desempenho econômico num mundo crescentemente interdependente e competitivo. Portanto, ignorar que a “securitização” de temas como a preservação ambiental e a competitividade econômica trazem consigo os riscos de utilização desproporcional de medidas repressivas e de limitações das liberdades individuais é por demais ingênuo ou politicamente interessado, principalmente considerando-se as diversas racionalizações do uso de mecanismos repressivos por diversos tipos de regimes políticos ao longo do último século. Na verdade, se se trata de ter algum horizonte normativo em torno desse tipo de problema, esse deveria ser algo mais próximo da “desecuritization” mencionada por Ole Wæver (1995), um deslocamento dos problemas relevantes para fora do “modo de emergência e exceção” associado às medidas de segurança e para dentro do processo considerado normal de argumentação e disputa política democrática. A melhor forma para evitar o terreno minado da definição a priori e arbitrária do que seriam as “reais” ameaças contra a segurança dos indivíduos e Estados seria analisar os próprios processos políticos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 49 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA de securitização de certos temas e problemas. Nos termos propostos por Buzan, Wæver e Wilde (1998: 21-47), isso significaria compreender como interagem em cada caso concreto três pólos do processo: os objetos referentes (que são vistos como ameaçados em sua existência e/ou autonomia e reivindicam seu direito à sobrevivência), os atores securitizadores (os quais declaram que um objeto referente está sendo ameaçado e requisitam contramedidas) e os atores funcionais (que legitimam ou não a percepção de ameaça e as contramedidas de segurança requisitadas). O mesmo esquema analítico permite diferenciar processos ad hoc de securitização e processos relativamente institucionalizados de securitização. Se um dado tipo de ameaça é persistente, recorrente ou emergencial, a escolha de respostas políticas adequadas e a definição de prioridades e graus de urgência podem ser institucionalizados através de procedimentos tipificados e agências governamentais especializadas. Assim, por exemplo, riscos potenciais de ameaças militares externas em ambientes internacionais cambiantes, bem como a avaliação sobre o grau adequado de preparação para a eventual necessidade de sustentação externa dos interesses e valores governamentais através da força, justificam e explicam a centralidade das forças armadas em qualquer arranjo nacional defensivo. Embora os diversos componentes e os diversos aspectos de uma política de defesa devam estar em constante debate e reavaliação nas democracias, refletindo a instrumentalidade das forças armadas em relação à política, a dinâmica temporal e de recursos envolvida nas decisões sobre defesa implicam a superioridade relativa dos procedimentos institucionalizados de deliberação e gestão governamental dos assuntos de defesa e segurança. Em outras palavras, não se constroem forças armadas após a identificação de uma ameaça iminente à segurança nacional. Porém, de modo algum tal institucionalização deveria significar que o processo político possa ser substituído por decisões meramente “técnicas” relativas às possibilidades de emprego da força em situações concretas. Como já destacava Barry Buzan (1991:140), a ambigüidade e a complexidade da maioria das ameaças tornam inerentemente difícil manter a proporcionalidade das respostas governamentais, o que repõe constantemente a segurança como um problema político. Ao invés de compor um “pacote de legitimação” que resolveria de uma vez por todas questões de prioridade e recursos, é justamente o risco de constituição de “caixas-pretas” de segurança no processo político (black security boxes) que torna importantes os procedimentos institucionalizados de securitização. Prescritivamente, Lustgarten e Leigh (1994:23-26) sustentam a necessidade de se reaprender a linguagem mais clara e precisa da defesa nacional, abandonando a vagueza da “segurança nacional” e sua tendência a hipertrofiar as “ameaças” em função dos interesses setoriais das burocracias especializadas em garantir a segurança estatal. Isso é certamente necessário e compatível com o esforço feito aqui de desmistificação do conceito de segurança nacional. Porém, mesmo sem se falar em segurança nacional restaria a tarefa de situar criticamente o papel das organizações de força e de inteligência na confluência das políticas públicas de defesa externa, provimento de ordem pública e afirmação diplomática dos interesses e opiniões governamentais no plano internacional. Por isso - e também pela disseminação do uso desse conceito no debate público internacional – foi preferível destacar aqui as contradições internas insanáveis da noção de segurança, reconhecendo que por segurança nacional quase sempre se está falando na verdade é de segurança estatal e, ainda assim, tentar mostrar porque essa segurança nacional ou estatal não pode ser reduzida ao bem-estar dos indivíduos que compõe qualquer uma dessas coletividades a que chamamos de países. Saber quando uma ameaça vital efetivamente se torna uma questão de segurança nacional depende não apenas do tipo de ameaça (militar, econômica etc.), mas também da percepção que os atores políticos têm dela e da intensidade e extensão das conseqüências estimadas. Conhecer essas dinâmicas e informar os resultados das análises de forma ágil para os governantes e comandantes militares é a função primordial dos serviços de inteligência. Em síntese, outras coisas sendo iguais, quanto mais intensa for uma ameaça e quanto mais universais forem as conseqüências para os membros de uma dada unidade política, maior tende a ser a legitimidade das medidas de segurança adotadas pelo governo. Esse é um bom critério, mas o problema é que ameaças costumam envolver grande complexidade de fatores causais, diversidade de fontes ou outras ambigüidades. Como diz Barry Buzan (1991:142), mesmo que as informações fossem perfeitas - ilimitadas e não distorcidas - a complexidade inerente WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 50 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA das ameaças e das conseqüências das respostas escolhidas desafiaria a capacidade de discernimento dos atores. Desafio ainda maior no caso de interações conflitivas nas quais não apenas as informações disponíveis são escassas, mas as assimetrias e negações mútuas de informação (denial and deception) são uma componente fundamental da própria interação. Tudo isso torna difícil a deliberação política sobre medidas de segurança e os processos de justificação dessas práticas por parte dos atores “securitizadores”. É justamente para reduzir a incerteza e aumentar a capacidade de preservar a segurança nacional que existem as forças armadas, polícias e serviços de inteligência. Tais organizações são parte do necessário esforço governamental para a solução de problemas de segurança, mas, na medida em que a própria busca de segurança é problemática, tais organizações de força e inteligência são também parte do problema. Na sua dupla função, informacional e coercitiva, os serviços de inteligência têm seus traços definidos pelos dilemas e desafios de segurança nacional discutidos até aqui. Um aspecto particularmente significativo desses dilemas manifesta-se na questão do segredo governamental, tema da próxima seção. 3.2 - Segredo Governamental: De acordo com a conhecida definição do sociólogo Edward Shils (1996:26), um segredo é uma retenção compulsória de conhecimento, reforçada pela perspectiva de punição em caso de revelação. Essa definição apenas em parte é equivalente a outras definições correntes na literatura especializada, tais como a de Sissela Bok (1982:05), que afirma ser um segredo qualquer coisa mantida intencionalmente escondida. Enfatizando esse aspecto intencional do segredo como sendo uma propriedade da informação que é escondida do conhecimento de outrem, Kim Lane Scheppele utiliza uma formulação bastante concisa e abrangente: “A secret is a piece of information that is intentionally withheld by one or more social actor(s) from one or more other social actor(s)”. O problema da definição de Scheppele (que é basicamente a mesma de Bok) é que ela é abrangente demais para os propósitos da discussão a ser feita sobre inteligência e segredo. Scheppele reconhece que a retenção intencional de informações na relação entre dois ou mais atores sociais varia segundo os contextos da interação, mas sua definição não nos permite diferenciar segredos privados de segredos públicos. A abordagem de Shils é preferível, pois ela mantém a idéia de intencionalidade e acrescenta um elemento regulador externo para a retenção da informação: a punição legalmente estatuída no caso de revelação. O segredo público é assim distinto de uma informação qualquer que é mantida privadamente em segredo, a qual não passa de uma retenção voluntária de conhecimento reforçada pela indiferença alheia. Nesse sentido um tanto paradoxal, segredos são uma forma de regulação pública de fluxos de informação. Há pelo menos cinco categorias de informações reguladas pelo sigilo de tipo público: 1) defesa nacional; 2) política externa; 3) processos judiciais; 4) propriedade intelectual e patentes; 5) privacidade dos cidadãos. A justificação pública para a necessidade de sigilo varia muito em cada categoria. Das cinco categorias, as duas primeiras contêm a maioria das informações mantidas em segredo com base em considerações de segurança nacional. Esse é o tipo de segredo público de que se ocupará essa seção do texto. Vale notar que a justificação do segredo baseada no risco potencial para a segurança nacional não é facultada aos atores privados, mas apenas ao Estado e seus representantes e mesmo assim em situações especiais. Os segredos governamentais são compatíveis com o princípio de transparência dos atos governamentais somente quando a justificação de sua necessidade pode ser feita, ela própria, em público. Isso é o que David Luban (1996:154-198) chama de máximas de primeira ordem e de máximas de segunda ordem relativas ao princípio da transparência. Uma defesa não apriorística desse princípio envolve admitir o segredo governamental a respeito de normas, procedimentos e políticas (máximas de primeira ordem) desde que as razões para a regulação secreta dessas informações (máximas de segunda ordem) possam ser expostas e justificadas publicamente. Nada impede, entretanto, que máximas de terceira ou quarta ordem sejam adotadas por governos ou serviços de inteligência para justificar (freqüentemente de forma apodítica) uma decisão de manter WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 51 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA em segredo as próprias razões pelas quais eles mantêm em segredo certas políticas. Ou seja, assim como no caso da segurança nacional, não há antídotos definitivos contra o abuso do recurso ao segredo governamental. No limite, é preciso admitir que esse é um tipo de regulação poderosa que se baseia em confiança (“trust”). Entretanto, justamente porque o uso excessivo de máximas de terceira ordem conduz à deslegitimação e ao cinismo em relação às próprias instituições que se pretende proteger através do segredo, um regime democrático precisa tentar traduzir o princípio moral da transparência em proposições de desenho institucional. Ao cabo, o segredo governamental pode ser compatível com o princípio de transparência somente quando decisões sobre a aplicação desse tipo de regulação a determinados fluxos informacionais são tomadas através de mecanismos institucionais publicamente estabelecidos no contexto de regras do jogo democráticas. Nas áreas de atuação governamental relacionadas com a defesa nacional e a política externa, a principal justificativa para a restrição da circulação de informações produzidas ou mantidas pelo governo é o dano potencial que sua apropriação por uma terceira parte (e.g. um governo estrangeiro) poderia causar para a segurança estatal e, por decorrência, para a segurança individual dos membros da coletividade. Por exemplo, sistemas de armas, planos de contingência e mobilização, pesquisa científica e tecnológica de aplicação militar, intenções em negociações de acordos internacionais, desempenho de capacidades defensivas e outras coisas semelhantes, uma vez conhecidas por um adversário ou inimigo, aumentam nossas vulnerabilidades e fornecem uma vantagem comparativa crucial para os adversários nas interações conflitivas. Além de ser necessário por razões puramente defensivas, o segredo muitas vezes também é decisivo para que os governos possam planejar, implementar e concluir missões militares e diplomáticas. Um exemplo óbvio do papel crucial do segredo é a tentativa de obtenção de surpresa em ataques militares, mas também se pode argumentar na mesma direção em relação ao sucesso de negociações diplomáticas sensíveis (por exemplo, as negociações secretas entre China e Estados Unidos que precederam a visita de Nixon a Pequim em 1972, ou as negociações secretas entre representantes palestinos e israelenses que precederam os chamados Acordos de Oslo em 1993). Nesses casos, a justificação do segredo baseia- se mais na necessidade de impedir que os objetivos governamentais sejam frustrados pela publicização precoce da informação do que nos danos potenciais à segurança nacional. A necessidade de sigilo também é reivindicada em processos de deliberação intra-governamental sobre os temas domésticos considerados relevantes para a segurança nacional (energia, transportes, policiamento etc.), processos decisórios durante os quais a revelação prematura das divergências de opinião dentro do governo poderia ser danosa para a segurança das operações e para a possibilidade de sucesso de qualquer das metas e planos eventualmente escolhidos. Nesses casos, a aplicação de restrições de sigilo são muito mais problemáticas em termos legais e, principalmente, políticos. O risco envolvido, do ponto de vista da democracia, é que o recurso ao sigilo impeça a necessária transparência dos atos governamentais, tanto pela impossibilidade de verificação de responsabilidades individuais na história administrativa das decisões, quanto pela restrição pura e simples dos direitos políticos dos cidadãos. Uma última justificativa genérica para o segredo estatal é a necessidade de proteger as identidades e relacionamentos confidenciais de agências governamentais com certos indivíduos, grupos e governos. A necessidade de sigilo nesses relacionamentos emerge de uma variedade de contextos e toma formas diversas, embora o caso mais evidente seja justamente o da proteção de fontes e métodos na área de inteligência. Além do risco de vida para os próprios indivíduos e suas famílias, a exposição (“blow”) desse tipo de relacionamento através do fracasso de uma das partes em manter segredo tem efeitos em cadeia sobre a disposição de cooperação futura, o que é considerado prejudicial para a segurança nacional e para a perspectiva de viabilização dos interesses e políticas governamentais na arena internacional. Para além da justificação pública sobre sua necessidade prática e validade moral, os segredos de Estado não se manteriam secretos se contassem apenas com a discrição dos indivíduos que partilham a informação sigilosa ou com a indiferença alheia. A proteção dos segredos de Estado depende de três processos complementares: 1) procedimentos de classificação, 2) controles de acesso e 3) punições em caso de revelação não autorizada. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 52 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA No primeiro caso, autoridades legalmente competentes identificam conjuntos informacionais sensíveis para a segurança nacional e aplicam regras de classificação que definem o grau de sigilo necessário e a intensidade das medidas de restrição física de acesso para cada informação. As classificações de segurança são feitas através da atribuição de marcadores externos que definem a importância de cada informação para a segurança nacional (tipicamente, são utilizadas as categorias de confidencial, secreto e ultra-secreto). A atribuição de um marcador específico para um documento ou conjunto informacional é feita - em tese - por um funcionário ou órgão legalmente autorizado. No caso de informações consideradas extremamente vitais para a segurança nacional, por exemplo, a atribuição da categoria de ultrasecreto só pode ser feita pela autoridade mais alta do país ou por sua expressa delegação. 226 As categorias de sigilo também prevêem tempos de duração para a restrição de acesso correspondentes ao grau de sigilo atribuído, ou seja, quanto mais secreta uma informação maior o tempo que transcorrerá até sua completa publicização. No segundo bloco de medidas (controles de acesso), as medidas de restrição física de acesso a essas informações implicam sistemas de vigilância, manejo, armazenamento e transmissão, não importa em que mídia específica as informações estejam. A disciplina de segurança de sistemas de informações (infosec) preocupa-se não apenas com a criptografia das mensagens e acervos informacionais, mas cada vez mais com a redução das vulnerabilidades sistêmicas das redes de produção, armazenamento e comunicação de informações. No caso, trata-se de evitar que as informações sigilosas de categorias diversas sejam interceptadas por usuários não autorizados (espionagem), ou que possam ser alteradas ou destruídas (sabotagem). Garantias adicionais de preservação dos segredos governamentais são obtidas através de sistemas de veto de acesso para pessoas não autorizadas, bem como através de restrições adicionais de circulação das informações sigilosas através da aplicação do princípio conhecido como “necessidade de conhecer” (“need-to-know”). Sistemas de veto envolvem a aplicação de procedimentos de checagem de segurança para todas as pessoas que se candidatam a um emprego em agências governamentais na área de defesa, inteligência e segurança. Nas áreas consideradas críticas para a segurança nacional, controles de segurança são aplicados tanto para funcionários civis e militares quanto para empregados de empresas privadas que mantenham contratos com agências governamentais. No caso das agências de inteligência, além das checagens padronizadas sobre antecedentes criminais e fichas de crédito e saúde, são realizadas entrevistas mais detalhadas com parentes, vizinhos e conhecidos sobre o passado individual, além da aplicação de testes especiais com “detectores de mentiras” (Polygraph tests). Depois de passar satisfatoriamente pelos sistemas de veto e investigação, para ter acesso às informações classificadas (sigilosas), os ocupantes de cargos públicos precisam obter credenciais correspondentes ao nível de classificação da informação (reservada, confidencial, secreta e ultrasecreta). Em geral, o nível de acesso depende do grau de senioridade do funcionário e/ou da importância do cargo ocupado. Vale observar que, uma vez concedida a credencial de acesso, a mesma não acompanha o funcionário ou a autoridade eleita independentemente dos cargos que ele ocupar ou do período transcorrido. Checagens de segurança periódicas são, ao menos em tese, necessárias para a renovação das credenciais de acesso. Porém, por mais drásticos que sejam os procedimentos de segurança para a concessão de credenciais, o acesso aos segredos governamentais depende ainda da aplicação do princípio de segmentação das informações mais sensíveis (“need-to-know”). Basicamente, esse princípio diz que cada documento ou conjunto informacional pode ser acessado apenas pelos funcionários que efetivamente precisam ficar sabendo do seu conteúdo, e não por qualquer um que possua uma credencial de acesso com nível de classificação compatível. Isso gera novos marcadores externos e restrições adicionais para o acesso aos segredos governamentais. No caso do sistema de classificação dos Estados Unidos, por exemplo, além das três categorias ascendentes de segurança (confidential, secret e top secret), são utilizados cerca de cinqüenta marcadores adicionais que, embora não tenham o mesmo estatuto legal, muitas vezes estabelecem regulação mais intensa do que o sistema formal. Programas, informações e documentos com acesso especial (SCI - special compartimented information) podem ser estabelecidos com base no princípio da “necessidade de WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 53 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA conhecer”. No terceiro bloco de medidas, se falham os procedimentos de segurança entram em cena os elementos dissuasórios que diferenciam a definição de segredo público de Edward Shils: sanções administrativas e penalidades legais. Nesse caso, é importante diferenciar a obtenção de segredos através da espionagem do mero vazamento de informações sigilosas para o público. Segundo Lustgarten e Leigh (1994: 221-248), por se tratar de uma ação discreta e/ou furtiva a espionagem bem sucedida abre uma cunha na segurança de informações que o governo demora a perceber ou sequer toma consciência. Um espião operando em favor de um governo estrangeiro, independentemente de suas motivações (ideologia, dinheiro, chantagem, vingança etc.), não pode alegar o bem comum da nação que ele está espionando e tampouco da humanidade como um todo para justificar sua ação. Quer se trate de um agente recrutado (cidadão ou residente permanente), ou de seu controlador estrangeiro (que pode ter cobertura diplomática ou não), o ato de espionar é uma ação que altera a distribuição de poder internacional e trai a confiança horizontal na qual se baseia a própria cidadania. Em um mundo de Estados que precisam defender-se a si próprios, a espionagem é uma conduta criminalizada na maioria dos ordenamentos legais. Nos Estados Unidos, por exemplo, dependendo da gravidade do caso a espionagem pode ser punida pelo júri com a prisão perpétua ou mesmo com a pena de morte. Mesmo que muitos espiões não cheguem sequer a ser processados, o que ocorre inclusive por razões intrínsecas à própria lógica das operações de contra-inteligência, o ponto a ser destacado é que a gravidade com que a espionagem é encarada contrasta com a relativa banalização dos vazamentos de informações sigilosas nas democracias. A causa desse fenômeno reside no entendimento da jurisprudência de que a divulgação nãoautorizada de informações sigilosas causa relativamente menos dano do que a espionagem porque a própria publicização da informação imediatamente alerta o governo e desencadeia contramedidas e tentativas de controle de danos. Também pode ser que a divulgação não autorizada de informações sigilosas tenha sido acidental, ou que tenha sido intencionalmente motivada pela decisão de expor alguma corrupção, arbítrio ou incompetência governamental que vinha sendo ocultada através das regras formais do segredo público. Nesses casos, mesmo que a motivação do agente que torna pública a informação faça diferença para a avaliação de sua credibilidade, os danos para a segurança nacional devem ser contrastados com o eventual benefício público resultante da transgressão. Obviamente, isso é sempre controverso e as tentativas de regulação legal do fenômeno esbarram em sua complexidade política. Na maioria dos casos que aparecem corriqueiramente na mídia, na verdade o vazamento de informações sigilosas (“leakage”) é um recurso de poder utilizado por membros do próprio governo para lançar balões de ensaio sobre políticas e projetos, para torpedear uma política da qual discordam ou meramente para avançar seus próprios interesses na disputa interburocrática. Nos Estados Unidos, o vazamento de informações sigilosas é penalizado com medidas administrativas (desde a censura até a perda do cargo ou emprego), multas em dinheiro e até dez anos de prisão. Porém, nos Estados Unidos, a relativa impunidade dos vazamentos de informações sigilosas por membros do alto escalão do governo central tende a gerar, por um lado, descrédito público para a necessidade de operar sistemas de classificação e, por outro lado, uma reação defensiva da parte dos órgãos de segurança que pode ser descrita como hiperclassificação. Aliás, pode-se dizer que falhas em qualquer um dos três processos descritos nos parágrafos anteriores tendem a gerar uma expansão excessiva nos outros dois, como uma espécie de “compensação” perversa. Seja como for, o segredo governamental é uma forma de regulação de fluxos de informação bastante utilizada no Estado contemporâneo. Como em quase tudo na área de estudos de inteligência, os dados empíricos disponíveis referem-se ao caso dos Estados Unidos, de confiabilidade não testada e sabidamente de difícil comparação em função da escala. No relatório final da comissão criada pelo Congresso para analisar a “Proteção e Redução do Segredo Governamental” (1997), consta que apenas os documentos classificados com mais de vinte e cinco anos somavam naquele ano mais de 1,5 bilhão de páginas. O montante total de documentos classificados não é conhecido. Estima-se que num único ano (1992), o governo dos Estados Unidos tenha gerado 6,2 milhões de páginas de documentos classificados como sigilosos. Cerca de 99% das classificações originais são feitas em cinco órgãos do governo federal (53% no Departamento de Defesa, 30% na CIA, 10% no Departamento de Justiça, 3% no Departamento de Estado e 3% no Departamento de Energia). É WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 54 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA muito claro o peso dos órgãos de inteligência na formação do sistema de segredo governamental dos Estados Unidos, o que pode ser extrapolado para os demais Estados contemporâneos como hipótese de trabalho. Como lembra Michael Herman (1996), a relação entre segredo e inteligência começa pelo fato das operações de coleta de informações em inteligência visarem justamente a obtenção de informações que não podem ser obtidas (ou são de difícil acesso) através de meios corriqueiros de pesquisa. Para dizer isso nos termos mais enfáticos e algo exagerados de Kenneth Robertson (1987), a atividade de inteligência consiste antes de mais nada na tentativa de descobrir os segredos de outros através da utilização de meios secretos. Na verdade, Michael Herman é mais preciso ao considerar que a rationale do segredo na área de inteligência assenta-se em três diferentes tipos de consideração a respeito de fontes, informações, operações, métodos e tecnologias empregadas. Em primeiro lugar, utiliza-se o segredo como forma de regulação quando o valor da inteligência obtida depende do alvo não ficar sabendo o que efetivamente se sabe sobre ele. Por exemplo, o conhecimento prévio de um plano inimigo para um ataque surpresa abre a possibilidade de se preparar uma emboscada. Mas isso só é possível se o inimigo não souber que a vítima do ataque sabe que será atacada. Em segundo lugar, o segredo deriva também da precária situação legal dos métodos empregados para coletar inteligência. Principalmente em tempo de paz, espionagem, vigilância eletrônica e invasão de redes de computadores (computer hacking) contrariam as leis dos países/alvos e mesmo as leis internacionais que garantem a inviolabilidade do território, do espaço aéreo e das águas territoriais. Os custos políticos dessas violações podem ser minimizados através do segredo, que também permite um manejo diplomático mais eficaz das crises eventuais. Em terceiro lugar, a razão mais forte para o segredo é a vulnerabilidade das fontes às contramedidas de segurança que o alvo tomaria, caso soubesse do esforço adversário em obter inteligência. De qualquer modo, o que se pretende proteger através do segredo não é qualquer informação em particular que uma fonte já tenha fornecido, mas sim a continuidade dos fluxos de inteligência. Na guerra e na paz, segredos marcam profundamente o modus operandi e a cultura organizacional do serviço de inteligência, mesmo quando o trabalho de análise baseia-se principalmente em fontes ostensivas, não secretas. Note-se que não existe relação direta e unívoca entre a natureza secreta das fontes ou meios de coleta e a qualidade das análises produzidas em inteligência. Há sim, no entanto, associações negativas entre a intensidade/quantidade de segredos governamentais e a possibilidade de controle dos cidadãos sobre o governo. Portanto, do ponto de vista dos arranjos institucionais democráticos a aplicação desse tipo de regulação a um específico fluxo informacional teria um duplo ônus da prova: o da necessidade do segredo para a eficácia da missão e o da garantia de controle público, ainda que indireto. Os problemas relativos ao controle externo das atividades de inteligência constituem o objeto da próxima seção desse capítulo. 3.3 - Controle Externo: O acesso dos cidadãos às informações sobre o que os governantes fazem e sobre o que eles sabem é uma condição necessária para se manter os governos contemporâneos minimamente representativos em relação aos governados. Um dos principais dilemas enfrentados pela teoria democrática é como compatibilizar a necessária autonomia que os governantes precisam ter para defender os interesses e a segurança dos governados, com o pleno funcionamento de mecanismos capazes de assegurar que as ações dos governantes serão conduzidas respeitando-se a vontade dos governados. Esse respeito é tanto relativo à vontade manifestada expressamente pelos governados (responsividade), quanto é relativo à avaliação posterior das ações dos governantes pelos governados (accountability). Do ponto de vista de uma teoria da democracia, portanto, a representatividade se estabelece através de eleições (chamadas de mecanismos verticais de prestação de contas) e também da fiscalização mútua entre órgãos e poderes (chamados de mecanismos horizontais de prestação de contas). Esse dilema é particularmente difícil quando se trata de discutir o controle público sobre a segurança nacional, o segredo governamental e os serviços de inteligência. Isso ocorre porque, nesses casos, WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 55 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA as tensões entre segurança estatal e segurança individual, assim como as tensões entre segredo governamental e o direito dos cidadãos à informação, são estruturalmente determinadas pela natureza anárquica da autoridade no sistema internacional e são mais ou menos agudas dependendo da natureza dos regimes políticos, das formas de governo e de outras características institucionais e escolhas políticas dos sujeitos relevantes em cada país. Embora possam e devam ser reduzidas através da ação política consciente e da construção institucional cuidadosa, tais tensões são inelimináveis nos marcos do atual sistema de Estados, o qual representa a forma moderna predominante de resolução do problema do acomodamento institucional do convívio social em sociedades complexas marcadas por conflitos de interesses e de opiniões. Em se tratando da existência e da operação de serviços estatais de inteligência e segurança, a dupla tensão discutida nas seções anteriores implica dois tipos de riscos principais: 1) o risco de manipulação dos serviços por parte de governantes procurando maximizar poder; 2) o risco de autonomização dos próprios serviços, que se transformariam num tipo de poder paralelo dentro do Estado. Mesmo que não existam garantias definitivas contra esses riscos, nessa seção serão discutidos alguns dos mecanismos encontrados nos regimes poliárquicos (as democracias “realmente existentes”) que permitem certo grau de controle dos cidadãos sobre os serviços e os usos que os governantes fazem das capacidades estatais de inteligência e segurança. Existem sete tipos principais de mecanismos de controle público sobre as atividades de inteligência e segurança: 1) as próprias eleições; 2) a opinião pública informada pela mídia; 3) mandatos legais delimitando as funções e missões das diferentes agências e áreas funcionais; 4) procedimentos judiciais de autorização de certas operações e de resolução de disputas de interpretação sobre os mandatos legais; 5) inspetorias e corregedorias nos próprios órgãos de inteligência; 6) outros mecanismos de coordenação e supervisão no poder executivo; 7) mecanismos de supervisão e prestação de contas no poder legislativo.237 Do ponto de vista da participação individual dos cidadãos, esses mecanismos variam desde formas mais diretas de expressão de preferências, tais como a sinalização de mandatos através de eleições e a avaliação pessoal a posteriori também através de eleições, as manifestações de rua e pesquisas de opinião pública, até os mecanismos mais indiretos tais como os organismos de supervisão no poder executivo e no poder legislativo. De modo geral, na área de inteligência e segurança os mecanismos de controle público são bastante frágeis e incertos, sendo que os mais indiretos e horizontais tendem a ser relativamente mais efetivos. Diante dessa relativa fragilidade, é comum encontrar exortações sobre a necessidade de programas de treinamento e processos de socialização dos funcionários das agências de inteligência que incorporem elevados valores cívicos e alto grau de profissionalismo e respeito à Constituição. Esse é um tema complexo e, embora me pareça inegável a necesidade de um código de conduta em qualquer profissão (deontologia), preferi destacar aqui as instituições externas de controle e não as normas internas que regulam o comportamento considerado adequado para os serviços de inteligência numa democracia. No restante dessa seção serão discutidos brevemente os instrumentos legais e políticos, os recursos, a dinâmica interna e os deficits institucionais de cada tipo de mecanismo de controle. 3.3.1 - Eleições: Como destacam Przeworski, Stokes e Manin (1999:29-51), as eleições são os principais mecanismos de garantia da representatividade em regimes democráticos porque elas têm uma dupla função: selecionar programas de governo, sinalizando assim parâmetros bastante gerais de um “mandato” para os políticos eleitos e, por ocorrerem periodicamente, as eleições permitem também avaliar as ações realizadas e decidir sobre a continuidade ou não desses mandatos. Governos são representativos quando eles são responsivos às preferências dos eleitores e/ou quando eles prestam contas dos seus atos diante dos eleitores. Todavia, a eficácia institucional das eleições como mecanismo que garante a responsividade (eleições como seleção de mandatos) ou mesmo a accountability (eleições como avaliação de mandatos) é severamente constrangida por uma série de fatores. Do lado dos políticos, esses constrangimentos vão desde a necessidade que os candidatos têm de ofertar programas para atrair o eleitor mediano, ao mesmo tempo em que precisam acertar compromissos com indivíduos e grupos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 56 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA dotados de recursos de poder capazes de garantir sua eleição, passando pela modificação radical das políticas oferecidas durante a eleição porque as condições de governo são distintas, chegando até aos constrangimentos resultantes do fato de que a coalizão no governo e outros fatores externos permitem aos políticos diluir responsabilidades em relação aos resultados das políticas implementadas, o que termina por enfraquecer decisivamente as eleições como mecanismos de avaliação de performance. Do lado dos eleitores, os constrangimentos vão desde a complexidade da relação entre políticas governamentais e situações concretas de bem-estar e segurança, até o fato dos programas ofertados precisarem ser selecionados com base em conseqüências antecipadas no curto e no médio prazo, passando pelo obstáculo quase intransponível de que eleições são momentos episódicos nos quais avalia-se o desempenho dos governantes em dezenas de áreas distintas, relacionadas com milhares de decisões tomadas ao longo de mandatos multi-anuais, o que dificulta enormente qualquer avaliação retrospectiva e qualquer sinalização detalhada de preferências. Esses e outros fatores (principalmente a disponibilidade e o custo das informações) tornam muito difícil atribuir responsabilidades claras aos governantes e aos diferentes candidatos e seus programas. Junte-se a isso o impacto de diferentes arranjos institucionais sobre os resultados eleitorais e as eleições revelam-se no final das contas mecanismos muito imperfeitos para os cidadãos controlarem os governantes em quaisquer áreas temáticas ou aspectos políticos mais específicos. 240 Nesse contexto institucional, e a não ser eventualmente em situações de conflito internacional ou quando emergem grandes escândalos políticos, as atividades de inteligência e segurança estatal têm baixíssima probabilidade de aparecerem numa disputa eleitoral qualquer como um issue destacado. Por tudo isso, o controle externo de políticas de inteligência através do processo eleitoral tende a ser muito esporádico e fragmentado. Embora a eleição envolva a participação individual dos cidadãos, particularmente no caso dos temas de segurança e inteligência esse é um mecanismo de controle excessivamente indireto, que depende quase completamente do que acontece no âmbito dos mecanismos mais diretos de supervisão para que questões relacionadas com segurança e inteligência cheguem à atenção do público e, eventualmente, entrem na agenda eleitoral 3.3.2 - Mídia: Um dos papéis fundamentais da mídia seria justamente levar à atenção do público temas relevantes e polêmicos. Porém, de forma semelhante ao que acontece no caso das eleições os déficits institucionais mais gerais associados à função fiscalizadora da mídia sobre as ações governamentais são agravados quando se trata das atividades de inteligência e de segurança. Dois tipos principais de dificuldades podem ser destacados: 1) os limites da isenção jornalística em contextos nos quais as grandes empresas de comunicação e os governos mantêm relações simbióticas e ao mesmo tempo conflitivas. 2) os limites impostos pelo segredo governamental e as difíceis decisões sobre tornar público ou não um segredo obtido pelos meios de comunicação. O primeiro tipo de dificuldade existe na medida em que as empresas de comunicação precisam manter níveis de audiência lucrativos, o que pode chegar ao ponto do veículo relatar notícias com o viés que melhor atenda a esse imperativo. Por seu turno, governos precisam comunicar ao público suas ações com um viés capaz de contribuir para a manutenção de taxas de aprovação popular viáveis politicamente. Como o governo depende da mídia como um canal incomparável de comunicação com o público e a mídia depende do governo como uma fonte inesgotável de notícias mais ou menos impactantes sobre a audiência, a relação tende a oscilar permanentemente entre cooperação e antagonismo. Como os temas de inteligência e segurança são particularmente sensíveis a ambos os tipos de pressão (manipulação da informação pelo governo e “espetacularização” da notícia pela mídia), isso limita bastante a capacidade da mídia comportar-se como um agente do público na fiscalização e controle das políticas e agências de inteligência e de segurança. Limitação não quer dizer impossibilidade. Há exemplos de cobertura jornalística que contribuem para esclarecer o público, mas as limitações para isso são realmente muito grandes. A função fiscalizadora da mídia na cobertura das áreas de inteligência e segurança é ainda mais prejudicada naqueles contextos em que as práticas profissionais de investigação e de isenção jornalística são fracas, onde há grande dependência de fontes oficiais não verificadas independentemente, ou ainda nas situações em que a própria fusão corporativa da indústria de entretenimento e de notíciais produz incentivos adicionais para a “ficcionalização” dos fatos narrados. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 57 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Como se sabe, desde o século XVIII existe um gênero literário sobre espionagem, o qual foi decisivo para formar as imagens e a aura de mistério e aventura que cerca as atividades de inteligência para a maioria das pessoas. As versões contemporâneas desse gênero na literatura, no cinema e nos jogos eletrônicos possuem tal grau de penetração na cultura de massas que torna-se tentador para os veículos de comunicação “preencherem” os vácuos informativos com um suprimento de imagens, efeitos especiais e trilhas sonoras de seus bancos de dados corporativos. Normalmente isso não é uma decisão dos jornalistas, mas sim uma pressão empresarial que pode ou não prejudicar o conteúdo informacional e crítico das matérias. Além desses aspectos mais estruturais da relação entre empresas de comunicação e agências governamentais de inteligência, a isenção da mídia pode ser comprometida também no nível micro, especialmente quando os serviços de inteligência recrutam ou manipulam jornalistas empregados por veículos de comunicação, seja como fontes de informação, seja como intermediários entre o serviço e uma fonte, ou mesmo utilizando identidades jornalísticas para oficiais de inteligência operando no exterior sem cobertura diplomática. Embora a abordagem dos órgãos de inteligência possa ocorrer com qualquer outra profissão que tenha acesso ao exterior (acadêmicos, técnicos especializados, diplomatas, membros do clero, empresários etc.), no caso do jornalismo, ao concretizar-se o recrutamento ele diminui evidentemente a capacidade da mídia atuar como um mecanismo de fiscalização. Como a eventual exposição do vínculo de um jornalista com os serviços de inteligência de seu próprio país afeta a credibilidade da mídia e a confiança do público no governo, a comparação entre custos e benefícios pode estar por trás do anúncio feito em 1976 pelo então Director of Central Intelligence (DCI), George Bush, de que a CIA encerrara naquele ano todos os contratos remunerados com funcionários de empresas de comunicação anteriormente empregados pela agência. Seja qual for a razão para essa decisão no caso norte-americano, quando assumiu a direção do KGB em 1991, Yevgueny Primakov anunciou também o fim da utilização de veículos de comunicação soviéticos (russos) como cobertura para a atuação de oficiais de inteligência no exterior, especialmente o Izvestia. Ainda que a mídia esteja longe de ser um agente perfeito do público e tenha severas limitações endógenas e exógenas para fiscalizar o governo, a existência de diversos veículos e mídias independentes pode, no mínimo, exercer alguma pressão competiviva sobre as agências governamentais responsáveis pela obtenção de inteligência a partir de fontes ostensivas (open sources intelligence) e pela produção de inteligência sobre temas correntes (current intelligence). Afinal, o mero alcance global das agências de notícias e o impacto do uso comercial das novas tecnologias de comunicação e informação (ICTs) posiciona as empresas privadas de comunicação para competirem com os produtores governamentais de inteligência pela atenção dos governantes, policymakers, comandantes militares e chefes de polícia. No entanto, os eventuais impactos positivos dessa competição são mais claros em relação à agilidade do que em relação à transparência. Sobre o segundo tipo de dificuldade que a mídia enfrenta para exercer uma função fiscalizadora (segredo governamental como um tipo de regulação pública sobre fluxos de informação), nos contextos em que vigora efetivamente a liberdade de imprensa, a decisão sobre publicar ou transmitir uma matéria que envolva a revelação de informações reguladas por classificações de segurança (segredos) tende a ser uma responsabilidade da própria empresa, ponderados os argumentos governamentais sobre as necessidades de segurança nacional. Embora a revelação de segredos de Estado seja um crime tipificado na maioria dos ordenamentos jurídicos contemporâneos, uma vez revelado por uma fonte “oficial” é difícil caracterizar como crime a publicação ou a ampla divulgação da informação. Essa passa a ser portanto uma decisão principalmente política. A responsabilização legal sobre a divulgação de segredos governamentais por parte de agentes privados tende a acontecer apenas em situações extremas, que envolvam acusações de espionagem ou traição. Como regra geral, em se tratando de pensar a mídia como um mecanismo de fiscalização a serviço dos cidadãos, a decisão jornalística a favor da publicização de segredos governamentais somente seria aceitável quando o próprio governo falhasse em justificar publicamente a necessidade do segredo do ponto de vista da segurança nacional, ou seja, quando a informação classificada estiver servindo apenas para ocultar uma incompetência, um crime ou um capricho dos governantes e não para proteger os cidadãos de ameaças contra a sua segurança. Certamente uma recomendação tão genérica apenas reforça a convicção de que se trata, em última análise, de um tipo de decisão política inevitavelmente polêmica, a qual sempre envolve riscos morais e incertezas que apenas em WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 58 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA parte são minimizados pelos parâmetros fornecidos pelo mandato legal das agências de inteligência e segurança. 3.3.3 – Mandatos Legais: A própria idéia de que os serviços de inteligência deveriam ter uma regulamentação legal mais detalhada de suas funções, mandatos e missões é relativamente recente. Como lembra corretamente Peter Gill (1996: 313-333), no caso britânico passaram-se mais de oitenta anos entre a criação dos serviços de inteligência exterior e de segurança (originalmente uma única organização fundada em 1909) e a promulgação das duas leis (Security Service Act 1989 e Intelligence Services Act 1994) que atualmente regulam o funcionamento, as missões e os mecanismos de prestação de contas das três principais agências de inteligência daquele país. A importância central da delimitação desse mandatos, do ponto de vista dos mecanismos de controle público, é que eles fixam expectativas normativas associadas ao desempenho de papéis sociais até então desconhecidos para o público. Quando uma lei ou uma diretriz executiva pública delimita os objetivos, os meios, as responsabilidades e as condutas esperadas de cada agência de um sistema nacional de inteligência, isso fornece uma base mínima a partir da qual se pode avaliar os desempenhos desses sistemas do ponto de vista da agilidade e da transparência. Porém, uma limitação óbvia para que essa avaliação seja feita pelos cidadãos individualmente é que muitas das diretrizes e regulações mais importantes (sobre requerimentos informacionais, alocações de recursos, operações específicas e produtos de inteligência, por exemplo) são necessariamente secretas.248 Ainda assim, os contornos mais gerais das atividades de inteligência e segurança podem e devem ser fixados em leis e diretrizes executivas públicas. As diretrizes executivas tendem a ser mais detalhadas do que as legislações aprovadas pelo parlamento. Apenas para citar um exemplo, note-se que o National Security Act of 1947 norte-americano estabelece genericamente que inteligência significa o conjunto de “informações relativas às capacidades, intenções e atividades de governos, organizações ou indivíduos estrangeiros”, fixando então como mandato da CIA a coleta de inteligência a partir de “fontes humanas e outros meios apropriados, sendo que a agência não terá poderes de polícia, subpoena ou de imposição da lei, assim como não deveria exercer funções de segurança dentro do país”. Apenas depois de 1981, como resultado de longas disputas sobre o significado e a abrangência desse mandato, a Executive Order 12333 estabeleceu os tipos de informações que a CIA deveria coletar, analisar e disseminar sobre alvos estrangeiros, além de explicitar pela primeira vez que a agência também era encarregada das operações de contra-inteligência no exterior e das operações encobertas (chamadas nessa executive order de special activities). Além de detalhar os objetivos, tipos de informações e técnicas de coleta passíveis de serem utilizadas pela CIA, a Executive Order 12333 também explicita as funções e alvos que são vedados à atuação da agência. Mais importante do que esse detalhamento, no entanto, foi o fato de que essa executive order pela primeira vez especificou publicamente as missões e áreas de atuação de uma série de outras agências de inteligência norte-americanas que não haviam sido criadas por lei, mas por decisão administrativa secreta do poder executivo. Os mandatos legais são necessários tanto para estabelecer parâmetros para os governantes controlarem o grau de eficiência e efetividade dos serviços de inteligência e de segurança (agilidade), quanto para auxiliar os cidadãos a controlarem o grau de compatibilidade entre a atuação desses mesmos serviços e as regras institucionais democráticas (transparência). Um aspecto pouco notado a respeito dos mandatos é que, do ponto de vista dos serviços de inteligência, esses funcionam também como uma forma de proteção das próprias agências contra eventuais pressões políticas de ministros ou chefes de governo e de Estado para a realização de missões impróprias e que, diante da existência de mandatos codificados legalmente, seriam também ilegais e passíveis de responsabilização. Em nenhuma outra área de atuação dos serviços de inteligência contemporâneos os mandatos legais são mais necessários do que na área de inteligência interna ou de segurança. Como salientam Lustgarten & Leigh (1994: 374-411), a maioria dos serviços de inteligência de segurança forjou sua cultura organizacional e seus hábitos operacionais no contexto da repressão aos movimentos de esquerda ou, de modo mais geral, combatendo a dissidência política e os críticos dos governos. A forte orientação ideológica anti-comunista dos serviços de segurança dos países capitalistas e a forte orientação repressiva contra os dissidentes nos países do chamado Socialismo Real tornaram-se WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 59 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA substitutos de uma delimitação mais precisa, politicamente deliberada e legalmente consistente, dos conteúdos de termos como “subversão”, “terrorismo” e “sabotagem”. Analisando os mandatos legais atualmente em vigor para os serviços de inteligência de segurança da Grã-Bretanha, Canadá e Austrália, os mesmos autores Lustgarten e Leigh observaram que as missões de contra- espionagem e as medidas defensivas de segurança (operacional e informacional) tendem a ser menos ambígüas e implicam menos riscos para as liberdades civis dos cidadãos dos países democráticos. Já no caso da obtenção de inteligência sobre ameaças terroristas, sabotagem e subversão, há recorrentes denúncias sobre a falta de proporcionalidade entre as ameaças e as medidas de segurança com as quais os governos tendem a responder, bem como denúncias sobre a caracterização arbitrária de dissidentes políticos como ‘terroristas’. No contexto pós- Guerra Fria, há uma tendência moderada nesses três países (mais acentuada no caso australiano) para uma definição legal mais estrita de subversão, apontada como a “utilização organizada e continuada de meios violentos para fins de transformação da ordem política constitucionalmente estabelecida”. Isso exclui do mandato legal dos serviços de segurança (security intelligence) a vigilância física e eletrônica de ativistas, manifestantes ou participantes de organizações de oposição ao governo, mesmo nos casos em que os cidadãos engajam-se em atos de desobediência civil. Por outro lado, essa tentativa de definição legal mais neutra do ponto de vista ideológico resulta também do crescimento da violência politicamente motivada e do terrorismo perpetrados por organizações de extrema-direita, tais como as milícias norte-americanas ou os grupos racistas e xenófobos existentes em quase todos os países mais industrializados e de renda per capita mais elevada. Claro está que os mandatos legais não resolvem os problemas políticos resultantes da interpretação sobre as áreas, os métodos e a intensidade da atuação das agências de inteligência. Tampouco as definições contemporâneas dos termos ‘subversão, terrorismo e sabotagem’ estão isentas de viés político ou ideológico conservador, mesmo nas poliarquias institucionalizadas. Entretanto, considerando-se que existem realmente ameaças que exijam a manutenção de organizações de security intelligence, os mandatos legais tornam-se imprescindíveis para ao menos estabelecer parâmetros a partir dos quais se possa julgar as ações e prioridades desses órgãos. Além disso, os mandatos legais tornam-se mais importantes diante dos resultados recentes de estudos institucionais como o de Amy Zegart (1999:01-53), que concluiu que o fator mais importante na determinação da trajetória das agências de segurança nacional (dentre as quais incluem- se os serviços de inteligência) são as escolhas estruturais feitas no momento da criação dessas agências. Essas escolhas estruturais envolvem não apenas o desenho organizacional, mas principalmente o conjunto de regras formais e costumes quase-legais que delimitam suas missões e métodos de atuação. Ao avaliar os desafios relacionados ao controle do público sobre as atividades de inteligência em contextos de transição e consolidação democrática, Thomas Bruneau (2000:01-36) destacou três tipos de escolhas que seriam decisivas e que deveriam constar do mandato legal do setor: 1) A primeira escolha envolveria determinar em quais áreas de especialização da atividade de inteligência o governo deveria investir (humint, sigint, imint, análise, contra-inteligência, operações encobertas etc.), quantas organizações deveriam ser criadas para as diferentes missões e qual o volume de recursos que o país deveria dedicar para a montagem de um sistema nacional de inteligência. 2) A segunda escolha estaria relacionada ao peso relativo (nas esferas de produção e de consumo) das organizações militares e e das organizações civis de inteligência, bem como o grau de controle ou autoridade formal que os militares terão sobre os recursos humanos, tecnológicos e orçamentários do setor. 3) O terceiro tipo de escolha refere-se à relação considerada desejável entre inteligência e políticas governamentais (policymaking). Há grande variação no modo como as poliarquias lidam com essa relação, mesmo no caso dos países anglo-saxões. Enquanto nos Estados Unidos o processo de análise e produção de inteligência estratégica é coordenado por um diretor central de inteligência, formalmente separado do processo de policymaking, na Inglaterra a inteligência coletada por diferentes agências (MI-5, SIS, CGHQ, JARIC etc) é analisada e integrada ao processo decisório por times mistos de analistas de inteligência e pessoal dos ministérios “consumidores” de inteligência, times coordenados pelo ministério das relações exteriories ou do interior conforme o caso. Enfim, os três tipos de escolhas têm conseqüências para o controle externo das atividades de inteligência e, uma vez traduzidos em ordenamentos legais e mandatos, tendem a durar no tempo ainda que sejam sujeitos a interpretações políticas ou até mesmo judiciais. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 60 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA 3.3.4 – Judiciário: Embora o judiciário possa ser acionado para resolver disputas entre os cidadãos e o governo a respeito dos mandatos legais e da conduta dos serviços de inteligência e de segurança, isso não acontece facilmente. Recorrendo mais uma vez ao estudo de Lawrence Lustgarten e Ian Leigh (1994: 320-359 e 468-492), pode-se afirmar que existem grandes dificuldades jurídicas e políticas para que o judiciário exerça um papel revisor independente das decisões do poder executivo nas áreas relacionadas com a segurança nacional. Do ponto de vista jurídico, caberia mencionar a percepção do próprio poder judiciário sobre sua incapacidade constitucional para julgar as práticas do poder executivo em matérias de segurança nacional. Esse tipo de auto-refreamento expressa uma visão da divisão dos poderes altamente formalista, mas de grande apelo. Mesmo em países como a Grã-Bretanha, onde a doutrina da divisão dos poderes não é tão formal, o entendimento do judiciário é que a sanção dos atos do poder executivo nessas áreas de política de defesa nacional, segurança, política externa e inteligência deve ser feita, quando for o caso, pelo Parlamento. Influenciam nessa percepção os próprios princípios processuais, pois na área de segurança nacional seria mais difícil tomar decisões judiciais baseadas no estabelecimento de provas “além de qualquer dúvida razoável”. Principalmente quando se está falando de revisar judicialmente decisões referentes, por exemplo, ao emprego de meios diplomáticos ou militares para dissuadir um governo estrangeiro de tomar uma decisão qualquer que poderá prejudicar os interesses nacionais e a segurança nacional no médio prazo. Considerando a diferença proposta por Ronald Dworkin (1977:22) entre decisões políticas e decisões baseadas em princípios, as ações governamentais na área de segurança e inteligência seriam protótipos de decisões políticas, enquanto o ato de julgar seria inerentemente um tipo de processo decisório baseado em princípios abstratos e regras gerais. Na medida em que decisões de segurança nacional dificilmente podem ser revistas com base em questões factuais, pois envolvem antes de mais nada escolhas “difíceis” baseadas em tendências e probabilidades, a orientação do judiciário rumo a decisões baseadas no esclarecimento dos fatos e na busca de justiça para as partes em processos de adjudicação de conflitos tende a afastá-lo de litígios com o poder executivo sempre que as razões de segurança nacional são utilizadas para justificar as práticas do governo. A capacidade de assegurar justiça para o tratamento das partes em adjudicações de conflitos entre indivíduos e o Estado que envolvam temas de segurança nacional é prejudicada ainda pelo segredo governamental, que limita o exercício do próprio princípio do contraditório. Ora, esse princípio diz basicamente que se deve escutar a outra parte (audi alteram partem). O problema é que quando uma das partes é o governo do país e a outra parte é um indivíduo e o governo pode impedir legalmente que informações ou provas sejam sequer apresentadas ao tribunal por razões de segurança nacional, há um esgarçamento quase irreparável do próprio princípio: uma das partes não será adequadamente ouvida porque apenas o governo tem acesso às informações que poderiam provar o ponto do litigante. Do ponto de vista político, valeria destacar que esse auto- refreamento do poder judiciário tende a ser um arranjo funcional tanto para o próprio judiciário quanto para o poder executivo. Mesmo sem admitir formalmente que sua capacidade para desempenhar um papel de árbitro entre decisões do governo e a interpretação divergente de algum indivíduo afetado por aquela decisão é baixa, há uma série de procedimentos e manobras através dos quais o judiciário tende a aceitar as justificativas oficiais sem maiores questionamentos. Para dizê-lo nos termos de Ronald Dworkin em Law’s Empire (1986), isso compromete a idéia de que a função judicial é baseada na prioridade da lei sobre as razões de Estado. Como já foi visto em relação ao próprio conceito de segurança nacional, diante de uma decisão que afete concreta e imediatamente um indivíduo ou a população inteira de forma negativa, as alegações do poder executivo de que esse custo é aceitável tendo-se em vista os interesses mais gerais e de longo prazo do público, relacionados à sua segurança ou bem-estar, deveriam ser cuidadosamente pesados por alguma autoridade externa. Entretanto, na esmagadora maioria dos processos judiciais envolvendo problemas de segurança nacional analisados por Lustgarten e Leigh (1994), a decisão final dos tribunais foi favorável ao poder executivo. Por outro lado, um papel mais ativo do judiciário no controle da legalidade e da razoabilidade das ações executivas em áreas de segurança e inteligência pode acontecer quando a própria legislação em vigor exige uma aprovação judicial ex ante de certas operações. Ou então a posteriori, quando WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 61 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA juízes são encarregados (ainda que de forma ad hoc) da coordenação de comissões de inquérito sobre operações ou atividades sobre as quais pesem suspeitas de conduta imprópria ou ilegal. Um exemplo da primeira situação pode ser encontrado nas disposições legais do Foreign Intelligence Surveillance Act of 1978 norte- americano (FISA). Basicamente, essa lei determina que quaisquer operações de vigilância eletrônica e buscas físicas contra alvos estrangeiros para fins de obtenção de inteligência externa, que ocorram dentro do território dos Estados Unidos, precisam ser autorizadas por escrito pelo Attorney General (ministro da justiça/advogado geral) e confirmadas por uma corte especial de justiça. Por vigilância eletrônica entende-se a interceptação clandestina de comunicações telefônicas, e- mails, faxes ou a utilização de microfones escondidos, sensores de movimento, localizadores etc. Por buscas físicas, entende-se a invasão subreptícia de locais privados para obtenção de documentos, instalação de escutas eletrônicas, vigilância de movimentos do alvo etc. A corte especial do FISA é formada por sete juízes membros de cortes distritais de diferentes circuitos e pode autorizar operações por até um ano quando o alvo é um governo estrangeiro, ou por até noventa dias em todos os outros casos sob a jurisdição dessa lei. Uma corte de apelação é formada por três juízes de cortes distritais ou cortes de apelação de diferentes circuitos e, caso uma solicitação de vigilância física ou eletrônica for recusada também pela corte especial de apelação, o governo pode levar cada solicitação operacional até a Suprema Corte. Embora as requisições de autorização precisem fornecer detalhes sobre os alvos, os tipos de informações e as justificativas para a necessidade de uso de técnicas intrusivas especiais, uma avaliação do Comitê de Inteligência do Senado sobre os relatórios classificados enviados anualmente pelo Attorney General ao Congresso indicou que nos primeiros cinco anos de vigência do FISA nenhuma solicitação de vigilância havia sido recusada sequer em primeira instância. No caso da participação de juízes em comissões extra-judiciais (um traço característico do sistema de supervisão britânico), as preocupações levantadas por Lustgarten e Leigh (1994: 487-491) dizem respeito à compatibilidade entre a orientação factual que tendem a ter os juízes e o trabalho de formulação de recomendações de política que resulta do trabalho de comissões ad hoc para revisão de temas polêmicos na área de segurança nacional. Na verdade, dizem repeito mais ainda aos casos em que juízes participando de comissões revisoras extra-judiciais desenvolvem posições partidárias sobre determinadas escolhas de política governamental nessas áreas e, posteriormente, precisam arbitrar diferenças de interpretação e conflitos de interesses nas mesmas áreas em que atuaram pro tempore. Como muitas dessas comissões são criadas após um escândalo ou no contexto de fortes críticas à atuação dos serviços de inteligência, um risco maior ainda seria o governo utilizar as próprias comissões especiais dirigidas por juízes como um expediente para ganhar tempo e acalmar os críticos sem realmente fazer alguma coisa. Esse tipo de desconfiança ocorre também em relação à capacidade dos corregedores e inspetores dos próprios órgãos de inteligência e segurança agirem de forma efetiva, com isenção e autonomia. Mas esse já é o tema do próximo item. 3.3.5 – Inspetorias e Corregedorias: Nos países que seguem o modelo anglo-saxão de organização dos sistemas nacionais de inteligência, a instituição de corregedorias e escritórios de inspetoria geral tem conformado um padrão consistente de resposta governamental às denúncias de violação do mandato legal das agências, autonomização administrativa e escândalos políticos associados ao setor. Além disso, como destaca Geoffrey Weller (1997: 383-406) em artigo onde compara o desempenho institucional dos inspetores gerais dos serviços de inteligência dos Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e Austrália, as demandas por accountability e maior responsividade dos serviços às autoridades eleitas aumentaram nesses países ao longo das últimas décadas também em função da crescente complexidade operacional e organizacional da área de inteligência. Diante desses dois fatores (esforços das autoridades responsáveis para evitar escândalos e necessidade de uma resposta institucional à complexificação crescente do setor), um dos mecanismos encontrados foi a instituição de escritórios de inspetoria geral e corregedorias independentes dos dirigentes das agências de inteligência. Nos quatro países analisados por Weller, a figura de um corregedor/inspetor nomeado pelos próprios dirigentes das agências existia desde a época da criação dos sistemas nacionais de inteligência e segurança, mas a partir de meados da WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 62 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA década de 1970 surgiram críticas mais ou menos severas sobre a capacidade desses corregedores administrativos fiscalizarem efetivamente a compatibilidade das práticas dos serviços de inteligência com os mandatos legais e as diretrizes políticas dos governantes. De modo geral, pode-se dizer que a efetividade de qualquer um desses mecanismos de supervisão e accountability nas áreas de segurança e inteligência depende do grau de autonomia do órgão fiscalizador em relação ao órgão fiscalizado, da vontade política/capacidade pessoal dos procuradores e fiscais para exercerem seu mandato, dos recursos disponíveis e do acesso efetivo às informações, documentos e pessoas relevantes da organização. Em relação a essas condições necessárias, mesmo entre Estados Unidos, Grã-Bretanha, Canadá e Austrália existem variações significativas que deveriam ser levadas em conta em estudos comparativos posteriores com um número maior de casos nacionais. A autonomia dos inspetores tende a ser um pouco maior no caso do sistema presidencialista norteamericano, pois os nomes dos Inspetores Gerais de inteligência da CIA e dos Departamento de Estado, Justiça, Tesouro, Energia e Defesa precisam ser sabatinados e confirmados pelo Senado, não podem ser demitidos pelos dirigentes das agências e devem reportar-se pelo menos anualmente aos comitês de inteligência do Senado e da Câmara dos Representantes. Nos sistemas parlamentaristas do Canadá, Austrália e Grã-Bretanha, o legislativo não participa diretamente da nomeação e os inspetores gerais reportam-se somente aos ministros responsáveis pelas agências de inteligência ou a outros órgãos de supervisão do próprio poder executivo. Esse é o caso do Canadá, onde o Inspetor Geral do Canadian Security Intelligence Service (CSIS) é nomeado pelo gabinete ministerial e envia seus relatórios para o Solicitor General e para o Security Intelligence Review Committee (SIRC), que eventualmente os repassa para o Parlamento. Na Austrália, o Inspetor Geral é nomeado pelo Governador Geral, com base numa indicação feita pelo Primeiro Ministro após consulta ao líder da oposição. A vontade política e a capacidade de exercer um papel investigador e controlador obviamente variam não apenas de país para país, mas também de indivíduo para indivíduo. De modo geral, em seu artigo Weller tem uma avaliação positiva sobre os Inspetores Gerais estatutários, mas uma opinião menos favorável sobre o desempenho dos inspetores e corregedores administrativamente nomeados. Por outro lado, esse desempenho diferencial está ligado à própria amplitude dos mandatos e aos incentivos que cada inspetoria tem para cumprir aquele mandato. Os mandatos podem incluir desde o controle da legalidade das operações de inteligência até a realização de auditorias financeiras, passando pela verificação do grau de aderência das ações dos dirigentes das agências de inteligência às diretrizes das autoridades responsáveis e à lei, pela revisão dos métodos e procedimentos operacionais para fins de recomendação de melhorias, ou ainda pela condução de investigações específicas em caso de denúncias internas e externas. Dos casos analisados por Weller, apenas o Inspetor Geral da Austrália e, no caso dos Estados Unidos, o Inspetor Geral da CIA, podem receber diretamente denúncias externas dos cidadãos e iniciar investigações sobre essas denúncias autonomamente. Nos demais casos, qualquer denúncia deve ser encaminhada à autoridade ministerial responsável, que encarrega então os escritórios de corregedoria e inspetoria da sua apuração. No caso da auditoria financeira, apenas o escritório do Inspetor Geral da CIA tem essa função, que em todos os demais casos é delegada para comissões especiais dos próprios órgãos centrais de auditagem de contas públicas. Em termos de recursos disponíveis, é preciso levar em conta a abrangência dos mandatos e do número de agências sob a jurisdição de cada Inspetor Geral. Considerando apenas os casos da Austrália e dos Estados Unidos, onde os mandatos dos Inspetores Gerais são mais abrangentes, pode-se afirmar que os recursos atuais são escassos. Na Austrália, o Inspetor Geral é responsável por fiscalizar cinco agências que somam juntas cerca de 15.000 funcionários civis e militares. São elas a Australian Security Intelligence Organisation (ASIO), a Defence Intelligence Organisation (DIO), o Australian Secret Intelligence Service (ASIS), o Defence Signals Directorate (DSD) e o Office of National Assessments (ONA). Para supervisionar essas cinco agências, considerando que sua missão envolve a apuração de reclamações internas e denúncias externas, o escritório do Inspetor geral conta com sete funcionários. Nos Estados Unidos, o escritório do Inspetor Geral da CIA (uma organização com cerca de 16.000 funcionários) contava em 1997 com 121 funcionários, sendo que pelo menos trinta eram contadores trabalhando na divisão de auditoria financeira do escritório. No Departamento de Defesa, onde o escritório do Inspetor Geral para a área de inteligência supervisiona quatro agências (NSA, NRO, NIMA e DIA) que, somadas, têm cerca de 40.000 funcionários, os WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 63 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA recursos são ainda menores do que na CIA. Finalmente, a capacidade de acesso aos documentos, pessoas e locais é garantida aos inspetores gerais em todos os ordenamentos legais mais recentes, embora existam exceções no caso da Inglaterra e do Canadá. Entretanto, problema maior do que as exceções é a decisão sobre o que fazer com o material obtido diante da falta de pessoal de apoio para avaliar adequadamente as informações. Os corregedores e inspetores gerais produzem relatórios regulares e também relatórios especiais. Em alguns casos, como o do relatórios do Inspetor Geral da CIA sobre o caso Aldrich Ames (ex-chefe da seção russa da contra-inteligência na CIA que espionava para os soviéticos e depois para os russos), esses relatórios são “mega-projetos” que envolvem a cooperação de várias instâncias de supervisão e meses de trabalho. Segundo Weller (1997: 396-398), de modo geral o papel dos Inspetores Gerais estatutários tem sido positivo e seus relatórios têm contribuido para aumentar o grau de agilidade e transparência dos sistemas de inteligência nos quatro países onde o autor conduziu entrevistas. Mas permanece o fato de que a maioria das recomendações surgidas a partir desses mecanismos de controle são feitas a posteriori, na esteira de escândalos ou de problemas gerenciais internos às próprias organizações. Assim, mesmo que os Inspetores Gerais e corregedores na área de inteligência não sejam necessariamente os “tigres sem dentes” que alguns parlamentares temiam inicialmente, seu trabalho é por definição muito dependente dos demais mecanismos de supervisão e accountability do poder executivo e do poder legislativo. 3.3.6 – Poder Executivo: Além das inspetorias gerais e corregedorias localizadas nas agências de inteligência e nos ministérios responsáveis, o poder executivo supervisiona seus serviços de inteligência através de vários outros tipos de ferramentas institucionais. Serão mencionadas aqui apenas as instâncias de controle voltadas mais direta e exclusivamente para os serviços de inteligência. Antes, porém, duas observações preliminares precisam ser feitas. O controle da legalidade dos atos das agências de inteligência e segurança é decisivo para manter a confiança pública e, do ponto de vista dos governantes, para evitar escândalos políticos. Além do controle da legalidade, os comitês executivos de supervisão e coordenação também são encarregados de garantir a adequação entre as prioridades operacionais das agências de inteligência e as necessidades informacionais dos tomadores de decisão, sejam eles os chefes de governo, seus ministros, os comandantes militares e chefes de polícia. Esses tomadores de decisão são ao mesmo tempo os “principals” das agências (seus “gerentes”) e os consumidores de seus produtos. Dada a complexidade organizacional e funcional dos atuais sistemas nacionais de inteligência e segurança, os comitês do poder executivo encarregados de supervisão e controle externo tendem a ser também algo especializados no controle da legalidade, no controle das prioridades, dos arranjos organizacionais, dos processos internos e/ou na qualidade dos produtos de inteligência. Portanto, para avaliar o desempenho de qualquer instituição de controle externo das atividades de inteligência, é preciso ter claro sua expertise institucional no campo geral da supervisão executiva. Uma segunda observação preliminar diz respeito à influência do tipo de governo sobre o desenho organizacional das instâncias de controle externo e supervisão. Não é demais destacar, como o fazem José Cheibub e Adam Przeworski (1999:223), que, embora as diferenças entre democracia e ditadura sejam cruciais para explicar as relações mais gerais do Estado com os diversos grupos sociais, em se tratando de mecanismos de accountability a diferença relevante se dá internamente à democracia, entre regimes parlamentaristas e regimes presidencialistas. Em parte por isso, no restante dessa seção serão utilizados principalmente exemplos retirados da experiência federativa e presidencialista dos Estados Unidos, pois apesar da diferença gigantesca de escala operacional é mais próxima do marco constitucional adotado no Brasil e isso facilita a compreensão das funções dos diferentes mecanismos de supervisão. Naturalmente, casos nacionais como o do Canadá, com sua ênfase na área de inteligência de segurança (security intelligence), um desempenho institucional muito bom dos mecanismos de controle externo e uma escala de operações do sistema nacional de inteligência compatível com a dos principais países latino-americanos seriam igualmente interessantes e merecedores de análise. Mas o modelo parlamentarista adotado naquele país neutraliza boa parte da divisão adotada aqui WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 64 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA entre mecanismos de supervisão do poder executivo e do poder legislativo. No Canadá, o principal mecanismo de supervisão existente é o Security Intelligence Review Committee (SIRC), uma comissão não parlamentar formada por conselheiros do Primeiro Ministro (privy councillors). De modo geral, o envolvimento direto do parlamento no controle dos órgãos de inteligência canadense é baixo e é no Privy Council Office (PCO) que se localizam as principais instâncias de supervisão externa das agências de inteligência daquele país. Existe um sub-comitê de segurança nacional no Standing Committee on Justice and Legal Affairs do Parlamento, mas como o governo já depende inteiramente da manutenção de uma maioria na câmara baixa do Parlamento, a tendência é que os assuntos de inteligência e segurança sejam deixados exclusivamente para os ministros responsáveis. No caso dos Estados Unidos, a divisão de poderes e os mecanismos de checks and balances entre o Congresso e a Presidência induzem uma diferenciação mais clara entre os mecanismos de supervisão e controle existentes no âmbito do poder executivo e do poder legislativo. No poder executivo, as diversas instâncias de supervisão, gerenciamento e coordenação das políticas de inteligência acompanham a complexidade do próprio sistema e visam a manter essas funções no âmbito do poder executivo. Na presidência da república, existe desde a década de 1950 uma comissão de notáveis, o President’s Foreign Intelligence Advisory Board (PFIAB), que tem poderes para solicitar relatórios aos inspetores gerais e para conduzir estudos independentes, fornecendo aconselhamento direto ao Presidente da República sobre a política de inteligência, a qualidade do trabalho das agências e inclusive sobre a legalidade de certas ações. Os membros do board são nomeados e servem à disposição do presidente. Segundo autores como Pat Holt (1995:202-205) e Mark Lowenthal (2000:134), essa proximidade do órgão supervisor independente em relação ao presidente tem sido tanto um fator positivo quanto um risco. Na época de seu primeiro chairman (Dr. James Killian, presidente do Massachussets Institute of Technology - MIT), o PFIAB trabalhou principalmente sobre temas técnicos e sobre falhas nos procedimentos operacionais das agências, tendo obtido significativo impacto com suas recomendações. A partir dos anos oitenta, as nomeações para o board passaram a ser crescentemente pautadas por necessidades políticas e a relevância do órgão teria declinado. Através de uma sub-comissão do PFIAB chamada Intelligence Oversight Board (IOB), o escritório da presidência conta também com um ponto focal para o recebimento de informações sobre eventuais ilegalidades cometidas pelos serviços de inteligência, encaminhadas pelos Inspetores Gerais, por funcionários das agências ou diretamente pelo público. De modo geral, o pequeno número de funcionários de apoio e o funcionamento excessivamente ad hoc do PFIAB são restrições importantes ao exercício de seu papel supervisor. De forma mais orgânica e permanente, a presidência exerce controle sobre as atividades de inteligência através do staff do National Security Council (NSC). O diretor de programas de inteligência no staff do NSC teria, ao menos em certo grau, condições para direcionar as ações das agências. A própria legislação estabelece que o Diretor Central de Inteligência reporta-se ao Presidente e ao NSC e, além disso, o fato da burocracia altamente especializada do conselho ser nomeada pelo presidente para ajudá-lo a formular e a defender a visão presidencial sobre os temas de segurança nacional, tende a garantir-lhe autoridade para demandar os serviços de inteligência através de vários mecanismos institucionais (inclusive a Situation Room na Casa Branca para monitoramento de crises). Segundo Amy Zegart (1999:76-108), uma das principais características da atual estrutura do NSC é que o crescimento do papel do Assessor de Segurança Nacional como diretor de uma grande equipe de formulação de políticas de segurança foi acompanhado pelo esvaziamento relativo do papel do conselho entendido enquanto a reunião formal de seus membros estatutários (o Presidente, o Secretário de Defesa e o Secretário de Estado). Isso faz do NSC quase exclusivamente um órgão assessor da presidência. Por isso mesmo, o desempenho do staff do NSC dedicado à supervisão das atividades de inteligência é profundamente dependente do interesse do próprio presidente por esses temas. Como lembra Jeffrey Richelson (1999:384-386), a atual estrutura de apoio para o diretor de programas de inteligência do NSC é simplesmente a última de uma série histórica de comitês que tiveram suas prioridades e composição alteradas a cada nova eleição presidencial. Além dessas duas instâncias, o sistema de supervisão do poder executivo nos Estados Unidos abrange ainda as instâncias existentes no âmbito do escritório do Diretor Central de Inteligência (ODCI) e do Departamento de Defesa (DoD), para mencionar apenas os mais importantes naquele contexto. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 65 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Como o DCI é simultaneamente o coordenador de todo o sistema de inteligência dos Estados Unidos e também o diretor da CIA, parte das reformas introduzidas na década de 1990 visaram a aumentar a capacidade gerencial do DCI sobre o sistema e a separar as instâncias de coordenação geral da direção imediata da CIA. Assim, existem hoje inúmeras instâncias no escritório do DCI voltadas para a supervisão das atividades de inteligência daquele país, algumas colegiadas e outras executivas. Dentre os fóruns colegiados mais importantes, deve-se mencionar o Executive Committee (IC/EXCOM) e o National Foreign Intelligence Board (NFIB). Ambos são compostos pelos dirigentes das principais agências de inteligência e pelos responsáveis pela supervisão nos ministérios. O IC/EXCOM auxilia o DCI a revisar a política nacional de inteligência, o planejamento e as prioridades de alocação de recursos e de obtenção de informações. Também estabelece padrões de avaliação gerencial e indicadores de desempenho. Como uma composição um pouco mais ampla, o NFIB tem como tarefa principal revisar e aprovar as estimativas nacionais de inteligência (NIE’s), o principal documento analítico produzido pelos serviços de inteligência norte-americanos. Em tese, esse board também é responsável por revisar e coordenar os esforços das várias agências em relação à inteligência externa (foreign intelligence), definir procedimentos para o compartilhamento das informações obtidas por diferentes agências e aprovar acordos internacionais com agências de inteligência de outros países. Dentre os órgãos executivos que auxiliam diretamente o DCI, deve-se mencionar o Community Management Staff (CMS) e o National Intelligence Council (NIC). Basicamente, a função do CMS é elaborar, avaliar, justificar e monitorar o orçamento de inteligência externa dos Estados Unidos, o National Foreign Intelligence Program (NFIP). Para isso, equipes gerenciais formam grupos de trabalho especializados em diferentes áreas de planejamento estratégico, tradução das necessidades dos usuários em prioridades de coleta, integração de recursos entre diferentes disciplinas de coleta e avaliação de desempenho. Enquanto a função do CMS é gerencial (funcionando como o braço executivo do IC/EXCOM) o NIC é basicamente um órgão analítico (que elabora as análises de longo prazo que são enviadas para a aprovação do NFIB). 268 Dividido em doze áreas geográficas e funcionais, cada uma dirigida pelo analista mais veterano da Intelligence Community, o NIC é responsável pela elaboração anual de estimativas de inteligência (NIE’s) e também por conduzir avaliações estratégicas com recursos integrados de todas as agências de inteligência do país. Em todos os ministérios onde existem órgãos de inteligência ou de segurança, existem também instâncias de supervisão e gerenciamento. Para mencionar apenas um exemplo, no Departamento de Defesa (DoD) três autoridades principais exercem funções de supervisão e coordenação das atividades de inteligência nas organizações subordinadas ao Pentágono. Além do Inspetor Geral, existe um Assistant to the Secretary of Defense for Intelligence Oversight (ATSD-IO) responsável por garantir que as atividades de inteligência são conduzidas em conformidade com as leis e as diretrizes executivas. No âmbito do escritório do Assistant Secretary of Defense for Command, Control, Communications and Intelligence (ASD-C3I) concentra-se a maioria das funções executivas de controle e revisão na área de inteligência militar. Desde o gerenciamento da formação de recursos humanos até a revisão das arquiteturas de sistemas de suporte para a coleta de inteligência tática, passando por um leque de temas relevantes para essas agências de suporte ao combate. No caso do Under Secretary of Defense for Acquisitions, Technology and Logistics (USD-AT&L), são significativas as atividades de controle e supervisão sobre os programas de pesquisa, desenvolvimento e aquisição de sistemas e plataformas de coleta de inteligência desenvolvidos por agências militares que lidam com grandes orçamentos, tais como NRO, DARO, DARPA e DTRA. Por mais complexas que sejam essas instituições de controle, é preciso lembrar que as organizações que elas devem controlar tendem a ser ainda mais complexas e diferenciadas funcionalmente. Não há estudos sistemáticos sobre o desempenho dos órgãos de supervisão do poder executivo, mesmo nos Estados Unidos. No entanto, é possível pelo menos identificar três tipos de dificuldades que os órgãos de controle devem enfrentar. Do ponto de vista gerencial, trata-se da dificuldade de se estabelecer uma relação clara entre os inputs (orçamentários, tecnológicos e de pessoal) e os outputs (produtos finais) em muitos dos sistemas e áreas de atuação das agências de inteligência. Do ponto de vista político, trata-se da dificuldade de avaliar o relacionamento adequado entre os analistas de inteligência e os responsáveis pelo processo de tomada de decisões em diversos contextos de formulação e execução de políticas de segurança, defesa e relações exteriores. Como salienta Michael Herman (1996:298- 304), é extremamente difícil medir o valor e o impacto do conteúdo informacional dos produtos de inteligência na qualidade das políticas públicas, o que torna ainda mais exigente o monitoramento da satisfação WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 66 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA dos usuários com os produtos e serviços fornecidos pelos órgãos de inteligência. Finalmente, do ponto de vista do controle da legalidade dos atos dos serviços de inteligência, trata-se menos de alguma dificuldade intransponível para o exercício de uma supervisão efetiva e mais da dificuldade de se manter a confiança do público e a legitimidade das ações do poder executivo em situações de risco potencial nas quais um poder se propõe a fiscalizar a ele próprio. Como a maioria dos instrumentos de controle existentes no poder executivo surgiu em contextos em que o governo pretendia antecipar um envolvimento maior do Congresso, isso sugere que apesar do poder executivo dispor dos mecanismos mais efetivos de controle e gerenciamento das atividades de inteligência, dada a natureza dessas atividades a confiança do público só poderia ser mantida com a presença de mecanismos efetivos de supervisão e accountability no âmbito do poder legislativo. 3.3.7 – Supervisão Congressual: Considerando a fragilidade relativa dos demais mecanismos de controle externo sobre as atividades de inteligência discutidos até aqui, o papel do Congresso como instituição fiscalizadora do poder executivo adquire centralidade justamente porque o legislativo é considerado o poder mais representativo nas democracias. Assim, antes de concluir essa seção é preciso discutir o grau de controle efetivo que o Congresso tem sobre as atividades de inteligência, além de problematizar a premissa segundo a qual os parlamentares são melhores agentes dos cidadãos do que os burocratas, os presidentes, os juízes ou a mídia em se tratando dessas áreas de políticas públicas. Segundo Adam Przeworski (1995:80-86), o imperativo da renovação periódica dos mandatos e a proximidade maior com os eleitores influenciam fortemente os parlamentares a agirem como agentes dos representados. Por outro lado, é preciso lembrar que os resultados das eleições dependem ainda dos sistemas eleitorais e partidários, da organização interna do proceso legislativo e da dinâmica política que tende a neutralizar parcialmente as eleições como mecanismos representativos (ver item 3.3.1 acima). Além disso, as preferências dos parlamentares estão longe de se esgotar na preferência intermediária e decisiva da renovação do mandato. Pelo contrário, existe um amplo leque de situações nas quais os parlamentares agem segundo suas próprias preferências e não segundo as preferências dos eleitores. Em especial, não existe nenhuma relação necessária e direta entre o interesse geral dos cidadãos num governo ágil e transparente e uma atuação específica dos parlamentares na supervisão de qualquer agência executiva que não esteja sob os holofotes de uma crise política ou administrativa imediata. Finalmente, mesmo que a supervisão sistemática dos órgãos do poder executivo seja do interesse dos cidadãos e os parlamentares ajam como agentes perfeitos do público em relação a essa preferência, resta saber se o Congresso como instituição é capaz de realizar tal supervisão satisfatoriamente. Ao contrário da hipótese adotada por autores como William Niskanen (1971) e outros expoentes da Teoria da Escolha Pública (Public Choice) sobre o excessivo insulamento burocrático das agências governamentais e a precária supervisão congressual como causas do crescimento ineficiente do gasto público e da conseqüente oferta de um nível sub-ótimo (excessivo) de serviços governamentais, trabalhos neo- institucionalistas como os de McCubbins, Noll & Weingast (1987), Terry Moe (1990) e outros já demostraram que os poderes legislativos são capazes, especialmente através de suas comissões, de exigir informações das agências do poder executivo e de formular suas próprias preferências sobre gastos e níveis de output. Quando as burocracias governamentais são forçadas a revelar seus custos reais ou qualquer escala de oferta de serviços, o Congresso pode garantir que o nível de atividade governamental seja mais próximo das suas preferências do que supunham os modelos anteriores. Mesmo concordando com isso, Amy Zegart (1999:01-53) demonstrou a necessidade de uma especificação mais precisa das condições institucionais e contextuais que afetam as interações entre o Congresso e diferentes tipos de burocracias. No caso das chamadas agências governamentais de segurança nacional (ministérios de relações exteriores, forças armadas, serviços de inteligência e de segurança etc), as mesmas premissas neo-institucionalistas conduziram a autora a conclusões bastante distintas sobre a capacidade do Congresso efetivamente controlar os órgãos governamentais. Para Zegart, os parlamentares tendem a evitar o envolvimento em atividades de supervisão das agências de segurança nacional porque tais atividades envolvem altos custos transacionais para a obtenção de informações e muitos conflitos para construir a autoridade necessária ao exercício WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 67 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA efetivo da supervisão. Devido ao segredo governamental e à baixa densidade de grupos de interesse atuando nessa área na sociedade civil, o tempo de construção de laços de confiança e do conhecimento especializado necessários para uma atuação relevante é simplesmente demasiado para parlamentares que precisam “mostrar serviço para seus eleitores” tendo em vista o imperativo intermediário da renovação do mandato ou da progressão na carreira política. Além dos custos serem elevados, o retorno esperado é baixo, pois a segurança nacional é um bem público (public good) e isso reduz as oportunidades de ganho político individual associadas à lógica distributiva de funcionamento do Congresso (logrolling e pork-barrell). Afinal, como se tratam de áreas de políticas públicas sob domínio constitucional e historicamente reafirmado do poder executivo, qualquer ação dos congressistas para reduzir dotações orçamentárias, criar ou eliminar órgãos, modificar seu desenho organizacional ou limitar a liberdade de manobra dos governantes envolve o risco de acusações de que o legislativo está enfraquecendo a capacidade de defesa militar e política dos interesses e da segurança da nação. Portanto, os parlamentares que tendem a envolver-se de forma duradoura e especializada com temas de política externa e segurança nacional são aqueles que pretendem um dia concorrer para cargos no governo, ou que têm vínculos com grupos de interesse que são relevantes em sua região eleitoral (e.g os empregados de uma fábrica de satélites em sua constituency), ou ainda aqueles que têm preocupações normativas e preferências associadas à segurança enquanto um bem público. Mesmo que esses parlamentares tenham incentivos eleitorais para fazer da supervisão sobre as agências de inteligência uma alta prioridade dos seus mandatos, eles são poucos em qualquer legislatura e dificilmente utilizarão seu capital político para tentar mobilizar o Congresso ou os demais parlamentares que não compartilham a mesma agenda temática. O argumento geral de Zegart é plausível, mas não elimina a necessidade de um comentário específico sobre a dinâmica de trabalho dos comitês de inteligência do Congresso. No contexto institucional dos Estados Unidos, a supervisão congressual sobre as atividades de inteligência (e sobre a área de segurança nacional de modo geral) baseia-se em algumas capacidades constitucionais e políticas bastante específicas. Dada a centralidade das comissões temáticas na organização do processo legislativo no U.S. Congress, a maioria dos exemplos será retirada diretamente da experiência dos comitês de inteligência do Senado (Senate Select Committee on Intelligence – SSCI) e da Câmara de Representantes (House Permanent Select Committee on Intelligence – HPSCI), instituídos respectivamente em 1976 e 1977. As principais bases da supervisão congressual incluem: 1) a autoridade legislativa propriamente dita e a autorização anual do orçamento; 2) a autoridade para aprovar tratados internacionais e para requerer relatórios e informações ao poder executivo; 3) o poder para confirmar a nomeação de indivíduos indicados pelo Presidente para certos cargos e 4) a autoridade para convocar audiências e testemunhos (Hearings) e iniciar investigações sobre temas considerados relevantes. Com a exceção do National Security Act of 1947 e suas sucessivas emendas, a maior parte das regulações sobre a atividade de inteligência nos Estados Unidos são feitas através de Executive Orders e outras diretrizes administrativas. Entretanto, em ocasiões diversas ao longo da segunda metade do século XX o Congresso aprovou legislação adicional sobre pontos mais específicos (miscellaneous legislation). O Congresso controla a aprovação (authorization) do orçamento anual e, num estágio subseqüente, a definição dos recursos que serão alocados para cada programa específico (appropriation). A cada ano fiscal, uma lei de autorização deve ser aprovada antes que as agências governamentais possam gastar qualquer dinheiro. Para a área de inteligência, os dois atos legislativos mais importantes são o Intelligence Authorization Act e o Defense Authorization Act, no qual uma boa parte dos recursos é inserida sem identificação (verbas secretas). Ao analisar e modificar a proposta orçamentária enviada pelo Presidente todos os anos, o Congresso pode controlar o tamanho das agências, os detalhes de cada programa e os planos de desembolso. Uma prática comum também é a introdução de mudanças políticas e organizacionais no funcionamento do sistema norte- americano de inteligência utilizando-se como veículo legislativo as leis anuais de autorização de fundos. Como no caso de qualquer outra lei, uma vez aprovada ao final de um tortuoso processo de tramitação, as leis de autorização orçamentária para o ano fiscal podem ser vetadas pelo Presidente, mas isso só ocorre excepcionalmente em função dos altos custos políticos implicados. A Constituição dos Estados Unidos prevê que a ratificação de tratados internacionais assinados pelo governo depende da sua aprovação por dois terços dos membros do Senado. Embora a análise dos WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 68 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA tratados seja normalmente encaminhada ao Senate Committee on Foreign Relations, o SSCI é rotineiramente envolvido na avaliação de tratados sobre controles de armas e no monitoramento dos mecanismos de verificação (“compliance”). Relatórios secretos e declarações públicas foram emitidas pelo comitê de inteligência do Senado em relação ao SALT II (1979), INF (1988), CFE (1991), START I (1992) e OPEN SKIES (1993), dentre outros. O judiciário norte-americano também tem interpretado o poder legislativo do Congresso, tal como definido pela Constituição (Article I, section 8), como um poder que envolve a autoridade para requerer acesso a quaisquer informações que o poder executivo tenha sob sua guarda. No caso das atividades de inteligência, essa interpretação tem sido motivo de polêmicas recorrentes entre o Congresso e o Presidente. Foi o chamado Case Act of 1972 que estabeleceu que cópias do texto completo de todos os acordos internacionais assinados pelo governo (além dos tratados, que requerem constitucionalmente a aprovação do Senado) deveriam ser enviadas ao Congresso. A partir dali, muitas outras requisições sistemáticas de informações e relatórios foram sendo introduzidas nos Estados Unidos. Em especial, o chamado Hughes-Ryan Amendement (1974) estabeleceu pela primeira vez a obrigatoriedade de um relatório formal e por escrito (presidential finding) sobre todas as operações encobertas a ser enviado para os comitês de inteligência, forças armadas e relações exteriores das duas casas do Congresso. Ainda que disposições posteriores tenham determinado que os findings sobre operações encobertas deveriam ser entregues apenas aos comitês de inteligência, de modo geral os requerimentos de relatórios não apenas tornaram-se uma praxe do sistema de supervisão congressual das atividades de inteligência, como vêm sendo ampliados nos últimos quinze anos. A terceira fonte de autoridade dos comitês congressuais sobre a Intelligence Community é a exigência legal de que o nome do DCI seja investigado, sabatinado e aprovado pelo Senado. Além do DCI, também é necessária a aprovação senatorial para uma série de outros cargos, dentre os quais destacam-se os cargos de Deputy Director of Central Intelligence (DDCI), CIA Inspector General (IG), Deputy Director of Central Intelligence for Community Management (DDCI/CM) e Assistant Director of Central Intelligence for Administration (ADCI/A). Até 1977, o processo de nomeação tendeu a ser burocrático e sem maiores controvérsias, mas desde então alguns ex-futuros DCIs indicados pelo presidente retiraram seus nomes como resultado das audiências congressuais ou por antecipação a um veto resultante do processo de argüição e investigação da vida pregressa. Apenas para mencionar alguns exemplos, em 1977 Theodore Sorensen retirou sua indicação quando senadores do SSCI levantaram críticas quanto ao fato de Sorensen ser um objetor de consciência e também alegações de utilização imprópria de material classificado em suas memórias. Em 1987, durante sua primeira indicação para ser DCI, Robert Gates retirou a indicação depois de ter sido questionado sobre seu envolvimento no escândalo Irã-Contras. Mesmo tendo sido confirmado pelo Senado em sua segunda indicação em 1991, Gates enfrentou uma investigação sobre as alegaçãos de que teria “politizado” as análises de inteligência quando foi diretor de análise da CIA durante as administrações Reagan e Bush. Mais recentemente, em 1997 o ex-Assessor de Segurança Nacional de Bill Clinton, Anthony Lake, foi forçado a retirar sua indicação para ser DCI antes mesmo de iniciar o processo de argüição no Congresso. Crescentemente partidário e relacionado com aspectos da vida dos indicados que não têm relação direta com o cargo a ser ocupado, o processo de confirmação senatorial é um recurso de poder significativo para o comitê de inteligência do Senado. Finalmente, os comitês de inteligência do Senado e da Câmara (House of Representatives) podem convocar audiências públicas e secretas, iniciar investigações parlamentares sobre temas controversos e elaborar relatórios próprios de avaliação sobre aspectos estruturais e políticos das atividades de inteligência do governo. Algumas dessas audiências (hearings) são realizadas para discutir as opiniões dos parlamentares, do governo e de especialistas sobre aspectos da política de inteligência (e.g. as audiências realizadas em 1994 no comitê de inteligência da Câmara para tratar da pertinência ou não da divulgação pública do agregado orçamentário de inteligência), enquanto outras são destinadas à discussão de temas internacionais considerados relevantes para a segurança nacional (e.g. as audiências anuais promovidas pelo comitê de inteligência do Senado para que os diretores da CIA, DIA, FBI e de outras agências exponham sua visão sobre as ameaças internacionais contra os interesses e a segurança dos Estados Unidos). As investigações e relatórios especiais fazem parte da própria gênese dos comitês de inteligência do Congresso, à época das WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 69 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA comissões Church (Senado) e Pike (Câmara) para investigar as operações do governo na área de inteligência. Apenas para mencionar um exemplo mais recente, em 1998 o comitê de inteligência do Senado realizou duas investigações sobre a China, uma sobre as alegações de que o governo da China realizou operações de influência durante a eleição presidencial de 1996 e a outra investigação sobre os possíveis impactos sobre a segurança dos Estados Unidos resultantes da transferência de tecnologia de satélites para a China. Essas audiências e investigações representam parte considerável do controle externo das atividades de inteligência dpor parte do Congresso dos Estados Unidos. Em 1997-1998, somente o SSCI realizou 95 desses hearings formais, principalmente secretos mas também alguns abertos ao público. Apesar dessas capacidades formais e de um desempenho que vem sendo aperfeiçoado nos últimos quinze anos desde o escândalo Irã- Contras, autores como Pat Holt (1995), Mark Lowenthal (2000) e Loch Johnson (1996) destacam algumas limitações importantes e desafios recorrentes no funcionamento dos mecanismos congressuais de supervisão (oversight) e prestação de contas (accountability). Dentre os desafios mais relevantes e que não se restrinjem necessariamente ao caso norte-americano, deve-se destacar: 1) os limites impostos pelo segredo governamental e os problemas de segurança; 2) o risco de cooptação dos parlamentares; 3) o chamado microgerenciamento das atividades de inteligência e 4) a avaliação da qualidade do trabalho parlamentar. A instituição do segredo público e as necessidades de segurança operacional e informacional da atividade de inteligência impõem custos transacionais à supervisão congressual. Essa premissa geral já discutida por Amy Zegart (1999) é verificável até mesmo na legislação que estabelece a obrigatoriedade do fornecimento de informações ao poder legislativo. No caso norte-americano, enquanto uma seção da lei afirma que nenhuma informação deve ser retida sob a alegação de que constituiria uma publicização indevida de informações classificadas, a seção seguinte diz que os comitês de inteligência do Congresso devem ser mantidos completamente informados das atividades, organizações, sistemas e recursos de inteligência do poder executivo “na extensão em que isso seja consistente com a proteção contra a divulgação indevida de fontes e métodos ou outros materiais excepcionalmente sensíveis”. Na prática, esse requisito de consistência obriga a existência de procedimentos de checagem de background para os parlamentares e assessores dos comitês para a concessão de credenciais de acesso (security clearances), a construção de instalações físicas e procedimentos para a armazenagem e trato de informações classificadas e severas limitações sobre a disseminação de inteligência para os demais membros do Congresso, o que coloca um peso adicional sobre os parlamentares que atuam nas comissões. Com tudo isso, o Congresso é visto ainda como uma fonte de vazamentos indevidos de informações, embora isso seja fortemente disputado no caso dos Estados Unidos, onde a maioria dos vazamentos se dá no poder executivo. Em muitos casos, certas atividades de inteligência são relatadas apenas oralmente para os presidentes de cada comitê (chairmen) e eles devem então decidir pelo Congresso como um todo se alguma ação de controle é ou não necessária. Além dos limites impostos pelo segredo e por pesados procedimentos de segurança, a efetividade da supervisão congressual pode ser comprometida também pela cooptação dos parlamentares para uma visão acrítica e condescendente em relação às práticas e justificações das agências de inteligência do poder executivo. Na medida em que os custos de obtenção de informações e de construção da especialização necessária para um trabalho efetivo de supervisão são muito altos, o risco que se coloca é o do parlamentar ou do assessor ser ostensivamente cooptado ou, mais simplesmente, adotar uma posição excessivamente compreensiva (no sentido de se colocar no lugar do outro, num ato de verstehen peculiar). Ainda mais quando as restrições de segurança e a relação intensa de trabalho com os dirigentes dos órgãos governamentais de inteligência (o tipo de camaradagem que os britânicos chamam de “ring of secrecy”) tendem a ser utilizadas pelos últimos para avançar suas relações públicas com o Congresso. As medidas para minimizar o risco de cooptação envolvem a fixação de limites temporais para que um parlamentar possa ser membro de uma comissão supervisora de inteligência e um desenho institucional multiparditário e que aumente a responsabilidade dos membros em relação às prerrogativas do presidente da comissão. Na verdade, o nível apropriado de supervisão congressual que interessa aos cidadãos é difícil de ser estabelecido se esse não é um tema proeminente na agenda eleitoral, nas campanhas de rua ou nas pesquisas de opinião. Um terceiro tipo de risco é o chamado micro-gerenciamento, uma tendência a focar o trabalho investigativo dos comitês parlamentares em detalhes operacionais de uma área ou em casos específicos e desconsiderar os temas mais gerais e substantivos do desempenho do sistema nacional de inteligência como um todo. Mas isso é controverso, pois, como lembra Pat Holt WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 70 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA (1995:231), o que para uns é micro- gerenciamento para outros é o zelo necessário a um trabalho de supervisão do qual depende a accountability de uma área problemática de atuação do Estado contemporâneo. Finalmente, qualquer comentário sobre a efetividade dos comitês parlamentares de supervisão precisa levar em conta a intensidade e a qualidade das questões levantadas pelos parlamentares durante suas interações com os dirigentes das agências de inteligência. Ou seja, é preciso avaliar aquilo que Frank Smist (1991) chamou um tanto enviesadamente de atitudes institucionais versus atitudes investigativas na supervisão congressual. Tomando os hearings públicos sobre a CIA como uma medida formal de accountability na área de inteligência, Loch Johnson (1996:89-118) estudou a participação dos parlamentares membros dos comitês de inteligência da Câmara e do Senado nessas audiências. Entre 1976 e 1990, a frequência média de realização dessas audiências públicas foi de 1,6 por ano somando-se os dois comitês. Em menos de um terço das audiência a maioria dos membros do comitê esteve presente. Das mais de dez mil perguntas feitas pelos membros dos comitês nessas audiências, apenas 39% das questões levantadas pelos Senadores e 36% das questões dos Representantes foram perguntas consideradas por Loch Johnson como interrogativas, adversariais ou que demandavam evidências e argumentos mais elaborados (hardballs). As demais foram perguntas marcadas por deferência e/ou irrelevância (softballs). Mesmo reconhecendo a insuficiência desse estudo para uma avaliação mais integral da experiência norte-americana de supervisão congressual, as conclusões de Loch Jonhson parecem reforçar a idéia de que um dos principais problemas com os mecanismos horizontais de accountability democrática na área de segurança nacional é a própria disposição dos parlamentares informarem-se e atuarem mais decisivamente. Muito mais do que uma peculiaridade dos comitês norte- americanos, esses problemas são gerais e tendem a ser relatados em diferentes trabalhos sobre supervisão congressual e accountability horizontal das atividades de inteligência e que focam casos como o do Canadá, Grã-Bretanha, Austrália, Escandinávia, África do Sul e Argentina. Embora isso seja insuficente para conferir solidez comparativa à tese de Amy Zegart (1999), inclusive porque observa-se um desenvolvimento institucional importante ao longo da última década através da formação de comitês conjuntos de inteligência e segurança em muitos legislativos bicamerais, os problemas identificados aqui mostram como ainda se está longe de contar com um sistema de supervisão congressual efetivo sobre as atividades de inteligência e de segurança nacional nas democracias. Em síntese, dos sete mecanismos de supervisão e controle externo discutidos nessa seção, os mais efetivos são os mecanismos internos ao próprio poder executivo (mandatos legais, inspetorias e mecanismos de coordenação) e os comitês parlamentares especializados em temas de inteligência, defesa e política externa. Mesmo sendo desejável um investimento institucional específico na melhoria do desempenho dos sete tipos de controle externo, os comitês parlamentares são mais decisivos especialmente quando têm capacidade de aprovar legislação mandatória, decidir sobre os orçamentos e verificar com independência quaisquer documentos e informações solicitadas. 3.4 – Conclusão: a transparência como um desafio A habilidade de controlar fluxos e acervos informacionais é decisiva para a maximização de poder. No caso da atividade de inteligência, as informações relevantes sobre a atividade das agências não estão disponíveis diretamente para o público e sua disseminação é regulada pelo segredo governamental. Essas informações militares, econômicas e outras informações sobre ameaças podem ser decisivas para a segurança nacional. E tudo isso confere poder para quem dirige o sistema. Como já disse alguém, se for verdade que o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, então o poder secreto corrompe secretamente e deve por isso ser cuidadosamente limitado e supervisionado. Em polities democráticas, os serviços de inteligência e segurança recebem poderes extraordinários para proteger as liberdades, os valores e os interesses dos cidadãos. Precisamente por causa desses poderes, tais serviços podem causar danos a essas mesmas liberdades e às instituições democráticas. Por controlar um importante corpo de informações, por ter especialização em técnicas de vigilância e interceptação de comunicações e por operar uma grande quantidade de recursos sob um manto de segredo, um aparato de inteligência pode se transformar numa ameaça para o governo a que serve e para os cidadãos do próprio país. Num extremo da curva de risco está a instrumentalização dos serviços de inteligência por parte de um governo ou de um dirigente, que WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 71 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA poderia utilizá-lo contra seus oponentes políticos internos ou segmentos mais ou menos vastos da população, enquanto no outro extremo da curva está o risco de autonomização dos serviços e sua transformação em centros de poder independentes no sistema político. De modo geral, as leituras realizadas sugerem que os serviços de inteligência são razoavelmente responsivos aos governantes. Ou seja, que muitos dos abusos e escândalos associados à área de inteligência tem origem nas próprias diretrizes operacionais emanadas dos governantes e comandantes. Além disso, como a doutrina da “negação plausível” (plausible deniability) diz basicamente que as ações na área de inteligência devem ser conduzidas de modo a permitir ao governo negar seu envolvimento, aprovação ou mesmo o conhecimento das operações para evitar desgastes diplomáticos e crises internacionais, a operação desse mecanismo tende a reforçar a convicção de que os governantes controlam mais efetivamente os serviços de inteligência e segurança do que eles dizem ou parecem controlar. Daí que o risco maior encontre-se na ameaça às liberdades dos cidadãos em função da instrumentalização dos serviços por governantes e não na autonomização dos serviços. Mesmo assim, devido aos recursos tecnológicos e à escala em que operam tais sistemas de inteligência nos países mais industrializados, aos problemas do segredo compartimentado juntou-se progressivamente o peso da tecnocracia, destacado em particular por John K. Galbraith em O Novo Estado Industrial (1979). Juntos, o segredo e a tecnologia tendem a constituir um grande desafio para o controle público das atividades de inteligência, mesmo nas poliarquias mais institucionalizadas. Essas duas dimensões – o segredo e a tecnologia de controle dos eventos políticos - compõem aquilo que Norberto Bobbio (1999:399-415) chamou de “poder invisível” que corromperia a idéia democrática ao ponto de impedir, no limite, que se possa dizer que a democracia existe onde existem serviços de inteligência. Mesmo deixando de lado aqui a discussão mais geral sobre o grau de afastamento entre as poliarquias “realmente existentes” e os ideais democráticos, o fato de países norte- americanos e europeus ocidentais - considerados dentre os mais democráticos do mundo segundo quaisquer padrões - contarem com serviços de inteligência mais ou menos poderosos indica duas coisas diferentes: Por um lado, que a mera presença de serviços de inteligência não viola as condições institucionais de existência da poliarquia. Por outro lado, que isso está longe de significar que o recurso a essas atividades seja isento de problemas, dilemas, tensões e situações de perda de controle mesmo naqueles países. Por tudo isso, o tema do controle externo sobre as atividades de inteligência é inescapável e central. Nos regimes democráticos atualmente existentes, como foi visto nesse capítulo, esse controle é exercido não pelos cidadãos individualmente ou mesmo pelo conjunto de representantes parlamentares, mas por comissões especiais, corregedorias e comitês com regras de funcionamento especiais. No caso do poder executivo, trata-se mais da supervisão dos mandatos legais das agências e do controle administrativo sobre a eficiência no cumprimento de missões e prioridades. No caso da supervisão congressual ou parlamentar, são as próprias missões e prioridades das agências de inteligência que precisam ser questionadas, supervisionadas e legitimadas. Embora as noções de interesse nacional e de segurança nacional (que justificam em última análise as atividades de inteligência) não possam ser concebidas por governantes democráticos nos mesmos termos que a Raison d’etat do Antigo Regime, existem novas razões práticas e morais para a tensão entre segurança estatal e segurança individual. Algo semelhante ocorre com os segredos, que já não correspondem aos arcana imperii dos reis absolutistas, uma vez que se trata agora de uma forma relativamente excepcional de regulação governamental de fluxos de informações. Entretanto, como essa excepcionalidade é parcialmente neutralizada pela escala em que essa forma de regulação é empregada, surgem novas tensões entre segredo governamental e direito à informação. Assim, mesmo reconhecendo a validade e até a vitalidade para as justificativas associadas à segurança estatal e ao segredo governamental no mundo pós-Guerra Fria, o ponto central desse capítulo é a necessidade de uma maior efetividade dos mecanismos externos de controle sobre o poder executivo nessa área problemática de atuação governamental. Infelizmente, tanto do ponto de vista dos modelos institucionais e dos procedimentos mais adequados e efetivos para a supervisão externa das atividades de inteligência, quanto do ponto de vista da reflexão sobre os problemas éticos associados à segurança nacional, à espionagem internacional, ao segredo governamental, ao uso de operações encobertas e aos acordos secretos entre governos para compartilhamento de inteligência, a discussão sobre o impacto das atividades de inteligência tendeu a ser subestimada até aqui na teoria democrática. WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 72 CONCEITOS DE INTELIGÊNCIA Trata-se de uma lacuna significativa pois, como foi discutido na terceira seção do capítulo, mesmo nos países mais democráticos os mecanismos de supervisão congressual são muito recentes e têm evidentes problemas de desempenho institucional. Na medida em que a institucionalização dos serviços de inteligência envolveria não apenas a obtenção de “estabilidade” organizacional, mas também um longo processo através do qual eles tornam-se (ou não) organizações “valiosas” para o público, esse é um processo que está fortemente relacionado à transparência, ou seja, à capacidade do público ver e julgar por si mesmo os atos dos governantes na área de inteligência. Mesmo que os serviços de inteligência contemporâneos tornem-se suficientemente ágeis para estabilizarem-se organizacionalmente no novo contexto internacional, sua eventual institucionalização dependerá ainda da difícil resolução do dilema da transparência. _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ _________________________________________________________________________________ WWW.DOMINACONCURSOS.COM.BR 73