Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
MODOS DE EXPERIENCIAR MÚSICA POP EM CUBA Thiago Soares RECIFE 2021 Revisão de texto: Alexei Padilla Herrera Capa e projeto gráfico: Ildembergue Leite Catalogação na fonte Bibliotecária Kalina Ligia França da Silva, CRB4-1408 S676m Soares, Thiago, 1977-. Modos de experienciar música pop em Cuba [recurso eletrônico] / Thiago Soares. – Recife : Ed. UFPE, 2021. Inclui referências. ISBN 978-65-5962-000-5 (online) 1. Música popular – Pesquisa. 2. Música popular – Aspectos sociais – Cuba. 3. Música e globalização – Cuba – Séc. XXI. 4. Cultura e globalização – Cuba. 5. Performance (Arte) – Aspectos sociais. I. Título. 781.63 CDD (23.ed.) Todos os direitos reservados à Rua Acadêmico Hélio Ramos, 20, Várzea Recife, PE | CEP: 50740-530 Fone: (81) 2126.8397 | publicacoes.editora@ufpe.br www.ufpe.br/edufpe UFPE (BC2021-007) Agradecimentos Desenvolver uma pesquisa num país que não é o seu, demanda um duplo ato de desprendimento: consigo e com os outros. Sair da zona de conforto para enfrentar horas de voo, chegar num lugar que conta com naturais limites de estranhamento e conseguir desenvolver minimamente o cronograma composto é uma tarefa, diria, inóspita. Por isso, esta pesquisa não seria possível sem o financiamento do CNPq, logicamente, mas sem também os afetos de quem esteve envolvido nela. Primeiramente é preciso agradecer a uma rede de cubanas e cubanos que abriram suas casas e suas vidas para que pudéssemos entender os paradoxos do que é viver nesta ilha de singular história no mundo. Todo o meu respeito e admiração à história de Cuba e de seus cidadãos que mantêm viva a chama das Revoluções. Em especial a Yara Castillo, que me hospedou durante todas as minhas idas a campo em Havana, sua rede de amigas e amigos que renderam ótimas conversas no final do dia, antes de assistirmos juntos, capítulos de telenovelas brasileiras. A Mayi, que me encantou com sua vitalidade ao falar das músicas pop russas, búlgaras e afins, um agradecimento por dar novos rumos para a pesquisa tocar no assunto de outras globalizações possíveis. Este trabalho não teria sido possível sem o contato com Leandro Sanchez, o inclassificável punk-afetuoso da Calle G que me mostrou os meandros da noite habanera, apresentando pessoas que foram fundamentais para entender que a conexão com a música pop não invalida os valores construídos pela Revolução Cubana. Foi com Leandro que também fui ao show do Major Lazer, na Tribuna Anti-imperialista e que se configurou num dos capítulos desta obra. À querida Marty, que conheci numa das noites no Cabaret Las Vegas, uma boate gay de Havana e que me mostrou a cena de gays, drag queens, transexuais e travestis na ilha, um agradecimento perfumado como um hidratante da Victoria’s Secret que compartilhamos na nossa despedida. Quando voltei a Havana para uma segunda entrevista, soube que ela tinha emigrado para os Estados Unidos e morava na ensolarada Califórnia lembrando sua Havana querida. Parte da originalidade deste trabalho se deve aos singulares relatos de Alberto Arcos, um jornalista e fã de Madonna, que me comoveu ao narrar seu afeto pela cantora norte-americana, primeiramente em sua casa na longínqua Holguín, depois na capital Havana e com quem mantenho contato através das redes sociais digitais. Esta pesquisa conta com a valiosa contribuição da querida amiga e orientanda Mariana Lins, também contemplada com financiamento para pesquisa de campo em Havana no ano de 2017. Um agradecimento mais que especial a Simone Pereira de Sá, que com sua generosidade e inteligência, é um exemplo inspirador na Academia brasileira, e que me recebeu para estágio de pós-doutorado na Universidade Federal Fluminense (UFF) através do projeto Procad/CAPES. Prefácio | Simone Pereira de Sá O pop como estrutura de sentimento da modernidade “Modos de Experienciar Música Pop em Cuba” é uma obra que, já em seu título, aponta para os desafios que Thiago Soares se dispôs a lidar. Pois, a proposta do autor é refletir sobre os atravessamentos midiáticos da cultura pop na ilha do Caribe e nas formas como os consumidores – sobretudo os jovens – articulam suas identidades de cubanos forjados nos valores socialistas e, ao mesmo tempo, fãs de Madonna, Lady Gaga e outros ícones pop, no contexto de flexibilização do embargo econômico dos EUA em 2016. Fruto de pesquisas de campo realizadas em sucessivas visitas à ilha no período entre 2015 e 2017, o trabalho foge ao maniqueísmo de posições dicotômicas, discutindo de maneira muito sofisticada os complexos processos políticos e culturais que enredam culturas distintas sob o nome de globalização. Assim, cabe destacar, entre as muitas qualidades do trabalho, primeiramente a escolha corajosa do tema e do foco do debate. Pois, afinal, como abordar os afetos de jovens cubanos por divas pop, num contexto onde o combate à cultura anglo-saxônica pautou a vida cultural do país por mais de meio século, sem cair em explicações dicotômicas sobre posições políticas de esquerda e direita? É possível manter a identidade cubana e gostar de pop? Como essas articulações de identidades híbridas são performatizadas num dos mais icônicos países socialistas do século XX? E como nós, pesquisadores do pop e ao mesmo tempo, cúmplices dos destinos de Cuba, podemos nos colocar, sem acionarmos noções como a de “imperialismo cultural”, que parecem não dar conta desse complexo cenário? Assim, não é por acaso que o livro se inicia com a narrativa da visita de Barack e Michelle Obama a Cuba em 2016, mencionando o papel central da música e da comida cubana naquele encontro. O que essa visita significa? Como ela foi performatizada para a mídia? Conforme destaca o autor: “A perspectiva é reconhecer como Cuba integra o imaginário pop global, a partir de sua história na América Latina, contexto de revolução e da singularidade do país na geopolítica mundial. Pensar as territorialidades do pop significa reconhecer zonas de fricção entre espaços reais e imaginários, entre construções ligadas a poéticas de artistas, músicos e sua circulação através dos sistemas de mídia, das indústrias da televisão, da música, do cinema.” Assim, afirmando a potência da música como forma concreta de agir no mundo; e do pop como estrutura de sentimentos da modernidade ou matriz de sensibilidade estética que vai além do capitalismo e do mercado, Thiago traz uma importante contribuição para os debates pós-coloniais de viés latino-americano. E se as questões são tratadas de maneira complexa, no diálogo com os Estudos Culturais, os Estudos de Performance e os Estudos Musicológicos, o texto de Thiago, por sua vez, escrito em primeira pessoa, traz a leveza e fluidez que seduz pela simplicidade e clareza. Junte-se a isso, o fato de que o olhar de Soares é generoso, afetuoso, cúmplice, mas nem por isso menos arguto para identificar as contradições, ambiguidades e tensões que se desenham na Cuba contemporânea, que busca caminhos na direção da abertura cultural e da qual o show do projeto musical Major Lazer – formado por músicos e DJs americanos – é um dos exemplos. Por fim, mencionar que esse livro é um dos frutos de projeto de pesquisa interinstitucional que eu me orgulho em coordenar1, que possibilitou ao autor não só o deslocamento a Cuba como também uma bolsa de pós-doutorado sob minha supervisão. E assim, pude acompanhar de maneira privilegiada o desenvolvimento dessa pesquisa, tendo tido acesso antecipado aos resultados parciais desse trabalho que agora tomam a sua forma final, num conjunto coeso e orgânico. Livro que se torna leitura obrigatória para os pesquisadores do campo da música pop e também para um público mais amplo, que tenho certeza, vai se encantar com o debate apresentado por Thiago Soares tal qual me encantei desde o início. Boa leitura! 1 Trata-se do projeto “Cartografias do Urbano na Cultura Audio-Visual: som, imagem, lugares e territorialidades em perspectiva comparada”, fruto de em parceria entre a Universidade Federal Fluminense, a Universidade Federal de Pernambuco e a Universidade Vale dos Sinos – Unisinos. O projeto foi contemplado pelo Edital PROCAD/CAPES 2013 e encontra-se em vigência até 2020. Sumário Introdução 13 1 Música pop e globalização em Cuba: desafios epistemológicos 37  Música pop, cultura pop, entretenimento 44  Cuba pop: entre territorialidades e performances 59  Epistemologias do Sul: outras globalizações 69  Música pop socialista e circuitos globais 79 geopolíticos num show 2 Acionamentos de música pop em Havana 86  Como o Major Lazer se tornou popular na ilha 96  Sobre performance e roteiro 100  A mitologia e o zelo em torno de uma amizade “abalada” 105  Fincar a bandeira de Cuba em Cuba: por um estrangeiro 110  “É tarde demais para pedir ‘desculpa’?” 116 Isla Bonita”: solidariedade global 3 “La entre fãs de Madonna 121  Colorama, a “MTV cubana” 127  Internacionalização da TV em Cuba 132  Solidariedade de fãs em redes sociais 138 Gaga em Cuba 152 4 LadyCultura pop e questões geracionais 162  Gênero e cantoras pop 170  “I was born this way” 174 Considerações finais 180 Referências 184 Introdução Da porta aberta do avião Air Force One, que pousou em Havana, às 16h20, horário local, do dia 20 de março de 2016, avista-se o presidente Barack Obama e sua esposa, Michelle Obama, hesitantes em sair da aeronave enquanto cai uma fina garoa. Parecem pedir guarda-chuvas para que possam, enfim, pisar em solo cubano. É assim, empunhando guarda-chuvas, que Obama, a esposa e as duas filhas, chegam à ilha socialista, 88 anos depois da última visita de um presidente dos Estados Unidos ao país, naquela ocasião, o então presidente Calvin Coolidge chegou em um navio de guerra. A imagem se repete: Obama circula por Havana Vieja, bairro turístico da capital cubana, protegido da chuva, cumprimentando pessoas, acenando, mas sempre protegido pelo guarda-chuva. A visita do então presidente dos Estados Unidos a Cuba foi um dos fatos mais noticiados na pauta internacional no ano de 2016. Qual seria o motivo da ida de Obama à ilha socialista? No dia seguinte à chegada do norte-americano, o presidente cubano Raúl Castro recebe Obama no Palácio da Revolução, em Havana. Os atrativos do receptivo para o presidente: comida típica e mú- 13 sica cubana. Entre os inúmeros vídeos postados no Youtube2, vemos um deles em que, enquanto jantam, Obama e o Raúl Castro (e suas comitivas) assistem a apresentação de músicos cubanos num palco. A imagem parece marcar a retórica de um encontro político a partir de duas disposições culturais: comida e música. O encontro de dois países, historicamente separados, num contexto de aproximação política. Diante de todo noticiário, dos alardes em torno do futuro de Cuba e da relação dos Estados Unidos com a ilha socialista, questionar-se a premissa senso comum, de que o afastamento político dos dois países também se reverteria num também afastamento das relações culturais. Esta afirmativa se presentifica em partes. Ao contrário do que se alardeou, midiaticamente, Cuba e Estados Unidos mantiveram trocas culturais, intercâmbios de artistas, naturalmente menor após a Revolução Cubana de 1959, numa relação que, embora não sem tensões, apresentou um quadro complexo de relações simbólicas de interculturalidade. Esta investigação entre os anos 2015-2017 contou com suporte do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) do governo brasileiro, através do edital Apoio a Projetos de Pesquisa/Chamada CNPq/MCTI Nº 25/2015 Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas e também com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) através do edital 071/2013 do Programa de Cooperação Acadêmica (Procad) intitulado “Cartografias do Urbano na Cultura Musical e Audiovisual”. 2 Para ver o vídeo na íntegra: https://www.youtube.com/watch?v=bADMMjT_ RXY&t=23s. 14 O foco da investigação é a música, através de abordagens advindas dos Estudos Culturais desenvolvidos na América Latina, da Musicologia produzida também na América Latina em especial da produção cubana (González, 2009) em confluência com a área denominada Estudos de Performance (do qual destacamos as reflexões de autores como Diana Taylor e Richard Schechner). Este conjunto de indicativos teóricos estão circunscritos a premissas do que se convencionou chamar de Teorias Pós-Coloniais, que prevê discussões em que as teorizações precisam vir atreladas a práticas políticas concretas tendo como foco a desestabilização da perspectiva binária sobre a qual se construiu a retórica colonial, bem como toda aquela que porta em seu bojo uma relação de hierarquização ou subordinação. Das abordagens culturológicas, destacamos a música como dotada de uma capacidade singular de tensionar e problematizar dimensões políticas, na medida em que as práticas de escuta e fruição musicais se constituem como fenômenos complexos, que lidam com lazer, entretenimento, diversão e também com posições de mundo, ideologias e engajamentos sociais. Dessa forma, o ponto de partida desta investigação são as performances oriundas da fruição de sujeitos cubanos com a música pop estadunidense (e anglófila) num contexto em que se constitruiu como um lugar de afastamentos políticos e identitários. Demarca-se a abertura sensível de sujeitos a partir da aproximação entre os dois países, não apenas a partir de 2014 e culminando com a visita do então presidente Barack Obama, em 2016. Mas se reconhece que a passagem do presidente estadunidense colocou em 15 cena, questões que estariam fora da pauta do cotidiano tanto de cubanos quanto de norte-americanos. Este fato de ordem geopolítica coincidiu com a minha ida a Havana, em 2014, de férias, quando passei a ter contato com vários cubanos, sobretudo nas festas gays de Havana, que foram revelando cotidianos de extrema importância para a indagação dos aparatos políticos que formam sujeitos contemporâneos. Quando frequentei boates como Cabaret Las Vegas ou o Café Concerto, ambas amplamente divulgadas e conhecidas em Havana, repleta de jovens e adultos em busca de diversão, música, encontros, paquera, percebi, junto ao amplo consumo de artistas de músicas latinas, incluindo o reguetón, nestes espaços, a presença do cancioneiro pop anglófono, que era “bailado” com afeto e destreza pelos presentes. Desta vivência, primeiramente sem conexão com uma investigação acadêmica que viria a se transformar num projeto de pesquisa, percebi questões que desenhavam reconhecer a forma muito particular com que a juventude cubana frui a música pop anglófona: a partir de um lugar que foi construído sobre as bases do socialismo após a Revolução Cubana e diante de um quadro de cerceamento político e econômico do embargo dos Estados Unidos a Cuba. Delimitamos, assim, três grupos investigados na cidade de Havana, no mês de março de 2016 (período da visita de Barack Obama a Cuba): fãs de artistas da música pop anglófona; frequentadores de boates e festas de música eletrônica (com amplo contato com diversas musicalidades midiáticas); artistas da noite (drag queens) e DJs de festas de música pop. A perspectiva era, uma vez dentro destes grupos, selecionar personagens que pudessem guiar a pesqui- 16 sa através de entrevistas e observações participantes. Percebi, em conversas informais dentro dos grupos, que havia uma dimensão performática que somente a entrevista não captaria. Havia algo que não era da ordem da fala, mas das ações, dos corpos – propriamente ditos. Este lugar da juventude cubana fruindo a música pop anglófona ajuda a compreender fenômenos musicais como zonas de encontro, tensão, recusa e adesão, de um Outro que se constrói dentro de bases políticas, mas também culturais/ sociais. Não caberia, portanto, olhares binários para estes fenômenos: estaríamos, assim, refutando ideias menos complexas que interpretariam tais fenômenos pelas lentes do imperialismo ou das sobreposições de culturas por outras, uma vez que, quando estamos tratando de música, sobretudo música popular, incorremos por caminhos que nos situam nas encruzilhadas dos saberes da mente, mas também do corpo (como apontaria Adorno). Esta aparente ambivalência entre mente e corpo coloca em foco justamente as perspectivas binárias que enxergam a fruição a partir da separação entre dimensões de sentido (notadamente a cognição, a linguagem) e de ordem sensível (a esfera das sensibilidades, dos afetos e dos prazeres). Desafiador, seria, portanto, lidar com estas duas instâncias juntas, se agenciando, colocando em questionamento o princípio não apenas do que significa ouvir música, mas sobretudo, gostar de uma música e assumir que se gosta de determinada música. Esta aparente divisão (ouvir-gostar-assumir) estaria circunscrita a práticas culturais que colocariam em perspectiva, políticas culturais, formas de acesso às pro- 17 duções musicais e os processos de significação da música na vida cotidiana. Esta problemática está inserida nos desafios do ideal de integração latinoamericana como “expressão de uma identidade historicamente fundamentada no continente, que se articula desde eventos das políticas culturais de nossos países” (González, 2009, p. 43). Paradoxalmente, afirma Liliana González, em muitos destes processos se excluem as diversidades culturais de cada uma das sociedades latinoamericanas, entre elas, a relação com o mundo, não obliterando de discutir, posturas hegemônicas que homogenizam, reduzem e minimizam os diferentes capitais simbólicos com finalidades oficiais ou mercantis. A autora faz uma sugestão para tratar destes impasses: “deve-se focar o olhar nas relações de poder: centro-periferia (anglo-europeia/latinoamericana) como padrão ou norma de mercado em vez de orientar estratégias que validem e agenciem a especificidade de modos de produção, distribuição e consumo próprios” (González, 2009, p. 43). A partir do enfoque do consumo, Juan Pablo González e Claudio Rolle (2005) apontam os desafios da musicologia em lidar com o campo musical marcado pela produção e distribuição industrial, a aparição da contemplação mas também do consumo e a presença de uma pluralidade de textualidades onde convergem letra, música, interpretação, performance, narrativa visual, gravação, mixagem, edição, que colocam em perspectiva a própria musicologia e seus enfoques epistemológicos tradicionais, produzindo, então, o que Omar Corrado chama de um ‘descentramento disciplinar’, ao trazer zonas im- 18 puras e menos ordenadas das músicas populares midiatizadas e a legalidade e o prestígio dentro do campo Acadêmico. (González; Rolle, 2005, p. 23) É diante de abordagens impuras para fenômenos musicais que delimitamos os estudos de Performance para conduzir esta argumentação. Ou seja, performance “como uma episteme, um modo de conhecer”, não apenas – embora também como – objeto de análise. Aprendemos, transmitimos o conhecimento por meio da ação incorporada, da agência cultural e das escolhas que se fazem” (Taylor, 2013, p. 17). Neste sentido, traçamos rascunhos metodológicos para se demarcar a performance como um modo de conhecer fenômenos. Ao me situar como mais um ator social nos roteiros que analiso, espero posicionar meu investimento pessoal e teórico na argumentação, não encobrindo as diferenças de tom, mas colocando em diálogo teórico e empírico, num acionamento constante entre o que se mostra, como se mostra, o que eu vejo e como eu vejo. A premissa é pensar a performance como um imbricamento entre as linguagens e suas encenações, as situações e contextos de aparições e as dinâmicas de visualidade e fruição. Neste sentido, ir às festas e boates que tocam música pop em Havana me fizeram situar a problemática do sujeito em situação clara de teatralização dentro da cultura da noite. Ao reivindicar a performance como um “modo de conhecer”, portanto, um campo do saber, reconhecemos que a abertura e a multivocalidade dos estudos de performance são um desafio administrativo, na medida em que os limites disciplinares são constantemente tensionados e revistos, limitados e 19 ampliados. Compreender a(s) diferentes(s) articulações e fenômenos relacionados às performances constitui um campo do saber e que requer métodos próprios na especificidade dos seus objetos temos a construção dos estudos de performance em seu estatuto transdisciplinar, em áreas que aproximam a Música, a Antropologia, a Sociologia, as Artes Cênicas e a Comunicação. Um primeiro movimento necessário para o reconhecimento da complexidade do termo vem dos diferentes usos da palavra “performance”. Muitos desses usos apontam para complexas camadas de referencialidades, muitas vezes contraditórias, outras vezes complementares, acarretando num jogo sustentado por fragmentos dispersos dos usos e suas ressignificações. Se pensarmos na matriz etimológica francesa, “performance” deriva do “parfournir”, que significaria “fornecer”, “completar”, “executar”, na concepção resgatada pelo antropólogo Victor Turner (1982). Sob esta alcunha, a performance aparece sob a noção de visualidade, execução, seja ela de uma ideia, de um constituinte prévio. Ou, de maneira mais detida, como uma espécie de camada de transparência capaz de “revelar o caráter mais profundo das culturas” (Turner, 1982, p. 9). Esta primeira concepção parece guiar um certo olhar em torno tanto das práticas performáticas como sintomas culturais, aprendizado, compreensão de fazeres culturais a partir dos corpos/ações dos sujeitos. Havia, entretanto, uma certa recusa ao princípio de simulação, de teatralidade e de “verdade” (sempre entre aspas) que, pode se revelar numa objeção em torno das teatralidades como componentes, acionamentos e possibilidades de real. Embora um espetáculo de música, de 20 dança, um ritual e uma manifestação exijam uma separação ou um enquadramento que os diferenciem de outras práticas sociais à sua volta, isso não implica que a performance não seja um comentário, uma fabulação, uma olhada sobre o real. Do francês, o termo foi incorporado pelo inglês ainda no século XVI (Taylor, 2013, p. 28) como uma espécie de disposição avaliativa sobre as práticas cênicas e corporais. De Aristóteles, passando por Shakespeare, Calderón de la Barca, Artaud e Grotowski, a concepção de performance na tradição da língua inglesa remonta à ideia de avaliação teatral, indicação de prática em torno do potencial, do talento e de comprometimento com a encenação. Esta ideia de avaliação em torno das competências corporais e cênicas dos indivíduos se espraia nos inúmeros usos da noção de performance: do campo dos negócios, passando pela política, esportes e tudo aquilo que envolve avaliação da relação expressiva do corpo com alguma competência. Resgatamos aqui o movimento proposto por Victor Turner (1982) de debater também o caráter de “intraduzibilidade” do termo performance, desafiando retrancas disciplinares e geográficas, mas também negando a universalidade e a transparência. “Performances não podem nos dar acesso a outra cultura, permitindo vê-la em profundidade, mas elas certamente nos dizem muito sobre nosso desejo desse acesso e refletem a política de nossas interpretações” (Turner, 1982, p. 12). Estas diferentes origens do termo “performance” apontam para diferentes usos conceituais da palavra em campos do conhecimento. Se pensarmos na chave da origem francesa do termo performance, poderemos nos direcionar para a uma 21 perspectiva dramatúrgica do termo: a cultura é uma arena em que os atores sociais jogam com seus dramas em busca de sentidos para existir. Indivíduos são sujeitos de seus dramas, argumentam, contestam, logram, normatizam fazeres culturais, ou seja, não simplesmente se adaptam a sistemas, eles os formam. Nos dramas cotidianos, há reconhecimentos de condutas, práticas, vitórias, derrotas, movimentos de autopreservação, enfrentamento, recusa e adesão. A dramaturgia da vida cotidiana se faz a partir de componentes estéticos e lúdicos dos eventos sociais. Mas como estas práticas culturais estão inscritas nos corpos? É desta encruzilhada que emergem os usos conceituais de performance numa tradição de língua inglesa, ou aquela que vai focalizar numa espécie de função performática da comunicação, a partir da investigação dos atos de fala – proposta mais que oportuna gerada por Austin (1988) ao se questionar: faziam-se coisas com palavras? Nesta perspectiva, a partir dos usos, criações e encenações da língua, dramatizam-se os atos. Esta dramatização é executada e avaliada constantemente, investindo, portanto, em valores como autenticidade, verossimilhança ou sinceridade. Maneiras engenhosas de usar a linguagem apontam para noções de autenticidade nos jogos valorativos de ver e existir socialmente. Neste sentido, as premissas do drama no cotidiano são acrescidas de ênfases em torno das aparições corporais e gestuais, apontando para agendamentos em torno das práticas culturais. Esta aproximação da noção de performance com o de oralidade é também base do autor, certamente, um dos mais reverenciado nos estudos de performance na Comunicação, Paul Zumthor (2000). 22 A performance é a ação complexa pela qual uma mensagem poética é simultaneamente aqui e agora, transmitida e recebida. Locutor, destinatário, circunstâncias (quer o texto, por outra via, com a ajuda de meios lingüísticos, as represente ou não) se encontram concretamente confrontados, indiscutíveis. Na performance se redefinem os dois eixos da comunicação: o que junta o locutor ao autor; e aquele em que se unem a situação e a tradição. (Zumthor, 2000, p. 31) Zumthor soa engenhoso em nos fazer adentrar ao jogo da performance: de aproximação, de abordagem, de apelo, de provocação do Outro, de pedido, em si mesmo indiferente à produção de um sentido. Em sua busca por debater a performance na América Latina, Diana Taylor circunscreve o incômodo com o termo “performance” no contexto latino-americano a partir da ideia de que tanto no espanhol quanto no português, a palavra assume um “disfarce” linguístico que convida os falantes a pensar através da língua inglesa, evocando tanto a presença de uma cultura marcadamente anglófila nestes países quanto a reificação da ideia de “arte performática”, como aquela vinculada ao happening e à história do corpo nas artes cênicas e visuais. No entanto, Taylor aponta quatro termos que são frequentemente usados como “traduções possíveis”, porém precárias e inacabadas, da ideia de performance na América Latina – a partir dos embates em torno da palavra nas tradições francesa e inglesa: 1) teatralidade; 2) espetáculo; 3) ação; 4) representação. Teatralidade e espetáculo captariam 23 o sentido construído e abrangente da performance, nas muitas maneiras como o comportamento social pode ser visto como performance e os valores/valências que estão em jogo. Ação e representação seriam da ordem das intervenções e competências individuais, ato ou intervenção política, na medida em que, conforme Taylor, “o termo ação parece mais dirigido e intencional e, portanto, menos imbricado social e politicamente do que performatizar, que evoca tanto proibição quanto o potencial para transgressão” (Taylor, 2013, p. 42) A noção de representação, também segundo a autora, invoca noções de mímese, “de uma quebra entre o ‘real’; e sua representação” a partir de uma esfera política ligada a pertencimentos e visibilidade. Original é a contribuição de Diana Taylor que vai buscar na tradição indígena latino-americana (nauatle, quéchua e aimara) o correspondente a “performance”. A palavra “olin”, que significa “motor da vida” seria “candidata possível” na acepção da autora. “Olin é o motor por trás de tudo o que acontece na vida, o movimento repetido do sol, das estrelas, da terra, dos seres viventes. Tudo se repete, num movimento que é a própria coreografia da vida” (Taylor, 2013, p. 43), mas “olin também significa a linha limítrofe entre vida e morte, aquilo que mantém os seres vivos, ou, de maneira mais metafísica, a linha de transição entre o reino terreno e o divino (Taylor, 2013, p. 43). Nesta perspectiva, os movimentos coreográficos da vida seriam tanto sociais e políticos quanto naturais e encenados, não havendo distinção entre estas instâncias. O termo atrai Diana Taylor na medida em que parece rechaçar a compartimentalização das práticas sociais das sociedades 24 Ocidentais, questionando taxonomias e apontando para outras possibilidades interpretativas. A ideia de performance que propomos aqui apresenta uma aproximação com o campo da Comunicação, notadamente, através de duas de suas temáticas/objetos nos quais mais nos concentramos: a música e os sites de redes sociais. O cerne do debate em torno da performance, no campo da Comunicação, é a ideia de incorporação, repetição, reiteração. Gestos habitam corpos, acionam memórias, colocam em perspectiva experiências. O que o corpo torna visível? Diana Taylor (2013) chama atenção para a noção de “performance incorporada”, que seria “a dimensão tangível dos atos que têm papel fundamental na conservação da memória e na consolidação de identidades em sociedades letradas, semiletradas e digitais” (Taylor, 2013, p. 21). As performances seriam, portanto, atos de transferência vitais, transmitindo conhecimento, memória e um sentido de identidade social. O artista plástico Joseph Roach (1996) vai reconhecer o caráter mimético e mnemônico das performances, porém, quase numa guinada à Psicanálise, aponta para o devir performático: As genealogias da performance trazem consigo a ideia de movimentos expressivos como reservas mnemônivas, incluindo movimentos padronizados feitos e lembrados pelos corpos, movimentos residuais guardados implicitamente em imagens ou palavras (e nos silêncios entre eles) e movimentos imaginários sonhados em mentes, não anterior à linguagem, mas como partes constitutivas dela. (Roach, 1996, p. 26) 25 A proposta de estudos de performance na intersecção entre comunicação e música encontra dois percursos metodológicos: 1) um que se encaminha para as linguagens em torno de atos performáticos arquivados, de que maneira estes registros “oficiais” ou não, dentro de padrões da indústria do entretenimento ou do anseio pela captação por parte de fãs e frequentadores de espetáculos musicais são apresentados; 2) outro que evoca uma certa ideia de performance como memória, como política identitária de grupo ou da singularidade de sujeitos, ou diante de políticas da visibilidade (o que se registra, quem registra, com que propósitos). Dentro da tentativa de apreender e analisar estas práticas performáticas efêmeras, é preciso recorrer a focos de análise, dentro de enquadramento do evento e da ingerência de afirmar, de maneira ontológica, que se trata-se de uma performance – o que uma sociedade considera performance outra pode não considerar. Conforme argumenta Schechner (2006) “não se pode determinar o que ‘é’ performance sem antes se referir às circunstâncias culturais específicas”, uma vez que “da perspectiva da prática cultural, algumas ações serão julgadas performances e outras não; e isto varia de cultura para cultura, de período histórico para período histórico” (2006, p. 38). De quem seriam as histórias e memórias que se tornariam visíveis? A partir desta segunda acepção de performance, quero 26 retomamos a ingerência de Diana Taylor em torno da ideia de eventos como performances para propor uma “lente metodológica” para o campo da música. Se eventos são performances, poderíamos debater o que está performartizado nestes espaços. Eventos de música envolvem performances musicais, naturalmente, de artistas que mobilizam o público em torno da espectatorialidade ao vivo (ver e ouvir), mas não somente isso. O evento performatiza uma intenção de realização, seja de ordem pública ou privada, o que motiva a sua existência. Poderíamos pensar em instituições performatizando formas de espacializarem experiências com sujeitos, marcas criando formas de corporificação nos espaços, jogos de esconder e revelar em torno das motivações dos eventos musicais. Mas se eventos são performances estamos falando, naturalmente, de artistas que planejam espetáculos, executam, realizam shows num espaço-tempo delimitado e contextualizado. Tais artistas reúnem fãs, frequentadores, curiosos e apreciadores de música que, por sua vez, performatizam maneiras de estar, fruir e sentir a música, corporificando resistência, obediência, cidadania, gênero, etnicidade, entre outros aspectos. Esta prática dos corpos performatizando em eventos funciona como uma espécie de epistemologia que aciona o olhar em torno das ações incorporadas e as práticas culturais a elas associadas. Estamos falando da relação entre performance e vida cotidiana, em suas diversas acepções e recontextualizações culturais – refletindo especificidades históricas nas encenações e fruições. É diante deste quadro teórico-metodológico que circunscrevemos a investigação aqui apresentada. A despeito de todo noticiário em torno do histórico encontro em Havana, das es- 27 peculações em torno do presente e do futuro dos dois países – separados pela Revolução Cubana e com um embargo econômico em pleno vigor até a escrita deste livro em 2021 – há questões culturais que parecem borrar a disposição estanque e afastada entre Cuba e Estados Unidos. No livro “Culturas Encontradas: Cuba y Los Estados Unidos”, Rafael Hernández e Jonh H. Coatsworth (2001) sintetizam em uma série de textos, relatos de experiências de trocas culturais entre os dois países – de inúmeras ordens. A partir da parceria entre o Centro de Investigación y Desarrollo de la Cultura Cubana Juan Marinello e do Centro de Estudios Latinoamericanos David Rockefeller da Universidade de Harvard, a publicação registra quatro grandes eixos de uma profícua interrelação entre os dois países: a música; a educação/arte; a religião e a racialidade. Como o recorte que nos interessa para debater nesta pesquisa é o musical, nos ateremos às perspectivas desenhadas por este conjunto de reflexões. No texto “Afrocubanidad Translocal: La Rumba y La Santería em Nueva York y La Habana”, Lisa Maya Knauer demonstra os itinerários diaspóricos de músicos cubanos nos Estados Unidos, pensando a afrocubanidade como uma sensibilidade que assumiu uma importante força identitária em guetos e subúrbios de cidades dos Estados Unidos. A partir de uma investigação de cunho etnográfico, discute a formação de zonas de aproximação entre a rumba e a santeria, ressignificando as práticas de músicos e ouvintes. No artigo “Relaciones Cubano-Norte-Americanas em la Música de Concierto – 18501902”, Radamés Giro volta no tempo, para evidenciar a construção de uma relação musical entre os dois países que remonta ao século XIX. É, no entanto, no texto “Interinfluencias y 28 Confluencias em la Música Popular de Cuba y de Los Estados Unidos”, de Leonardo Acosta, que nos aproxima das questões propostas nesta investigação. Para Acosta (2001), a existência de raízes musicais comuns, e um inegável paralelismo no desenvolvimento das formas musicais nos dois países, permite falar de “confluências” mais do que “influências”. Sobre as raízes comuns, o autor destaca a importância do acervo musical e rítmico africano, mais especificamente, da África Ocidental, que permeia a gênese da produção popular dos dois países. Sobre os paralelismos, é possível falar de contextos históricos semelhantes: tanto Cuba quanto Estados Unidos foram sociedades coloniais, ambas marcadas pelo sistema escravista e pelo racismo, destroçadas por guerras e episódios sanguinolentos. A música de ascendência africana surgiu de um processo de transculturação similar nos dois países, caracterizado por uma etapa de rechaço ao negro africano pelas elites brancas dominantes, seguido por uma gradual cooptação por parte destas mesmas classes, na medida em que foram incorporando elementos afros às principais correntes de música popular, em uma dialética negro-branca que, mais tarde, com o surgimento dos meios de difusão massivos, se converte numa luta entre o popular “folclórico” e a chamada música comercial. (Acosta, 2001, p. 33) É possível pensar ainda no século XIX, as confluências das músicas crossover nos contextos de Cuba e dos Estados Unidos, com a aparição de disposições estéticas que mimeti- 29 zavam as aproximações geográficas entre os dois países, sobretudo, através de um gênero musical: o jazz latino. O autor localiza o intenso intercâmbio entre músicos cubanos e estadunidenses no século XIX através da presença ampla de artistas cubanos em Nova Orleans, nos anos de formação do jazz (fins do século XIX) e a visita a Havana de companhias norte-americanas de minstrels entre 1878 e 1895, com inegável influência no teatro bufo cubano. Outro momento relevante de confluência de músicos cubanos e norte-americanos, se dá nos finais da década de 1920, com o considerável número de músicos cubanos residindo nos Estados Unidos e a formação do que gravadoras como a Columbia chamou de “onda de músicos cubanos e latinos invadindo Hollywood” e, em seguida, na década de 1930, com a chegada da “Era da Rumba” no mercado fonográfico dos Estados Unidos. Na historiografia da música popular de Cuba e Estados Unidos, Leonardo Acosta menciona o termo “música pop” ao tratar do período iniciado na década de 1950. Segundo o autor, a máfia de Las Vegas se instala em Havana, controlando o jogo, o turismo e a vida noturna, desenvolvendo a suntuosidade de espetáculos de cabaré e a contratação de estrelas de show business para se apresentarem em cassinos e hotéis de luxo da capital cubana. Atuaram em Havana, nesta época, Cab Calloway, Woody Herman, Tommy Dorsey, Nat King Cole, Sarah Voughan, Josephine Baker, Tony Bennett e outras estrelas de jazz e da música pop estadonidense” (Acosta, 2001, p. 45). Percebe-se a constituição da noção de “música pop” como atrelada ao cancioneiro ligado ao universo dos jogos, dos cassinos e das celebridades de Las Vegas em contexto 30 cubano. Depois de 1959, com a ruptura entre os dois países a partir da Revolução Cubana, se encerrou praticamente todo intercâmbio musical entre as nações. “Como era de se supor, os dois países desenvolveram tendências de supressão ou ao menos minimizar a presença da música em ambos os contextos” (Acosta, 2001, p. 47). Do ponto de vista do governo americano, se retira do mercado, álbuns, partituras e direitos autorais de músicos cubanos. Da parte cubana, se limitava o consumo de música norte-americana, segundo comentavam funcionários ligados a setores musicais, já que nunca houve uma proibição explícita nem efetiva, ao menos contra o jazz, ainda que sim contra o rock – especificamente o anglo-saxão. (…) Porém se multiplicaram os discos dos Beatles e de outros grupos de rock, que os cubanos viajando em missões oficiais traziam para a ilha e logo eram reproduzidos em cassetes. (Acosta, 2001, p. 47) A forma de fruir a música anglófila em Cuba sempre passou pela ideia de disseminação através da formação de cópias em cassetes de álbuns fonográficos, fenômeno que percebemos ainda bastante presente entre fruidores de música pop norte-americana em Cuba, nos anos de 2015-2017. Segundo Acosta, o movimento do cancioneiro cubano chamado “Nova Trova”, proibido de ser exibido na TV local durante os anos 1960 e praticamente oficializado a partir de 1972, de nomes como Pablo Milanés e Silvio Rodrigues, “devia parte de sua originalidade à assimilação inteligente de gêneros musicais norte-americanos pelos seus principais expoentes, como 31 Pablo Milanés (blues, jazz, spirituals) e Silvio Rodrigues (cujas influências oscilavam entre John Lennon, Paul Mc Cartney passando pelo folk de Bob Dylan” (Acosta, 2001, p. 47). Foi na década de 1970, que as relações mais tensivas de circulação entre os dois países foram se atenuando. Em 1977, o grupo Irakere, do pianista Chucho Valdés, recebeu ótimas resenhas de críticos de jazz norte-americanos que visitavam Havana, através de um navio turístico chamado “Cruzeiro do Jazz”, na então administração do presidente americano Carter. Em 1978, a gravadora CBS, percebendo as possibilidades mercadológicas de artistas cubanos, promove no Teatro Karl Marx em Havana, o “Encontro Cuba-Estados Unidos” de músicos, em que se apresentava, segundo Acosta, “artistas pop” como Billy Joel, jazzistas como Dexter Gordon até orquestras de salsa. “A CBS organizou uma turnê de Irakere pelos Estados Unidos, que chegou a receber um prêmio Grammy, que só foi entregue dez anos depois ao músico cubano, em função das relações tensas entre Estados Unidos e Cuba durante a administração de Reagan” (Acosta, 2001, p. 48). A partir dos anos 1980, músicas urbanas das ruas, como o rap afro-norteamericano, instauram novas dinâmicas das relações estéticas entre Cuba e Estados Unidos, que também se refletem na produção do cancioneiro de reguetón e de músicos pop. Diante de toda ampla historiografia, Leonardo Acosta recomenda as investigações musicais Cuba-Estados Unidos, em torno da forma com que o público frui tais cancioneiros, suas relações com as canções, memórias e territorialidades. Para o autor, “a presença do ‘toque cubano’ em praticamente em todos os gêneros de música dos Estados Unidos, cria historicamente um terri- 32 tório ‘a parte’, de recíproca fertilização que há sido capaz de resistir a mais de 50 anos de ruptura e afastamento entre os dois países” (Acosta, 2001, p. 49). É portanto a partir da lente metodológica dos estudos de Performance e diante de uma história das relações musicais entre Cuba e Estados Unidos que partimos para a investigação da presença da música pop estadunidense em contexto cubano, tendo como guia, a chegada do presidente Barack Obama a Cuba e o debate em torno das performances que, a partir do encontro, tensionam disposições históricas e comunicacionais entre os dois países. Esta pesquisa traz como recorte temporal, o mês de março de 2016, quando foi possível fazer uma pesquisa de campo, na cidade de Havana, de 23 dias. O recorte deste mês contribuiu para a dimensão sensível da apreensão em torno do futuro da ilha e também diante de um conjunto de eventos que também colocaram Cuba no foco da mídia internacional. No mesmo mês de março, da visita de Barack Obama, aconteceu na Tribuna Antiimperialista, em Havana, o espetáculo de música pop protagonizado pelo grupo Major Lazer, do DJ e produtor norte-americano Diplo, chamado “Peace is the Mission” (“Paz é a Missão”). Em seguida, o grupo britânico Rolling Stones, realizou um histórico concerto na Ciudad Desportiva, em Havana, para mais de um milhão de cubanos. Em maio, a grife internacional Chanel realizou um desfile no Paseo del Prado, também em Havana, em que celebridades do mundo, incluindo a top model Gisele Bündchen, circulam pelos pontos turísticos da capital de Cuba. Em junho de 2016, marcas de roupas brasileiras das lojas Riachuelo e 33 Marisa lançam coleções inspiradas em Cuba. Ou seja, o país socialista virou ambiente e tema de uma série de eventos que pareciam recolocar a ilha numa esfera de apreensões e afetos com grandes ícones do capitalismo. Esta obra, então, se organiza a partir de quatro capítulos. No primeiro, intitulado “Música pop e globalização em Cuba: desafios epistemológicos”, debato mais detidamente o que chamo de música pop e as razões pelas quais a ideia de música pop está atravessada pelo senso transnacional que implica em discutir as globalizações. A partir do legado das chamadas Epistemologias do Sul, reconhecemos a valência do conceito de “cosmopolitismo subalterno” para entender as práticas de globalização que, a partir da pirataria e dos sistemas não-oficiais de contatos com as disposições midiáticas, formam a singularidade do consumo deste tipo de música no contexto cubano. Discutimos as diferenças e aproximações conceituais entre música pop, cultura pop e entretenimento, apontamos a forma com que artistas locais e globais encenam uma certa territorialidade pop no país, e apontamos Cuba como um importante lugar para se pensar outras globalizações possíveis, para além daquela centrada na figura dos Estados Unidos, a partir da investigação dos circuitos midiáticos de músicos e artistas do bloco socialista no contexto de Cuba nos anos 1970. No capítulo 2, “Acionamentos geopolíticos num show de música pop em Havana”, faço uma inserção de inspiração etnográfica no espetáculo “Peace is the Mission”, que o grupo pop Major Lazer, realizou na Tribuna Antiimperialista, duas semanas antes da visita do presidente Barack Obama, em 2016. A partir de conceitos oriundos dos estudos de Performance, 34 percebo três quadros performáticos no concerto como um encontro que evoca uma memória cultural das Américas e das relações entre cubanos e estadunidenses: 1) as tensões entre estrangeiros e cubanos; 2) a performance de “fincar a bandeira” em territórios; 3) o pedido de desculpa. No Capítulo 3, chamado “’La Isla Bonita’: Solidariedade global entre fãs de Madonna”, investigo através do principal fã da cantora Madonna em Havana (gerenciador da página do Facebook “Madonna Cuba”) o sistema de solidariedade de povos de todo mundo com fãs cubanos da principal cantora da música pop. A forma com que este fã assiste a vídeos e ouve músicas de Madonna, nos leva a discutir práticas midiáticas da ilha ligadas à televisão: 1) o programa de TV Colorama, que exibia videoclipes de música pop; 2) o processo de internacionalização das emissoras de TV cubanas, a partir da perspectiva de modernização e da necessidade de zonas de contato com a cultura midiática. No Capítulo 4, “Lady Gaga em Cuba”, a partir de uma entrevista em profundidade e uma vivência de campo com uma travesti e drag queen cubana fã da cantora Lady Gaga e seu desejo por um show da estrela em solo cubano, discutimos como canções e videoclipes pop auxiliam a ressignificar o sentido de vulnerabilidade e de questões de gênero no cotidiano destes sujeitos. Coloca-se um debate sobre as relações entre música e gênero, discutindo inclusive a política de inclusão de programas de auxílio a transgêneros e transexuais na ilha. Esta investigação se define a partir dos desafios diante das próprias transformações da música no contexto cubano. Ao 35 comentar as críticas que Leonardo Acosta faz dos estudos sobre musicologia em Cuba, no livro “Otra Visión de la Música Popular Cubana” (2004), Liliana González atesta: Constantemente nós estamos transculturalizando, porque muda a sociedade, muda o pensamento econômico, se transformam os sujeitos sociais e a música faz parte desta dinâmica, ganhando em novos significados, para o que podemos chamar desde a música advogando pelo resgate das mesmas identidades do passado. (González, 2009, p. 60) A trajetória desta investigação é, justamente, perceber como a relação entre Cuba e Estados Unidos estabeleceu (e estabelece) relações performáticas no imaginário, nas formações culturais e também musicais dos dois países. Trata-se de um mosaico impreciso e turvo em torno de formas de lidar com afecções musicais globais e a territorialização destes fenômenos em contexto cubano. Maneiras de lidar com ideais de cosmopolitismo e globalização muito particulares. Estética e política em conjunção. Para além de leituras binárias e reducionistas. 36 1 Música pop e globalização em Cuba: desafios epistemológicos se ue q l u dia prod m n u r o a M sifica cos c nr r e ti s co e Gu cla idiá de d a a nd par sos m ade mas iu d e eg or p” ie es an sf oc a S “po proc m s a n s e me s pó rmo as e car a mo e s. D a a l o i te gic e rit italis açõe amp odut sd ia o c ó l e u e d p s pr c s, os uên tista ltar o o ca esta stev de n e d o a a me freq s, ar op sum ex das usa) lo P a o e m n r P o a en iga rec ltura e co a c nôm ão p as l u u s u ç e ss o o e C ução f i a ã , c s s d m o d e v to re a ra as p o (ad idei e pro a l t c , d a en a, as mo su ajam mpl orm f a g en ais da a m ra trela a te 37 orientados por uma lógica de mercado, expondo as entranhas das indústrias da cultura e legando disposições miméticas, estilos de vida, compondo um quadro transnacional de imagens, sons e sujeitos atravessados por um “semblante pop” (Goodwin, 1992). O termo pop tornou-se elástico, amplo, devedor de um detimento em torno de suas particularidades e usos por parte de pesquisadores das Ciências Humanas e Sociais. É na direção de um enfrentamento conceitual e na tentativa de demarcar balizas de diálogos com matrizes teóricas já consagradas no campo da Comunicação que esta investigação se delineia. Reconhecemos que o termo “pop” já é, em si, bastante problemático. Primeiro, em função de seu caráter transnacional. Oriundo de língua inglesa como abreviação do “popular”, a denominação “pop” assume uma característica bastante específica em sua língua de origem. Como abreviação de “popular” (“pop”), a palavra circunscreve as expressões aos quais, de alguma forma, nomeia: são produtos populares, no sentido de orientados para o que podemos chamar de massa, “grande público”, e que são produzidos dentro de premissas das indústrias da cultura (televisão, cinema, música, etc.). Seria o que costuma-se chamar de “popular midiático” ou “popular massivo” (Janotti, 2009). A título de exemplo, estamos falando de telenovelas, filmes produzidos dentro dos padrões de estúdio e orientados para grandes plateias, artistas musicais ligados a um ideário de indústria da música, entre outros. Esta denominação tão específica do termo na língua inglesa também se avilta em função da abreviação do “popular” em “pop” fazer referência ao movimento artístico da “Pop 38 Art”, aquele surgido no final da década de 1950 no Reino Unido e nos Estados Unidos, que propunha a admissão da crise da arte que assolava o século XX e a demonstração destes impasses nas artes com obras que refletissem a massificação da cultura popular capitalista3. Estávamos diante de um momento histórico em que a discussão implantada era a da existência de uma estética das massas, tentando achar a definição do que seria a cultura pop, mas, neste momento, aproximando-a do que se costuma chamar de “kitsch”. Temos, então, no contexto da língua inglesa, o “pop” como o “popular midiático” em consonância com os ecos das premissas conceituais da “Pop Art”. Estas aproximações norteiam o uso do “pop” e também fazem pensar que a principal característica de todas as expressões é, deliberadamente, se voltar para a noção de retorno financeiro e imposições capitalistas em seus modos de produção e consumo. Estas acepções se diferenciam quando chegamos ao contexto da língua portuguesa, em que também se usa a expressão “pop”, se referindo à mesma ideia de “popular midiático” original, no entanto, ao nos referirmos ao conceito de “popular”, temos uma ampliação do espectro de atuação das noções semânticas: o “popular”, na língua portuguesa, pode se referir tanto ao “popular midiático” ao que nos referirmos anteriormente, mas também – e de maneira mais clara e detida – ao 3 A defesa do popular traduz uma atitude artística adversa ao hermetismo da arte moderna. Nesse sentido, a “Pop Art” operava com signos estéticos de cores massificados pela publicidade e pelo consumo, usando tinta acrílica, poliéster, látex, produtos com cores intensas, fluorescentes, brilhantes e vibrantes, reproduzindo objetos do cotidiano em tamanho consideravelmente grande fazendo referência a uma estética da sociedade de consumo (Lippard, 1998, p. 16). 39 “popular” como aquele ligado à “cultura popular” (ou folclórica) e que na língua inglesa não se chama de “popular”, mas sim de “folk”. Então, ao mencionarmos a ideia de “cultura popular”, em língua portuguesa, estamos nos referindo a duas expressões: a da cultura folclórica, mas também, aquela que chamamos de “cultura pop” ou a “cultura popular midiática/ massiva”. Diante de uma larga tradição do debate sobre cultura popular, é importante demarcar os imbricamentos desta discussão no contexto da América Latina. O largo espectro de usos do termo “cultura popular” como associado ao folclórico também integra disposições que diz respeito às formas com que os Estados latino-americano foram lidando com suas tradições, o passado e as formas de se manter vivo lastros de sua História. Preservar a cultura popular folclórica sempre foi função do Estado através de suas políticas culturais em diversos contextos latino-americanos. Em maior ou menor escala, com mais ou menos investimentos. Este parece ser um ponto, no entanto, já devidamente definido e claro. No entanto, como provoca Martín-Barbero (2002), existe um popular que “fala não somente a partir das culturas indígenas ou dos camponeses senão desde a trama espessa das mestiçagens e das transformações do urbano”, do “popular como lugar de conflito” e a “reivindicação do massivo como existência do popular” (Martín-Barbero, 2002, p. 54). Dimensão tensiva, para o autor, na medida em que se excluem a “pureza” e o essencialismo da noção de cultura popular e folclórica. Pelo que indica Martín-Barbero, podemos pensar na complexidade que é encontrar epistemologias que dêem conta de índios conectados com celulares, camponeses vendo 40 televisão, assistindo a videoclipes e música midiática. O que, de fato, ocorre com a cultura popular quando se exclui a complexidade dos fenômenos midiáticos nela disposta? A cultura popular na América Latina é portanto o inacabamento da relação entre a história das culturas populares-folclóricas sob a chancela das políticas públicas estatais em constante tensionamento com as formas emergentes de práticas culturais populares que emergem dos sistemas midiáticos, como rádio, televisão, internet, acarretando em fenômenos e processos midiáticos difusos, complexos e que não parecem dar margem a leituras essencialistas ou “românticas”, reivindicando qualquer tipo de “pureza” ou “absolutismo”. Na leitura que Rincón (2016) faz de Martín-Barbero, ele assinala que é no popular que se joga a batalha pelo sentido porque é ali que se localizam os modos outros de imaginação social e a política, pois as práticas populares nos mostram para onde devem apontar as propostas de uma comunicação que se quer realmente alternativa e porque reconhece que hoje o popular só se pode entender em sua relação com o massivo, uma relação que é um entrelaçamento de submissões e resistências, de impugnações e cumplicidades. (Rincón, 2016, p. 30) Na larga tradição sobre estudos sobre cultura popular e mais detidamente sobre música popular na América Latina, é oportuno trazer à tona a questão do “pop”. Primeiro, porque o “pop” no contexto da América Latina pode significar tanto a cristalização de uma história de dominação e pregnância dos Estados Unidos e dos fenômenos de língua inglesa no contex- 41 to latino-americano, quanto apontar para tramas de territorialização destes fenômenos em contextos muito singulares, ressignificando os aportes em torno de noções mais estanques sobre imperialismo e “guerras culturais”. Obviamente que não se oblitera a força econômica de fenômenos da cultura pop e sua capacidade de silenciar ou atenuar disposições locais. No entanto, aposta-se no tecido social como poroso, difuso, inacabado e também tensivo, acarretando em formas de produção e fruição híbridos nos mais diversos países da América Latina. Estudar o “pop” neste contexto significa tentar entender as tramas de memória, fascínio, ojeriza e resistência que fizeram/fazem parte das relações entre metrópoles-colônias, conquistadores-conquistados. Acrescente a singularidade de Cuba como nação socialista na América Latina e os tensionamentos sobre estudos em torno do “pop” se tornam ainda mais desafiadores. Diante de um quadro em que grande parte do que se entende sobre Cultura Pop se dá a partir de um debate sobre a música pop, este capítulo propõe traçar percursos possíveis de investigação sobre a música pop a partir das problemáticas de valor, performance e territorialidades. Destes três eixos conceituais, debate-se de forma mais ampla, portanto, a Cultura Pop, e epicentros da problemática terminológica sobre o pop. Delineia-se como problema de investigação, como se constroem valores (Dougher, 2004; Frith, 1996; Powers, 2004; Sanjek, 2005; Dougher, 2005) nos sistemas da música pop, tendo como zonas de investigação performances e territorialidades. 42 Cabe pensarmos, de maneira mais detida, sobre pontos de partida para estudos sobre a música pop. Ou seja, as performances de artistas emblemáticos da música pop; de fãs destes artistas articulados em comunidades (fandoms) e destas experiências performáticas enunciadas em espaços codificados (como shows, eventos ou rituais midiáticos), seus sentidos e linguagens gerando experiências estéticas dentro de quadros mais amplos das lógicas de consumo e de vivência no contemporâneo. Toma-se aqui a noção de performance na música como a corporificação de sonoridades em espaços pré-definidos, espetáculos musicais midiatizados e em canções ou álbuns fonográficos (Auslander, 2012; Frith, 1996), reconhecendo que a performance é a disposição material a ser investigadas como princípio orientador das lógicas de gêneros musicais e da indústria da música. O interesse sobre a performance encaminha os estudos para o debate em torno da dimensão estética das experiências performáticas, suas formas de produção e reconhecimento a partir de premissas de ordens individuais ou coletivas. Indica-se o estudo, também, das territorialidades sônico-musicais (Herschmann, Fernandes, 2003); dos ambientes de circulação, fruição e consumo de artistas da música pop; das cidades que emolduram cenários e cenas musicais (Straw, 2003; Janotti; Sá, 2013) e das experiências de passagens e espaços que orientam nomadismos na cultura das festas e dos eventos, desenhando-se uma geografia de desejos (Parker, 2002; Thornton, 1995) e devires embalados por acordes musicais. Tem-se aqui a territorialidade e o cotidiano (Denora, 2000) como molduras teóricas capazes de pensar geopolíticas 43 das sonoridades e das indústrias da música; culturas que se encenam em corpos musicais e ambientes banhados por músicas; sexualidades e performances de gêneros (Butler, 1993) em trânsito entre canções, espaços e afetos; estados emocionais que motivam deslocamentos numa cultura musical em contextos culturais. Pensa-se territorialidade numa interface com gêneros musicais (Negus, 1992, 1996, 1999), sobretudo reconhecendo endereçamentos genéricos como capazes de gerar estéticas que habitam lugares políticos nas metrópoles. A música pop é uma articuladora de tessituras urbanas reais e ficcionais, a partir de vozes e corpos que se materializam entre redes de sociabilidades. Música pop, cultura pop, entretenimento Compreende-se por música pop, as expressões sonoras e imagéticas que são produzidas dentro de padrões das indústrias da música, do audiovisual e da mídia; tendo como lastro estético a filiação a gêneros musicais hegemônicos nos endereçamentos destas indústrias (rock, rap, dance music, entre outros); a partir de orientações econômicas fortemente marcadas pela lógica do capital, do retorno financeiro e do que Frédéric Martel chama de “mainstream” – ou seja “a produção de bens culturais criados sob a égide do capitalismo tardio e cognitivo que ocupa lugar de destaque dentro dos circuitos de consumo midiático” (Martel, 2012, p. 11). Propomos aqui assumir toda a ambiguidade ao qual a terminologia está submetida – sobretudo nos usos linguísticos no senso comum. 44 Música pop é, portanto, um grande invólucro que nomina, classifica, ordena e partilha artistas musicais e suas diversas materialidades e performances em espaços transnacionais de consumo; mas também, música pop é, detidamente, um tipo específico de música, com sonoridades, performances e espacialidades que se ancoram sob a égide de um sentido global. Em síntese, estamos tratando “música pop” como: 1) um gênero midiático (Janotti, 2006), ou seja, uma forma classificatória que parece levar em consideração sentidos e sensibilidades que estão circulando em ambientes midiáticos; suas formas de aparição, entrada e saída da mídia; produtos que ganham rotulação por terem sido produzido nos sistemas industriais da cultura (gravadoras, estúdios, emissoras de TV), que integram inclusive gêneros musicais distintos; ou matrizes estéticas hegemônicas e partilhadas nas lógicas do consumo das indústrias da cultura como reconhecíveis do que se chama de “música pop”. Estamos pensando, portanto, música pop como um gênero midiático ou uma espécie de arquigênero atravessador, uma forma classificatória que vaza as dimensões mais restritivas dos gêneros musicais e que nos direciona, portanto, para a perspectiva da ampliação das noções de textualidades da música. Tomando pelos usos cotidianos, o termo “música pop” reúne inúmeros gêneros musicais (rock, hip hop, rap, reguetón, funk, brega, cumbia, etc) desde que gerados ou apoiados nos sistemas produtivos e simbólicos das indústrias musicais. 45 2) um gênero musical (Brackett, 1995; Negus, 1996), ou seja, não se ignora o fato de que aplica-se ao termo “música pop” também a noção de gênero musical. Se pensarmos nos sistemas produtivos, nas lógicas de circulação e consumo, na partilha entre apreciadores de música pop, a ideia de que existe uma sonoridade pop (por mais impreciso que isto possa soar), imagéticas ligadas a esta perspectiva genérica; formas de endereçamento do mercado musical em torno do pop e também do reconhecimento e noção de pertencimento ao que se pode chamar de comunidade de um gênero musical, então, podemos perceber “música pop” também como um gênero musical em sentido mais estrito. Fruidores de música pop, em geral, nomeiam as sonoridades da guitarra e do baixo (associada ao rock), mas sobretudo do teclado e das programações musicais através de batidas (beats) em aplicativos ou programas de computadores como integrantes da forma difusa com que se pode classificar sonoridades de “pop”. As sonoridades do pop também estão ligadas às formas com que produtores lidam com a atividade em estúdio, onde noções como manupulação, controle e ingerências sobre materiais sonoros gravados ocorrem. Programas corretores de som, para “limpeza” do áudio e também das vozes dos artistas se configuram numa prática dentro da cultura pop que faz com que seja necessários novos aparatos teóricos e metodológicos para a compreensão da complexidade destes fenômenos. 46 Este detimento sobre aspectos classificatórios da música pop se faz necessário na medida em que o termo “música pop” também é usado como numa dinâmica valorativa. “Música pop” seria a música comercial, “da moda”, banal, essencialmente corporal, aquilo que seria tratado como inautêntico sobretudo pelos postulados inspirados por Adorno (2011): a defesa de que músicas populares, como fenômenos das indústrias musicais, são mercadorias padronizadas, superficiais, com consumidores passivos e meros agenciamentos do ouvinte no capitalismo. Theodor Adorno menciona uma tal música autêntica, que expressaria o “real interesse” das pessoas, que poderia variar temporalmente: ser a música erudita, o jazz (para Hall e Whannel (2004) ou a folclórica (Rosselson, 1979). Toma-se portanto o termo “música pop” como uma grande “negativa” de ações, a constituição dos jogos de valores que colocam em evidência mais as práticas do que as poéticas, mais os ambientes de circulação, de consumo do que, efetivamente, as músicas. A ideia aqui, portanto, é reconhecer, num espectro mais amplo, a música pop enquanto um gênero midiático que agrega um conjunto de gêneros musicais dentro do escopo das mídias, mas também e sobretudo, a música pop como um gênero musical amplamente detratado, colocado num lugar de rechaço por parte tanto da Academia quanto dos fruidores de rock como algo que não mereça uma devida atenção para debates complexos. A discussão em torno da música pop que encaminhamos, está ancorada diante de, pelo menos, duas retrancas (ou sub-temas): 1) Cultura Pop e 2) Estéticas do Entretenimento. 47 1) Cultura Pop: O debate se faz oportuno na medida em que desenha-se uma tentativa que compreensão das particularidades sonoras e imagéticas em produtos e performances que encenam modos de viver, habitar, afetar e estar no mundo alinhados a práticas que refletem e refratam ideais do capistalismo. A Cultura Pop estabelece formas de fruição e consumo que permeiam um certo senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afetos e afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante (Shuker, 1994; Bennet, 2000; Regev, 2013). Importante definir que, nas abordagens dos Estudos Culturais, considera-se os fruidores/consumidores da Cultura Pop não só como agentes produtores de cultura, mas também como intérpretes desta. Os sujeitos dentro do contexto da Cultura Pop interpretam, negociam, se apropriam de artefatos e textos culturais, ressignificando suas experiências. Descortinase a questão de que produtos/performances/artistas da Cultura Pop ajudam a articular normas de diferenciação dentro dos contextos contemporâneos, a partir de aportes como raça, gênero, faixa etária, classe social, entre outros, e acabam sendo forjados em função das premissas do capitalismo (Klosterman, 2004; Weisbard, 2004). 2) Estéticas do Entretenimento: A Cultura Pop pode se conectar às ideias de lazer, diversão, frivolidade, superficialidade e a proposta é tensionar o já problemático termo: a premissa de reconhecimento do contexto do entretenimento e dos agenciamentos das indústrias da cultura em 48 análises de produtos, performances e encenações midiáticas. Uma das orientações metodológicas que trazemos à tona é a de que como qualquer expressão midiática, os produtos de entretenimento devem ser analisados a partir das proposições/funções prescritas em seus programas de produção de sentido. Mas isso, não deve obliterar o fato de que entreter-se também significa algo mais, não se pode confundir a presença massiva, e por que não, muitas vezes maçante, da música no cotidiano com a capacidade que certas peças musicais do mundo pop têm de possibilitar fruições estéticas. (Janotti, 2009, p. 5) O que parece estar em jogo é o que Itânia Itania Gomes (2008) aponta com o fato de que o prazer, a corporalidade, a fantasia, o afeto e o desejo cooperam para o entendimento de que a relação entre a mída e seus fruidores não se restringe a um problema de interpretação de uma mensagem, mas remete também a questões de percepção e sensibilidade e nos convoca igualmente à avaliação empírica das sugestões de pensamento de Walter Benjamin, de que as formas comunicativas criam novos modos de ver e compreender o mundo. Trata-se de “uma nova sensibilidade, um novo raciocínio, mais estético, mais visual e sonoro, que implicam uma nova forma de percepção do mundo, característica da era audiovisual” (Gomes, 2008, p. 110). Um lugar de debate de perspectivas teóricas que alicercem um olhar particularizado sobre música pop (em sentido mais restrito) e à cultura pop e do entretenimento (de forma 49 mais ampla) parece ser a base de pensamento da Escola de Frankfurt. Neste sentido, reivindica-se aqui uma tradição de estudos sobre a relação tensa entre cultura e capital, no entanto, apontando rotas de fuga para olhares excessivamente apocalípticos sobre tais produtos. Cabe pensarmos em problematizar as inclinações analíticas que insistem em cristalizar a ideia de que estamos diante de fenômenos de baixa qualidade estética, dotados de fórmulas, excessivamente clichês. Aqui, retiramos de cena, na apropriação conceitual, uma tradição da crítica da estética da mercadoria (Haug, 1997), que aponta a tal estética “do capital” como um modo “nocivo” de experienciar os objetos que estariam excessivamente codificados pelas relações mercantis e capitalistas. Há o reconhecimento, portanto, de um lugar da experiência e das práticas dos indivíduos que são permeadas por produtos, gerados dentro de padrões normativos das indústrias da cultura, que se traduzem em modos de operações estéticas, profundamente enraizados nas lógicas do capitalismo, mas que encenam um certo lugar de estar no mundo que tenta conviver e acomodar as premissas e imposições mercantis nestes produtos com uma necessidade de reconhecimento da legitimidade de experiências que existem à revelia das consignações do chamado capitalismo tardio. Lança-se luz ao fato de que, embora seja claro e evidente que os produtos e as formas culturais em circulação na música e da cultura pop estejam profundamente enraizados pela configuração mercantil, pelas imposições do capital (de modo de produção, formas de distribuição e consumo), não se invalidam abordagens sobre a pesquisa neste segmento da cultura que reconhece noções como inovação, criatividade, reapro- 50 priação, entre outras, dentro do espectro destes produtos midiáticos. Menciona-se a ideia de que estamos num estágio do capitalismo em que não podemos trabalhar análises binárias sobre as relações entre capital e cultura. A relação entre marcas e produtos culturais precisa ser pensada não somente a partir de retrancas estanques (como o produto é “distorcido” pela ingerência do marketing na sua gênese, por exemplo), mas diante de um quadro em que se leve em consideração que as ações de organizações, de marcas, de posicionamentos de empresas, se aproximam das expressões da cultura de forma a gerar produtos/processos que não são, necessariamente, tolhidos de qualquer verve de criatividade e inovação. A questão não é obliterar as experiências em que, de fato, a ingerência de disposições mercantis agem de forma a reestruturar propostas estéticas. Mas, reconhecer brechas na lógica de produção das indústrias da cultura e na cibercultura que permitam o questionamento de ordem estética e cultural destes produtos. De acordo com Roy Shuker (1994, 1999), o termo “música pop” passa a ser utilizado nos anos 1950, tentando circunscrever as expressões originárias do rock and roll e, naturalmente, seu apelo para as massas e a caracterização inicial de fazer um tipo de música que se propusesse “universal”, para todos os públicos (muito embora saibamos que, por uma própria lógica de mercado, a descoberta do público adolescente como consumidor de música tenha delineado aportes de endereçamento bastante significativos). Partindo para concepções estritamente musicais, a “música pop” como um gênero, opera sob a égide do ecletismo, mas 51 aponta para lugares comuns na sua formatação: as canções de curta e média duração, de estrutura versos-pontes, bem como do emprego comum de refrõesrefrãos e estruturas melódicas em consonância com um certo senso sonoro pré-estabelecido. Mais uma vez, detectamos zonas de interseção dos termos: o uso contemporâneo da “pop art” e da Cultura Pop, cunhou uma certa ideia de uma música que reverbera um sentido disseminado pela cultura norte-americana, forjada da indústria e ancorada também pela televisão e o cinema de Hollywood. O alargamento do termo “música pop”, a partir da década de 1960, foi passando a operar em atrito com a dinâmica do rock. Segundo Richard Middleton, considerando que o rock aspirava a autenticidade e uma expansão das possibilidades da música popular, seria preciso diferenciá-lo do pop – mais comercial, efêmero e acessível. Como atesta Middleton, a música pop “não seria impulsionada por qualquer ambição significativa, com exceção de lucros e recompensa comercial. Em termos musicais, é essencialmente conservadora” (Middleton, 1991, p. 67). Interessa-nos aqui pontuar este momento de ruptura do pop com o rock diante de formas de rotulações que apelam para diferenças estratégicas, uma vez que, ainda hoje, um dos cernes do debate em torno da Cultura Pop reside numa certa lógica binária em relação ao rock. Por sua tradição de rebeldia, luta contra o establishment, histórico de vinculação a uma lógica underground, apreciação estética que evoca noções de autoria, estilo, etc., o rock acabou ocupando um lugar de destaque dentro das abordagens sobre Cultura Pop dentro dos Estudos Culturais. Sublinha-se que o campo de investigação aqui apontado dialoga com a tradi- 52 ção culturológica, ampara-se numa revisão das premissas da Teoria Crítica, mas traz, em si uma lógica de atritos e (des) encaixes. O trabalho proposto é análogo a um cartógrafo de tensões dentro do que chamamos de Cultura Pop, este invólucro de fenômenos midiáticos, nomeados como um “à parte” dentro da cultura da mídia quase sempre de valor duvidoso, questionável ou deliberadamente generalista. Dentro da Cultura Pop, o rock sempre ocupou um lugar hegemônico. Ao pop, coube a carga de contra-hegemonia, de sempre querer ser, almejar um lugar de legitimação, de destacamento, de tentar se aproximar das lógicas do rock como uma possibilidade de angariar reconhecimento e legitimidade. A música pop dentro da Cultura Pop é o lugar dos artistas “fabricados”, da emergência da figura do produtor, das poéticas que se ancoram em questões já excessivamente tratadas, de retomar uma parcela de vivências biográficas sobre fenômenos midiáticos e de, deliberadamente, entender que estamos diante de performances, camadas de sentido que envolvem produtos. O jogo proposto pelos produtos pop é o de perceber que há a engrenagem dinâmica de um sistema produtivo em ação; que o produto, em si, é parte integrante deste processo; que a enunciação se dá a partir da suspensão de certos padrões normatizados de valores e que a fruição é parte integrante do que chamamos de estilo de vida (Featherstone, 1995). Debater música pop significa, portanto, discutir o valor, como se constitui, como se formam cânones. É possível reconhecer que as máximas em torno dos objetos da música pop que trazem, em seu bojo, a discussão so- 53 bre valor, o questionamento sobre as noções de alta e baixa cultura e o embaralhamento das formas culturais. O debate que propomos encenar sobre valor diz respeito a lógicas de legitimação e encenações que apontam lugares de fala pouco investigados na discussão sobre música. Atesta Simon Frith (1996, p. 6): Existe um real desdém valorativo quando dois músicos reagem de maneira oposta a uma mesma questão: como você pode amar/odiar Van Morrison, Lou Reed, Springsteen, Stevie Wonder, Kraftwerk? Estes artistas não são “ótima música popular”? Como dizer ao contrário? Eu sofri (e infligi) toda alteza estética como meu oponente quando tensionamos a opinião do outro, nos empurramos para nossas posições fundamentalistas. (Frith, 1996, p. 6) O que Simon Frith parece colocar em debate é a constituição dos gostos e como emergem as posições sobre “bons músicos”, “boa música” ou da constituição de discursos dissonantes diante de um quadro relativamente estático de uma determinada área. Esta dimensão estética a que o autor se refere talvez esteja sugerida nas “posições fundamentalistas” a que Frith aponta, de maneira irônica, ao final da passagem. Se no exemplo trazido por Simon Frith, substituíssemos artistas ligeiramente hegemônicos na música como Van Morrison e Lou Reed por Madonna, Britney Spears, Pet Shop Boys ou Donna Summer? Como se constitui uma problemática de valor acerca destes artistas, especificamente no que chamamos aqui de “Música Pop”? De maneira bastante pessoal, Frith (1996, p. 6) se coloca como fã de música pop e atesta: 54 Como fãs do pop, nós mudamos continuamente nossas mentes sobre o que é bom ou ruim, relevante ou irrelevante, “incrível” ou “trivial” (nosso julgamento em parte determinado pelo que acontece com um som no mercado, quão bem sucedido se torna, o que outro ouvintes envolvidos). (Frith, 1996, p. 6) Constituições mercadológicas, disposições institucionais, hegemonia do gosto e disputas em torno do que é bom/mau sob a observação de fãs é uma das diretrizes investigativas. O pop que nos referimos é também uma negociação de gosto, afetos, compartilhamento de fenômenos. Por isso, o interesse, também, na constituição de um debate sobre constituição de cânones na música pop. Se retomamos a tradição do cânone na literatura (Compagnon, 2009), por exemplo, remontamos ao estabelecimento do cânone enquanto instituição, “escolarização” do gosto e das escolhas. O conceito de cânone adquiriu visibilidade na crítica literária organizada como disciplina e emergiu como condição de problema central, não só do campo de conhecimentos, como também da estrutura institucional que o suporta. Debater o cânone na música pop remonta a noções de disputas: valorização/desvalorização de correntes estéticas, capitais culturais das sociedades pós-modernas, reivindicações de representatividades por parte de estratos específicos de fruidores, repercussão crítica, de fãs e de “haters” (aqueles que odeiam) (Amaral; Monteiro, 2013), entre outros aspectos. Esta linha de raciocínio nos encaminha para o debate em torno do que Douglas Kellner (2001) chama de valores políticos da “cultura da mídia” evidenciando interesses e jogos de posi- 55 cionamento e poder que fazem com que produtos midiáticos habitem a ordem midiática. Assegura-se o debate sobre como os discursos que unem objetos, disposições midiáticas e contextos se engendram. Chamo atenção para uma espécie de invólucro simbólico de modelização do cotidiano a partir dos produtos da Cultura Pop. É de nosso interesse debater a construção da noção de que um produto midiático segue relevante dentro de um determinado contexto em função da permanência de seus usos e construtos de atribuição de sentido. Em outras palavras, é no terreno da cultura, do consenso e das lógicas de apropriação que reconhecemos a longevidade de um objeto da cultura midiática. Neste quadro de imagens dinâmicas atestamos a potência dos clichês. Ou o lugar de potência de corpos utópicos, ideais, edificados pelas imagens midiáticas, cenas de filmes, shows, atos performáticos ao vivo. Queremos aqui nos afastar das perspectivas que enxergam estes processos como “fugas do real”, deliberadas “válvulas de escape” ou qualquer premissa que se utilize de uma lógica binária de tratamento entre realidade e ficção. A nossa perspectiva trata o cotidiano como uma invenção e, portanto, passível de agenciamentos ficcionais, e de um certo grau orgânico existente nos enlaces das teorias dos jogos e da fantasia. Aproximamos Michel De Certeau (2014) e Gregory Bateson (2006), para pensar como a ideia de “seriedade” e “brincadeira” precisam ser vistas não como instâncias binárias afastadas e estanques, mas sim como estados performáticos que ensejam uma organicidade e uma metacomunicação – ou a consciência de que no ato de performatizar está 56 contida a própria dinâmica da natureza performática, como um pacto que leva em consideração jogo e fantasia. Estamos, aqui, tratando da noção de performance. As performances ao vivo, os videoclipes, os shows musicais, as performances íntimas dos fãs nos quartos, nos vídeos de celulares que dispõem na internet seriam um ponto de partida para o que podemos chamar de estilo de vida vinculado a uma lógica pop. Como forma de posicionamento de um artista no mercado da música, o videoclipe se impõe como uma extensão de um tempo de lazer do indivíduo e modela, com isso, apontamentos e pontos de vista dentro de uma vivência na cultura pop. Performances ao vivo, clipes e shows fornecem material simbólico para que indivíduos forjem identidades e modelem comportamentos sociais extensivos aos propostos pelas instâncias da indústria musical. Os clipes seriam, desde a sua gênese, nos anos 80, um dos instrumentais de ensinamento de uma vivência pop, revelando uma maneira particular de encarar a vida a partir da relação deliberada entre a vida real e os produtos midiáticos. Videoclipes, com suas narrativas e imagens disseminadas, fornecem símbolos, mitos e recursos que ajudam a construir uma cultura comum para a maioria dos indivíduos em muitas regiões do mundo, de forma transnacional e globalizante. As performances da música pop acionam um senso de pertencimento transnacional que se alinha à própria perspectiva que as indústrias da cultura operam: a de que há uma espécie de grande comunidade global que, a despeito dos aspectos locais e da valorização de questões regionais, aponta para normas distintivas e de valores que estão 57 articuladas a idéias ideias ligadas ao cosmopolitismo, à urbanização, à cultura noturna. A constituição da música pop traz à tona, problemáticas em torno da Cultura Pop: matrizes expressivas, atravessamentos estéticos, lógicas de produção e consumo. Aponta-se como oportuno o debate em torno da constituição de valores na música pop: o questionamento do que se constitui como “baixo valor estético” (para quem? A partir de que parâmetro?), a constituição do cânone na música pop (mecanismos de consagração, distinção, empatia, cristalização), entraves valorativos nas relações possíveis entre o rock e o pop e as lógicas valorativas dos fãs. Postula-se como percurso de estudos sobre a música pop, o foco em torno da performance: seja de artistas emblemáticos do pop e suas retóricas, corporalidades, encenações. Toma-se o palco de um espetáculo pop como extensão e problematização da biografia dos artistas musicais. A vida é palco, o palco é vida. Estende-se, portanto, para o reconhecimento de que o ordinário é pop. “Quando se coloca o fone de ouvido e vai-se caminhando pela cidade, a vida vira um videoclipe”, nos diz a escritora Bianca Ramoneda. O cotidiano é inventado, ocupado por devires, imagens que se constituem como potentes. Aponta-se aqui as territorialidades da música pop como geopolíticas da indústria e dos circuitos de produção e consumo; os espaços deslizantes da cultura da noite, as geografias do desejo de festas e as inúmeras apropriações periféricas do pop: o brega, o funk, o kuduro, o tecnobrega, num diálogo cosmopolita com acentos locais. Pensar a música pop significa, antes de tudo, debater: indústrias, mercados e estéticas de pro- 58 dutos da música pop; matrizes históricas da música pop e da cultura do entretenimento; corpo, performance e sexualidade em espaços musicais; sociabilidade, lazer e entretenimento no tecido urbano; jornalismo cultural, crítica e valor; itinerários midiáticos e circulação de produtos culturais e as implicações da tecnologia na cultura do entretenimento. Situa-se, portanto, a música pop como foco possível para debater a comunicação e a cultura contemporâneas em dinâmicas globalizantes. Cuba pop: entre territorialidades e performances Os sistemas midiáticos da música e da cultura pop descortinam o fascínio que alguns lugares possuem no imaginário global. A música pop nos lega a poética em torno de espaços, cidades e contextos que parecem traduzir o senso cosmopolita. Embora diante de toda presença que a cultura dos Estados Unidos4 tem na América Latina e no mundo, através de canções, álbuns fonográficos, artistas, filmes e seriados de televisão, proponho um movimento outro: o entendimento da centralidade de Cuba no imaginário da cultura pop, a partir do debate em tor4 Percebamos o quanto a cidade de Nova York aciona um imaginário permeado pela Cultura Pop. Seja em espaços excessivamente fotografados e documentados como a Times Square, num certo senso de estar no “centro do mundo” ou mesmo de estar em locais que já foram excessivamente filmados e exibidos nos cinemas ou na televisão. O imaginário das cidades pop (mencionei Nova York, mas também podemos pensar em Londres, Paris, Los Angeles, Rio de Janeiro, entre outras) parece nos convocar para uma certa territorialidade comum, uma espécie de lugar que gostaríamos de estar em tensão com o local em que, verdadeiramente, estamos, que vemos em filmes, seriados, programas de TV, etc. Desta geografia real e difundida midiaticamente também nasce o anseio por lugares que, de fato, não existem, mas são simulacros deste desejo de pertencimento. 59 no da importância dos ícones da Revolução Cubana e sua disseminação mundo afora como crítica ao capitalismo e mesmo da imagem de Cuba como importante lugar para o pensamento das esquerdas5 no mundo. A perspectiva é reconhecer como Cuba integra o imaginário pop global, a partir de sua história na América Latina, contexto de revolução e da singularidade do país na geopolítica mundial. Pensar as territorialidades do pop significa reconhecer zonas de fricção entre espaços reais e imaginários, entre construções ligadas a poéticas de artistas, músicos e sua circulação através dos sistemas de mídia, das indústrias da televisão, da música, do cinema. Entre aquilo que se vive e como é imaginado pelos artistas. A territorialidade da música pop parece também acionar lugares distintivos em que noções como exotismo e diferença funcionam como eficientes chaves de fruição. Os clichês aparecem como uma forma tanto de reduzir a complexidade das identidades territorializadas mas também como potência comunicativa, capaz de engajar fruidores mundo afora. Não à toa, é possível pensar o fascínio que a indústria fonográfica tem por alguns países: a Suécia dos grupos Abba, Ace of Base; a relação dos países nórdicos com o heavy metal; a emergência midiática da pequena ilha caribenha de Barbados, a partir do sucesso global da can5 “Esquerda é um conjunto de teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos 150 anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais, políticas e culturais que ele gera e que assim procederam na crença da possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do efetivo exercício da liberdade. A essa sociedade alternativa foi dado o nome genérico de ‘socialismo’” (Santos, 2016, p. 74). 60 tora pop Rihanna, além da inserção de Trinidad e Tobago no mapa afetivo e midiático em função também da rapper Nicki Minaj, entre outros exemplos. Desenha-se uma geopolítica da música incorporada pela indústria da música como um valor na maneira de conduzir afetos musicais. No caso de Cuba, diante de toda riqueza musical e popularidade que o país sempre gozou, é importante pontuar a importância do Buena Vista Social Club na formação de um senso midiático global, uma vez que se trata do álbum fonográfico de música cubana de maior sucesso comercial, como aponta Neustadt (2002), tendo vendido mais de 10 milhões de exemplares ao redor do mundo. Contextualizando: Buena Vista Social Club era um clube de dança e atividades musicais de Havana, onde os músicos se encontravam e tocavam na década de 1940, entre eles, Manuel “Puntillita” Licea, Compay Segundo, Rubén González, Ibrahim Ferrer, Pío Leyva, Anga Díaz e Omara Portuondo. Ao longo dos anos, novos membros entraram no grupo, formando uma espécie de “time perfeito” de músicos cubanos. O Buena Vista encerrou as atividades na década de 1950 e, já na década de 1990, aproximadamente 40 anos após o fechamento do clube, inspirou uma gravação do músico cubano Juan de Marcos González em parceria com o guitarrista americano Ry Cooder com os músicos tradicionais. O disco, chamado Buena Vista Social Club, tornou-se um sucesso internacional e fez com que o diretor de cinema alemão Wim Wenders filmasse a apresentação do grupo na Holanda, e uma segunda apresentação no famoso Carnegie Hall em Nova York, transformando num documentário, acompanhado de entrevistas feitas em Havana com os músicos. O filme 61 chamado “Buena Vista Social Club” acabou sendo aclamado pela crítica, tendo sido indicado ao Oscar na categoria Melhor Documentário e ganhando o prêmio de Melhor documentário no European Film Awards. No artigo “Buena Vista Social Club versus La Charanga Habanera: The Politics of Cuban Rhythm”, Robert Neustadt debate a construção da ideia de “música cubana” a partir de dois olhares: um externo, digamos, do mundo e do mercado de música e mídia, sobre a música cubana e outro, interno, ligado ao consumo de música pelos próprios cubanos e viventes na ilha. Para evidenciar que a noção de “música cubana”, como qualquer rotulação musical, é profundamente tensiva e sempre evocando entradas e saídas dos contextos de produção e circulação, o autor faz um recorte comparativo em torno dos álbuns que ele aponta como comercialmente mais importantes para a música cubana no ano de 1997: “Buena Vista Social Club” e “Tremendo Delírio”6. A partir das implicações políticas e culturais do Buena Vista Social Club como um fenômeno, compara e contrasta as questões levantadas com o álbum mais vendido do mesmo ano em Cuba, “Tremendo Delirio” pelo grupo La Charanga Habanera. Embora “Buena Vista Social Club” e “La Charanga Habanera” tenham sido gravados no mesmo estúdio da EGREM, em Havana, no ano 6 Uma capa reeditada do CD “Tremendo Delírio” tem uma bandeira cubana e as palavras “Nº 1 en Cuba”. Neustadt não traz números de vendas do álbum uma vez que trazer à tona números de consumo no País são problemáticos. Embora não esteja claro quanto CDs vendeu “Tremendo Delirio” em Cuba, eles eram e são extremamente populares, são tocadas no rádio e muitos cubanos têm cassetes do álbum. O produtor David Calzado menciona que La Charanga Habanera ganhou uma pesquisa para a banda mais popular na ilha por 15.000 votos no ano de 1997. 62 de 1996, trariam inscrições estéticas e mercadológicas que permitiriam visualizar a cristalização de uma imagem de Cuba ancorada pela dimensão plástica do “son”, dos músicos experientes e envelhecidos e também dos carros antigos e das poética nostálgica de Havana (por parte de Buena Vista) e outra sonoridade fortemente ancorada na timba e na jovialidade dos músicos (por parte de La Charanga Habanera). As letras do “Buena Vista Social Club” englobam os temas do amor e do amor perdido, a vida no campo, a espiritualidade e o trabalho. Já “Tremendo Delírio” estaria filiado à sonoridade mais jovem e eletrizante, uma vez que os músicos de La Charanga Habanera tocam um estilo de música chamada “timba”, mistura ritmos afrocubanos tradicionais com hip hop moderno e rap – sonoridade que antecede, por exemplo, o reguetón no contexto cubano. O álbum representa a identidade dos jovens cubanos contemporâneos, em que, ao mesmo tempo, critica questões sociais e políticas ao som de batidas dançantes. “Em 1997, ano de maior exposição do grupo na mídia cubana, La Charanga Habanera tocou num programa de TV em que os músicos falaram abertamente sobre maconha” (Neustadt, 2002, p. 140). Esta diferença geracional entre musicalidades é apontada pelo autor, mas, segundo ele, há uma questão que queremos destacar como um de seus apontamentos: a construção da imagem do álbum fonográfico – uma vez que estamos tratando de observar fenômenos pela lente midiática – acionando reconhecer o “apelo” global da imagética usada no material do Buena Vista Social Club. O contraste entre os dois álbuns é imediatamente visível ao olhar para as capas dos álbuns fonográficos. Vamos focar no Buena Vista Social Club 63 porque é a partir deste conjunto de imagens que conectaremos as questões com os sentidos globais no olhar para Cuba. A capa/contracapa exibe fotografias em tons desbotados com apenas traços de cores, paletas cromáticas sóbrias, entre tons pastéis e pretos. Na capa, um homem que parece ser Ibrahim Ferrer caminha por uma antiga rua do Havana. A contra-capa apresenta um automóvel enferrujado dos anos 1950. O encarte que acompanha o CD (Figura 1) mostra a mesma fotografia, mas com um ângulo que permite ao espectador ver outro veículo estacionado na rua. Trata-se de um “tempo em preto-e-branco”, nostálgico e histórico. A arte do álbum Buena Vista contribui para a formação de um discurso imagético sobre Cuba uma vez que a fotografia cria a representação visual de um local que pode ou não ser exato dentro de um contexto mais amplo. Ao se concentrar especificamente nos velhos carros americanos, as fotografias do álbum congelam a imagem de Cuba pré-Revolucionária, dando um efeito geral de uma imagem retrô como um lugar exótico onde o passado permanece como parte do presente. (Neustadt, 2002, p. 147) A imagética desta Cuba “parada no tempo” que o mundo consome através da mídia, seja em campanhas de agências de turismo ou do próprio mercado de entretenimento global também atende a uma lógica de fetichização de uma localidade, acentuando clichês e imagens “prontas”. As territorialidades presentes na cultura pop seriam, portanto, atravessadas de clichês que tentam negociar um comum-global e um 64 FIGURA 1. Capa do álbum “Buena Vista Social Club” (1997) 65 singular-local que são agenciados mutuamente, em função de uma dimensão de mercado. É do encontro entre esta noção de pertencimento global e cosmopolita, com as marcas específicas locais e ainda diante das próprias filigranas dos sujeitos que emergem o que podemos chamar de sensibilidade pop; algo que conecta indivíduos do mundo inteiro seja sob a retranca daqueles que se fantasiam de personagens, reencenam artistas; ou mesmo em função da cultura dos fãs, da ideia de uma comunidade específica que pode ampliar as noções de territorialidades, línguas diferentes, diante de uma dimensão simbólica ancorada no midiático. A imagem clichê de uma Cuba nostálgica é reencenada com disposições em torno da modernidade em um conjunto de publicações que artistas da música pop que visitam a ilha. São variadas as celebridades que chegam ao país socialista, em busca de ambientes nostálgicos para ensaios fotográficos, parcerias com músicos e reposicionamento dentro de um mercado global. Em novembro de 2015, a cantora pop Rihanna foi capa de uma das mais importantes revistas de cultura do entretenimento dos Estados Unidos, a Vanity Fair, num ensaio fotográfico criado pela fotógrafa Anne Leibovitz todo realizado em Havana (Figura 2). A conexão entre Rihanna e a capital de Cuba se dá em função da origem dela, uma vez que a cantora nasceu em Bridgetown (Barbados), outra ilha caribenha, mas também em função do caráter do uso dos cenários de Havana e de toda tradição revolucionária da ilha como sustentáculo de uma ideia de “consciência política” e “status” para a artista. 66 FIGURA 2. Capa Vanity Fair: “Rihanna – Our Woman in Havana” (2015) 67 Percebe-se que a imagem da cantora na capa segue trazendo à tona a nostalgia, encantamento com o passado e com uma espécie de reconhecimento da singularidade territorial e política de Cuba no mundo. Encostada num automóvel de 1956, a cantora desvela, na entrevista publicada na revista, que chegou a uma fase mais “madura”, em que “entende seu lugar no mundo”7. Esta relação com “maturidade” e “consciência” pode ser vista como a conexão com o lugar de Cuba no contexto geopolítico mundial, apontando para a singularidade do país e sua história e tradição. O fenômeno de transformação de um lugar, ideia ou identidade cultural em “cenário” é apontado pelo teórico Frederic Jameson (1984) como sintoma do que o autor chama de capitalismo tardio, ou seja, um conjunto de estilos emergentes na arquitetura, pintura, literatura, cinema e teoria acadêmica que parecem colocar toda produção do mundo dentro de padrões a serviço do capital. Tanto os estilos seriam explicitamente ligados ao capitalismo tardio através da “comoditização”8 da “produção estética”, como “a expressão interna e superestrutural de uma nova onda de dominação militar e econômica americana através do mundo”, e como um análogo da “grande rede comunicacional global multinacional e descentralizada na qual nos achamos presos” (Jameson, 1984, p. 44). A crítica 7 Para leitura da íntegra da reportagem: https://www.vanityfair.com/hollywood /2015/10/rihanna-cover-cuba-annie-leibovitz. 8 O termo “comoditização” vem da economia de mercado e designa a transformação de disposições imateriais (como lugares, identidades culturais, gastronomia, etc) em “commodity” ou seja, em algo voltado para o lucro, com endereçamento específico para públicos globais. 68 de Jameson nos coloca diante dos impasses da globalização. Globalizar significa invariavelmente negociar com padrões estéticos e ideológicos do capitalismo tardio? Haveria formas de resistência e de possibilidades de globalização dentro de outras premissas expressivas dentro do socialismo? O lugar de Cuba no mundo, os clichês sobre o país e as diversas leituras possíveis das territorialidades cubanas nos dirigem a refletir sobre o impacto do colonialismo e do capitalismo modernos na construção de epistemologias dominantes, ou seja, precisamos refletir sobre o que a singularidade de Cuba como país socialista nos lega a pensar os caminhos pelos quais a cultura pop e, mais detidamente, a música pop, recolocam os olhares sobre processos e vivências globais no contexto latino-americano. Epistemologias do Sul: outras globalizações Uma pesquisa sobre cultura pop e música pop na América Latina demanda uma virada epistemológica. Não olhar os fenômenos como dotados do princípio de achatamento das questões locais, do apagamento das manifestações culturais, nem tampouco a sobreposição de uma lógica global sobre uma cultura local. Mas observar os fenômenos nas suas tensões, nos seus dissensos e nos seus “mal entendidos” para que possamos entender as formações culturais e epistemológicas que nos guiam a analisar as ciências sociais pela premissa de autores europeus e norte-americanos. A pesquisa sobre música pop em Cuba se ancora, metodologicamente, no que 69 Boaventura de Souza Santos (2010) chama de Epistemologias do Sul9, ou seja, o conjunto de intervenções epistemológicas que denuncia a supressão de saberes levadas a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam as saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo horizontal entre conhecimentos a partir da ecologia de saberes. (Santos, 2010, p. 7) Por “epistemologias dominantes”, o autor considera uma epistemologia contextual que assenta numa dupla diferença: a diferença de um mundo moderno-cristão-ocidental e a diferença política do colonialismo e do capitalismo. Sobre o capitalismo global, Boaventura de Souza Santos reconhece que “mais do que um modo de produção, é hoje um regime cultural e civilizacional, que estende cada vez mais seus tentáculos a domínios que dificilmente se concebem como capitalistas, 9 “Entende-se por epistemologia toda noção ou ideia, refletida ou não, sobre as condições do que conta como conhecimento válido. É por via do conhecimento válido que uma dada experiência social torna-se intencional e inteligível. Não há, pois, conhecimento sem práticas e atores sociais”. (Santos, 2010, p. 9) O autor chama de Sul uma concepção metafórica em que o Sul geográfico (países do Hemisfério Sul: América Latina, África, Sudeste Asiático e Oceania) ou seja, países que foram submetidos ao colonialismo europeu e que, com exceções, como por exemplo, Austrália e Nova Zelândia, não atingiram nível de desenvolvimento econômico semelhante ao Norte global (Europa e América do Norte). A sobreposição não é total porque, no interior do Norte geográfico, classes e grupos sociais muitos vastos (mulheres, trabalhadores, indígenas, afrodescendentes, muçulmanos, migrantes) foram sujeitos à dominação capitalista e colonial e, por outro lado, no interior do Sul geográfico, sempre houve “pequenas Europas”, elites locais que beneficiaram da dominação capitalista e colonial. 70 da família à religião, da gestão do tempo à capacidade de concentração” (Santos, 2010, p. 11). A centralidade do capitalismo só foi possível, de acordo com o autor, em função de um conjunto de práticas históricas chamadas colonialismo, que legou os povos colonizados a violências simbólicas das mais variadas matizes, gerando assimetrias de saberes, lugares hegemônicos de construção de discursos e o apagamento de linhas jurídicas para as elites. No domínio do conhecimento, segue Boaventura de Souza Santos, a apropriação e a violência do sistema colonial se materializou no uso de habitantes locais como guias, de mitos e cerimônias locais como instrumentos de conversão, além da pilhagem de conhecimentos indígenas sobre biodiversidade, “enquanto a violência é exercida através da proibição do uso das línguas próprias em espaços públicos, da adoção forçada de nomes cristãos, da conversão e destruição de símbolos e lugares de culto e de todas as formas de discriminação cultural e racial” (Santos, 2010, p. 30). Para o autor, a injustiça social histórica e global está intimamente ligada à injustiça cognitiva global. Como pensar portanto sentidos globais dentro de sistemas do capitalismo e do colonialismo? Através do debate sobre cosmopolitismo. Apontamos que a discussão sobre cosmopolitismo deve ser feita a partir de duas frentes. Numa revisão dos princípios basilares que legaram a este conceito uma centralidade dentro de valores globais compartilhados por sociedades capitalistas, e também nas formas de resistência, subversão e ressignificação que países do Sul global fazem deste princípio. É neste direcionamento que enxergamos o consumo de música pop em Cuba através da lente do cosmo- 71 politismo subalterno, uma vez que se trata do debate sobre maneiras muito particulares de construírem sensos globais questionando o status do capitalismo e das noções de modernidades atreladas a perspectivas neoliberais. Antes, precisamos entender o que chamamos de cosmopolitismo, ou seja, o princípio que significou o universalismo, tolerância, patriotismo, cidadania global, comunidade global e culturas globais. O que ocorre, mais frequentemente, nos contextos em que este conceito é aplicado (seja como instrumento de uma análise de conjuntura ou como discussão de lutas políticas) é que “a incondicional natureza inclusiva de sua formação abstrata tem vindo a ser utilizada para prosseguir interesses excludentes de grupos sociais específicos” (Santos, 2010, p. 41). De alguma forma, o cosmopolitismo tem sido privilégio daqueles que podem tê-lo. Estamos, portanto, tratando de aspirações tidas como globais, suas contextualizações e singularidades de interpretações diante dos fenômenos. Como, entretanto, contextos alijados de qualquer disposição econômica adentram à esfera do cosmopolitismo? É diante deste impasse que Santos vai definir o “cosmopolitismo subalterno” a partir de uma “sociologia da emergência” ou seja “a amplificação simbólica de sinais, pistas e tendências latentes que, embora dispersas, embrionárias e fragmentadas, apontam para novas constelações de sentidos tanto no que diz respeito à compreensão como à transformação do mundo” (Santos, 2010, p. 42). O estudo de fenômenos globais como a música pop em Cuba acionaria pensar a aproximação entre “cosmopolitismo subalterno” da noção de “cosmopolitismo das classes trabalhadoras” (Werbner, 72 1999) na medida em que se trata de instaurar um debate a partir do profundo sentido de incompletude, defendendo que a compreensão do mundo passa pela lógica ocidental e que, por isso, nosso próprio entendimento do que é globalização passa pelo limite epistemológico da nossa trajetória como sujeitos ocidentais. Por isso, quanto mais análises e projetos de pesquisa que visem acentuar as metodologias híbridas, com perspectivas a revisar o legado dos cânones porém não se limitar a eles, mais possibilidades de pensamentos complexos vamos deter. Entende-se que a fruição de música pop em Cuba passa pelo que se pode chamar de “globalização contra-hegemônica”, ou seja, o vasto conjunto de redes, iniciativas, organizações e movimentos que lutam contra “a exclusão econômica, social, política e cultural gerada pela mais recente encarnação do capitalismo global, conhecido como globalização neoliberal” (Santos, 2010, p. 42). Há claramente riscos na opção pelo debate em torno do cosmopolitismo. Entre eles, o de se colocar na posição de quem teria o poder de definir quem é provinciano a partir de relações rígidas entre cosmopolitismo e provincianismo, localismo ou nacionalismo, que pode não ser rentável devido a complexas teias entre o global e o local. Embora não seja o caso de conceber o cosmopolita como “aquele que não pertence a lugar nenhum” ou aquele que “pertence a todos os lugares”, trata-se de perceber os limites de uma crítica de esquerda que classifica o cosmopolita como alguém marcado pelo “distanciamento irresponsável e privilegiado” (Robbins, 1998, p. 4). O conceito de cosmopolitismo passou a incluir tanto as experiências trazidas pelos meios de comunicação de massa quan- 73 to as decorrentes de fluxos migratórios de trabalhadores entre continentes. Como atesta Denilson Lopes (2017), a ideia de cosmopolitismo pode ser usada para propor uma reação tanto aos excessos do provincianismo local, regional ou nacional quanto à experiência de desterramento, desenraizamento, de ser estrangeiro onde quer que se esteja, de não pertencer a nenhum lugar. O cosmopolitismo é uma outra forma de pertencimento que faz do mundo uma casa, um lar concretamente construído a partir de múltiplos vínculos. (Lopes, 2017, p. 137) A pergunta ressoa: quem precisa do cosmopolitismo? Ou, em outra medida, Cuba precisa do cosmopolitismo? Mais do que apostarmos em respostas políticas, é preciso formular questões culturais que dialoguem com o político. A questão da internacionalização política sempre esteve na pauta da trajetória de Cuba como Nação, nos vínculos com a União Soviética, com os países do bloco Socialista, com a China, Brasil, Venezuela, México, entre inúmeros outros países. Pensar a internacionalização de Cuba já integra um longo e profícuo debate nas áreas de Ciências Políticas e Sociais. No entanto, ainda há lacunas na discussão em torno da internacionalização da cultura de Cuba a partir de modelos que tentem entender a complexidade dos processos externos e internos. As lógicas do capitalismo que cristalizam a ideia de “atraso”, “não-modernidade” para o País e também os princípios tensivos internos, das políticas culturais e práticas culturais nas diversas cidades cubanas. Cuba parece excluída do circuito de consumo e en- 74 tretenimento internacional, mas esta exclusão não oblitera o fato de que uma parcela significativa da população desenvolva formas particulares de fruição, consumo e apropriação de produtos da cultura pop. O “cosmopolitismo subalterno” em Cuba seria uma variante de oposição. Da mesma forma que a globalização neoliberal não reconhece quaisquer formas alternativas de globalização, o “cosmopolitismo subalterno” é uma forma cultural de oposição que se conecta ao princípio das políticas de “globalização contra-hegemônica”. Qual seria, então, a resposta cubana à globalização neoliberal? Apostamos na perspectiva de que, quando de coloca fora do mercado de bens do capitalismo, as práticas de consumo na ilha encenam outras formas de adentrar ao escopo global, sobretudo através da pirataria. Piratear músicas, filmes, séries de TV, através do download de arquivos, pode ser lido como uma forma de responder aos “ataques” da cultura do consumo e do capital, no que comumente se chamam de “guerras culturais”. Piratear marcas famosas, filmes, roupas, integram a máxima do entendimento das formas de lidar com o consumo transnacional de forma singular. A reflexão sobre a pirataria como resistência e política dentro dos ditames do capitalismo é vasta. Hakim Bey (2004) credita a viabilidade da pirataria a um período em que o território não é totalmente conhecido, permitindo espaços temporários de atuação e esconderijos, características comuns tanto no tempo das navegações quanto na fluidez e desterritorialização do ciberespaço. Bey (2004) trabalha sob a perspectiva da “cartografia do controle”, recorrendo ao uso primário da expressão pirataria, das navegações eu- 75 ropeias cumprirem a função de mapear todos os territórios do planeta, ilhas desconhecidas eram utilizadas por piratas e corsários como lugares de permissividade para o desenvolvimento de uma cultura alheia aos controles das crenças do Ocidente. Esses lugares eram seguros por apenas um curto período, quando os piratas voltavam ao mar desconhecido, retomavam as atividades de saque e buscavam abrigo em um novo lugar, determinando assim o nomadismo do grupo. À época das grandes navegações, mais do que a simples ideia de saque (roubo), os piratas construíram uma cultura própria calcada em princípios de liberdade capazes de afrontar a moral estabelecida no velho continente. Bey (2004) explica que no século XVIII, piratas haviam montado uma “rede de informações” espalhada pelo globo e que funcionava muito bem. Tal rede “era formada por ilhas, esconderijos remotos onde os navios podiam ser abastecidos com água e comida, e os resultados das pilhagens eram trocados por artigos de luxo e de necessidade” (Bey, 2004, p. 11). Em seu estudo “Piratas do Ciberespaço”, Cândida Nobre (2010) atesta que a expressão “pirataria” começa a ser usada fora de seu sentido original quando há a necessidade de tornar-se “usuário” e produtor de conteúdo dos meios de comunicação. “Com a urgência de interferir na produção cultural na década de 1960, na Inglaterra, onde as estações radiofônicas eram exclusivamente estatais, um grupo de jovens britânicos começou a transmitir a partir de uma radiodifusora instalada em um navio na costa. A embarcação não poderia ser interceptada pelo governo inglês, pois se encontrava além do domínio das milhas marítimas inglesas” (Pigatti, 2003 apud Nobre, 76 2010). Na internet, a longa tradição do termo “pirataria” está atrelada também a princípios norteadores de formas outras de acesso a bens. A pirataria, portanto, é percebida como um ato de liberdade e em nenhum momento apela-se à questão da infração às Leis. A justificativa para a utilização do rótulo “pirata” reside no fato de que eles entendem o termo como portador de uma cultura livre e que, similar à figura do anti-herói, eram os responsáveis por fazer circular as riquezas diante da quebra do monopólio colônia-metrópole. (Nobre, 2010, p. 6) Nobre (2010) sistematiza o consumo através da pirataria a partir da perspectiva do consumo. É possível refletir sobre: a) O indivíduo que vende: estes se inserem nas descrições da pirataria do comércio informal e da exclusividade no conteúdo, bem como em alguns casos de execução pública; b) O indivíduo que disponibiliza: refere-se aqueles que se encaixam no perfil de indexação de arquivos, disponibilização via streaming e execução pública; c) O indivíduo criativo: corresponde ao usuário ativo nos processos de elaboração de conteúdos e pode ser encontrado nas formas de pirataria explicitadas em processos de remixagem e difusão de conteúdo próprio; d) O indivíduo que consome: este apresenta uma maior complexidade na sua dinâmica. Pode ser compreen- 77 dido por meio das formas de pirataria descritas na execução particular, na transferência de suporte e no “leitor”. Apresentam ainda distintas motivações para a sua ação, podendo adquirir um produto pirata 1) por questões financeiras; 2) por questões ideológicas; 3) por questão de preço: pode tanto ser por problemas financeiros quanto por compartilhar da mesma motivação do vendedor, ou seja, o lucro, a ideia de vantagem por estar adquirindo um produto mais barato; 4) dificuldades em encontrar a obra original (Nobre, 2010, p. 12). Nesta perspectiva aqui apresentada o consumo de música pop em Cuba pode ser pensado a partir de movimentos epistemológicos que conectam a ideia das especificidades do Sul global, ao mesmo tempo que encena a singularidade política da ilha na América Latina. É portanto o resultado de jogos de forças que colocam em crise a própria dimensão da globalização a partir do princípio neoliberal. Na medida em que se constitui naquilo que Boaventura de Souza Santos chama de “globalização contra-hegemônica”, tensionando as indústrias da cultura, a forma de consumo de música pop é um desafio às epistemologias ocidentais mais tradicionais, que encaram o modelo desenvolvimentista e capitalista como central na geopolítica mundial. A partir das práticas de pirataria, se reconhece um “cosmopolitismo subalterno” que coloca em crise 78 o grande aparato do capital, fazendo aparecer as entranhas daquilo que se costuma falar de maneira tão apressada sobre globalização. A partir do recorte histórico da Revolução Cubana de 1959 e da conexão de Cuba com os países do bloco socialista, desenvolveu-se um singular tipo de globalização em Cuba que não passou pela centralidade dos Estados Unidos e abriu território para outras sensibilidades globais. Música pop socialista e circuitos globais Nenhum país da América Latina procurou escapar da influência simbólica dos Estados Unidos como a Cuba revolucionária. A sustentabilidade deste feito exigiu apoio dos soviéticos e do bloco de países socialistas que formataram um modelo de circulação cultural à parte dos princípios globais norte-americanos10. Dos muitos eventos que levaram Cuba a relações mais estreitas com a União Soviética, a invasão da Baía dos Porcos em 1961 e o embargo comercial, econômico e financeiro dos Estados Unidos contra Cuba em 1962 integram importantes episódios. Para debater a geopolítica da aproximação entre Cuba e União Soviética11, Loss e Pietro (2012) editam o livro “Caviar with Rum: Cuba-USSR and the Post-Soviet 10 Para mais informações: http://g1.globo.com/mundo/noticia/2011/08/uniao-sovietica-ainda-e-parte-do-cotidiano-de-cuba-20-anos-apos-colapso.html. 11 “No ‘calor’ da Guerra Fria, o relacionamento de Cuba com a União Soviética foi um dos temas mais controversos: Cuba buscou a soberania e o fim da hegemonia econômica e cultural dos Estados Unidos. Em grande medida, a União Soviética retirou-se onde os Estados Unidos deixaram, agindo nas esferas política, militar, econômica e artística da ilha por aproximadamente três décadas” (Loss; Prieto, 2012, p. 6). 79 Experience”, coletânea de textos que indicam as particularidades das relações entre os dois países. Uma área que mostra a inegável influência da União Soviética em Cuba é o da educação, cuja amplitude é exemplificada pelo grande número de cubanos que estudaram e treinaram na União Soviética em diferentes profissões. Em meados da década de 1980, 8 mil cubanos estudavam em universidades soviéticas todos os anos (Bain, 2012, p. 34). As experiências dos cubanos no exterior no bloco soviético encontraram caminho para vários blogs literários e na ficção de autores como Antonio Armenteros, Antonio Álvarez Gil, Emilio García Montiel e Jesús Díaz, entre outros. O grau em que os métodos e materiais pedagógicos introduzidos durante o período soviético dentro de numerosas disciplinas permanecem em Cuba. Um desses campos que está maduro para a crítica de arte é o balé, onde, mesmo antes da Revolução Cubana, professores e dançarinos soviéticos colaboraram com os cubanos, incluindo a prima donna Alicia Alonso que estudou na União Soviética. Ainda no campo da cultura, os “muñequitos rusos” (bonequinhos russos), desenhos animados importados da União Soviética e exibidos nos sistemas midiáticos cubanos foi uma “febre pop” para os que nasceram entre 1965 e 1980. Aurora Jácome (2010) (nascida em 1974), a criadora do blog popular <muñequitosrusos. blogspot.com>, discute o que os muñequitos significam para ela e para seus contemporâneos, uma conexão com o mundo global e exterior. Com todas estas áreas de atuação, impossível não pensar também na questão da música pop dos países socialistas no contexto cubano. 80 Durante a década de 1970, enquanto o mundo se encantava com a diva da disco music Diana Ross, com a garota new wave Debbie Harry ou com a excentricidade de Kate Bush, na ilha de Cuba, era a cantora russa Alla Pugacheva que fazia sucesso com o hit “Million Alyh Roz” (“Million Roses”, cantado em russo) cujo vídeo era exibido constantemente no canal de televisão Cubavisión. Pugacheva era a principal figura de um momento singular na história da música pop em Cuba, quando, a partir da década de 1970, tentou-se instaurar um circuito cosmopolita musical dos países socialistas, através da circulação de artistas da União Soviética, Bulgária, Polônia, Tchecoslováquia, República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) e Hungria em emissoras de rádio e televisão cubanas. O passado de cantores russos em Cuba é revivido a partir de uma perspectiva nostálgica. Num artigo intitulado “Quem se Lembra de Alla Pugacheva?”12, o jornalista Yuris Nórido (2016) lembra do dia que um amigo trouxe, para assistirem juntos, um vídeo do Pugachova de uma apresentação ao vivo de 1983. “Imagine, eu tinha apenas cinco anos de idade. Mas eu reconheci o vídeo, evoca minha infância na frente da TV Krim 218 e me fez querer comer compota de maçã com creme de queijo. Porque há trinta anos, quando minha mãe estava limpando a casa aos sábados, eu me sentava na frente da TV com um pote de compota para vê-la” (Nórido, 2016, p. 1). Outro dia, contei a um amigo mexicano que, na cena latino-americana, dificilmente existe um país 12 Para ler a íntegra do texto: http://oncubamagazine.com/columnas/quien-se-acuerda-de-alla-pugachova/. 81 como o nosso com influências tão diferentes. Para ele, por exemplo, a cultura russa é algo quase exótico, além dos grandes clássicos da literatura, música e balé. Mas minha geração ficou marcada pelo diálogo fluido e enriquecedor entre duas tradições (russa e latina) que, à primeira vista, teriam pouco a influenciar. Meu amigo agradeceu que muitos dos meus sonhos de infância fossem colocados em aldeias nevadas, em cabanas de troncos. Foi a visualidade de muitos dos livros de meus filhos, além das revistas Misha, filmes russos e bonecas, que na época me divertiam menos do que os americanos, mas ao longo dos anos percebi que eles eram muito mais bonitos , que cultivou uma sensibilidade particular. (Nórido, 2016, p. 1) A “onda cultural soviética” em Cuba coincide com o que Aviva Chomsky (2016) chama de “institucionalização do modelo soviético” na ilha caribenha, quando a Revolução Cubana, já estabelecida em 1959, tinha sido sintetizada num modo de distribuição de bens, apontando para um percurso de desenvolvimento que aproximava as políticas de Cuba às da União Soviética. Diante do embargo dos Estados Unidos, a “sovietização” da vida no País passou pela implantação de um modelo de Estado, de disposições militares, pela incorporação da língua russa no currículo das escolas e até nos sistemas midiáticos cubanos, com a exibição de desenhos animados russos, filmes e artistas musicais de países socialistas, além de videoclipes e até noticiários destes países. A geopolítica cubana de aproximação da União Soviética acarretou numa incorporação de diretrizes estéticas do Realismo Socialismo, que foi, na 82 prática, uma política de Estado para a estética em todos os campos – desde a literatura até o design, incluindo as manifestações artísticas e culturais (pintura, arquitetura, escultura, música, cinema, teatro). No campo da música, a materialização da formação de um circuito cultural comunista/socialista na União Soviética esteve a cargo da instituição “Concerto Estado Associação da URSS”, criada em 1956 e aprovada pelo Ministério da Cultura soviético em 1971 cuja principal tarefa era realizar turnês de artistas soviéticos no exterior e trazer cantores e artistas do exterior para a União Soviética. O diretor-geral do “Concerto Estado” era Bunin Sergei, que recrutava artistas soviéticos como Alla Pugacheva, Sofia Rotaru, Iosif Kobzon, depois ampliando para cantoras tchecas (as divas Helena Vondráčková e Hana Zagorová), grupos de rock (como o polonês Guitarras Rojas e o húngaro Locomotiv GT) e cantores (como o búlgaro Biser Kirov, cuja canção “Cuba Bulgária”, prestava homenagem à união entre os dois países). O caso de Biser Kirov é emblemático da importância de Cuba como mercado de circulação para cantores e artistas de países socialistas. Criador de uma das primeiras bandas de rock da Bulgária, Kirov construiu sua popularidade na União Soviética (onde chegou a realizar mais de dois mil shows entre os anos 1960 e 1970)13 e foi incorporado como uma das principais atrações do “Concerto Estado Associação da URSS”, que promovia excursões de artistas de música pop entre países socialistas. O ano de 1969 é central para sua disseminação em 13 Para mais informações: https://zoevaldes.net/2011/06/26/biser-kirov-cantante-bulgaro-famoso-en-cuba-en-los-anos-60-y-70/. 83 Cuba: foi quando sua música foi transmitida nas estações de rádio cubanas, e Bíser Kírov passou a produzir algumas músicas em espanhol, com letras com forte apelo popular. Foi através dele com suas versões de canções pop do grupo Abba em búlgaro e também em russo que Kirov introduziu também o cancioneiro do grupo sueco de forte apelo popular, em canções como “Fernando” e “Mamma Mia”, na ilha socialista. Na década de 1970, ele viajou várias vezes para Cuba, onde fez shows gratuitos (pagos pelo governo cubano) em Havana e outras cidades da ilha. Foi neste período que lançou a faixa “Cuba Bulgária”, com direito a videoclipe exibido pelos sistemas televisivos cubanos, que conta com dançarinas típicas búlgaras, cantores negros cubanos, carros antigos e dança de rua, e Kirov cantando em espanhol: “Cuba Bulgária significa amizade”. Ainda no videoclipe, imagens de cidades búlgaras são editadas junto a outras de cidades cubanas, propondo uma narrativa de aproximação e similaridades. Ainda na letra da música, há menções a “estrelas vermelhas” e que “juntos, chegaremos ao futuro”. Biser Kirov depois lançou uma canção chamada “A Dream of Cuba” (Um Sonho de Cuba”) sempre construindo a ilha como um lugar imaginário tropical e também socialista, para onde se poderia desfrutar de dias de sol e mar. Estes artistas do bloco soviético participaram, durante mais de vinte anos, ativamente da vida cultura e musical de Cuba, participando de Festivais da Canção Socialista e também de eventos em Varadero e em outras cidades cubanas. Trata-se, portanto, de uma singularidade do cosmopolitismo em Cuba na década de 1970, a partir configuração do Estado 84 na formação de uma cultura pop global que conectava países do bloco socialista. Esta premissa complexifica a noção de que a cultura musical cubana era voltada apenas para os ritmos latinos, acionando refletir sobre outros cosmopolitismos possíveis num contexto de disputas políticas globais. 85 2 Acionamentos geopolíticos num show de música pop em Havana a us a an . Par ” 24 unk ria z, p e ha ar o h n c n or ad nge Sa ente e lab r os “ e o a p a dr o, an r seu e um anh ente s da e L d b p o a st sic ndo se mar ar e 16. u ú j 0 a a 2 t to plic s m onta nte de para ”, tra tre a do m , o n ça rç na rriba ra, e fina er um tá se dan a fi m s o ra ra es “a ica de pa los a h e pa nk e dro n i ô e 6 be e m pu om o an etr Dia ão c s ca bã ular s, Le a el d a s a o c o b it sa car erc une e int ococ músi c o l s l e ra e co tafi o de du o qu ar d S e a qu luçã pes ban rup g A o u . a s elos nk c w do u o b ca da p o sh n a ba a ir r pa , os 86 Major Lazer14, que tem entre os integrantes o produtor musical Diplo – o primeiro concerto em Havana de um artista pop norte americano desde o restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos, em dezembro de 2014. Embora não goste de música eletrônica “pop como esta” (o Major Lazer frequentemente não faz músicas apenas com batidas eletrônicas sem vocais, eles convidam artistas que colocam vozes em suas canções), Leandro não se refuta a ir a um espetáculo musical de um artista que, deliberadamente, não gosta. “Temos tão poucos shows aqui em Cuba que, quando aparece um, todo mundo vai”, atesta. A observação do punk cubano que vai ao show de música eletrônica no contexto da ilha parece corroborar com o olhar do pesquisador Motti Regev (2013) ao tratar do profundo enraizamento territorial que as expressões da música pop possuem. Um show de música pop estabelece sempre relações com os contextos onde ocorrem. Neste caso em específico, um show desta natureza acontecendo em Havana, necessariamente, vai ocupar uma centralidade sui generis no cotidiano da cidade. Para o espetáculo do Major Lazer, que ocorreu diante da Embaixada dos Estados Unidos em Havana, havia – segundo 14 O Major Lazer é um projeto de “eletronic dance music” (EDM), ou música eletrônica dançante, forma genérica com que a crítica musical se refere a DJs e produtores que ascenderam à condição de estrelas da música após a década de 1990. O maior expoente do grupo é o DJ e produtor norte-americano Diplo, que já realizou parcerias com artistas como Madonna, Justin Bieber, entre outros. Integram também o Major Lazer, o DJ jamaicano Walshy Fire e Jillionaire (com origem também caribenha, na ilha de Trinidad e Tobago). Usamos aqui o Major Lazer como “grupo norte-americano” em função do protagonismo do líder Diplo e pelo sistema produtivo de gravação e circulação que está localizado na Califórnia, na costa oeste dos Estados Unidos. 87 relatos oficiais do jornal governamental cubano Granma – cerca de 400 mil pessoas, muitas não só da capital de Cuba, mas também de outras províncias – evidenciando um fluxo migratório interno que se dá em função de atrativos culturais. Havana é uma cidade com cerca de 2 milhões de habitantes (dados de 2017), com imensos bairros residenciais como Miramar e Vedado. O show do Major Lazer ocorreu na Tribuna Antiimperialista José Martí, uma área aberta, no final do Malecón (a mureta que circunda parte litorânea da cidade), formada por um palco construído no ano 2000 como um monumento às vítimas das injustiças causadas pelos norte-americanos. A Tribuna Antiimperialista também era o local em que os líderes cubanos faziam discursos contra os Estados Unidos, reforçando os ideais do socialismo e da permanência de Cuba como nação independente no contexto caribenho. Por trás do palco da tribuna, há mastros de bandeiras que eram usados para bloquear a visão do prédio governamental americano. As bandeiras foram retiradas em 2009, liberando a vista do edifício, que passou a sediar em 2015, a Embaixada dos Estados Unidos na ilha. Leandro desce pela Calle 23, um dos eixos do entretenimento da capital cubana, passa pelos icônicos cinemas Riviera, Chaplin, pela frente da Praça da Coppelia – é domingo e as filas dão volta nos quarteirões com famílias disputando saborear helados (sorvetes) como faziam seus pais e avós. A tradição da Coppelia remete aos carregamentos de sorvete que vinham da extinta União Soviética e faziam a festa dos cubanos sobretudo nos anos 1980. Desde então, o sorvete virou metáfora de sexualidade no filme “Morango e Chocolate”, 88 de amizade, de namoro e de casamento. Na frente da Casa del Perro Caliente, uma lanchonete popular que vende cachorro-quente a menos de 1 CUC, do outro lado da Praça da Coppelia, filas também se delineiam. Aliás, filas são uma espécie de instituição em Havana – principalmente nos ambientes que recebem pagamento em pesos cubanos, os CUPs (a desvalorizada moeda dos moradores da ilha em contrapartida aos CUCs, que são os pesos convertidos, de valor equivalente ao Euro). Enquanto Leandro desce pela Calle 23, inúmeros grupos de jovens cubanos também seguem na mesma direção, empunhando garrafas de rum, “litrões” de refrigerante e cervejas. Chegando próximo ao local do show, a aglomeração se adensa. Policiais não permitem que se passe adiante com garrafas de vidro. Revistam nossos corpos. Passam detectores de metais manuais. Percebo que há muitos cubanos vestidos com acessórios com evocam a cultura americana. Há bonés de times de basquete da NBA (a liga mais importante dos Estados Unidos), camisas com as cores e símbolos da bandeira dos EUA, t-shirts de bandas de rock. Mas há também muitas bandeiras de Cuba, bonés com imagens de Che Guevara, camisas evocando o orgulho pelo esporte da ilha. Começo a delinear, através da moda, uma problemática que, talvez, permeie toda esta pesquisa: de que maneira parte da juventude cubana lida com a cultura pop, marcadamente anglófila e centrada, em grande parte, por valores estadunidenses, ligados ao capitalismo? Esta aparente contradição – ir a um local chamado Tribuna Antiimperialista para assistir a um espetáculo de um grupo de música eletrônica dos Estados Unidos – acentua-se diante da ocupação e da sociabilidade resultantes de jovens cubanos 89 naquele espaço. Um dos marcos da Tribuna Antiimperialista é uma estátua do líder cubano José Martí que carrega uma criança nos braços e aponta para o edifício da Embaixada dos Estados Unidos. Abaixo da estátua, cravado em letras douradas, lê-se o texto atribuído a Simon Bolívar: “Os Estados Unidos, que parecem destinados pela providência a propagar miséria à América em nome da liberdade”. Eu me aproximo da estátua para ler a inscrição e vejo um jovem cubano negro, de boné preto (Figura 3), manuseando um celular amarelo, com a camisa de design geométrico escrita: “New York”. Outro garoto, ao lado, também “aos pés” da estátua do líder José Martí, está com um boné de xadrez com o símbolo NY, da cidade de Nova York. A recusa histórica do líder Simon Bolívar parece problematizada diante dos jovens que estão ali, naquele espaço, prestes a assistirem a um concerto de música eletrônica proporcionado por um artista de marcado acento norte-americano. A ressignificação desta estátua de José Martí, em específico, não é algo novo, sobretudo em função de sua estratégica posição diante do edifício oficial mais importante dos Estados Unidos em Cuba – sua embaixada, local em que centenas de cubanos vão diariamente enfrentar filas na Calle Calzadas (que dá acesso ao prédio) para tentar visto e negociar aspectos migratórios com o país vizinho. Cidadãos cubanos que se opõem às aproximações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos chamam esta área de “El Tontódromo”, algo que pode ser traduzido como “Bestódromo”, um local para pessoas bobas que tentam, em vão, “los papeles” (os papéis) para ir, por exemplo, a Miami. Curiosa é a narrativa do jornalista cubano Fernando Dámaso (2014), no blog Diario de Cuba, que ecoa relatos de po- 90 FIGURA 3. Jovem maneja celular sob estátua com dizeres antiamericanos crédito: Thiago Soares 91 pulares sobre a estátua de José Martí, segurando uma criança, e apontando para a Embaixada dos EUA: “Alguns desrespeitosos asseguram que Martí está dizendo à criança: ‘Ali é onde se dão os vistos’” (Figura 4). Sobre as hastes de bandeiras existentes ao redor do prédio da embaixada, Dámaso também faz um relato irônico. Segundo ele, o árido entorno do prédio, com as hastes que, outrora eram quase sempre ocupadas por bandeiras pretas para “ocultar” a vista dos vidros da embaixada, pareciam evocar uma espécie de ideia de que “se tratava de um ambiente para convenções dos piratas do Caribe, rodeada de seguranças também vestidos de preto”15. Apesar das aparentes contradições em torno do espetáculo do Major Lazer na Tribuna Antiimperialista, esta não foi efetivamente a primeira ocorrência de um evento desta natureza. Em 2005, o grupo norte-americano Audioslave também realizou um concerto no local e registrou o espetáculo num DVD. Esta iconografia contraditória parece ser atenuada se levamos em considerações justificativas econômicas para a realização de concertos de grande porte em Havana. Em função da própria natureza dos espetáculos que ocorrem no país, gratuitos sobretudo decorrente dos baixos salários dos cubanos (que recebiam, em 2015, o equivalente a 30 CUCs por mês, algo como US$ 30), a Tribuna Antiimperialista, que já detém uma estrutura de palco e arcos de ferro e alumínio, acaba sendo uma opção que barateia as operações de montagem de estruturas para shows. O espetáculo do Major Lazer em Havana 15 Para o relato completo: http://www.diariodecuba.com/cuba/1406364657_9679. html. Acesso em 13 de março de 2016. 92 FIGURA 4. Jovens ao redor da estátua de José Martí no Malecón crédito: Thiago Soares 93 foi realizado pela mesma equipe que produz o festival também gratuito Musicabana, da Fundação Musicabana, instituição cubana-americana, que já levou à Tribuna Antiimperialista de forma gratuita, shows de Sean Paul e do duo francês-cubano Ibeyi. Um dos fundadores do festival Musicabana e co-produtor do evento é Fabien Pisani, filho do famoso músico cubano Pablo Milanés, que justifica o uso da Tribuna Antiimperialista como recurso de barateamento da produção do espetáculo – e não como uma espécie de “afronta” a toda história de resistência anti-americana ali presente. “É também perto do mar e aberto, de fácil acesso, talvez fazer show ali signifique um momento de transição entre as relações entre Cuba e Estados Unidos”, afirma Pisani16. Embora tenha a chancela de produzir espetáculos musicais na ilha, qualquer show realizado em Cuba passa por uma ampla negociação com o Estado. Reportagem do The New York Times escrita pelo jornalista Joe Coscarelli (2016) sobre o processo de realização do espetáculo do Major Lazer em Havana assegura que, em geral, há indicações para despolitizar os concertos, entendendo esta despolitização como a não menção nem ao regime cubano, nem à realização de comentários ao passado ou ao futuro da ilha. O processo de negociação deve passar pelo Instituto Cubano de La Musica (ICM), órgão estatal, que aprova a realização dos atos. Neste caso, foi a Fundação Musicabana que tratou com o ICM para a execução do concerto. 16 O texto completo está disponível em: http://pitchfork.com/thepitch/1047-what-cuba-thought-of-major-lazers-historic-havana-show/. Acesso em 13 de março de 2016. 94 A perspectiva de realização do show também era romper com certos estereótipos nostálgicos em relação aos produtos culturais cubanos. “Eu não estava interessado em realizar um ato nostálgico que lembrasse a Cuba dos anos 1950, meu interesse era projetar a Havana de 2050”, diz Fabien Pisani à reportagem do The New York Times17. Segundo dados contidos na reportagem, o concerto do Major Lazer teria custado US$ 150 mil, em transporte de equipamentos e viagens para 24 pessoas que integram a equipe. A verba teria sido integralmente custeada pelo grupo e com auxílio do fundo cultural da Embaixada dos Estados Unidos. Ao Instituto Cubano de La Musica, coube arcar com a liberação do local, seguros médicos, bombeiros e segurança. Embora não oficialmente relacionado, o show do Major Lazer acabou sendo uma espécie de abertura do mês de visita do presidente Barack Obama a Cuba, em março de 2016. Trata-se da primeira visita de um chefe de Estado dos EUA à ilha após 88 anos. Cabe pensar sobre as contrapartidas que envolvem a realização de um concerto desta dimensão em Cuba. Ao Estado, representado pelo Instituto Cubano de La Musica (ICM), parece ser a evocação tanto de prover entretenimento acessível à população, quanto destacar uma espécie de posicionamento mais evidente junto à juventude cubana – afastada geracionalmente dos ideais revolucionários socialistas. Este concerto do Major Lazer evidencia uma ação estatal dirigida que tanto aponta para fora dos domínios (uma política que conectaria 17 O texto completo está disponível em: http://www.nytimes.com/2016/03/08/ arts/music/diplo-and-major-lazer-bring-their-brand-of-music-to-cuba.html?_ r=1. Acesso em 13 de março de 2016. 95 Cuba não só com os Estados Unidos mas também com a cultura da “eletronic dance music” global) quanto para dentro do país (a percepção de que o governo cubano estaria preocupado em variar as ofertas de bens culturais para a população, sobretudo mais jovem). Para o grupo Major Lazer, a realização do concerto estaria na ordem de “fazer história”, conforme atestou Diplo, em reportagem ao The New York Times. O que o DJ chama de “fazer história” estaria na chave de se consolidar como o grande nome em torno da eletronic dance music (EDM) no mundo e também nas novas gerações de cubanos. Como o Major Lazer se tornou popular na ilha Leandro está todo vestido de preto, no melhor estilo punk, e encontra Yoadir Izquierdo, 22 anos (Figura 5), que traja uma bandana com a bandeira dos Estados Unidos e uma camisa com a indefectível boca com a língua do grupo Rolling Stones. Entre uma conversa e outra, percebo que ambos estão ali “por estar”, “pela festa” – como costumam dizer os cubanos “desfrutando”. Não são fãs de música eletrônica, muito menos de Major Lazer. “Show mesmo vai ser o dos Stones”, diz Yoadir para Leandro, referindo-se ao concerto que o grupo fez, dia 25 de março, na Ciudad Deportiva, em Havana. Delineio uma tensão, demarcada, entre música pop x rock na conversa dos amigos cubanos: ambos estão no concerto de Major Lazer “por estar”, mas gostariam mesmo era de estar no dos Stones. Esta demarcação talvez evidencie rascunhos de masculinidade e de atitude frente a supostos engajamentos frívolos da música pop eletrônica. 96 FIGURA 5. Leandro Sanchez (punk de costas) crédito: Thiago Soares 97 As roupas e acessórios com a bandeira dos Estados Unidos vão aparecendo com mais frequência. O cabelo dos jovens negros cubanos dispostos para trás, como se evidenciando uma espécie de topete, os óculos escuros, as muitas cores, situam um certo desejo de destacamento, de visibilidade e de singularidade em meio à multidão. A partir da observação da bandeira americana em várias peças de roupas dos cubanos que estão presentes no concerto de Major Lazer, em Havana, delineio algumas hipóteses: 1) a referência aos Estados Unidos pode ser uma tomada de posição irônica frente aos anos de embargo a Cuba, maneira dos moradores mostrarem desdém e capacidade de viver – mesmo com toda restrição econômica e política; 2) pode ser uma clara tomada de posição contra o regime socialista cubano, referência à adesão aos ideais dos Estados Unidos, liberdade de expressão, sistema capitalista; 3) pode se referir a uma tentativa de, a partir de um símbolo norte-americano, transnacional (portanto), mostrar algum tipo de conexão com o mundo externo, com uma ideia de globalização, de cosmopolitismo e de noções de engajamento através de um resgate de um Outro que é aquilo que se deseja ser. Vou percebendo pelo certo ar de desdém das pessoas com as referências aos Estados Unidos, que tudo pode se tratar apenas de uma escolha em torno de uma estampa para uma camisa que, por acaso, é da bandeira do historicamente maior inimigo político de Cuba. No entanto, outras gerações que já não viveram de perto “a revolução”, acabaram por ressignificar toda iconografia de referência à cultura norte-americana. Pergunto para Leandro Sanchez como o grupo Major Lazer se tornou popular em Cuba, já que a música norte-america- 98 na, embora toque nas rádios e goze de alguma popularidade, não chega a competir, por exemplo, com o mais popular gênero musical da ilha, o reguetón. “Algumas músicas de Major Lazer, como ‘Lean On’ foram distribuídas nos ‘paquetes’ junto com seriados americanos, filmes estrangeiros e música pop”, diz. “Paquetes” podem ser traduzidos como “pacotes digitais” e são conjuntos de arquivos separados por gêneros ou temas, baixados semanalmente em “oficinas digitales” (o equivalente no Brasil às lan houses) comercializados a 1 CUC (quase 1 Euro) por conteúdo disponibilizado e adquiridos por usuários através de pen drives ou “disco duros”, os HD externos. Ou seja, embora seja pouco exibido em canais oficiais de comunicação massiva, a televisão e a rádio estatais, o Major Lazer chegou aos ouvidos dos jovens de Cuba através de práticas da cultura digital. A estratégia, no entanto, foi pensada pelo produtor da Fundação Musicabana, Fabien Pisani. “Eu paguei para que ‘Lean On’ fosse incluída nos ‘paquetes’, embora tinha certeza que o grupo faria sucesso no concerto em função de suas batidas que estão próximas das do reguetón”, afirma Pisani. Os conteúdos dos “paquetes” digitais variam e, portanto, a figura de mediadores culturais se faz importante para garantir a “qualidade” dos produtos que são copiados. Neste caso em especial, no tocante à música, um dos mais importantes “paqueteros” de Havana é o DJ Alexandre, que possui produtora de videoclipes e agencia shows de artistas de reguetón na ilha, e cuja inclusão de alguma canção num de seus “paquetes” semanais pode ser garantia de ampla circulação sobretudo entre os “reguetoneros” que funcionam como importantes recomendadores de música entre os jovens de Havana. 99 Sobre performance e roteiro “Diplo está usando uma camisa da equipe cubana de beisebal e acenando com uma bandeira de Cuba”, relata o texto de Spercer Parts, do site de música Pitchfork, que se deslocou até Havana para cobrir o evento. De acordo com o artigo, o DJ e produtor está em frente a 400 mil cubanos. “Muitos deles adolescentes usando bonés de times americanos de beisebol ou regatas com a bandeira dos Estados Unidos. Tem um grupo jovens com o rosto pintado segurando cartazes com “Cuba <3 u” (Cuba te ama)” (Parts, 2016, p. 1). A cena do Major Lazer e seu DJ mais importante Diplo tocando na Tribuna Antiimperialista, em Havana, parece ser uma forma de pensar, de maneira mais ampla, a performance como objeto/processo das “muitas práticas e eventos – dança, teatro, ritual, comícios, políticos, funerais – que envolvem comportamentos ensaiados, teatrais ou convencionais/apropriados para a ocasião”, como atesta Diana Taylor (2013). Para a autora, a performance constitui a lente metodológica que permite que pesquisadores avaliem eventos como metáforas. Obediência cívica, resistência, cidadania, gênero, etnicidade e identidade sexual, por exemplo, são ensaiados e performatizados diariamente na esfera pública. Entender esses itens como performances sugere que a performance também funciona como uma epistemologia. (Taylor, 2013, p. 27) O que Diana Taylor parece querer indicar é o reconhecimento da performance como um modo de conhecer, através 100 das encenações, as culturas, suas corporalidades e teatralidades. A organização da “totalidade analisável” sugere o reconhecimento de que a performance e a estética da vida cotidiana “refletem a especificidade cultural e histórica existente tanto na encenação quanto na recepção” (Taylor, 2013, p. 27). Ou seja, em certo sentido, performances estão sempre “in situ”: são inteligíveis nas estruturas dos ambientes imediatos e das questões que ali se inscrevem. Compreende-se que shows de música pop operam sob a dicotomia da performance. Os corpos ali apresentados trazem consigo a ideia de movimentos expressivos como reservas mnemônicas, “incluindo movimentos padronizados feitos e lembrados por corpos, movimentos residuais guardados implicitamente em imagens ou palavras e movimentos imaginários sonhados em mentes, como partes constitutivas delas” (Roach, 1996, p. 26). Na condição de analista de uma performance, me coloco como um intérprete de uma efemeridade, na tentativa não de chegar a uma postulação totalizante sobre as condições de uma sociedade, seus jogos e disputas, mas tomando atos performáticos como metáforas mnemônicas, encenações que perduram na memória acionando um estar em contingência com a encenação. Neste sentido, quando pensamos que o concerto do Major Lazer foi uma ação promovida também pelo Estado cubano, é possível reconhecer uma dimensão performativa nestas disputas: o governo que realiza um ato para os jovens; o Major Lazer que quer “fazer história” sendo o primeiro grupo norte-americano de eletronic dance music (EDM) a fazer um espetáculo daquela dimensão na ilha. Percebe-se, portanto, que Cuba é um país que, em função de sua história e condição 101 geopolítica, aciona, na música pop, um imaginário sobre um lugar de marcação de uma diferença. Artistas pop que para lá se dirigem, parecem querer indicar algo de ordem performativa18: adesão a dinâmicas socialistas, críticas ao embargo econômico, reconhecimento da luta de um povo, comoção em torno da resistência, entre inúmeras outras possibilidades. Os atos isolados ou conectados, entre si, suas encenações e tomadas de posição ecoam a perspectiva de que “as performances não podem nos dar acesso a outra cultura, permitindo vê-la em profundidade, mas elas certamente nos dizem muito sobre nosso desejo desse acesso e refletem a política de nossas interpretações” (Taylor, 2013, p. 32). Debate-se, portanto, a dramaturgia dos eventos, seus componentes estéticos e lúdicos, agenciamentos culturais. Se tomamos o show do Major Lazer como uma teatralidade, entendemos também que tal encenação comporta um roteiro, uma “configuração paradigmática que conta com participantes supostamente ao vivo, estruturados, ao redor de um enredo esquemático, com um fim pretendido (apesar de adaptável)” (Taylor, 2013, p. 41). Quero aqui destacar momentos em que o concerto do Major Lazer em Havana tanto sintetiza outras imagens, fantasmagorias de encenações previamente dispostas, como cria disposições performáticas. A proposição aqui é estruturar um modo de observar o espetáculo como um roteiro de um encontro, uma narrativa que 18 Entende-se o performativo a partir dos estudos de filosofia e retórica, notadamente de J.L. Austin, Jacques Derrida e Judith Butler. O performativo, para Austin, refere-se a casos em que a “emissão de um enunciado (utterance) é também a realização de uma ação” (AUSTIN, 1975, p. 6). O peso legal do “sim” numa cerimônia de casamento seria um exemplo de agenciamento do performativo. 102 se apresenta encenada: um grupo de músicos e uma plateia. Artistas de distintas origens (o Major Lazer formado por um norte-americano, um jamaicano, um trinidense) e o público cubano. O claro destacamento em torno de um dos artistas do grupo, o DJ Diplo, de origem norte-americana, e sua exibição diante da Embaixada dos Estados Unidos para a plateia de habitantes de Cuba. Duas nações, formatadas a partir de tensões diplomáticas que se estendem já por mais de 50 anos, frente a frente, num ambiente lúdico. Qual o roteiro que se desenrola naquele acontecimento? Diana Taylor propõe um método de análise dos roteiros como uma forma de entender as performances não a partir de textos e narrativas mas aquilo que é o sumário, esboço, rascunho que dá informação sobre as cenas, situações. O Roland Barthes presente em “Mitologias” (2003) já havia postulado que pensar através da premissa dos roteiros significa reconhecer a existência de algo prévio, já trabalhado antes, “arcabouço portátil” que carrega o peso dos acúmulos e das repetições. O encontro entre duas Nações se dá a partir dos corpos dos seus cidadãos, dos viventes. Há planejamentos anteriores, formas de aproximação, de negociação. Pensar através da ideia de roteiro nos fornece subsídios para reconhecer os clichês das encenações: os fantasmas, as imagens, os estereótipos. O grande roteiro na história das Américas, nos lembra Taylor, é o do Descobrimento: personagens se delineiam nestas narrativas históricas (o descobridor, o conquistador, os nativos, entre outros). Tais narrativas históricas assombram o presente quando reencenadas, apresentadas como inéditas, podendo “assustar” nossa compreensão diante de um outro 103 final possível. Metodologicamente, os roteiros nos impelem a observar mais atentamente os gestos, as atitudes, os tons – simultaneamente montagem e ação, ativação e moldura de dramas. A montagem exibe elementos como encontro, conflito, resolução, desenlace. Desenha-se uma zona de fricção por exemplo entre atores sociais e personagens, o aparecimento de agenciamentos culturais de inúmeras maneiras. Sobre o método do roteiro como análise de performances, Taylor sugere a observação analítica de, ao menos, três grande quadros constituintes da dramaticidade: 1) o local físico em que se dá a apresentação, uma “cena”, que denota intencionalidade em termos artísticos e políticos, sinaliza estratégias conscientes de exibição. A autora sugere a noção de palco material tanto quanto de ambientes codificados (países, cidades, ruas, etc). “Lugares nos permitem pensar sobre possibilidades e limites de ação. Porém, a ação também define o lugar” (Taylor, 2013, p. 62). 2) a corporalidade dos atores sociais ou a construção social dos corpos em contextos definidos, os detalhes visuais, as peculiaridades da aparência, dos gestos e das falas. As zonas tensivas entre “enredo” e “personagem” e o que se apresenta como solução expressiva. 3) a montagem das ações como estruturas que seguem fórmulas, predispõem resultados e também abrem margem para se pensar inversões, paródias, mudanças. “O roteiro força-nos a nos situar em relação a ele; como participantes, testemunhas ou espectadores” 104 (Taylor, 2013, p. 62). A montagem das ações comumente invocam situações passadas, que fazem parte de um acervo de memória e de sua potência significante. A partir destas premissas metodológicas, delineamos três quadros performáticos que funcionam como formas de entendimento das relações entre duas Nações a partir de um espetáculo de música pop. Sobre o show do Major Lazer em Havana, no mês da visita do presidente Barack Obama a Cuba em março de 2016, repousam encenações que recaem sobre: a) a mitologia e o zelo em torno de uma amizade “abalada”; b) a demarcação de performatividades em torno de conquistas territoriais; c) o pedido de desculpa. A mitologia e o zelo em torno de uma amizade “abalada” Em seu ensaio “Políticas da Amizade”, Jacques Derrida (1997) sustenta a hipótese de que a amizade é uma efemeridade, ao mesmo tempo afirmada e colocada em dúvida. A política da amizade estaria portanto naquilo que podemos supor ser o “teste” sobre o estatuto do amigo, a eterna desconfiança que se tem em torno do vestígio que resta dos atos aproximativos. Amizade seria, então, de uma ordem dinâmica, não uma propriedade ou qualidade do sujeito, mas algo que traria à tona também seu caráter utilitário – possíveis jogos de interesse sob cálidas máscaras de afeto. Para Derrida, a amizade é a eterna luta contra o esquecimento – ou a incessante memó- 105 ria do vivido. Afinal de contas, como nos lembra Aristóteles: o amigo é o outro em si mesmo. “Uma alteridade imanente na ‘mesmidade’. Tornar-se outro no mesmo”, como afirma Agamben (2013, p. 83). Vestindo uma camisa cubana, Walshy Fire disse ao público para pular (‘salta, salta’) enquanto mensagens sobre fraternidade universal apareciam nos vídeos no telão. Adolescentes usando top acenavam com bandeiras gigantes vermelhas e azuis do Major Lazer simbolizando a “paz global”. (Parts, 2016, p. 1) O caráter de insinuação sobre a amizade parece ser uma das premissas da encenação do espetáculo do Major Lazer em Havana. O álbum do grupo, que sustentaria o concerto, se chama “Peace is the Mission” (“Paz é a Missão”). Estamos diante de um quadro em que os agenciamentos se dão através da aproximação e sob a sombra do passado. “Nós viemos em paz”, anuncia Diplo. Esta aparente mensagem do DJ e dos integrantes do Major Lazer contrasta com um outro espetáculo musical ocorrido também ali, na Tribuna Antiimperialista, seis anos antes, em 2010, quando o grupo de rap portorriquenho Calle 13, de lastro ativista, fez discursos contra os Estados Unidos e o embargo econômico. Diplo afirmou que vendo a performance do Calle 13 e sabendo do momento de aproximação Estados Unidos-Cuba, propôs ao Major Lazer, ir até a ilha de histórico socialista. Trajar camisas que evidenciam a supremacia cubana nos esportes (e o orgulho de Cuba com o beisebal, que os morado- 106 res da ilha chamam de “pelota”19) pelos integrantes dos Major Lazer é uma importante forma de encenação de semelhanças. Tal apresentação se reverte em simpatia e adesão. “É impressionante, nós nunca recebemos alguém como ele [Diplo] aqui”, diz uma das meninas, não identificada, entrevistada pela reportagem do site Pitchfork. A fala da menina perpassa possivelmente algumas questões que atravessam um histórico da relação entre estrangeiros e cubanos na ilha. Estrangeiros, pelo próprio contexto de impossibilidade de saída do país por parte significativa dos cubanos, passaram a ser a forma com que os moradores da ilha tivessem contato com o “mundo externo”. Por isso, tornou-se comum o relato de cubanos que “puxam assunto” com turistas, tentam vender charuto, rum, negociar visitas a restaurantes, passeios em carros antigos. Esta relação cria, frequentemente, uma ambigüidade em torno dos vínculos de amizade e negócios entre turistas e moradores. Há um termo, usado pelos próprios cubanos, que é disseminado e combatido pela polícia no contexto de Cuba, para definir os indivíduos que se aproveitam da boa-fé de turistas aplicando possíveis golpes ou permuta de serviços ou produtos por valores financeiros: “jinetero”. O “jinetero” pode ser definido como uma espécie de “malandro” cubano, que se dá bem, é perspicaz, audaz e quer tirar vantagem sobre o interlocutor. Tratase de uma forma ofensiva de classificar alguém, no entanto, há áreas mapeadas pelos moradores de grandes cidades como 19 No castelhano falado em Cuba, o beisebol é sinônimo de “jogar bola” (numa metáfora análoga ao futebol, no Brasil). Quando, no contexto da ilha, convidam alguém para um “juego de pelota” (“jogar bola”), trata-se de uma proposta para jogar beisebol – tamanha familiaridade e adesão os esporte pelos cubanos. 107 Havana, em que a prática de “jineteros” ocorre livremente: o Malecón, onde acontece o show do Major Lazer, por exemplo, é uma região em que “jineteros” costumam circular. A prática dos “jineteros” parece ser uma espécie de conduta cultural que desliza sobre as relações entre estrangeiros e cubanos. Importante sublinhar que “jineteros” podem ser homens ou mulheres e que, freqüentemente, as relações entre estrangeiros e “jineteros” se baseia em interesses sexuais, prostituição ou mediação de serviços sexuais. Por isso, é preciso colocar em ênfase que a relação de parte da juventude cubana com os artistas do Major Lazer também estariam sob a fantasmagoria de uma erotização em torno da figura do estrangeiro, dos jogos de poder e sensualidade que regem homens e mulheres em suas teias de produção de sentidos e sensibilidades atraladas a interesses sexuais. “Onde estão meus cubanos?”, grita DJ Walshy Fire, atestando para si uma espécie de pertencimento à multidão que assiste à apresentação. Enquanto falam e acenam bandeiras com escritos “global peace” (“paz global”), os integrantes do Major Lazer conduzem a multidão negociando batidas eletrônicas em escalas mais ou menos aceleradas. Percebo que os amigos Leandro e Yoadir, que afirmam não gostarem de música eletrônica, dançam, movimentando a cabeça, quase numa referência a movimentos corporais ligados a práticas da dança em shows punk, só que no ambiente de uma espécie de “rave”20 ao ar livre, com música eletrônica dançante. Há, 20 Raves são festas de música eletrônica que reproduzem clubes noturnos só que em lugares não-convencionais, como galpões abandonados, hangares e barracas em zonas campestres segundo Thornton (1995). 108 naturalmente, no contexto da música eletrônica e das festas abertas, como as “raves”, um sentido de comunhão, união pela música, que perpassa as sonoridades e os corpos. Erguer as mãos para o alto, pular conforme a música, ser “regido” pelas batidas propostas pelos DJs estão entre os pactos possíveis neste contexto musical, conforme o relato do jornalista Michel Hernandez do jornal cubano Gramna: Quando tocou 'Lean On', o megahit viral do Major Lazer, a Tribuna era uma imagem próxima destas enormes raves (festas ao ar livre) que se organizam nos grandes cenários do mundo ou em praias que os jovens não dormem celebrando a invenção da era da música eletrônica. (Hernandez, 2016, p. 1) Em vários momentos da discotecagem, a premissa de propor uma “irmandade universal” (“universal brotherhood” era o lema que aparecia freqüentemente nos telões dos DJs) chegava aos aspectos musicais. Para além da música em língua inglesa, os integrantes do Major Lazer já possuem no trabalho em seus álbuns, um diálogo com o reggae e com a música caribenha. Ao discotecarem a faixa “Can't Hold Us”, dos rappers americanos Macklemore & Ryan Lewis com batidas de reguetón, os integrantes do Major Lazer propunham encenar musicalmente a aproximação de uma importante forma cultural da música norte-americana, o hip hop, com o mais popular gênero musical do Caribe, o reguetón. Parecia haver ali uma negociação que se encaminhava para as matrizes da música negra urbana (embora Maclemore & Ryan Lewis sejam brancos, uma ironia?) que fazia convergir parte da tradição dos 109 Estados Unidos com a batida eletrônica popular do Caribe, assumindo no contexto cubano esta particular vertente: hip hop e reguetón como o encontro tensivo de estrangeiros e nativos, americanos e cubanos, rappers e reguetoneros, gerando uma encenação muito particular de diferenças e semelhanças, alteridades e singularidades num contexto de uma festa de música eletrônica. Fincar a bandeira de Cuba em Cuba: por um estrangeiro Inevitável considerar que a relação entre duas Nações que viveram sob tensão política e diplomática traga também aportes de metáforas ligadas a conquistas territoriais, disposições bélicas e acionamentos militaristas. Neste sentido, os rituais ligados às conquistas territoriais podem funcionar como importante potência mnemônica nas negociações imagéticas de um espetáculo. Cabe aqui pensar como um show de música também se configura num importante lugar de reivindicação identitária, com fãs e frequentadores ostentando suas origens através de bandeiras, faixas ou roupas com referências a seus países. Num show de música pop como aparente espaço de encontros e tensões de nacionalidades, ambiente em que, de maneira usual, é possível falar da glorificação de imaginários ligados à anglofilia – dos Estados Unidos e da Inglaterra – a reivindicação de origem através de bandeiras de fãs parece ser um dos epicentros para se pensar deslocamentos, nomadismos, peregrinações e “conquistas” de espacialidades por gru- 110 pos que não “pertencem” àquele contexto. Voltamos a acionar Regev (2013) na medida em que, para o autor, a exacerbação de texturas nacionais em shows de música pop parece ser o reconhecimento de uma alteridade, de algo que precisa ser exposto, dito, “conquistado”. É comum que fãs de música pop que não moram em países como os Estados Unidos e Canadá nem na Europa se desloquem, por exemplo, de nações da América Latina para assistirem a concertos nos Estados Unidos ou na Inglaterra21. Este deslocamento, que pode também ser chamado de “peregrinação” indica a performatividade da “conquista” territorial como metáfora do sacrifício para se estar ali, da evidência de um gostar de um artista que se reverte em deslocamento e presença. No caso de Cuba, a premissa se inverte: soa improvável que moradores da ilha “peregrinem” para assistir a algum espetáculo de música pop no exterior. É por isso que podemos falar de uma espécie de contexto cubano de acionamento do pertencimento à Nação-Cuba por parte dos artistas que ali se apresentam. Ostentar bandeiras, roupas de atletas, falar “em nome de Cuba” é um tipo de performance freqüentemente incorporada nos concertos. A bandeira de Cuba também funciona como importante aparato de norteamento das ações que se desenrolam no palco. 21 Turês são séries consecutivas de shows que envolvem gastos com produção e execução de artefatos de palco, envolvendo relativo pequeno número de concertos, dentro de uma temática e que se torna objeto de desejo de fãs de música pop. “Para o fã é a oportunidade de ver seu artista favorito, especialmente se vive em uma região que não está frequentemente inclusa no circuito das tours” (Connolly; Krueger, 2005, p. 12). 111 Se tomamos o ato de fincar a bandeira de um país no território conquistado como uma metáfora de domínio e poder, podemos fazer leituras sobre a encenação deste ato no espetáculo do Major Lazer em Havana. Lembremos de dois episódios que remontam à bandeira como importante aparato cênico da teatralização da conquista – ambos em tom de falseamento e encenação. Em 23 de fevereiro de 1945, o fotógrafo Joe Rosenthal registrou os militares do 28º regimento norte-americano erguendo a bandeira norte-americana no alto do Monte Suribachi, na ilha japonesa de Iwo Jima22, ao final da Segunda Guerra Mundial. Tal imagem é cercada de controvérsias e “lendas”, entre outras, de que aparecem na fotografia cinco soldados, mas na verdade, seriam seis (o último teria ficado numa posição que sequer deu para aparecer); ou de que o fotógrafo teria “armado” a imagem, pedido para que os fotógrafos se organizassem de maneira “plástica” num acontecimento para gerar uma fotografia célebre. Embora tenha morrido reafirmando que teria captado um flagrante, o que se pode trazer à tona em torno da mais emblemática imagem de conquista territorial na Segunda Guerra Mundial é a contradição sobre os modos de operação da imagem, sobre seu possível falseamento. A intenção aqui não é debater a “verdade” em torno desta fotografia, mas sim, seu estatuto de código ambíguo e 22 O nome de Iwo Jima ficou famoso em 1945, após a sangrenta batalha entre os exércitos japonês e americano durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45). O confronto, o primeiro em território japonês durante a grande guerra, matou 7 mil soldados americanos e 22 mil japoneses, e foi retratado em dois filmes do diretor Clint Eastwood, “A Conquista da Honra” e “Cartas de Iwo Jima”. 112 mnemônico, trazendo à tona a sua potência enquanto linguagem na própria natureza plástica da imagem, mas também, e sobretudo, diante da mitificação e dos seus acionamentos ambíguos. A fotografia de Joe Rosenthal ganhou o Prêmio Pulitzer, no entanto, uma reportagem da Associated Press de 1995, publicada cinco décadas depois de a foto ser feita, relatou como o fotógrafo teria tido que lutar durante toda a sua vida para provar que sua imagem era “verdadeira” - tomando aqui o “verdadeira” como sinônimo de “flagrante”. Outra controvérsia na disposição de bandeiras como demarcações territoriais diz respeito à chegada do homem à lua, que teria acontecido em 20 de julho de 1969. O ritual de aterrissagem em terreno lunar e posterior fincagem da bandeira norte-americana é repleto de “lendas” em torno da fabricação das imagens – que, entre inúmeras e possíveis hipóteses – haveria uma de que tratou-se de uma forma de, em plena Guerra Fria, os Estados Unidos mostrarem superioridade à União Soviética como primeira Nação a chegar a solo lunar. Mais uma vez, interessa-nos aqui o ritual em si, a potência da controvérsia (as fotografias liberadas pela Nasa não têm autoria de um fotógrafo, são creditadas à própria agência espacial norte-americana) e o gesto de fincar a bandeira como cristalização da ideia de poder e superioridade. Estaríamos debatendo aqui um tipo de poder que se dá através das imagens e dos gestos, dos corpos que ocupam e demarcam, determinam os roteiros e as práticas que, a partir de então, serão instauradas. Algo que gravita sobre a noção de performance como uma maneira de disseminar o pertencimento pela presença. 113 No concerto do Major Lazer na Tribuna Antiimperialista, houve a ritualização com uma bandeira, a reencenação da forma com que territórios são conquistados e demarcados. No entanto, queremos aqui apontar a contradição do ato realizado neste contexto. No momento em que entoa o maior hit do grupo, “Lean On”, o DJ Diplo se dirige para o destacado do palco e ergue a bandeira de Cuba. Ele fica estático, segurando a bandeira enquanto as batidas eletrônicas regem a dança da platéia que assiste ao show. Não se trata de um gesto rápido e efêmero. Ao contrário. É um gesto marcado pela determinação de um momento: ele, Diplo; ela, a bandeira de Cuba (Figura 6). Em certa medida, o gesto de erguer a mão com a bandeira cubana faz com que o próprio corpo de Diplo se reverta em parte da bandeira – o mastro – evidenciando uma lógica de pertencimento ao objeto encenado. O artista encena uma maneira de se fincar ao território cubano a partir do gesto. Neste caso, embora apareça segurando a bandeira de Cuba, não deixa de ser emblemático que se destaque o contexto em que se dá a ação. A Tribuna Antiimperialista está disposta em frente à Embaixada dos Estados Unidos em Havana, em que existem, mastros para hasteamento de bandeiras que, nesta ocasião, estão vazios. A imagem de Diplo erguendo, estático, a bandeira de Cuba, no palco da Tribuna Antiimperialista ganha como “figura de fundo” mastros vazios onde – em tese – se hasteariam bandeiras norte-americanas e também de países que poderiam estar em visita àquela embaixada. Se tomarmos que o prédio da embaixada dos Estados Unidos é, em si, uma marca territorial norte-americana em Cuba, a imagem de Diplo cravando a bandeira de Cuba em solo cubano desenha 114 FIGURA 6. Diplo segura a bandeira de Cuba crédito: Kent Anderson (Spin) 115 uma certa atribuição de: 1) tentativa de pertencimento deste sujeito que se ergue como “mastro imaginário” na bandeira cubana na ocasião do concerto em solo pertencente ao “inimigo” político; 2) o estrangeiro funciona como aquele que atesta o reforço à ideia de pertencimento do cubano à sua terra, evocando preceitos ligados a uma relação de encantamento e ambiguidade da presença do estrangeiro naquele contexto; 3) o reconhecimento por parte do norte-americano da história e da resistência de Cuba no contexto caribenho e mundial, diante de um histórico de embargo econômico e tensões e discordâncias políticas entre os dois países (EUA e Cuba). Este mapeamento das controvérsias dos atos performáticos parece reforçar a importância de um debate que não se faça binário, na medida em que se refuta a ideia de que estamos diante de atos “imperialistas” ou ancorados nas relações unilaterais de poder. A tentativa é perceber que poder e resistência, imposição e sugestão, são também artefatos cênicos que engendram formas de olhar, lembrar, agir e, portanto, viver politicamente relações diplomáticas entre Nações. “É tarde demais para dizer ‘desculpa’?” Agora proponho um movimento de aproximação da música que se dispõe no concerto do Major Lazer em Havana. E entre as 25 canções executadas pelo grupo, quero destacar, em especial, uma que me aciona pensar a ressignificação de uma faixa musical a partir do contexto em que esta música é experienciada. Já mencionei aqui que o espetáculo do grupo Major Lazer se organiza numa interface entre as disco- 116 tecagens de raves – que seria a montagem de uma estrutura de clube noturno em lugares inusitados (Thornton, 1995) – atrelado a uma perspectiva de show de música pop – com forte pregnância da fruição das canções – com letras e refrões como dispositivo de adesão e afeto (Weisntein, 1991). Dentro deste contexto, embora se assemelhe a uma experiência de uma rave, temos no espetáculo do Major Lazer uma disposição de espectatorialidade que aciona com suficiente clareza a marcação das canções, inclusive seus refrões e momentos textualmente enfáticos. É nesta disposição, portanto, que destaco o momento em que a canção “Sorry”, mundialmente famosa na voz do cantor canadense Justin Bieber em 201623, é executada ao vivo, pelo Major Lazer. “Sorry”, como o próprio título da faixa evidencia, é uma música que encena um pedido de desculpas supostamente afetivo. Pedido de desculpas que, na letra da canção, vem atrelado a um certo atraso em que o narrador parece vir pedir perdão. “É tarde demais para pedir desculpa?”, canta Justin Bieber, abrindo o refrão, com uma voz infantil. “Você pode ir e ficar com raiva com esta minha honestidade/Você sabe, eu tentei, mas eu não me saio bem em pedir desculpas”, canta, em outro momento. Há um narrador que parece reconhecer o erro, alguém que sabe que cometeu um infortúnio mas, orgulhoso, justifica que não consegue pedir desculpas. “Eu sei 23 “Sorry” é canção do canadense Justin Bieber, gravada para seu quarto álbum “Purpose”. Foi composta pelo cantor junto com Julia Michaels, Justin Tranter, Sonny Moore e Michael Tucker e produzida por Skrillex, Yektro, Blood Diamonds para a Def Jam Recording. A canção foi lançada em 23 de outubro de 2015 como segundo single e alcançou o topo das paradas da Billboard, nos EUA, em fevereiro de 2016. 117 que você sabe que eu fiz aqueles erros uma ou duas vezes/ Mas uma ou duas vezes, assim, podem ser umas cem vezes”, hesita, compondo um quadro de um personagem que reconhece o seu erro. Naturalmente, como faixa de música pop cantada por Justin Bieber, “Sorry” detém um acento narrativo amoroso, que se traduz nos clichês em torno de aproximações, afastamentos e reconciliações. No entanto, executada no contexto cubano, diante da Embaixada dos Estados Unidos em Havana e vinte dias antes da visita do presidente Barack Obama a Cuba, parece inevitável que uma típica canção de reconciliação afetiva assuma contornos de aproximações geopolíticas. Quero aqui ampliar o espectro proposto por Simon Frith (1988) de que “é possível, a partir das letras das canções, interpretar as forças sociais que as criaram” (Frith, 1988, p. 106) para uma a premissa enunciativa de que canções são ressignificadas diante de cada execução, como uma performance que não se esgota, apresenta marcas de uma história, mas aponta para a fissura da linguagem que é sempre atualizada, naquilo no movimento de aparição do social na linguagem a que se refere Mikhail Bakhtin (1988). Ou, como atesta Cooper (1981), as canções contemporâneas “são ferramentas inestimáveis para alcançar o objetivo duplo do efeito da performance na música: o conhecimento de si próprio e do social que o cerca” (Cooper, 1981, p. 8). O pedido de desculpas do personagem presente em “Sorry”, na voz de Justin Bieber, no momento em que se torna um enunciado no contexto de um espetáculo musical na Tribuna Antiimperialista, em Havana, passa a aderir a noções em torno da relação diplomática entre os dois países. As crises políticas 118 entre Cuba e Estados Unidos, as hesitações em torno de uma história de acirramentos, aparecem como possibilidades de fruição, para além da disposição amorosa-afetiva. Esta perspectiva aqui desenhada, deriva das premissas de que letras do mainstream da música popular podem ser criticadas por sua banalidade e falta de profundidade (Adorno, 1994; Hoggart, 1957) ou porque seriam manifestações diretas de uma hegemonia burguesa ligada a uma concepção de amor romântico e “ideologia sentimental” típica do capitalismo (Harker, 1980). Estas perspectivas ignoram a perspectiva cultural que há nas reencenações das performances musicais, dos contextos sócio-históricos em que ocorrem e das premissas de ressignificação que são típicas dos estudos de linguagem. A partir do concerto do grupo Major Lazer, realizado em Havana, em 2016, dias antes da chegada do presidente Barack Obama a Cuba, postula-se que disposições performáticas ligadas à música pop são formas de encenação de políticas culturais para habitantes da ilha socialista capazes de evidenciar as contradições de um histórico de tensões geopolíticas entre Estados Unidos e Cuba. O show que ocorreu na Tribuna Antiimperialista, um local em que se proferiam discursos contra os Estados Unidos, foi palco de um espetáculo em que 90% das canções era em língua inglesa e em que era possível ver jovens cubanos usando roupas e artefatos de moda com imagens e dizeres da bandeira dos Estados Unidos e de produtos culturais ligados à cultura pop anglófila. No entanto, ao contrário de sustentarmos a premissa de que estaríamos visualizando um certo “triunfo imperialista” em terras cubanas, sustentamos que trata-se de um processo inacabado de 119 construção de sentidos dos viventes da ilha de Cuba diante das contingências existenciais cotidianas: os cerceamentos em função do embargo econômico dos Estados Unidos, as limitações em torno do acesso a bens de consumo, as formas de acesso a produtos da cultura pop por vias que tangenciam as normas estatais, acionando saberes que tangenciam os fluxos midiáticos e a ressignificação que os produtos musicais assumem quando experienciados no contexto cubano. Enquanto o Major Lazer encaminha-se para terminar a apresentação, vejo meu amigo punk Leandro tirando fotos com os amigos. Muitas poses, selfies, retratos em grupos. Todos estão animadíssimos, já “altos” bebendo rum e dançando a tal música eletrônica que insistem em afirmar que não gostam. Naquele momento, olho para meu celular e me dou conta que estou sem internet. E que, dante do acesso limitado de internet em Cuba, poderíamos imaginar que as pessoas não passassem o show inteiro entre fotografar os artistas, tirar selfies e gravar vídeo. Percebo: passei o show inteiro sem comentar aquele espetáculo em alguma rede social – se estivesse no Brasil, por exemplo, dificilmente eu teria uma experiência offline como aquela em Cuba. Leandro diz para o amigo que, quando der, posta a foto dos dois no Facebook. 120 3 “La Isla Bonita”: solidariedade global entre fãs de Madonna o ert Alb de em ho ov arel e de j p d ,o o a cida ama 3h d 2 às ante a na rogr çae i t p s n en ta d a ca ao ra la ido m r n i b u s isa e se ist pa , exi elo e c s s e d s a a p is d pr de, la s, sa para olta iona assa a a a r d i p ei ac ,v ,n a, s-f s de nco Cub vem tern uba a o C n jo ra de nd an e i 992, a -b gu 4 a c e s 1 i e i 1 h s e il é ôn to na Às s, d pre e da eletr acio ano o t c Ar visão les ista s n e. O e a p v e i , ld re cl ín tel be o u , e e g a l R d Ho ram e vi Tele o l d ra Co tos n sso i e m em la e p 121 que historiadores chamam de “Período Especial”24, ou seja, a momento histórico de fim da União Soviética, crise do socialismo e “abandono” do País pelo “bloco socialista”, acarretando num isolamento da ilha nos jogos da política internacional. Com o embargo econômico dos Estados Unidos em pleno vigor, Cuba passa por um dos momentos de maior cerceamento de produtos de primeira necessidade. Assistindo ao programa Colorama, entre um videoclipe de música latina e outro, eis que Alberto vê um vídeo em que penas se abrem (como numa espécie de show de cabaré) e homens (alguns negros) estão como estátuas, em poses altivas, entre mulheres também estáticas e obras de arte. Ouve-se um teclado de início, a criação de um suspense, para logo em seguida, uma mulher loira, de rosto em riste, cantar em inglês: “strike a pose” (“faça uma pose”) – com as mãos emoldurando o rosto, numa espécie de instantâneo manual de um rosto. Trata-se do videoclipe da canção “Vogue”, dirigido por David Fincher. A cantora loira é a norte-americana Madonna e o primeiro verso da faixa parece narrar aquele momento difícil no cotidiano de Alberto: “Look around/ Everywhere you turn is heartache/ It's everywhere that you go (Look around)/ You try everything you can to escape/ The pain of life that you know (Life that you know)” (“Olhe em volta/ Para todo lugar que você se vira é dor/ Todo lugar/ Você tenta tudo que pode para 24 Durante o “Período Especial”, de acordo com Chomsky (2015), “o governo cubano introduziu fortes reformas econômicas, incluindo a abertura para o investimento estrangeiro, a permissão de algumas formas de empresas privadas, a facilitação de remessas de valores e a promoção do turismo. (…) As desigualdades sociais aumentaram e fenômenos associados à pobreza pré-revolucionária, como prostituição e mendicância, ressurgiram” (Chomsky, 2015, p. 195). 122 escapar/ Da dor da vida que você conhece”). Na canção, o refúgio da dor da vida é sanado com uma ida à pista de dança. A boate vira metáfora de libertação. No cotidiano de Alberto Arcos, numa pequena cidade de Cuba, o refúgio era a televisão. Mais precisamente o programa de televisão com videoclipes. É neste contexto que começa o interesse de Alberto por Madonna. Na sua televisão, no interior de Cuba, o adolescente assiste ao videoclipe “Vogue” em que a cantora reencena divas do cinema, numa homenagem à tradição do “carão” e da pose na cultura midiática de Hollywood. “Vogue” é um clipe todo realizado em preto-e-branco, com fotografia contrastada acentuando os tons de cinza e a direção de arte que tenta destacar o rosto e as próprias poses de Madonna. O glamour da mulher loira, os gestos, o olhar. Madonna parece ser uma tentativa de derivar das imposições e cerceamentos impostos pelos contextos político e histórico àquele jovem cubano. Como o aparelho de televisão existente na casa de Alberto era preto-e-branco, ele assistia a todos os videoclipes em “blanco y negro”, como me reporta o fã de Madonna25 e criador da página do Facebook “Madonna Cuba”, que existe desde 25 Em entrevista realizada presencialmente na Cafeteria La Rampa, no bairro de Vedado, em Havana, no dia 13 de março de 2016, na ocasião da ida a campo da pesquisa “Música Pop em Cuba: Enfrentamentos Políticos e Midiáticos”, com recursos obtidos por meio do edital CNPq/MCTI 25/2015 – Ciências Humanas, Sociais e Sociais Aplicadas. A primeira ida a campo se deu no mês de março de 2016, usando uma metodologia de inspiração etnográfica que visa ao contato com sujeitos que integram aquele contexto. Numa ida de férias a Cuba, em 2015, tive contato com fãs de música pop (das cantoras Madonna e Lady Gaga) em Havana. Esses mediadores foram importantes para que eu pudesse me inserir entre os apreciadores de música pop anglófila em Cuba e conhecer Alberto Arcos, que administra a página do Facebook “Madonna Cuba”. 123 2015, e tem 788 seguidores em março de 2017. “Só quando tive acesso a uma televisão colorida, dez anos depois, é que percebi que ‘Vogue’, de fato, era um videoclipe preto-e-branco. Para mim, todos os clipes que eu via no Colorama eram preto-e-branco”, lembra Arcos. O interesse de Alberto era Madonna, naturalmente, mas foi no mesmo programa de televisão Colorama, que ele assistiu a “Thriller”, de Michael Jackson, “Hello”, de Lionel Ritchie, assim como vídeos musicais de Tina Turner, Janet Jackson, entre outros. Eram os artistas norte-americanos que mais interessavam, talvez pela dificuldade de vê-los, pelo estranhamento e pelo exotismo. Talvez pela própria curiosidade, levemente subversiva, de ter artistas cantando em inglês. Estas brechas nas regulações em torno da vida e dos hábitos de consumo da população cubana acionam pensar como se reelabora interculturalmente os sentidos. “Não só dentro de uma etnia nem sequer dentro de uma nação, mas em circuitos globais, superando fronteiras, tornando porosas as barreiras nacionais, étnicas e fazendo com que cada grupo possa abastecer-se de repertórios culturais diferentes” (Canclini, 2009, p. 43). A recomendação, do ponto de vista metodológico, para Canclini, é que análises de inclinação antropológicas sejam convergentes com as análises comunicacionais, uma vez que se está falando de circulação de bens e mensagens, mudanças de significados, da passagem de uma instância para outra, de como significados são recebidos, processados e recodificados. “É preciso analisar a complexidade que assume as formas de interação e de recusa, de apreço, discriminação e hostilidade em relação aos outros, nas situações de confrontação as- 124 sídua” (Canclini, 2009, p. 44). Ao pensar a relação entre um fã cubano de Madonna, a principal figura da música pop produzida nos Estados Unidos, e a geopolítica entre os dois países – historicamente conflituoso desde o rompimento das relações a partir da Revolução Cubana de 1959 –, desenha-se um quadro singular de debate sobre assimetrias culturais em dinâmicas globais. A questão da globalização em Cuba é um dos pontos centrais para o debate em torno das fissuras entre Estado-Nação e sujeitos – diante de um quadro em que se tem um País “à parte” das dinâmicas do processo de globalização econômica neoliberal, cujas três principais “inovações institucionais” são, segundo Santos (2014), restrições à regulação estatal da economia, novos direitos de propriedade internacional para investidores estrangeiros, subordinação dos Estados nacionais às agências multilaterais tais como Banco Mundial, FMI e Organização Mundial do Comércio (Santos, 2014, p. 31). Conforme define Feinberg (2012), A Revolução Cubana se definiu em grande medida em termos do que não era: não uma dependência dos Estados Unidos; não um domínio governado por corporações globais; não uma economia liberal e orientada para o mercado. À medida que o exército de guerrilha fez sua entrada triunfal em Havana e a Revolução instaurou-se, uma marca distinta de seu ethos anti-imperialista tornou-se central no processo de nacionalização das empresas com base nos EUA que controlaram muitos setores-chave da economia cubana, incluindo hotéis e cassinos, serviços públicos, refinarias de petróleo e os ricos 125 moinhos de açúcar. No conflito estratégico com os Estados Unidos, o “inimigo histórico”, a Revolução consolidou seu poder através da excisão da presença econômica dos EUA. (Feinberg, 2012, p. 5) Embora em sentido macropolítico e prescritivo, o governo cubano tenha demarcado um afastamento político e econômico dos Estados Unidos, as micropolíticas do cotidiano e as ações dos sujeitos sempre tensionaram, em maior ou menor escala, tais premissas. Diante de um quadro de migrações de massa e de intensa circulação de cubanos pelo mundo, é inevitável reconhecer que um fã de Madonna em Cuba está inserido no que Appadurai (1997) chama de “esferas públicas diaspóricas”, ou seja, imaginação midiática, desterritorialização acarretada pelas migrações, gerando portanto universos simbólicos transnacionais, “comunidades de sentimento”, identidades prospectivas, partilhas de gostos, prazeres e aspirações que parecem tanto negociar com aspectos macropolíticos quanto dizer respeito aos afetos e táticas do micropolítico. Postula-se portanto que a presença de ícones da cultura norte-americana em território cubano não integra uma máxima imperialista, de dominação cultural ou imposição ideológica das lógicas do capital no achatamento das manifestações culturais locais, mas antes cria um conjunto de tensões de ordens político-culturais que se manifestam em experiências contraditórias, na medida em que lidam com a história de uma Nação e dos limites e imposições aos sujeitos viventes. Enxerga-se assim que a globalização não é um processo linear, muito menos consensual, na medida em que trata-se de um “intenso 126 campo de conflitos entre grupos sociais, Estados, interesses hegemônicos e subalternos” (Souza, 2014, p. 27). Colorama, a “MTV cubana” O programa de televisão Colorama é um dos pontos centrais para entendimento da presença de ícones da cultura pop mundial no contexto de Cuba. Criado em 1979, com 38 anos de exibição, Colorama é apontado por Alberto Arcos e por fãs de música pop anglófila em Cuba como um “oásis pop” em meio à programação repleta de atrativos ligados à exaltação da musicalidade latina e tradicional nos sistemas midiáticos. O atrativo, que é chamado informalmente de “MTV cubana”, pode ser visto como uma brecha cosmopolita, pop e contemporânea na mídia televisiva da ilha socialista. É também envolvo numa certa aura de mistério de como produtores/programadores conseguiam exibir, por exemplo, videoclipes de Madonna – um dos maiores ícones da “cultura ianque” – detratada em discursos políticos e em outdoors dispostos em toda ilha socialista, em plena televisão cubana. A partir do relato de numa entrevista em profundidade com o fã de Madonna e jornalista Alberto Arcos, reconhecemos a singularidade do programa de TV Colorama no contexto midiático cubano, como ponto de partida para pensar os enfrentamentos dos sujeitos diante de ambientes restritivos de espectatorialidade e fruição, acionando debater a zona tensiva dos processos de globalização que inserem sujeitos subalternos em lógicas globais (Santos, 2014). O “fechamento” dos sistemas midiáticos de Cuba aos produtos internacionais, em grande parte do que se convencio- 127 nou chamar de cultura pop, oriundos do sistema capitalista, aciona debater uma série de disputas internas e externas, entre grupos que propunham diferentes visões de como o governo revolucionário, que se instaura no País, na década de 1960, deveria lidar com as “influências externas”. Pensar o programa de TV Colorama, nas décadas de 1970 e 1980, em Cuba, significa reconhecer uma história de brechas e acomodações de produtos “subversivos” no cotidiano dos cubanos, impelindo reconhecer que, embora nos mais fechados sistemas de acesso a bens culturais, diante de estruturas dadas e estanques de amparos legais, é possível enxergar ações de sujeitos que tangenciam e problematizam as estruturas. Com foco na produção cinematográfica, Villaça (2006) investiga como o Instituto Cubano del Arte e Indústria Cinematográficos (ICAIC), primeiro organismo cultural criado após a Revolução Cubana, foi importante como instituição mediadora capaz de fazer enxergar lugares de autonomia e negociação dentro de padrões aparentemente “rígidos” de controle e gestão de conteúdos. No caso do Instituto, a autora postula que a instituição gozava de autonomia relativa em relação aos mecanismos de controle governamentais, por meio da ação dos cineastas e da mediação da direção, tornando possível a produção de vários filmes ambíguos e críticos ao regime, ao longo do período entre 1959 e 1991. Esta autonomia foi abalada, em diversos momentos, em função de fatores como a reestruturação do Estado, os fracassos econômicos e o acirramento do autoritarismo em Cuba, principalmente a partir dos 128 anos 1970. Ainda assim, o Instituto se readaptou às demandas políticas governamentais num jogo político de adesão e resistência à política cultural oficial. (Villaça, 2006, p. 8) Percebe-se que as dinâmicas de controle e regulação de conteúdos exibidos no contexto cubano apresenta brechas que podem ser visualizadas como campos tensivos de ação em que o social e o político se imbricam gerando tramas complexas de resistência. Um dos pontos para se entender como se deu o processo de negociação entre instituições do governo cubano e sujeitos que ocupavam cargos de chefia em instituições midiáticas cubanas está na criação, em 1961, da União de Artistas e Escritores de Cuba (UNEAC)26, órgão que vai postular as bases e gerenciar as políticas culturais de Cuba sobretudo nos primeiros anos após a Revolução Cubana de 1959, entre 1961 e 1968. “Neste período, a política cultural vai sendo definida muito mais pela prática do que pela publicação de leis e projetos” (Villaça, 2006, p. 170), resultando num arranjo visivelmente poroso em que se privilegiam ações individuais que endossam ou burlam diretrizes mestras. Cabe evidenciar o contexto de que, segundo Villaça, dois grupos desenhavam “propostas de políticas culturais” diferentes, algumas delas, conflitantes, sobre a maneira com que o governo cubano deveria lidar com a produção e circulação de produtos culturais – inclusive estrangeiros – no País. Um primeiro, “dogmático”, apresentava proposta próxima às di26 http://www.uneac.org.cu/. 129 retrizes do Realismo Socialismo soviético27 que, por sua vez, se alinhava a uma política conciliatória, nas diretrizes revolucionárias. Trata-se de “comunistas antes da Revolução que faziam parte da cúpula do Partido Socialista Popular (PSP), que relutou a apoiar o movimento revolucionário e Fidel Castro, mas depois decidiu apoiar a Revolução e o governo instituído” (Villaça, 2016, p. 171). O segundo grupo, chamado de “oposicionista”, era formado por comunistas contrários às diretrizes mestras do Realismo Socialismo e também opostos à adoção integral dos parâmetros do regime soviético em Cuba e também por intelectuais não-comunistas, simpáticos às políticas do M-26, o movimento revolucionário que instaura o Partido Comunista de Cuba (PCC) como partido único no País a partir de 1965. Percebe-se que, neste contexto de formação de bases da política cultural em Cuba, coexistiam sintomas das duas propostas – embora formalmente o governo cubano, neste período, tentasse romper com o “proselitismo e o diversionismo ideológico” daqueles que defendiam políticas culturais menos centradas na formação de uma sólida base cultural amparada nos valores e diretrizes das culturas cubana e latino-americana. A saída de comunistas “dogmáticos” e a entrada de “oposicionis27 O Realismo Socialismo foi, na prática, uma política de Estado para a estética em todos os campos desde a literatura até o design, incluindo as manifestações artísticas e culturais soviéticas (pintura, arquitetura, escultura, música, cinema, teatro, etc). Está diretamente associado ao comunismo ortodoxo e aos regimes de orientação ou inspiração stalinista. O estilo do Realismo Socialista é associado à estética oficial criada por Andrei Jdanov, comissário de Stalin responsável pela produção cultural e propaganda. Uma meta da propaganda totalitária, muitas vezes bem-sucedida, era transmitir ao povo a ideia da onipresença do grande líder, presente em todos os lugares, sabendo de tudo, sendo, portanto, necessário temê-lo. 130 tas” no Governo Revolucionário se deu de forma gradual, lenta e tensiva, a princípio, se arrastando por longos sete anos (entre 1961 e 1968), acarretando em medidas que, ora inesperadas, ora inexplicadas, promoviam o fechamento de suplementos literários, de editoras de livros independentes, remodelamento de publicações que debatiam estética no cinema, por exemplo, proibição de filmes estrangeiros (Nouvelle Vague) e nacionais, controle de propostas estéticas abstracionistas e estilos musicais como o rock e, mais detidamente, grupos que cantavam inglês como os Beatles e os Rolling Stones28. Um ano antes do início dos debates sobre a União de Artistas e Escritores de Cuba, mais especificamente em 6 de agosto de 1960, tem-se início o processo de estatização da televisão e da rádio em Cuba, processo este que passou pela intervenção do Governo Revolucionário, nas companhias norte-americanas que monopolizavam os sistemas midiáticos cubanos, Cuban Telephone Company e sua filial também com capital estrangeiro Equipos Standard de Cuba S.A29. Em 1962, completou-se o processo de gestão governamental dos meios de comunicação com a criação do Instituto Cubano 28 O “mito” da censura aos Beatles e aos Rolling Stones na ilha só aumentou o caráter subversivo de quem ouvia estes artistas em Cuba. Fãs dos Beatles passaram a criar redes de contatos para importação de discos e gravações clandestinas de shows para compartilhamento em residências que tinham vídeo cassete na década de 1980, como relata Ernesto Juan Castellanos (1997) no livro “Los Beatles en Cuba”. Vários bares em cidades cubanas, mesmo sob o olhar “desconfiado” do Estado, prestavam homenagem aos Beatles, como o Submarino Amarillo (espanhol para Yellow Submarine), em Havana; o Yesterday, em Trinidad e o Beatles Bar, no balneário de Varadero. 29 Para mais informações: https://www.cubanet.org/otros/television-cubana-radio-con-imagen/. 131 de Radiodifusión (ICR), mais tarde denominado Instituto Cubano de Radio y Televisión (ICRT). Embora medidas aparecessem como diretrizes mestras de uma política cultural que tentaria implementar a força das culturas cubana e latino-americana, percebe-se que ações isoladas de sujeitos em contextos históricos distintos tensionavam tais normas e abriam flancos por onde parte dos sujeitos viventes da ilha tentavam enxergar a cultura pop anglófila. É dessa forma que precisamos entender as tensões com a regulação no programa de TV Colorama. Internacionalização da TV em Cuba Colorama foi ao ar na televisão cubana no ano de 1979, como sendo uma espécie de “rádio com imagens” como relatam diversos entrevistados ao se referirem ao programa. Trata-se de um atrativo dedicado a exibir videoclipes, números musicais e paradas do sucesso de artistas nacionais e internacionais. Até o ano de 1984, a faixa televisiva era exibida ao vivo, dispondo de inserções de vídeos pré-gravados ao longo de sua meia-hora de exibição. “Foi a partir de 1985, com a chegada de equipamentos de formato Sony Betacam à ilha que se generaliza a gravação e edição de espaços dramatizados e musicais na TV cubana” (Peidro, 2013, p. 1). Não só Madonna, mas Spice Girls, Backstreet Boys, Mariah Carey, U2, Beyoncé (Figura 7) entre inúmeros outros, tinham seus vídeos expostos no Colorama. Foi em 1998 que o jovem Alberto Arcos certificou-se ser fã de Madonna, quando viu uma apresentação ao vivo da faixa 132 FIGURA 7 Frame do videoclipe “Sweet Dreams” de Beyoncé exibido no programa de TV Colorama 133 “Frozen”, no mesmo Colorama em que assistira ao videoclipe de “Vogue”. “Madonna estava de cabelos escuros, tinha tido uma filha com Carlos León, um bailarino cubano, pai de sua filha Lourdes Maria. Havia uma série de conexões daquela artista mutante, com ‘vários rostos’, cores de cabelo, e a ilha de Cuba. Percebi como Madonna se reinventava e como nós, cubanos, também aprendemos a nos reinventar”, diz Alberto Arcos, que começou a se transformar numa referência em se tratando de buscar e disseminar informações sobre Madonna em Cuba. Outros fãs de Madonna ligavam, em telefones fixos, para Alberto, para que ele repassasse informações sobre a trajetória de Madonna, exibição de novos clipes ou fofocas sobre sua vida pessoal. Primeiro de sua casa em Holgín, depois em Havana, quando já tinha migrado para a capital em busca de estudos e emprego. Alberto trabalhava, em 2016, na Rádio Ciudad, localizada entre as Calles 23 e N, no bairro de Vedado, Havana, e era uma espécie de figura central para espalhar por Cuba, informações sobre Madonna. Como os vídeos de Madonna eram exibidos no Colorama? Trata-se de um “mistério” para o próprio Alberto, que, reconhece a necessidade do governo cubano realmente censurar obras, não de artistas internacionais, que traziam mensagens afetivas e edificantes (como as canções de Madonna que ele gostava “Vogue” e “Frozen”), mas a própria produção de músicas “malas” cubanas, que denigrem a imagem da mulher – ele se refere ao reguetón30. Ou seja, a própria ideia de protecionis30 Há uma tensão interna no consumo de música em Cuba tanto de recusa de algumas naturezas de músicas estrangeiras, como a música pop norte-americana, mas também o reguetón, a música latina periférica, encontra rechaço por parte não 134 mo à música latina, segundo Alberto, sempre foi questionada quando se debatia, em fóruns de fãs de música pop internacional, as diretrizes restritivas do governo. De acordo com ele, a exibição de videoclipes internacionais no Colorama ocorria “sem aviso prévio” e era sempre um “frisson” aguardar o programa, que gerava comentários durante toda a semana entre seus amigos, em grande maioria fãs de artistas internacionais. Percebe-se que a programação da televisão cubana obedecia a um padrão semelhante ao descrito por Villaça no tocante ao cinema: uma política de exibição que vai sendo definida muito mais pela prática do que pelas leis ou medidas, uma vez que, mesmo durante as décadas de 1970 e 1980, quando se teve o maior acirramento das restrições a atrativos internacionais nas emissoras estatais cubanas, o programa Colorama exibia números musicais de diversos países. A produtora Marta Pita, um das programadoras responsáveis pelo programa Colorama, durante os anos 1980 e 1990, explica os mecanismos de cotas que existia dentro do atrativo: “cabiam sete vídeos musicais em cada programa, tendo que ser quatro de países oriundos do campo socialista e três de artistas latinos” (apud Suarez, 2014). Esta fração, segundo a produtora, fazia parte de uma política de internacionalização do cidadão cubano, que precisava “entrar em contato com outras culturas, sobretudo aquelas que traziam os valores socialistas”. Ainda assim, nem todos os artistas latinos podiam ser exibisó dos órgãos de controle dos sistemas midiáticos, mas também do público mais velho, que acusa a música de denegrir a mulher, falar de sexo e consumo – tal qual o funk carioca e o brega, no Brasil. No entanto, parte da juventude cubana é aficcionada pelo reguetón. 135 dos. O espanhol Julio Iglesias, o brasileiro Roberto Carlos, o argentino Alberto Cortez, o venezuelano José Luis Rodruguez “El Puma”, o portorriquenho José Feliciano, e naturalmente a cantora cubana Gloria Estefan, que havia emigrado para os Estados Unidos, eram proibidos de irem ao ar no Colorama. Segundo Marta Pita, estes artistas eram considerados “alienados” e, portanto, exemplos de latinos a não serem seguidos, por tratarem de assuntos como amor e as relações “mundanas”. Especificamente sobre Julio Iglesias, a produtora lembra da primeira vez que exibiu um vídeo musical do cantor, no ano de 1991, porque, segundo ela, “uma homem importante que estava apaixonado por uma mulher, queria dedicar a canção a ela e disse que se responsabilizaria pela música ir ao ar”. A referida canção era “Me Olvide de Vivir”, lançada por Iglesias no álbum “Begin the Beguine”, em 1978 e somente treze anos depois, tocada numa emissora oficial cubana31. O mais curioso na formação da programação do Colorama recai sobre a possibilidade de preencher o espaço de quatro vídeos musicais semanais oriundos de países do campo socialista (notadamente União Soviética, Polônia, Alemanha Oriental, entre outros), algo que, naturalmente era burlado pela produção do atrativo. Na relação que Marta Pita tinha que emitir semanalmente para o Instituto Cubano de Radio y Televisión (ICRT), ela justificava que, por exemplo, os australianos Bee 31 Parte da recusa de Julio Iglesias pelo governo cubano residia sobre sua relação intensa com Miami, nos Estados Unidos, e portanto, com os cubanos exilados “do lado de lá”, em sua grande parte, críticos aos rumos da ilha pós Revolução Cubana de 1959. Para mais informações: http://www.diariodecuba.com/cultura/1444430222_17424.html. 136 Gees e Air Supply eram “polacos” (poloneses); o norte-americano Michael McDonald era da República Democrática Alemã (Alemanha Oriental) e Madonna (assim como todas as cantoras loiras) eram da União Soviética. “Eu tinha muito medo, toda semana era uma tensão caso alguém desconfiasse que estávamos colocando no ar, artistas dos Estados Unidos”, justifica. Percebe-se pelas citações de Marta Pita, a presença marcante de artistas de língua inglesa oriundos da Austrália (Bee Gees, Air Supply, Men at Work, Divinyls). A única vez, segundo a produtora, que ela foi chamada para dar explicações ao Instituto Cubano de Radio y Televisión (ICRT) foi justamente quando exibiu o clipe “I Touch Myself”, da banda australiana Divinyls, que fazia menção ao fato de uma mulher “se tocar”, trazendo claras insinuações à masturbação. Segundo Pita, a crítica governamental veio sob o vago argumento de que aquele “não era um vídeo para ser exibido na televisão estatal”. Ela afirma que se desculpou e “não ocorreu nada”. A produtora justifica não apenas burlar as lógicas artísticas do Colorama, mas também, os sistemas de divulgação. Durante os anos 1990, o Período Especial de restrição alimentar em Cuba, ela assume que trocava comida pelo anúncio nos créditos finais do Colorama. O principal destaque ia para a Sorveteria Coppelia, que cedia caixas de sorvete e bolos para a produção do atrativo e, em troca, tinha seu nome citado em letras maiores nos créditos finais. “Isto causava uma tensão também curiosa. Muitos perguntavam a mim o que o nome da Coppelia fazia creditada no Colorama. Funcionários de uma sorveteria trabalhariam num programa de televisão?”, ironiza Marta Pita. 137 Ainda sobre a dinâmica produtiva do Colorama, a produtora explica que quando falecia algum oficial que havia contribuído com a Revolução Cubana e seus desdobramentos, era preciso fazer as honras militares de alguma ação. Ela recebia diretrizes para suspender a exibição de videoclipes e criar vídeos com coreografias e temas de música erudita, como Chopin, Mozart e Bach, em memória ou homenagem ao dirigente. Segundo Pita, quando o coronel cubano Pedro Benigno Tortoló, um dos responsáveis pela ação do governo de Cuba na ilha de Granada, em 1979, que instaurou um governo de esquerda na ilha caribenha, voltou para Cuba como um herói, se produziram videoclipes com canções de artistas revolucionários, como Silvio Rodríguez e Pablo Milanés. “Algumas vezes nós do programa Colorama produzíamos videoclipes e criávamos contextos de músicas pop com eventos para militares. A cultura pop sempre esteve presente na ilha, sobretudo o pop latino”, observa. Solidariedade de fãs em redes sociais O contato de Alberto Arcos com videoclipes de Madonna através do programa Colorama e o posterior processo de distinção dele no contexto de fãs da cantora em Cuba esteve atrelado, também, à sua trajetória como jornalista. Alberto ingressou na Universidad de Havana para cursar Jornalismo em 1996 e em 2016 atuava na Rádio Havana Cuba (www. radiohc.cu) quando da ocasião da entrevista para esta pesquisa. Toma-se a relação de Alberto Arcos com as mídias na busca por material de Madonna em Cuba como metáfora 138 da própria disposição dos fãs de música pop internacional no contexto cubano. No ano de 2015, dando continuidade ao projeto de divulgar o trabalho e a vida pessoal de Madonna entre os cubanos (primeiramente atendendo telefonemas e depois reunindo-se com outros fãs), Arcos cria a página “Madonna Cuba”, na rede social Facebook. A primeira postagem, com a foto de perfil da página (uma imagem de Madonna, naturalmente) data de 21 de abril de 2015. Evidencia-se que Arcos possui privilégios de acesso à internet em Cuba, uma vez que, sabe-se que Cuba possui um dos mais baixos índices de acesso à internet privada do mundo (apenas 3% da população dispõe de internet banda larga em casa, muitas vezes, pirateada). O texto descritivo da página diz apenas: “Cuba também tem fãs para enaltecer a Rainha do Pop”32. Há o contato de Alberto (alberto@rhc.cu) e também uma possibilidade de mandar mensagens para ele. Foi através deste chat que, em janeiro de 2016, tive o primeiro contato com Arcos, explicando que estava fazendo uma pesquisa sobre fãs de música pop anglófila em Cuba e solicitando uma entrevista, que aconteceria dois meses depois, no dia 16 de março de 2016, na Cafeteria La Rampa, no bairro de Vedado, nas proximidades da Rádio Havana Cuba, onde ele trabalhava. Nossa entrevista durou quase duas horas em que nos apresentamos e conversamos sobre a relação de Alberto com Madonna, desde sua adolescência em Holguín e posterior ida a Havana para estudar e sua militância por divulgar o trabalho da cantora em Cuba. Levei 32 Tradução de “Cuba tambien tiene fans para distinguir a la reina del pop”. 139 presentes para ele: um DVD da MDNA Tour; um CD “Rebel Heart” e uma camisa com a imagem da cantora. Alberto é calmo, fala muito baixo e em alguns momentos suspeitei que ele desconfiava de meu interesse sobre o assunto. Algumas vezes, era difícil entender o que ele tratava, tanto pelo volume de sua fala, quanto pelos subentendidos que pareciam haver em seu discurso. Em alguma medida, acho que Alberto minimizava a sua posição de privilégio em relação à internet, por trabalhar numa rádio, que lhe disponibilizaria acesso integral a web, ao menos, em seu horário de trabalho. Quando notava que Alberto baixava o tom de voz e tentava fugir de alguns assuntos, optei por não insistir, não enfrentá-lo, respeitando o limite que ele me impunha de acesso às informações que ele gostaria que estivessem presentes na sua fala. Percebi que Alberto expressou estar envergonhado com os presentes que lhe dei e também pelo fato de que eu paguei a sua conta na lanchonete. A entrevista com Alberto Arcos me ajudou a contextualizar mais historicamente e de forma biográfica aquele fã. No entanto, pelo próprio limite de tempo e da inevitável timidez do entrevistado, não consegui rastrear novas disposições sobre a relação dele com Madonna. Voltei para o Facebook e fui investigar cronologicamente como se apresentava a narrativa proposta por Arcos para Madonna no contexto cubano. Percebi três grandes grupos de postagens que pareciam tanto apresentar a cantora para novos fãs cubanos quanto também conectar o próprio Alberto com outros fãs – notadamente da América Latina e de países europeus de línguas de 140 matrizes latinas. Entre as principais tipologias de postagens de Arcos sobre Madonna estão: 1) conexões entre a trajetória e a poética de Madonna com a geografia ou geopolítica de Cuba; 2) formação de redes com outros fãs de Madonna; 3) relatoria da condição de fã de Madonna sem acesso aos produtos da cantora no contexto cubano. Traçamos considerações e trazemos à tona amostragens empíricas a seguir. 1) Conexões entre a trajetória e a poética de Madonna com a geografia ou geopolítica de Cuba: neste grupo de postagens, evidencia-se desde referências a canções de Madonna que se “encaixariam” para falar de Cuba (como “La Isla Bonita”33 e “Vogue”) até referências à trajetória da cantora em analogia à histórica de Cuba (Figura 8). A canção “La Isla Bonita”, lançada por Madonna em 1986, no álbum “True Blue”, é a mais recorrente conexão entre fãs da cantora e o contexto cubano. Percebe-se como Alberto recorre também a uma série de clichês sobre Cuba para fazer comparações com Madonna. Em 2 de julho de 2015, ele posta “Madonna: caliente como Cuba”, trazendo à tona o imaginário tropical da ilha caribenha. A referência à tropicalidade se segue: “Madonna: Un Sol de Verano como Cuba” (19 de julho de 2015), “Madonna: Luminaria como Cuba” (6 de agosto de 2015). “Un Rayo de Luz como Cuba” (30 de agosto de 2015), “Un huracán como Cuba” (30 de setembro de 2015). Concomitantemente, Alberto adota a estratégia de se referir também à singularidade política de Cuba para comparar Madonna. Em 21 de julho de 2015, posta uma foto da cantora 33 https://www.facebook.com/Arcos73/posts/859154647491058. 141 FIGURA 8. Frame da página do Facebook “Madonna CUBA” em que o administrador realiza comparações entre a cantora pop e a trajetória histórica e revolucionária cubana 142 com a legenda: “Madonna: Única como Cuba”. O lugar único de Cuba na geopolítica mundial parece ser uma boa chave de referência do jornalista para exaltar a sua página como também “única” no contexto cubano. No dia 16 de julho de 2015, mais uma referência política que conecta Madonna com Cuba através da lente de Arcos: “Madonna: Sin Miedo como Cuba”, fazendo uma velada referência à política anticubana de embargo e restrições implantados pelos Estados Unidos. No mês do aniversário de Madonna, com uma foto que lembra a própria configuração bélica de Madonna, o jornalista Alberto Arcos atesta: “Madonna: Guerrera como Cuba” (4 de agosto de 2017), trazendo à tona o imaginário de lutadora, presente na imagética do álbum “American Life”, quando Madonna aparece na capa numa imagem que lembra a de Che Guevara. Há uma série de postagens de fotos de Madonna em trajes militares, sobretudo nas performances da faixa “American Life”, quando a cantora adotou um visual de boina, coturno e estética militarista (Figura 9). Também associando o estilo de vida saudável e enérgico de Madonna à trajetória esportiva da ilha socialista, observa-se postagens que parecem estar neste universo: “Madonna: Recordista como Cuba” (23 de agosto de 2015) e “Madonna: Indomável como Cuba” (2 de setembro de 2015). Saindo da referência política para adentrar uma dinâmica pessoal ainda conectada com a ilha de Cuba, está a postagem de 31 de janeiro de 2016, em que, diante de uma fotografia da filha de Madonna, Lourdes Maria, o jornalista dispõe: “Lourdes, la hija de Madonna, és una Autentica Bella Cubana” (“Lourdes, a filha de Madonna é uma autêntica bela cubana”) (31 de janeiro 143 FIGURA 9. Imagética militarista do álbum “American Life” gera conexões com a história revolucionária da ilha socialista 144 de 2016), estabelecendo a referência de que a primeira filha da cantora é fruto da relação de Madonna com o bailarino cubano Carlos Leon. Este conjunto de postagens ajuda a situar a página diante de um duplo endereçamento, a partir da narrativização de semelhanças entre a cantora e a história e política de Cuba e seus enlaces afetivos privados a partir de sua filha. 2) Formação de redes com outros fãs de Madonna: Este conjunto de postagens está disposto a partir, muitas vezes, de compartilhamentos que Alberto Arcos faz de páginas dedicadas a Madonna em outros países, no contexto cubano. Percebe-se, por uma própria disposição do idioma espanhol, a preferência pelo jornalista compartilhar posts de países da América Latina e da Europa de línguas de matrizes latinas. Vem do México o maior número de compartilhamento de posts (um total de oito) das páginas “Madonna México”, “Madonna MX” e “La Realeza del Pop”. Com quatro postagens, em segundo lugar aparece a página “Grupo Madonna Oficial – Peru”, seguida de três postagens do “Madonna Venezuela”. Percebe-se que Alberto Arcos também hierarquiza as páginas, fazendo posts destacando algumas delas, em função de sua importância histórica. Ao se referir à página “Divina Madonna – Espanha”, o autor enfatiza que a tal página é muito fiel à “rainha do pop”, estando, ao lado de Madonna, desde a extinta rede social Orkut, no início dos anos 2000. A perspectiva de formação de redes de fãs de Madonna latino-americanos se estreita a partir de 6 de junho de 2015, quando a fã argentina Alejandra Silvia Ludueña sugere que Alberto publique posts apresentando a página “Madonna 145 Cuba” no fórum da página “Lucky Star Madonna Fans Club Argentina”. Surpreendido, ele registra, um dia depois, agradecendo a Alejandra, que, em 24 horas, a página “Madonna Cuba” teve 70 “likes”. Desse contato, surge a colaboração do fã também argentino Lesmack Mesa Parente (do fã-clube Madonna Argentina), que cede uma ilustração de Madonna para Alberto sendo creditado “Arte Madonna by Lesmack (Argentina)”. Há compartilhamentos de postagens de sites em inglês (Madonna Australia e Material Girl PR-Inglaterra), em chinês (Madonna China) (Figura 10) e em turco (Madonna Türkyie Official – Turquia). Nenhum dos Estados Unidos. 3) Narrativização da condição de fã de Madonna sem acesso aos produtos da cantora: no dia 18 de junho de 2015, Alberto Arcos surpreende os “assinantes” da página “Madonna Cuba” com um conteúdo crítico em sua postagem: “Fãs cubanos dentro desta ilha estamos ansiosos e desiludidos porque não existe uma forma sequer de ver o clipe de ‘Bitch I’m Madonna’. Nada descarrega, nada baixa, não há acesso. Tudo bloqueado. O Youtube nem aparece. Amém”34. É a primeira vez que o jornalista usa um tom crítico se referindo ao bloqueio à internet e a baixa velocidade no contexto cubano, inclusive mencionando a possibilidade de censura ao YouTube que “nem aparece”. Cinco dias depois, ele volta a lamentar, num post de 23 de junho de 2015, em que, com uma fotografia de Madonna 34 Tradução nossa para: “Los Fans cubanos dentro de la Isla estamos anciosos y desilusionados no existe aun una via para poder VER el clip de BITCH I'm MADONNA, nada descarga, nada baja, nada nos da acceso, todo bloquedo,,youtube que NO aparece, AMEN”. Disponível em: https://www.facebook.com/Arcos73/ posts/885386048201251. 146 FIGURA 10. Geopolítica dos compartilhamentos: página dedicada a Madonna em Cuba compartilha até conteúdo chinês 147 assustada, redige: “Esta é a cara de #Madonna ao saber que seus fãs cubanos dentro da ilha ainda não assistimos a seu último vídeo ‘Bitch I’m Madonna’. YouTube cancela o acesso ao vídeo dentro de meu país. Bloqueia. Saberá Madonna disso?”35. Nesta mesma postagem, inicia-se um diálogo com fãs de outros países em que Alberto relata a dificuldade de ser fã de Madonna em Cuba. Para o espanhol Paolo Salas, atesta às 21h09 do dia 23 de junho: “estimado amigo, não imaginas o sofrimento dos fãs cubanos para ver coisas de nossa rainha”. O fã russo Diego Gregoraschuk dá uma sugestão a Alberto, às 21h22 do dia 23 de junho: “Uau, garoto! E se vocês tentarem ver pelo Vimeo ou alguma outra rede? Há o Rutube, rede russa. Ou então, eu subo aqui e compartilho com vocês. Há coisas de Madonna em Cuba? Revistas, discos, se edita algo?”, indaga o fã russo (Figura 11). Alberto responde às 23h28 do dia 23 de junho: “Não chega nada aqui ou, se mandasse, se perderia no caminho. Mas admiro sua atitude”, referindo-se à atitude do amigo em “subir” o vídeo numa rede social russa apenas para que Alberto e fãs de Madonna em Cuba pudessem assistir. Como debater os afetos políticos de fãs da cantora Madonna em Cuba, diante de um histórico de disputas geopolíticas entre Cuba e Estados Unidos, senão através de uma agenda que proponha entender os impasses da interculturalidade? Afetos que são processos não facilmente agrupáveis 35 Tradução nossa para: “Esta es la cara de #Madonna al enterarse que sus Fans Cubanos dentro de la isla aun NO hemos visto su último video, Bitch I'm Madonna. Youtube cancela las vistas al video dentro de mi pais. Lo bloquea. Sabrá MADONNA esto?”. Disponível em: https://www.facebook.com/Arcos73 / posts/885386048201251. 148 FIGURA 11. Solidariedade nas redes sociais: fã russo de Madonna oferece ajuda 149 numa mesma série socioeconômica ou cultural, uma vez que se apresentam contraditórios, turvos, pouco seguros. Mais do que generalizar conclusões, optamos por pensar como fenômenos como este ajudam a reformular perguntas: o que acontece com o local, com o nacional e com o transnacional? Que relações entre trabalho, consumo e território estão implicados nas articulações entre bens e mensagens? Pensar o consumo de produtos e artistas norte-americanos em Cuba significa debater, num sentido mais amplo, as inúmeras etiquetas com identificação asiática, os artigos de consumo estadunidense ou as bandeiras argentinas e mexicanas. Canclini atesta: “As relações entre aproximações de mercado, nacionalismos políticos e inércias cotidianas de gostos e afetos seguem dinâmicas divergentes, como se não tivessem se inteirado das redes que reúnem economia, política e cultura em escala transnacional” (Canclini, 2009, p. 21). A proposta de captar um impasse político diante de um fenômeno de consumo cultural como fãs de música pop estadunidense em Cuba apela para o modo errático e não representativo em que demabula a política. Trata-se de prestar atenção às misturas e aos mal-entendidos que vinculam os grupos, descrevendo como se apropria dos produtos materiais e simbólicos alheios e como os reinterpreta. Não só as misturas mas também as barreiras em que se entricheiram. Não só os intentos de conjugar as diferenças mas também os dilaceramentos que nos habitam. (Canclini, 2009, p. 25) 150 O que é um lugar na mundialização? Quem fala e a partir de onde? O que significam os desacordos entre jogos e atores, triunfos militares e fracassos políticos, difusão mundial e processos criativos? Perguntas importantes de serem feitas num contexto sempre difuso entre contextos locais e disposições globais. Temporalidades e territorialidades que se agenciam, gerando formas singulares de entendimento do cosmopolitismo. 151 4 Lady Gaga em Cuba arp a a ma erc a nu e c ue tad fas d q os os ra ra ed . Enc gar read e p r a de uba ma sob , ar a p s t C sa olho onta smo ure l de e e m , ita de m arty me c li m enso ,a p n a a ó , e , lec na, c serv ro, M e é) aga no im l José a e a M a e nt hê – dy G ión, av o qu ori o no c H a c m e M i u L l l c e d e o e d ca iego ce c tora ev ao M nh R ea esta a e C n n r a te ca e La ente Am torâ e d an re (p da i d d l r fr e b w aza te écie rig m i l o e sh p ef Pl o, ba es e r r cu r um e a hã c n rum oma ia ve agi to no t r m n I de o se na. me i c m a co Hav ado, p em cam s de 152 Martí – imaginou? O palco ficaria de frente para a imagem de Che Guevara, aquela que tem o “Hasta la victoria, siempre”. O castelo da Lady Gaga, da turnê Born this way (ela fala inglês com sotaque castelhano), imenso, ao fundo. O apagar das luzes. Show gratuito, à noite, porque, segundo ela, cubanos não teriam como pagar a “fortuna” que seria um espetáculo pop deste porte. Mas o show teria que vir completo: cenário, figurinos, maquiagem, a moto em que Lady Gaga monta, até o cavalo da performance da canção Governament Hooker, a cantora montada nele, um luxo. Mais um gole de cuba libre. Tem uma cena em que Lady Gaga canta Born this way saindo de uma espécie de vagina cenográfica, um parto ao vivo, você viu isso, Marty? “Me encanta esta parte”, mãos no coração, tremulância encenada. Como Marty conseguiu assistir ao show da turnê Born this way, já que não é possível comprar produtos desta natureza em lojas no contexto cubano? “Encomendo os shows de Lady Gaga através dos paquetes36. Tem um ‘paquetero’ na Avenida Linea, que tem tudo de Lady Gaga e das divas pop. Ele sempre me atualiza das novidades”, afirma. Vou com Marty até o local que ela diz adquirir os arquivos digitais de Lady Gaga. Trata-se de uma espécie de lan house com um computador ao fundo com um atendente (o tal amigo que indica “tudo” de Lady Gaga para Marty) e prateleiras com filmes, CDs, seriados e telenovelas baixadas. Estamos 36 Conforme vimos no capítulo anterior, os paquetes são conjuntos de arquivos baixados em disquerias ou afins através do qual é possível que os cubanos assistam conteúdos pop em circulação transnacional. Filmes, álbuns fonográficos inteiros, seriados, telenovelas, de tudo é possível encontrar nos paquetes. 153 numa ‘disquería’, uma loja de produtos de entretenimento em que é possível comprar filmes, ouvir músicas, seriados, telenovelas e reality shows de todo o mundo. Os preços variam de acordo com a quantidade de material que você quer levar. É possível comprar somente um filme, passando pela temporada completa de um seriado ou uma telenovela. Com música, é mais barato. Pode-se ter, por exemplo, toda a discografia de um artista pop por 5 CUCs (o equivalente a 5 Euros) em alta qualidade. Os ‘paqueteros’ formam suas clientelas por região e também por preferências dos clientes. Marty morava perto da ‘disquería’ e também tinha adesão às preferências de filmes, seriados e músicas que havia disponíveis. Esta ‘disquería’ que Marty frequentava era, marcadamente, gay, com muitos filmes, seriados e músicas com temáticas LGBTT. Notei que a minha presença, como amigo estrangeiro de Marty, causou um certo estranhamento por parte do proprietário – ainda mais porque ela me apresentou como um “professor e pesquisador que está fazendo uma tese aqui em Cuba”. Outro gole de cuba libre. A maneira singular com que Marty tem acesso às músicas, videoclipes e shows de Lady Gaga – através dos paquetes comercializados nas principais cidades cubanas – desvela um sistema comunicacional muito particular em que as disposições midiáticas hegemônicas (notadamente a televisão) convivem com circuitos midiáticos alternativos (a partir da internet e das redes sociais), gerando um conjunto complexo de itinerários de bens culturais que formam a pluralidade de objetos de entretenimento a que os cidadãos cubanos têm acesso. 154 Enquanto estou na disqueria, em que Marty me mostra os arquivos de canções de Lady Gaga disponíveis, converso também com o responsável pelos paquetes37, que relata a importância dos conteúdos presentes nestes paquetes no cotidiano dos seus amigos. “As canções de divas pop ressignificam o dia-a-dia de muitos de meus amigos, que superam depressão, ansiedade, relatam problemas familiares em função de serem gays. O discurso abertamente ligado ao empoderamento e a aceitação de algumas músicas de Lady Gaga são formas de aceitação e de negociação com o estilo de vida das comunidades gays de Havana”, relata. Quando pergunto sobre o problema em ser uma artista dos Estados Unidos, ele atesta: “Temos uma maneira muito particular de nos relacionarmos com a cultura norte-americana. Não estamos isolados no mundo. Costumo dizer que fazemos nossa leitura à cubana de obras feitas nos Estados Unidos”. A atividade de comercialização de paquetes integra um conjunto de ações do governo cubano do plano de abertura econômica da ilha através do Proyeto de Lineamientos de la Política Económica y Social, com aprovação de 80% da população, com a possibilidade de abertura de pequenos negócios por cidadãos cubanos. Estes empreendedores recebem o nome de “cuentapropista” (relativo a conta própria) e “conforme informações da direção de Trabalho e de Seguridade Social, no final de 2015, existiam 136 mil cuentapropistas somente em Havana, cidade que acolhe o maior número de pessoas vinculadas a este segmento38” (Primi, 2016, p. 15). 37 O responsável pelos paquetes pede para não ser identificado na pesquisa. 38 “Os setores mais procurados são transporte de carga e de passageiros, aluguel de casas, habitações e espaços vazios, montagem de vendas de alimentos e agentes de 155 Prometemos ser o último gole de cuba libre. Marty é travesti e espera que “um dia” consiga ver o show de Lady Gaga na ilha. Parece uma utopia. Um devir. Tento fugir do clichê que é aquela travesti diante de mim, emocionada, o sol nascendo, as ondas batendo no Malecón, os primeiros carros modelo Ford 1956 circulando ao longe, à espera de Lady Gaga. “Se Lady Gaga soubesse o enorme número de fãs que ela tem aqui em Cuba, acho que ela viria...”, diz Marty. Eu a conheci numa boate gay chamada Cabaret Las Vegas, no bairro de Vedado, ali nas proximidades do Malecón. Ela prefere ir ao Cabaret Las Vegas às quintas-feiras, quando há shows de drag queens. Nosso encontro se dá num sábado, o dia em que é mais cheio. Paga-se 2 CUCs para entrar. Dentro, trata-se de uma casa noturna, com muitos espelhos, um palco (onde acontecem os shows de drag queens) e um fumódromo no primeiro andar. Há televisões nas colunas exibindo videoclipes de artistas pop latinos e internacionais. Tem ar-condicionado, mas com a chegada de mais gente ao longo da noite, o calor se faz presente. Cheguei ao local por volta das 23h e, aos sábados, há somente DJs tocando música pop (muito reguetón, músicas populares cubanas, latinas e música internacional). Trata-se de um ambiente para flerte e sociabilidade entre gays (maciçamente do sexo masculino, embora havia também, na ocasião, algumas poucas mulheres). A música pop é um elemento que une os presentes. Os refrões, telecomunicações. Isabel Hamze Ruiz, diretora de Trabalho e Seguridade Social em Havana, garantiu que todos os meses são outogardas, em média, 1500 novas licenças na capital” (Primi, 2016, p. 15). 156 o “cantar junto” configuram momentos de acentuação da sociabilidade marcada pela alegria e pelo encontro. Percebi que muitos dos frequentadores da festa já se conheciam, falavam entre si com certa intimidade. Fui sozinho. Sou estrangeiro. Não bebo cerveja, mas tomo mojito e então parti para o bar para começar a “me soltar”, “quebrar o gelo” da minha chegada ao Cabaret Las Vegas. Já haviam me alertado sobre o risco da abordagem de “jineteros”, sujeitos locais que encenam amizade com estrangeiros para, possivelmente, aplicar golpes ou “se aproveitar” da “inocência” dos turistas. Cheguei com um certo misto de temor e curiosidade. Percebi, logo de início, que eu era bastante notado. Muitos frequentadores olhavam fixamente em minha direção, num indicativo de flerte, curiosidade ou apenas interesse. Procurei, num primeiro momento, entender o ambiente, sua espacialidade e seus códigos, para em seguida, partir para interações com os frequentadores. Confesso que, embora tivesse indo “fazer uma pesquisa de campo” no Cabaret Las Vegas, havia, em mim, algo que turvava esta premissa, uma vez que o referido local seria um ambiente que eu frequentaria se estivesse de passagem, a turismo, em Havana. Costumo frequentar festas gays que tocam música pop em viagens que faço para outras localidades. Neste caso, havia um componente interessante que despertava minha curiosidade: como se daria esta configuração da “boate gay” (uma instituição, de certa forma, global, com características muito semelhantes em diversas partes do mundo, inclusive no conteúdo das músicas e nas 157 atrações: DJs39, drag queens40, go go boys41) no contexto de Cuba. De forma que reconheço que não havia, na minha ida ao Cabaret Las Vegas, algo estritamente de “pesquisa de campo”. Não levei caderno de anotações, nem qualquer aparato para registro – exceto meu aparelho de celular, que usei somente para fazer fotos do local (nem sempre e também sem qualquer plano prévio de captação). Recorri à descrição da minha experiência e da minha memória naquela noite como artefatos de organização das informações da pesquisa. Reconheço que isto me impõe limites de registro, porém acentua um certo tom de disponibilidade e acessibilidade que faria com que atores sociais pudessem se aproximar e interagir comigo – sem que eu estivesse sob o estigma do “pesquisador”. Músicas pop latinas, de artistas como Shakira, Maluma, Gente de Zona, Jacob Forever, entre outros, embalavam a chegada dos frequentadores. Pouco mais de meia hora depois, sou abordado por Juan Antonio, que me pergunta se era a minha primeira vez ali, depois se interessa em saber se já conheço Havana e então começamos uma conversa sobre lugares legais da capital de Cuba para sair, música, Brasil. Eu estava tomando meu segundo mo39 Abreviação para disc jóquei, ou seja, profissionais que realizam discotecagem a partir de aparelhos que sintetizam sons de CDs, vinis ou pen drives, em canais de som que podem realizar mixagens e sampleamentos ao vivo. 40 Artistas da cultura gay noturna, em geral, homens que se fantasiam de mulheres, acentuando características femininas para espetáculos musicais ou de entretenimento. As drag queens (tradução para “rainhas travestidas”) costumam fazer números musicais de lypsinc (ou seja, dublagem) de músicas de cantoras pop. 41 Homens musculosos que dançam de sunga, descamisados, em boates gays, como metáfora da masculinidade presente nos espaços. Podem fazer strip tease (show em que vão tirando gradativamente a roupa) até ficarem somente em traje de banho ou similar. 158 jito quando ofereci uma cerveja a ele. Pediu uma Bucanero42, cerveja encorpada e forte. Havia uma performance na corporalidade de Juan que parecia se conectar ao imaginário do homem latino sensual e sedutor. Ele era branco, tinha cabelo embebido em gel, fumava e estava com uma calça branca bastante justa ao seu corpo, desvelando coxas grossas e marcadas. Reconheci ali uma corporalidade que também parecia dialogar com os ídolos de reguetón, seus corpos bastante sarados, roupas justas, óculos escuros e uma ideia de que se trata de um visual “moderno”. Foi logo depois que comprei a Bucanero para Juan que ouço uma voz comentar ao meu ouvido: “Cuidado!”. Quando me virei, encarei um rosto desenhado por cabelos longos, loiros, um rosto que se apresentava feminino, mas que trazia algumas rasuras do masculino. Um aparente paradoxo de gênero. “Depois te falo”, emendou, como se estivesse me alertando, ao mesmo tempo, criando um “gancho” para que eu a procurasse ao longo da noite. Aquela abordagem me deixou intrigado. Continuei a conversar com Juan e suas caras-e-bocas de galã conquistador se desenhando cada vez menos sensual e mais caricata, mas percebi que aquela pessoa que me alertava estava sempre próxima a mim, parecendo ser um alerta, um aviso, um guardião. Driblei Juan num momento em que disse que ia ao banheiro. — Olá, sou Marty, desculpe se te assustei. Segui calado. 42 Na cultura da noite gay de Havana, a cerveja Bucanero pode trazer à tona indicativos de performances de masculinidade. Na medida que é uma cerveja encorpada e “forte”, agrega em si, uma ideia de que os que a bebem são “machos” e corajosos – adjetivos estes que colhi em conversas informais com frequentadores. 159 — É que aquele cara é perigoso. — Perigoso como? — Pode colocar algo na sua bebida, te aplicar golpe, diz quase sussurrando. Marty sai. Percebo que sua saída foi porque ela avistou Juan se aproximando. Entro no banheiro e volto a conversar com Juan. O alerta de Marty nos conecta. Ela volta a me olhar de longe, fazendo sinais de que está tudo bem. Mas e se Marty também estivesse “aplicando golpes”? Quem seria verdadeiro ou falso? Nos jogos de sedução e flerte, na cultura da noite, se desenham ambiguidades éticas, morais e performáticas que indicam o princípio da ação. Estamos diante dos embates tão usuais na performance: palavra x ação. O corpo dito e o corpo realizado. É neste interstício entre aquilo que está sendo anunciado e o que, de fato se realiza, que reside os operadores da performance. Eu estou performatizando o estrangeiro que vai à boate gay em Havana. Juan delineia-se como o homem sedutor latino que corteja o estrangeiro. Marty aparece como a figura “cuidadora” que pode ter interesses (afetivos?) no estrangeiro. Desenha-se uma trama efêmera dentro de um roteiro também momentâneo na narrativa daquele momento da noite. À medida que a noite avança, as pessoas vão bebendo mais, ficando mais bêbadas e também mais alegres. Percebo que a bebida alcoólica é um elemento fundamental de sociabilidade na cultura da noite. Evoca o princípio da disponibilidade, do acesso aos corpos que, uma vez alcoolizados, estão “leves”, “cambaleantes”, nas festas. Trata-se dos movimentos efêmeros das ações nos contextos festivos, em que o conjunto 160 espacialidade-performance-música aciona debater as formas de interação e desfecho das tramas dos sujeitos envolvidos. Não sei se é meu interesse em saber o que Marty tem a me dizer sobre Juan que me faz, cada vez mais, perder o interesse na conversa do próprio Juan. Tomo mais um mojito quando me ponho a dançar na pista de dança ao som de Olga Tañón, uma cantora pop portorriquenha que faz enorme sucesso também em Cuba. Percebo que Juan está sempre por perto, mas que, o fato de eu ter ido dançar, me colocou também em outros “radares”. É quando, deliberadamente, me aproximo de Marty. Vamos para fora do Cabaret Las Vegas, na rua, repleta de pessoas. Marty me fala de Juan através de quadros performáticos: “aproveitador”, “já morou no exterior”, “vive atrás de gringo”. Entendo do que se trata. É no momento que toca uma canção de Lady Gaga e que decidimos ir para a pista de dança que parecemos ter uma cumplicidade. Acentuar uma textura comum. Ainda suados, vamos tomar “um ar” lá fora. Conversamos muito sobre Lady Gaga, contei que tinha visto a turnê Born this way, em São Paulo, ao vivo. Ela não sabia que Lady Gaga chama seus fãs de little monsters (“monstrinhos”). Marty tem 26 anos. A cantora Lady Gaga nunca esteve na ilha de Cuba. Em contrapartida, fãs cubanos ostentam a imagem da estrela, sobretudo em camisas, pôsteres, CDs e DVDs baixados nos paquetes. Ser fã de Lady Gaga em Cuba significa negociar com a cultura anglófila e assumir um posicionamento frente a questões de gênero. Lady Gaga é, portanto, o vetor de um viver político que ressignifica o cotidiano e aponta rotas de fuga e colisão de parte da juventude cubana. 161 Cultura pop e questões geracionais Marty nasceu Simón Sanchez em 1989, em Piñar del Rio, a cerca de duas horas de Havana. O final da década de 1980 pode ser apontado como epicentro do início da crise econômica cubana, após a queda do bloco soviético, base de relações políticas e econômicas da ilha depois de 1959 (Havranek, 1998; Heredia, 2000). Marty não viveu o “apogeu revolucionário” da ilha (Bobes, 2001; Gott, 2006). A família encarou a crise alimentar em 1995, quando bens alimentícios faltavam às mesas. Os postulados de José Martí eram aprendidos na escola, em livros, em dias de solenidades cívicas. Nas brechas do cotidiano, o garoto Simón vislumbrava querências femininas, desejos de se maquiar, dançar, cantar, beijar outros garotos. A masculinidade do projeto revolucionário cubano, o militarismo, a glorificação da farda, o verde, o quepe, o rosto em riste, pareciam rasuras no projeto afetivo de Simón. Algo distanciava Simón do masculino. Algo aproximava Simón de Marty. Pensar a masculinidade dentro de projeto histórico de Cuba enseja debater o fascínio que a figura do militar possui no imaginário dos sujeitos através da história das guerras de independência em Cuba. O “herói, homem e heterossexual” se cristalizou como responsável pela “força, valentia e decisão”, segundo Madero. “Este personagem imaginado responde a certos parâmetros estéticos e morais dentro dos cânones patriarcais” (Madero, 2006, p. 55). Vieram os amigos gays adolescentes, as festas, o compartilhamento dos gostos comuns, a adesão à cultura pop, ao reguetón, sobretudo através da música. O Simón que se dis- 162 tanciava da masculinidade também parecia negar as formas culturais “tradicionais”: a rumba, a salsa, o merengue. Simón começou a se interessar pelas cantoras de língua inglesa. Um amigo mostrou as Spice Girls, um videoclipe em que aparecia a bandeira da Inglaterra, músicas como “Wannabe” e “2 Become 1”. Marty lembra que gravava fitas-cassete das rádios de Key West, na Flórida, que, de alguma forma, podiam ser ouvidas em Cuba através da captação por antenas. Das parabólicas, outro amigo gravava fitas VHS com clipes e performances ao vivo das Spice Girls, de Britney Spears e Christina Aguilera. Era num vídeo-cassete que Simón assistia a todos os vídeos. A emissão de sinais ilegais de radiodifusão e teledifusão pelo governo dos Estados Unidos, que não impõe limites territoriais às ondas midiáticas de suas emissoras, foi alvo de críticas do presidente de Cuba, Raúl Castro, no momento em que se anunciou, em 17 de dezembro de 2014, o restabelecimento das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos. No texto chamado “El Pueblo Cubano no Renunciará a los Princípios e Ideales por Los que Varias Generaciones de Cubanos han Luchado” acusa o governo dos Estados Unidos de macular a soberania cubana. El Gobierno de los Estados Unidos mantiene programas que son lesivos a la soberania cubana, como los proyetos dirigidos a promover cambios em nuestro orden político, ecenómico y social, y las transmisiones radiales y televisivas ilegales para cuya implementación continuan otorgándose fondos millionarios. (Castro, 2015, p. 43) 163 Nas brechas do cotidiano, Marty falava em inglês e dava entrevistas imaginárias para programas de celebridades. Seu grupo de amigos e amigas gostavam de Che Guevara, de Fidel (“a gente sabe que ele não é homofóbico”). A grande “ídola” para Marty e seus amigos era Mariela Castro, a sexóloga e filha do presidente Raúl Castro, uma das figuras emblemáticas da luta contra a homofobia em Cuba. Pensar estas brechas do cotidiano, o diálogo com a cultura pop, um questionamento do cotidiano por uma parcela da juventude parece corroborar com algumas premissas do sociólogo Karl Mannheim (1982), dentro de plataformas amplas de uma Sociologia do Conhecimento e da Juventude. Ao debater o conceito de “geração”, o autor destaca que a posição comum daqueles nascidos em um mesmo tempo cronológico não parece dada pela possibilidade de presenciarem ou experienciarem os mesmos acontecimentos, mas, sobretudo, por processarem esses acontecimentos ou experiências de forma semelhante. A questão que sublinho aqui diz respeito à noção de experiência comum, de partilha de questões e formas de ser afetado. Na premissa de Mannheim (1982), presenciar e viver acontecimentos não são pressupostos de acionamento de questões geracionais. Processá-los de forma comum, sim. A semelhança de processos de experiências parece gerar uma força que une – um agregar em torno de pertencimentos que são contextuais, naturalmente, mas apontam para singularidades. A noção de geração como pensada por Karl Mannheim é aqui resgatada – não em sua totalidade, mas na potência que ainda lhe resta – para estabelecer conexões, sobretudo com 164 outras disposições sociológicas como gênero, classe social, raça/etnia, entre outras. Ao invés de associar as gerações a um conceito de tempo externalizado e mecanicista, pautado por um princípio de linearidade, o autor se esforça em buscar no problema geracional uma proposta diante da linearidade do fluxo temporal da história: pertencer a uma determinada geração se torna, dessa forma, um problema de existência de um tempo interior não mensurável e que só pode ser apreendido qualitativamente, ou seja, esse tempo interior só pode ser apreendido subjetivamente (Mannheim, 1982, p. 516). Estamos diante do que o autor vai chamar de vínculo geracional, ou seja, indivíduos que crescem como contemporâneos, experienciam o comum e estão circunscritos numa certa cultura construindo um homogêneo que desponta como força. A contemporaneidade, sob o preceito geracional, significa uma similaridade de influências existentes, domínio de afetos, temporalidade interior compreendida. A noção de vínculo geracional como fruto das experiências vividas na contemporaneidade pode ser elaborada de forma ainda mais radical quando Mannheim recorre à expressão "não contemporaneidade dos contemporâneos" ou "não simultaneidade do simultâneo", chamando atenção para o fato de que diferentes grupos etários vivenciam tempos interiores diferentes em um mesmo período cronológico. Negociando com partituras marxistas, Karl Mannheim (1982) observa que a situação de classe e a situação geracional (o pertencimento mútuo a anos de nascimento próximos) 165 têm em comum – como consequência de uma posição específica ocupada pelos indivíduos por ela atingidos no espaço de vida sócio-histórico –, a limitação desses indivíduos a um determinado campo de ação e de acontecimentos possíveis, produzindo, dessa forma, uma forma específica de viver e de pensar, uma forma específica de intervenção no processo histórico. (Mannheim, 1982, p. 528) Debater a emergência da cultura pop como prática comum transnacional nos aciona pensar o atravessamento dos sujeitos contemporâneos em seus fazeres cotidianos. Aspectos geracionais emergem. A cultura pop é resultado de uma circulação de produtos midiáticos que data do pós-Segunda-Guerra, capitaneada por instituições das indústrias culturais e dentro de padrões de vida e consumo marcadamente anglófilos. Nesse sentido, a ideia de pertencimento a um suposto mundo global, cosmopolita e hegemônico adentra como máxima na constituição de um imaginário sobre o pop. Portanto, geração parece ser uma chave importante de compreensão de formas particulares de valores e valências que emergem em contextos específicos. Marty vivia problemas geracionais em seu cotidiano. Os pais questionavam não só a sua sexualidade, como também o fato dela gostar de músicas como reguetón e do cancioneiro pop dos Estados Unidos. A problemática de Marty com sua transexualidade e seu gosto musical faz parte de um debate em torno da Estratégia Nacional para a Atenção Integral a Pessoas Transexuais, empreendido pelo Centro Nacional de Educação Sexual (Cenesex) e que publicou em 2008, um livro 166 intitulado “Transexualidad en Cuba”, organizado por Mariela Castro Espín43. Um dos tópicos mais debatidos no centro, diz respeito à relação entre transexualidade e família, numa dinâmica que aciona pensar a vulnerabilidade do sujeito transexual, o limite da invisibilidade, as mudanças de operação de gênero e comportamento dentro das famílias cubanas durante o período revolucionário e a ausência de investigações mais aprofundadas sobre pessoas transexuais no contexto familiar. Demonstrouse o profundo sofrimento das mães e dos pais com o tema e sobretudo dos filhos e filhas transexuais que, ao não encontrarem um lugar em sua família, vítimas de maltratos e humilhação constantes, vão buscar abrigo em outros lugares. (Espín, 2008, p. 12) A vulnerabilidade de Marty está expressa em seu corpo, mas também na sua família e nas relações com que ela se depara no cotidiano. Dos risos, passando ao espanto e ao temor, Marty integra a população transexual em maior contingência de Cuba, na cidade de Havana44, e se depara frequentemente com interpelações de seus familiares (pai e mãe) quanto à 43 Para Madero, “algumas fontes são reveladoras de que a aparição de transexuais no contexto da Revolução Cubana e a preocupação estatal com estes grupos não são tão recentes quanto se parece. Estes sujeitos começam a fazer parte das políticas de saúde pública já nos anos oitenta. Em 1984, aparece um informe para a implementação de trabalho diagnóstico e terapêutico de transexuais no País e se utilizou a metodologia de abordagem da então República Democrática Alemã (RDA), que havia sido posta em prática em 1976” (Madero, 2006, p. 186). 44 De acordo com o levantamento exposto no livro “Transexualidad en Cuba” (2008), a maior concentração de população transexual cubana está em Havana, seguido de Matanzas, Villa Clara, Camagüey, Holguín e Santiago de Cuba (Espín, 2008, p. 27). 167 sua transexualidade. Ela me conta que sempre teve uma vida “mais livre”, que nunca “deu muita satisfação” para os pais e que desde os 16 anos, sai para festas voltadas a gays em Havana. A princípio, os pais desconfiaram de seu jeito afeminado. O irmão, de 20 anos, heterossexual, segundo ela, nunca teve problemas com a sexualidade. Era até cúmplice. Os pais desconfiaram que a transexualidade de Marty estava ligada à prostituição. Mas, conforme me conta, Marty nunca se prostituiu. Sua relação com a transexualidade dizia respeito a uma espécie de conexão com sua “alma” que era feminina. Esta narrativa de Marty e sua sexualidade integram um debate sobre como famílias cubanas enxergam o sujeito transexual. De acordo com Espín, “en Cuba desde el triunfo revolucionario se han venido operando cambios em la vida familiar, mediatizados por el papel que la Revolución Cubana ha otorgado a las mujeres y los hombres em el desarrollo social” (Espín, 2008, p. 107). A autora sublinha que tem se modificado as expectativas acerca dos papéis de gênero e com eles também se tem flexibilizado o exercício dos papéis assumidos por mulheres na participação da vida social e doméstica. No entanto, embora se tenha desenvolvido sistematicamente os estudos sobre a ampliação do sentido de família em Cuba, com agrupamentos de sujeitos, muitas vezes, por afinidades mais do que, necessariamente, por relação parental, transexuais ainda são uma incógnita nas relações familiares e afetivas. A recomendação da autora é que se analisem os pormenores das vidas e dos desafios dos sujeitos transexuais em Cuba. Madero (2006) atesta que ainda que travestis, transgêneros e transexuais não se constituem um novo grupo no espaço cultural cubano, “sua 168 presença pública sim é recente”. “Podemos entendê-los como identidades periféricas, para o tanto que já existiram e existem, à margem das instituições. Por isso têm sido vulneráveis ao estigma e sobre eles se exerce o controle e a força, ao mesmo tempo que se implementam mecanismos para sua invisibilidade” (Madero, 2006, p. 175). Desenha-se portanto a importância da música na formação dos afetos e das formas de estar no mundo de parte dos sujeitos transexuais no contexto cubano. A música pop (tanto latina quanto de língua inglesa, britânica ou norte-americana) ocupa um lugar central na forma com que estes sujeitos se enxergam no mundo, definem seus afetos, desejos, devires e formas de entendimento da vida. Trata-se de uma maneira de se afirmar diante da família e dos amigos, criando uma complexa rede de relações de afeto e poder mediadas por versos de canções pop, videoclipes e performances audiovisuais. Marty me fala da importância que a música “Born this Way”, de Lady Gaga, teve na sua vida. Trata-se de uma faixa em que a cantora e compositora norte-americana afirma que “nasceu assim”, nada poderá mudá-la. “Minha mãe me disse quando eu era mais jovem, que nós nascemos superestrelas”, canta Lady Gaga, num celular em que Marty me coloca para ouvir a canção. “Esta parte me lembra muito o momento em que eu imaginei o dia em que minha mãe iria me aceitar, porque a letra da música fala sobre uma mãe sendo cúmplice da filha”, afirma. “Então erga a cabeça, menina!”, segue cantando Lady Gaga, quando Marty pontua: “quando meu pai me disse que eu era um problema para a família, que eu deveria ser gay, mas não ‘me vestir de mulher’, acho que tem um pouco disso”. 169 Ela atesta que, na sua família, era frequentemente interpelada para “ser apenas gay” e não “virar uma mulher”. As canções de Lady Gaga conectam Marty também com outras amigas transexuais. “Dou sugestões a amigas que fazem dublagem em boates. Elas precisam se montar de forma incrível como faz Lady Gaga”, atesta. Gênero e cantoras pop Depois da cuba libre (“da coragem”, imagino o Gonzaguinha de “Começaria tudo outra vez”), bate a fome. Convido Marty para comer algo e ela é direta: “você sabe que aqui em Cuba se você convida, você paga. E eu escolho o que vou comer – e vai ser o mais caro”, me diz, altiva e impositiva, com um “traquejo” que – reconheço ser – irônico. Talvez nesta forma de Marty se dirigir a mim deliberadamente aberta e direta esteja a fabulação da relação dos cubanos com os estrangeiros-turistas. O convite, que poderia ser visto como algo “pro-forma”, uma retórica de “educação” e “bons costumes”, assume a sua factualidade a partir de diferenças: 1) Quem tem dinheiro e quem não tem; 2) Quem tem o poder de “convidar”; 3) Quem domina a retórica do encontro; 4) Quem protagonizará o desfecho. O lanche-café-da-manhã pós-balada parecia ser uma metáfora dos acordos tácitos entre estrangeiros e locais; voltando um pouco mais no tempo, entre espanhóis e cubanos; desbravadores e descobertos; metropolitanos e colonos (Taylor, 2013). No caminho entre o Malecón e o Piropo (uma lanchonete popular cuja especialidade é hambúrguer e pizza, indicação da 170 própria Marty), percebo uma estranha relação entre Marty e os policiais que habitam a noite/madrugada de Havana. “Eles estão sempre nos olhando de ‘cara feia’45”, balbucia. A questão da truculência policial com sujeitos travestis, transgêneros e transexuais é frequentemente desvelada. Abordagens rudes geram conflitos que, muitas vezes, se encerram na delegacia de polícia. De acordo com Madero (2006), os conflitos que se originam entre a polícia e grupos que performatizam “novas estéticas” podem estar atrelados a questões geracionais, históricas mas também geográficas – dos grupos envolvidos, ou seja, policiais e travestis, transgêneros e transexuais. Existe, para o autor, um “nível cultural muito baixo de policiais que têm trabalhado em Havana na última década” também ocasionado por forças históricas. Nos anos que a compreendem o que a máxima direção do Estado chamou de Período Especial e a crise de valores gerada neste tempo, como consequência do colapso econômico da ilha e logo da queda do bloco socialista) foi necessário trazer jovens de outras províncias – sobretudo das regiões orientais, onde a escassez de trabalho se fazia muito presente – para engrossar as forças policiais da urbe com a finalidade de manter a ordem cívica. (Madero, 2006, p. 179-180) 45 Marty usa a expressão “cara rota”, que literalmente significa “cara quebrada”, acho a expressão particularmente metafórica porque “quebrado” não significa necessariamente “feio” como traduzi, portanto reconheço que a fala de Marty é bem mais aberta e interessante que a minha tradução. 171 Para o autor, a forma apressada com que tais policiais foram trazidos e incorporados à cidade e à vida cosmopolita, diferente dos âmbitos rurais, gerou atritos não só entre travestis, transexuais e transgêneros, mas também entre a polícia e roqueiros, rapeiros e rastafaris. Seguimos caminhando por La Rampa, falando de Lady Gaga, pergunto que lugares será que Gaga amaria conhecer em Havana (Marty diz imaginar Lady Gaga gravando um clipe no Parque Coppelia,46 fazendo coreografias em meio a sorvetes coloridos) e vou notando que, sempre que passa por um policial, Marty encena alguma expressão – muitas vezes de desdém, algumas vezes de frisson – encenado a própria contradição em torno das movências entre homens em situação de feminilidade e homens em situação de masculinidade. Medo de detração, “curra” e, inspeção, podem estar atreladas a fantasias (sexuais, sobretudo), de dominação, controle, poder – de ambos sobre seus corpos e sobre os corpos dos outros). Diante de um policial negro e másculo parado numa esquina da Calle 23, Marty me cutuca – e eu sorrio endossando – traçando o que seria um comentário dela sobre aquela beleza masculina. Vou percebendo que há muito mais contradições nesta relação de Marty com o militarismo, com a masculinidade revolucionária cubana, que eu tendia a achar. Não se trata de uma recusa por completo, mas uma negociação desejante, uma tática de existência, de recusa e adesão estratégicas a partir 46 Coppelia é uma das sorveterias mais importantes de Havana, retratada no filme “Morango e chocolate” (1998), de Tomáz Gutierrez Alea, e ponto de encontro de famílias que vão, sobretudo aos domingos, levar as crianças para brincar no parque e finalizar o passeio saboreando um sorvete com biscoito ou com bolo. 172 de contextos específicos. Quando falava em amar Lady Gaga e tudo que aquilo trazia de “mulher” e “cultura norte-americana” a uma superfície de sua fala, Marty se colocava em oposição, possivelmente, a uma ideia de tradição de cantora cubana que reencenava tradições ligadas a gêneros musicais (a rumba, a salsa) que corroboravam com o imaginário de adesão às premissas revolucionárias. No entanto, num outro contexto, de jogos de flertes e sexo, Marty parecia se colocar no lugar de desejar alguma negociação com esta tradição, com este corpo militarizado, masculino, cubano-revolucionário (na figura, em certa medida, fetichizada, dos policiais das ruas de Havana), agora na chave da movência desejante, do deslize em torno das utopias do querer: haveria a possibilidade de reencenação de jogos de poder entre ela – Marty, travesti – e ele – policial, homem – num certo lugar imaginado, um possível quarto em que a equação – e a “dívida” de opressão – seria custeada com outra performance: o sexo. A relação entre Nação e sexo (sexualidade e gênero) está presente no profícuo debate em torno do conceito de “nação sexuada”, de Abel Serra Madero (2006), quando o autor empreende uma discussão em que, ao mesmo tempo que se pensa a dimensão simbólica, histórica e imaginada de Nação, se pensa também os esquemas que conformam e constituem as sexualidades coletivas e performatizadas em corpos e contextos. A partir de uma investigação que tenta perceber as evidências e silenciamentos em torno das figuras dos homossexuais na história de Cuba, Madero propõe enxergar a singular história de Cuba como aquela que reiterou o patriarcalismo do masculino através da reincidência da figura masculina e he- 173 róica, ao longo de todo o processo de guerras e revoluções. A ideia de “nação sexuada” nos parece ser útil para pensar também as relações identitárias que se corporificam no imaginário de viventes, de estrangeiros e de turistas que circulam por Cuba através também do aparato da música. Pensar a “nação sexuada” de Cuba significa, portanto, reconhecer que o olhar, os sentidos e as experiências sensíveis neste contexto são atravessadas por roteiros históricos, partituras performatizadas de formas distintas, como aparato de compreensão das contradições em torno do pensamento sobre a Nação diante das problemáticas de gênero. Se pensarmos que a identidade musical de um país também se faz a partir de relações corpóreas, a discussão sobre nação sexuada pode ser útil para perceber também o silenciamento que alguns gêneros musicais essencialmente corporais, tensivos em suas relações com o corpo e a moral, acabam também sendo negligenciados dentro de espaços de reflexão, problematização e tensão. “I was born this way” A Lady Gaga que nunca foi a Cuba, mas habita a travesti Marty, fazendo-a reconhecer lugares de existência, de luta e resistência diante das instituições, das estruturas patriarcais, nos parece uma forma oportuna de pensar a cultura pop como uma tentativa de compreensão das particularidades sonoras e imagéticas em produtos e performances que encenam modos de viver, habitar, afetar e estar no mundo. A cultura pop estabeleceria formas de fruição e consumo que permeiam um cer- 174 to senso de comunidade, pertencimento ou compartilhamento de afetos e afinidades que situam indivíduos dentro de um sentido transnacional e globalizante (Shuker, 1994; Bennet, 2000; Regev, 2013). Pensamos o transnacional mais do que uma mera sofisticação do antigo imperialismo, mas como afirma MartinBarbero, quando “o campo da comunicação passa a desempenhar um papel decisivo”. Debater como os produtos da cultura pop se fazem presentes nos sujeitos seria da ordem menos de reconhecer a luta contra a imposição de um modelo econômico-estético, e mais, a discussão sobre a internacionalização de um modelo político. O que nos obrigaria a abandonarmos a concepção que tínhamos de luta contra a “dependência” quando claramente se tinha um “opositor” e a forma difusa com que enfrentamos o problema das identidades nacionais na contemporaneidade. Pensar a relação entre música pop e Cuba, pelo raciocínio latino-americano de Martin-Barbero, seria da ordem de debates em torno de suas crises: a crise de cultura política com o novo sentido das políticas culturais. Trata-se de uma nova compreensão do problema de identidade desses países e do subcontinente [América Latina] – por mais ambíguo e perigoso que pareça o termo identidade nos dias de hoje – porque a identidade não se choca apenas com a aberta homogeneização trazida pelo transnacional, mas também com aquela, disfarçada, do nacional, com a negação, a deformação e a desativação da pluralidade cultural constitutiva desses países. (Martin-Barbero, 2003, p. 295) 175 Pensar Lady Gaga em Cuba (na travesti Marty e nos inúmeros fãs da artista que vivem na ilha caribenha), mas também em inúmeros outros artefatos da cultura pop, dos filmes-livros “Crepúsculo”, Harry Potter, “Cinquenta tons de cinza”, passando pelo cinema de Hollywood, pelo rock inglês dos Beatles, do Queen ou por toda tradição anglófila que existe na música pop, nas histórias em quadrinhos, nos seriados televisivos: a cultura cubana é a relação de toda a tradição, erguida pelas políticas de Estado, pelas lógicas de uma cubanidade atrelada a ideais de tradição, de negritude e de resistência, com os produtos do popular-midiático, da cultura pop, baixados através de internet. Viver em Cuba, ser jovem em Havana, Santiago de Cuba, Santa Clara, Varadero, significa buscar formas de adquirir os últimos lançamentos da cultura pop, escondê-los ou ostentá-los, sempre problematizando toda a dinâmica do capitalismo e também colocando em perspectiva as próprias diretrizes do socialismo. Trata-se de um profícuo campo de debates em que são se pode definir convicções políticas a partir estritamente do consumo e das formas de apropriação de bens culturais por sujeitos viventes. As questões geracionais são, portanto, fundamentais para se pensar o distanciamento/aproximação que uma ideia de Nação cubana pós-Fidel Castro. Aqui pontuo uma questão proposta por Nelson Lechner que talvez endosse esta problemática: “como pensar a prática política à margem dos laços de coesão coletiva e pertencimento afetivo, que desenvolvemos a cada dia?” (Lechner, 1981, p. 21). Como pensar a política na singularidade dos sujeitos, nos espaços privados, nas formas de pertencer por so- 176 breposição: pertencer e pertencer. Duplamente. Sobrepondo. Ser cubano para uma certa ideia de Cuba-Nação e ser cubano para o seu grupo, para seus amigos, para suas redes sociais? São performances distintas, que não se anulam, pelo contrário, evidenciam as complexidades da existência. Para MartinBarbero (2003), “desmascarar o substancialismo racionalista que embasava a concepção que se tinha dos atores sociais é denunciar também a visão fatalista de história sustentada pela concepção instrumental da política”. Dessa forma, o autor endossa Lechner, para quem, na lutar contra o capitalismo, propõe enxergar constantes lugares de acionamentos de resistências. Não existe uma “solução objetiva” para as contradições da sociedade capitalista. Em consequência, trata-se de elaborar as alternativas possíveis e o desenvolvimento não é orientado para soluções objetivas. É preciso, portanto, elaborar e decidir continuamente os objetivos da sociedade. Isto é fazer política. (Lechner, 1982, 1981, p. 25) Ao pensar a política nesta profunda relação com a cultura, observa-se que “o cultural pode assinalar a percepção de dimensões inéditas do conflito social, a formação de novos sujeitos – regionais, religiosos, sexuais, geracionais – e formas de rebeldia e resistência” (Martin-Barbero, 2003, p. 297). Estamos alinhados aqui às abordagens dos Estudos Culturais, que consideram os fruidores/consumidores da cultura pop não só como agentes produtores de cultura, mas também como intérpretes desta. Os sujeitos dentro do contexto da cul- 177 tura pop interpretam, negociam, se apropriam de artefatos e textos culturais, ressignificando suas experiências, descortinando possibilidades de estar no mundo, de entrar e sair de uma certa ideia de modernidade, conectando-se a premissas mais amplas ligadas a devires cosmopolitas, a pertencimentos e agenciamentos que se fazem entre ser local e ser global não como instâncias opostas – e binárias, portanto – mas naquilo que se faz por adição, concomitância, simultaneidade. Descortina-se a questão de que produtos/performances/ artistas da cultura pop ajudam a articular normas de diferenciação dentro dos contextos contemporâneos, a partir de aportes como raça, gênero, faixa etária, classe social, entre outros, e acabam sendo forjados em função das premissas do capitalismo (Weisbard, 2004; Klosterman, 2004). Neste sentido, as estéticas do entretenimento, conectadas às ideias de lazer, diversão, frivolidade e superficialidade, quando acionadas pelas experiências dos sujeitos, trariam à tona formas de habitar o mundo em que o prazer seria peça fundamental nas formas de agir politicamente. “Revelar-se superficial não é necessariamente sinônimo de banalidade, de vulgaridade, mas reintroduzir a ludicidade na relação social. Sempre na lembrança a voz da musa Grace Jones em “Private Life” como lema e desafio: “eu sou muito artificial/odeio tudo que é ‘oficial’” (Lopes, 2002, p. 73-74). Estamos tratando da revalorização do prazer, na aposta das possibilidades políticas, éticas e epistemológicas da deriva e da superfície entre os pensadores da diferença. Lutar contra as múltiplas institucionalizações. Já perto de nos despedirmos, Marty me diz: “Se Stefani se transformou em Lady Gaga, Simón pode ser Marty”. E, logo, 178 me vem o debate sobre cidadania em torno do nome social de travestis. Neste sentido, Marty parecia fabular sobre Lady Gaga e eu, na condição de espectador, estou diante dos debates de gênero das travestis. “[Elas] vivem e personificam um jogo do gênero – seja verbal, corporal ou das relações – que é artificial e manipulado, criado e reinventado” (Benedetti, 2002, p. 149). Por isso a ideia de inconstância, de não-ontologia, por isso, a ideia de perigo e sedução, o desconhecido e o ficcional em torno das travestis, transexuais e transgêneros. Em algum ponto entre o feminino e masculino reside, móvel, em constante deslizar, aquilo que sustenta o gênero, que o reitera e o reaciona. Como combinado, eu pago a conta de Marty. Combino de presenteá-la no dia seguinte. Quando vê um hidratante da marca Victoria’s Secret, coloca a mão no peito, simula tremulância. “Você está realizando meu sonho”. Mas, logo, sorrateira, me interpela: “não, meu sonho, é ter um perfume da Lady Gaga, aquele com líquido preto”. Sorrimos. Tudo parece encenação nesta relação de Marty com os bens da indústria de consumo norte-americana. Dou um abraço em Marty. Pareço estar num final de filme, em que amigos se separam, nunca mais se verão, é agora, é tarde, adeus. E talvez seja. 179 Considerações finais Pensar as formas com que parte da juventude cubana lida com a música pop dos Estados Unidos, seja a partir da ida a um concerto ao vivo em Havana, das práticas de acesso e consumo que passa por redes sociais como o Facebook e também diante da imaginação em torno da possibilidade de um espetáculo pop na ilha socialista nos ajuda a compreender parte das premissas que regem os estudos das Teorias Pós-Coloniais. Conceitos como “negociação”, “liminaridade”, “hibridismo”, “interstício”, “entrelugar” se fazem fundamentais para evitar análises binárias e pouco complexas. Pensemos, pois, que as relações performáticas de jovens cubanos fruindo música pop dos Estados Unidos formam um “espaço liminar” (Bhabha, 2012), ou seja, uma zona de conflito, interação e assimilação recíproca que todo encontro entre culturas implica, como estas culturas se constroem na interação com outras culturas e de que maneiras as ideias em torno de “identidades culturais” são sempre múltiplas e provisórias, “um conglomerado de diferenças”. Nesta perspectiva, as relações culturais se dão na 180 luta num espaço mutante que dá margem a tipos singulares de dominação, ao mesmo tempo, criando tramas de deslocamentos e subversões. As reflexões aqui presentes se propõem a debater cultura, identidades, subalternidades a partir de dimensões performáticas que envolvem corpos, ações, encontros e disposições nas relações com artistas de música pop. É preciso, portanto, reinscrever o epistemológico cujo círculo hermenêutico estaria ainda preso ao pressuposto de considerar a descrição das culturas em termos de totalidade, autonomia e autossuficiência. Por isso, a epistemologia precisa se transformar em prática enunciativa, numa atividade de articulação que, por ser dialógica, tem condições de mapear processos de desarticulações e realinhamentos que ocorrem no campo cultural. Concebe-se aqui a cultura como um lugar sempre desigual e parcial de construção de sentidos, na medida em que trânsitos interculturais e transnacionais definem fronteiras como móveis e instáveis. Por isso, a importância de se pensar as performances, uma vez que estas, por tratarem de ações, disposições de encenação e teatralidade, reinscrevem o político e as hierarquias culturais (alto/baixo, nós/eles, centro/margem, fora/dentro) como processos de significação através do qual se desvela lugares heterogêneos de identificação e de negociação cultural, uma vez que desarticula o fechamento arbitrário das identidades na hierarquia de discursos de autoridade. As identidades culturais estariam sempre colocadas em questão a partir das performances. Estaríamos propondo a ideia de negociações performáticas, como a possibilidade de entendimento de discursos e 181 práticas culturais atravessadas pela contínua emergência dos rastros do “outro” por meio de imagens, sons, representações, corporalidades que resistem a totalizações e que desestabilizam a coerência discursiva, instaurando processos de ambivalência onde o estético e o político aderem e recusam imagens a partir de (des)identificações e estratégias de subjetivação individual e coletiva. Pensamos, portanto, nas inúmeras formas de dramatização das relações políticas e simbólicas entre Cuba e Estados Unidos, a partir de um ato performático: a visita do presidente Barack Obama à ilha, no ano de 2016. Este ato performático é o epicentro da aparição e significação de outros atos performáticos, conforme analisamos ao longo desta pesquisa: seja um concerto em que se colocam em pauta dinâmicas das relações da memória cultural das Américas, passando pelo afeto de fãs e também da emergência de fábulas e ficções com este outro: o artista de música pop dos Estados Unidos. Quando propomos olhar para as performances em espaços físicos e redes sociais, estamos, na verdade, tentando perceber dramaticidades/ teatralidades enunciadas, ou seja, o sujeito da enunciação ocupa um duplo lugar – aquele que fala por si mas também pelo coletivo – na mobilização destes dois sentidos em direção a um outro espaço, ambivalente, em que não é possível formular teorizações generalistas nem tampouco conclusivas. Não estamos, todavia, propondo que as negociações performáticas de sujeitos cubanos com a música pop dos Estados Unidos, incorreria num sentido puramente mimético e transparente de significados culturais. Pelo contrário: nosso interesse é pelas brechas nas performances que se constroem 182 históricas e hegemônicas, para perceber tramas complexas de respostas e resistências que se fazem a partir de ações performáticas. Este conjunto de reflexões se coloca não relativizando a ética destas ações, mas acionando as disposições e os enfrentamentos do presente e também dos desejos e limites dos sujeitos. Coloco-me realizando uma investigação política em oposição a procedimentos de uma crítica que se apropria de uma “causa” e se “engaja” em defendê-la, convertendo o trabalho crítico em idealismo e conformidade. Há nestes textos aqui apresentados a tentativa de inscrever o político nas textualidades dos corpos, nos discursos como práticas de enunciação. Dessa forma, o discurso crítico não se se sobrepõe aos objetos, mas os atravessa, propondo mais um direcionamento em torno do teórico e das cisões do político. Performances de artistas musicais e de seus fãs se configuram em lugares centrais para compreender políticas de gestos, ações, imaginações e artifícios. Não se trata de apenas pensar subordinações e reificações, mas disposições de propor formas de agir sobre o mundo como complexas e repletas de tensões, sobretudo aquelas que encontram espaço na margem entre aparência e realidade, exterior e interior, palavra e coisa, teoria e prática. Celebra-se, portanto, as diferenças culturais, os “outros” e os (des)enraizamentos de sujeitos na cultura contemporânea. A diferença não se faz puramente no antagonismo, mas sobretudo na coexistência de antagonismos e também no consenso sobre diversidades culturais. 183 Referências ACOSTA, Leonardo. Interinfluencias y Confluencias em la Música Popular de Cuba y de Los Estados Unidos. In: HERNÀNDEZ, Rafael y COATSWORTH, John H. (eds). Culturas Encontradas: Cuba y Los Estados Unidos. Cambridge: Centro de Estudios Latinoamericanos David Rockefeller, 2001. p. 33-52. ADORNO, Theodor. Sobre música popular. In: COHN, Gabriel (org.). Theodor Adorno: Sociologia. 2. São Paulo, Ática, 1994. ______. Filosofia da Nova Música. Tradução: Magda França. 3.ed. São Paulo: Perspectiva, 2011. AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? e outros Ensaios. Chapecó (SC): Argos, 2013. AMARAL, Adriana; MONTEIRO, Camila. Esses roquero não curte!: performance de gosto e fãs de música no unidos contra o rock do Facebook. Revista da Famecos, Porto Alegre, v. 20, n. 2, p. 446-471, maio/ago. 2013. Disponível em: http:// revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/Article/15130. Acesso 13 out. 2019. APPADURAI, Arjun. Dimensões culturais da globalização. Lisboa: Teorema, 2004. AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade. São Paulo: Papirus, 1994. AUSLANDER, Phillip. Liveness: Performance in a Mediatized Culture. Londres: Routledge, 2012. AUSTIN, John. How to do Things with Words. 4. ed. Cambridge: Harvard University Press, 1988. 184 BAIN, Mervyn J. Havana and Moscow in the Post-Soviet World. In: LOSS, Jacqueline e PRIETO, José Manuel. Caviar with Rum: Cuba – USSR and the Post-Soviet Experience. New York: Palgrave Macmillan, 2012. p. 239-250. BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 1988. BARBOSA DOS SANTOS, Fábio, SALÉM VASCONCELOS, Joana e DESSOTTI, Fabiana Rita. Cuba no Século XXI – Dilemas da Revolução. São Paulo: Editora Elefante, 2017. BARTHES, Roland. Mitologias. São Paulo: Difel, 2003. BATESON, Gregory. A Theory of Play and Fantasy. In: SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. The Game Designer Reader: The Rules of Play Anthology. Cambridge: MIT Press, 2006. p. 114-128. BAUMAN, Richard. Verbal art as performance. 2. ed. Prospect Heights: Waveland Press, 1986. BENEDETTI, Marcos Renato. A Calçada das Máscaras. In: GOLIN, Célio. e WEILER, Luiz Gustavo. Homossexualidade, Cultura e Política. Sulina: Porto Alegre, 2002. p. 140-152. BENHABID, S. The Claims of Culture: Equality and Diversity in the Global Era. Nova Jersey: Princeton University Press, 2002. BENNETT, Andy. Popular Music and Youth Culture: Music, Identity and Place. Londres: Macmillan, 2000. BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. 2. ed. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2004. BHABHA, Homi K. O Bazar Global e o Clube dos Cavalheiros Ingleses. Rio de Janeiro: Rocco, 2012. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1974. BRAKETT, David. Categorizing Sound: Genre and Twentieth-Century Popular Music. 4. ed. Oakland: University of California Press, 2016. BOBES, Velia Cecilia. Las mujeres cubanas ante el período especial: ajustes y cambios. Debate Feminista, Ciudad de México, v. 12, n. 23, 2001. p. 67-96. BUTLER, Judith. Bodies That Matter: On the Discursive Limits of Sex. Nova York: Routledge, 1993. 185 ______. Problemas de Gênero: feminismo e subversão de identidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. ______. Relatar a Si Mesmo – Crítica da Violência Ética. São Paulo: Autênctica, 2015. CANCLINI, Nestor García. Latino-Americanos à Procura de um Lugar neste Século. São Paulo: Iluminuras, 2008. ______. Diferentes, Desiguais e Desconectados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2009. CARLSON, Marvin. Performance: uma introdução crítica. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2010. CASTELLANOS, Ernesto Juan. Los Beatles en Cuba: Un viaje mágico y misterioso. La Habana: Ediciónes Unión – Unión de Escritores y Artistas de Cuba, 1997. CASTRO, Raúl. El Pueblo Cubano no Renunciará a los Principios e Ideales por los que Varias Generaciones de Cubanos han Luchado. Bohemia. 25 de deciembre de 2015. Año 107. n. 26. p. 42-43. CHOMSKY, Aviva. História da Revolução Cubana. São Paulo: Veneta, 2015. COOPER, Bryan Loyd. A Popular Music Perspective: Challenging Sexism in the Social Studies Classroom. The Social Studies, n. 71, 1981. p. 1-8. COMPAGNON, Antoine. O Demônio da Teoria: Literatura e Senso Comum. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2009. CONNOLLY, Mary; KRUEGER, Alan B. Rockonomics: The Economics of Popular Music. Cambridge: National Bureau of Economic Research, 2005. COSCARELLI, Joe. Diplo and Major Lazer Bring their Brand of Music to Cuba. The New York Times. New York, 2016. Disponível em: http://www.nytimes. com/2016/03/08/arts/music/diplo-and- major-lazer- bring-their- brand-of- musicto-cuba.html?_r=1. Acesso em 13 de março de 2018. DÁMASO, Fernando. Una Avenida com Muchos Nombres. Diario de Cuba. Havana, 2014. Disponível em: http://www.diariodecuba.com/cuba/1406364657_9679.html. Acesso em 13 de março de 2018. DE CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano – Artes de Fazer. 21. ed. São Paulo: Vozes, 2014. 186 DENORA, Tia. Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press, 2000. DERRIDA, Jacques. Politcs of Friendship. New York: Verso, 1997. DOUGHER, Sarah. Authenticity, Gender and Personal Voice. In: WEISBARD, Erick. This is Pop. Cambridge: Harvard University Press, 2004. p. 145-154. ESPÍN, Mariela Castro. La Transexualidad em Cuba. La Habana: Editorial Cenesex, 2008. FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e pós-modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. FEINBERG, Richard. The New Cuban Economy: What Roles for Foreign Investments? Washington: Brookings, 2012. FERREIRA SANTOS, Marcos (ed). Imagens de Cuba: A Esperança na Esquina do Mundo. São Paulo: Zouk, 2002. FISKE, John. Understanding Popular Culture. Boston: Unwin Hyman, 1989. ______. Television Culture. London: Routledge, 1995. FRITH, Simon. Music for Pleasure: Essays in the Sociology of Pop. Cambridge, Polity, 1988. ______. Performing Rites: On the Value of Popular Music. Harvard: Harvard University Press, 1996. GIDDENS, Anthony. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. GIRO, Radamés. Relaciones Cubano-Norteamericanas en la Música de Concierto (1850-1902). In Culturas Encontradas: Cuba y Los Estados Unidos. Cambridge: Centro de Estudios Latinoamericanos David Rockefeller, 2001. p. 53-62. GOFFMAN, Erving. A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis: Vozes, 2009. ______. Comportamento em lugares públicos. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010. ______. Ensaios sobre rituais de interação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. 187 GOMES, Itania. O Embaralhamento de fronteiras entre informação e entretenimento e a consideração do jornalismo como processo cultural e histórico. In: CASTRO, Maria Lília; DUARTE, Elizabeth Bastos. Em torno das mídias: práticas e ambiências. Porto Alegre: Sulina, 2008. p. 96-112. GONZÁLEZ, Juan Pablo y Claudio Rolle. Estrategias para Entrar y Permanecer em la Musicologia Popular. Boletín Música – Revista de Música Lationoamericana y Caribeña. n. 14. La Habana: Casa de La Música, 2004. p. 21-47. GONZÀLEZ, Liliana. Cartografia de Enfoques de la Música Popular em la América Latina y Cuba desde la Problemática de los Juicios Estéticos. Boletín Música – Revista de Música Lationoamericana y Caribeña. n. 25. La Habana: Casa de La Música, 2009. p. 41-65. GOODWIN, A. Dancing in The Distraction Factory: Music Televison and Popular Culture. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1992. GOTT, Richard. Cuba, uma nova história. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 2006. GUILIAN, Joel. Colorama, Un Programa Musical Juvenil. Portal de La Televisión Cubana. Havana, 2013. Disponível em: http://www.tvcubana.icrt.cu/seccion-entretu-y-yo/1106-colorama-un-programa-musical-juvenil. Acesso em 2 de novembro de 2017. GUMBRECHT, Hans. Produção de Presença. O que o sentido não consegue transmitir. Rio de Janeiro: Ed. Contraponto/Ed. PUC-Rio, 2010. GUTIERREZ, Pedro Juan. Trilogia Suja de Havana. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. HALL, Stuart e WHANNEL, Paul. The Popular Arts. 3.ed. London: Hutchinson, 2004. HARKER, Dave. One For The Money: Politics and Popular Song. London, Hutchinson, 1980. HAVRANEK, Alice. Cuba na atualidade: o impasse e o silêncio. In COGGIOLA, O. (org). Revolução cubana: Histórias e problemas atuais. São Paulo: Xamã, 1998. p. 155-167. HAUG, Wolfgang Fritz. Crítica da estética da mercadoria. São Paulo: Unesp, 1997. HENNION, Antoine. Gustos Musicales: de una sociologia de la mediacion a una pragmática del gusto. Comunicar – Revista Científica de Educomunicacion, n. 34, v. XVII, p. 25-33, 2010. 188 HEREDIA, F. M. Sociedad, transición y socialismo en Cuba. La Habana: Heliog, 2000. HERNANDEZ, Michel. Major Lazer en el Paraíso de la Electronica. Disponível em: http://www.granma.cu/cultura/2016-03-07/major-lazer-en-el-paraiso-de-laelectronica-fotos-07-03-2016-00-03-29. Acesso em 1 de abril de 2016. HERNÀNDEZ, Rafael y COATSWORTH, John H. (eds). Culturas Encontradas: Cuba y Los Estados Unidos. Cambridge: Centro de Estudios Latinoamericanos David Rockefeller, 2001. HERSCHMANN, Micael. Lapa, cidade da música. Rio de Janeiro: Maud X, 2007. HERSCHMANN, Micael; FERNANDES, Cintia Sanmartin. Territorialidades sônicas e re-significação dos espaços no Rio de Janeiro. Logos, Rio de Janeiro, v. 18, n. 2, p. 6-17, 2011. Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/ojs/index.php/ logos/article/viewArticle/2288. Acesso em 12 de outubro de 2014. HERSCHMANN, Micael; KISCHINHEVSKY, Marcelo. A “Geração Podcasting” e os novos usos do rádio na sociedade do espetáculo e do entretenimento. In: Encontro da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 16., 2007. Curitiba. Anais Eletrônicos... Curitiba, 2007. Disponível em: http://www.compos. org.br/ data/biblioteca_263.pdf. Acesso em: 10 maio 2012. HOGGART, Richard. The Uses of Literacy. Harmondsworth: Penguin, 1957. JÁCOME, Aurora. The Muñequitos Rusos Generation. In: LOSS, Jacqueline e PRIETO, José Manuel. Caviar with Rum: Cuba – USSR and the Post-Soviet Experience. New York: Palgrave Macmillan, 2012. p. 27-36. JAMESON, Fredric. Pós-Modernismo: A Lógica Cultural do Capitalismo Tardio. São Paulo: Vozes, 1985. JANOTTI, Jeder. Por uma análise midiática da música popular massiva: Uma proposição metodológica para a compreensão do entorno comunicacional, das condições de produção e reconhecimento dos gêneros musicais. Revista E-Compós. n.12. Agosto, 2016. Disponível em: http://compos.org.br/seer/index.php/e-compos/ article/viewFile/84/84. Acesso em 13 de setembro de 2017. ______. Entretenimento, produtos midiáticos e fruição estética. In: Encontro da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 18., 2009. Anais Eletrônicos. Belo Horizonte, 2009. Disponível em: http://www.compos.org. br/data/ biblioteca_1150.pdf. Acesso em 12 de maio de 2012. 189 JANOTTI JÚNIOR, Jeder; SÁ, Simone Pereira. Cenas musicais. Rio de Janeiro: Editora da Ana, 2013. KELLNER, Douglas. Cultura da mídia. Bauru: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2001. KNAUER, Lisa Maya. Afrocubanidad Translocal: La Rumba y La Santería em Nueva York y La Habana. In: HERNÀNDEZ, Rafael y COATSWORTH, John H. (eds). Culturas Encontradas: Cuba y Los Estados Unidos. Cambridge: Centro de Estudios Latinoamericanos David Rockefeller, 2001. p. 11-32. KLOSTERMAN, Chuck. Sincerity and Pop Greatness. In: WEISBARD, Eric. This is Pop. Cambridge: Harvard University Press, 2004. p. 257-265. LIPPARD, Lucy. Pop Art. London: Thames and Hudson, 1998. LECHNER, Nelson. Estado y Política em América Latina. Cidade do México: Siglo XXI, 1981. LOPES, Denilson. O Homem que Amava Rapazes. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002. ______. Afetos, Relações e Encontros com Filmes Brasileiros Contemporâneos. São Paulo: Hucitec Editora, 2017. LOSS, Jacqueline e PRIETO, José Manuel. Caviar with Rum: Cuba – USSR and the Post-Soviet Experience. New York: Palgrave Macmillan, 2012. MADERO, Abel Sierra. Del Otro Lado del Espejo: La Sexualidad em la Construcción de la Nación Cubana. La Habana: Casa de Las Américas, 2006. MANNHEIM, Karl. O problema sociológico das gerações. In: FORACCHI, M. M. (org). Karl Mannheim: Sociologia. São Paulo: Ática, 2982. MARTEL, Frédric. Mainstream. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. MARTÍN-BARBERO, Jesús. Culturas Populares. In: ALTAMIRANO, Carlos (ed). Términos críticos de sociología de la cultura. Buenos Aires: Paidós, 2002. p. 49-69. ______. Dos Meios às Mediações: Comunicação, Cultura e Hegemonia. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003. MIDDLETON, Richard. Studying Popular Music. San Francisco: Open University Press, 1991. NEGUS, Keith. Producing Pop. London: Edward Arnold, 1992. 190 ______. Popular Music: In Theory. Cambridge: Polity, 1996. ______. Music Genres and Corporate Cultures. Londres: Routledge, 1999. NEUSTADT, Richard. Buena Vista Social Club versus La Charanga Habanera: The Politics of Cuban Rhythm. Journal of Popular Music Studies. n.1, v. 22, 2002. p. 139162. NOBRE, Cândida. O Processo de Ressignificação da Pirataria no Ciberespaço. In: Encontro da Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2010. Rio de Janeiro, Anais Eletrônicos. Disponível em: http://compos.com.puc-rio. br/media/gt1_candida_nobre.pdf. Acesso em: 10 maio 2017. ______. Pirataria no Ciberespaço. João Pessoa: Marca de Fantasia, 2012. NÓRIDO, Yuris. ¿Quien se Acuerda de Alla Pugachova? On Cuba Magazine. Fevereiro de 2016. Disponível em: http://oncubamagazine.com/columnas/quien-seacuerda-de-alla-pugachova/. Acesso em 3 de julho de 2017. NUNES, João Arriscado. Teoria Crítica, Cultura e Ciência: Os Espaços e os Conhecimentos da Globalização. In: SOUZA SANTOS, B. de (org). A Globalização e As Ciências Sociais. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2011. p. 301-344. PARKER, Richard. Abaixo do Equador: culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunidade gay no Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002. PARTS, Spencer. What Cuba Thought of Major Lazer’s Historic Havana Show. Pitchfork. Chicago, 2016. Disponível em: http://pitchfork.com/thepitch/1047-whatcuba-thought- of-major- lazers-historic- havana-show/. Acesso em 13 de março de 2019. PHELAN, Peggy. Unmarked: The Politics of Performance. London/New York: Routledge, 1993. POWERS, Ann. Bread and Butter Songs: Unoriginality in Pop. In: WEISBARD, Eric. This is Pop. Cambridge: Harvard University Press, 2004. p. 235-244. PRIMI, Lilian. A Vida na Ilha. Desafios de Cuba. Revista Caros Amigos. Ano XIX. n.79. 2016. p. 13-15. REGEV, Motti. Pop-Rock Music: Aesthetic Cosmopolitanism in Late Modernity. Cambridge: Polity, 2013. RINCÓN, Omar. O Popular na Comunicação: Culturas Bastardas + Cidadanias Celebrities. Revista Eco-Pós. v.19. n.03. Rio de Janeiro, 2016. p. 27-49. 191 ROACH, Joseph. Cities of the Dead: Circum-Atlantic Performance. New York: Columbia University Press, 1996. ROBBINS, Bruce. Comparative Cosmopolitanisms. In: ROBBINS, Bruce e CHEAH, Pheng (eds). Cosmopolitics. Minneapolis: University of Minnesotta Press, 1998. ROSSELSON, Leon. Pop Music: Mobilizer or Opiate. In: GARDNER, Catherine. Media, Politics, Culture. London: Macmillan, 1979. SANJEK, David. Marketing Authenticity ans Manufacturing Authorship. New York: Wallflowers Press, 2005. SANTOS, Boaventura de Souza. Para Além do Pensamento Abissal: Das Linhas Globais a uma Ecologia dos Saberes. In: SANTOS, Boaventura de Souza e MENESES, Maria Paula. Epistemologias do Sul. Coimbra: Edições Almedina, 2010. p. 23-72. SANTOS, Boaventura de Souza (org). A Globalização e As Ciências Sociais. 4.ed. São Paulo: Cortez, 2011. ______. A Difícil Democracia: Reinventar as Esquerdas. São Paulo: Boitempo, 2016. SCHECHNER, Richard. Between Theater and Anthropology. 2.ed. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 2006. ______. Performance Studies: an Introduction. 3ª ed. New York: Routledge, 2013. SHUKER, Roy. Understanding Popular Music. New York: Routledge, 1994. ______. Vocabulário de música pop. São Paulo: Hedra, 1999. SOARES, Thiago. Enfrentamentos Políticos e Midiáticos de Fãs de Música Pop em Cuba. Logos: Comunicação e Universidade, v. 23, n. 2, 2016. p. 65-76. STRAW, Will. Systems of Articulation, Logics of change: Scenes and Communities in Popular Music. Cultural Studies. Vol 5, n. 3, 361-375, Oct. 1991. ______. Communities and scenes in popular music. In: GELDER, Ken & THORNTON, Sarah (eds.) The subcultures reader. Londres: Routledge, 1997. ______. Scenes and sensibilities. E-Compós. Brasília: Compós, v. 1, n. 6, 2006. p. 67-78. SUAREZ, Oscar. Marta Pita, productora de Colorama, cuenta cómo burló la censura musical en Cuba. Blog Universo Increible. Miami (EUA), novembro de 2014. Disponível em: http://blog.universoincreible.com/marta-pita-productora-decolorama-cuenta-como-burlo-la-censura-musical-en-cuba-video-interview/. 192 TAYLOR, Diana. O Arquivo e o Repertório: Performance e Memória Cultural nas Américas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2013. THORNTON, Sarah. Club Cultures: Music, Media and Subcultural Capital. Cambridge: Polity, 1995. TURNER, Victor. From Ritual to Theater: The Human Seriousness of Play. New York, Performing Arts Journal Publications, 1982, p. 13-26. VILLAÇA, Mariana Martins. O Instituto Cubano del Arte e Industria Cinematográficos (ICAIC) e a política cultural em Cuba (1959-1991). Tese de doutorado em História Social. São Paulo, 2006. Disponível em: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-06112006-174750/en.php. WEISBARD, Eric. This is Pop. Cambridge: Harvard University Press, 2004. WEINSTEIN, Deena. The Sociology of Rock: An Indisciplined Discipline. Theory, Culture and Society, n. 8, p. 97-109, 1991. WERBNER, Pnina. Global Pathways: Working Class Cosmopolitans and the Creation of Transnational Ethnic Worlds. Social Anthropology. n. 7, v. 1, 1999. p. 17-37. YUDICE, George. El recurso de la cultura – usos de la cultura en la era global. Barcelona: Gedisa, 2002. ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura. 2ª ed. São Paulo: Cosac Naify, 2007. 193 Título Modos de experienciar música pop em Cuba Autoria Thiago Soares Formato e-book Tipografia Georgia (texto), Sofia Pro (títulos) Desenvolvimento Editora UFPE