https://doi.org/10.22409/gragoata.v25i53.42724
O apocalipse revisto por Deus-dará
Carolina Angladaª
Resumo
Invertendo as figuras do mito da criação dos
brasileiros pelos europeus, a escritora portuguesa
Alexandra Lucas Coelho focaliza o apocalipse como
tropo não só tropicalista mas também perspectivista,
mudando de posição para ver as diferenças e as
partilhas desse espaço incomum que se abre entre
os contrários na língua portuguesa. Este ensaio,
em resposta à provocação de Deus-dará, revisita
os lugares de nossa formação, revisando, sobretudo,
os trânsitos que nos constituíram do ponto de vista
da movência, dos jogos de linguagem e do fenômeno
da simultaneidade, que tornam indecidível criação
e destruição, ordem e desordem, fato e valor. O
barroquismo que investe a língua portuguesa de
um pendor estético, sensível na forma informe
da obra de Alexandra, nas canções de Caetano
Veloso e nos ensaísmo de Lévi-Strauss, provoca um
deslocamento crítico nas discussões de base lusófona
e lusotropicalista, reanimando o cenário reflexivo
e político transatlântico com outros paradigmas
sensíveis, imagéticos e simbólicos.
Palavras-chave: Tropo, Trópico, Tropicalismo,
Barroco, Alexandra Lucas Coelho.
Recebido em: 16/05/2020
Aceito em: 22/07/2020
a
Professora de Literaturas de Língua Portuguesa no Departamento de Letras da Universidade Federal de
Ouro Preto. Mariana, MG, Brasil. E-mail: angladacarolina@gmail.com
Gragoatá, Niterói, v.25, n. 53, p. 1082-1110, set.-dez. 2020
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O apocalipse revisto por Deus-dará
“Eu vivo ao Deus dará”
Aldir Blanc
Fora da ordem
1
A rigor, todo o
projeto coordenado
por Cassin, com
origem no Vocabulaire
Européen des filosophies:
dictionaires des
intraduisibles,
publicado em 2004,
debruça-se sobre
a tradução como
dispositivo de crítica
à universalidade dos
conceitos filosóficos.
A edição brasileira,
organizada por
Fernando Santoro
e Luisa Buarque,
propõe-se a pensar
filosoficamente o
funcionamento de
línguas, identificadas
em verbetes, a formar
uma constelação
de intraduzíveis,
tratados como “o
que não se cessa de
traduzir” (CASSIN
apud SANTORO;
BUARQUE, 2018, p. 5).
Sabemos que, na esfera das coordenadas geográficas e
simbólicas, os trópicos são linhas imaginárias traçadas em torno
do globo, com base no grau da incidência solar. Elas recebem
esse nome do grego tropos, que significa “viragem”, e inscrevem,
nesses espaços cortados pelo imaginário, a inclinação para o
sentido figurado, cuja raiz também coincide com o sentido
de “verter”. Não por acaso, na língua portuguesa, o oximoro
é uma das marcas mais notórias de nosso barroquismo, cuja
construção engenhosa tem como efeito a incoerência do literal.
Tal procedimento, entrevisto também nos quiasmas, nas
elipses e silepses, e percebido similarmente no que Eduardo
Viveiros de Castro defenderá como nossa “ontologia da
diferença”, sobrevive, por exemplo, no neobarroquismo de
Lévi-Strauss devido a sua experiência tropical, responsável
por fazer dele um pós-estruturalista avant la lettre (VIVEIROS
DE CASTRO, 2013, p. 87). Essas figuras de linguagem, mesmo
empregadas em contextos documentais, como é o caso do
ensaísmo etnográfico de Tristes trópicos, corroboram o sistema
de transformação simbólica e de movimentos de redistribuição
e de combinação linguística, geopolítica e histórica, que
marcam nossa experiência tropical desorientada entre Norte
e Sul, posição e vetor, dado e dom, fato e valor.
Como a língua e seu emprego movente sinalizam,
estaríamos em contínuo movimento deslizante entre a
afirmação e a negação, a precariedade e a epifania, a teleologia
e a profanação, mas sempre a espreitar o colapso, a interrupção
violenta; ou, ainda, sujeitos àquela entronização de um “Fora da
ordem” da canção de Caetano Veloso, em que a descontinuidade
de um “nada continua” impede a determinação do local pelo
universal. Recentemente, no verbete “Português” da edição
brasileira do ambicioso projeto do Dicionário dos intraduzíveis,
coordenado por Barbara Cassin, Rodrigo Santoro desdobra
essas voltas, círculos e torções, no pendor estético de nossa
construção sintática e reflexiva, perguntando-se sobre o elo
com o universal1:
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Carolina Anglada
A ideia do barroco determina o pensamento em língua
portuguesa. Esse laço barroco precisa de muitas voltas.
Primeiro, no entrelace da filosofia com a arte, visto que é da
própria arte que colhemos a ideia mesma do barroco. Depois,
na intersecção entre a diacronia da língua e os problemas
filosóficos que se pretendem eternos [...] O que nos conduz
a um último nó: como é que fatos particulares da língua,
próprios do português, podem dar acesso a uma perspectiva
filosófica, i. e., a questões universais? (SANTORO, 2018, p. 265).
O modo como conduzimos e somos conduzidos pelas
estruturas curvilíneas da língua portuguesa retomam e
reforçam nossa localização trópica, na qual só nos situamos
“fora da nova ordem”, como canta Caetano Veloso (2003, p. 186,
grifo nosso). Esse estar ao mesmo tempo dentro de uma ordem,
mas que é externa à novidade mundial, figurativamente, cria
acessos não para o universal, mas para que nos entendamos
considerando um extremo pôr-se à prova daquilo que, mesmo
arcaico, ainda não nos é digerível, e que, através do gesto
tropicalista, provoca a assimilação na tradução. A modernidade
como anagrama da ordem indica este gesto de entronização
que traduz simultaneamente os termos implicados. Toda uma
zona de indiscernibilidade se cria com base nesse deslocamento
anacrônico do barroco para com seu tempo, para com o
“relógio mundial”, e faz da inversão e do embaralhamento
inesperados, o motivo de uma concatenação complexa entre
tara (modernista) e trauma (civilizatório): “Aqui tudo parece/
que era ainda construção/ e já é ruína”, canta Caetano (2003,
p. 186), contraponto o “ainda era” de um processo ao “já é” de
sua degradação. Situação similar se faz notar na reencenação
antropofágica do tropicalismo, mas, ainda antes, no discurso de
António Vieira citando a Vulgata, por exemplo, “sem a sombra
do pedantismo” (SANTORO, 2018, p. 273) – uma ilustração
de quando o sermão desaplicado se aplica a outra razão da
tradução. Se, na música do cantor baiano, a ilusão é fruto do
contraste entre “não ser” e “parecer”, no discurso religioso, o
paradigma é entre “não parecer” e “ainda ser”.
Tal insistência no sentido figurado, na não coincidência
entre o que se apresenta e o que de fato se realiza, em dado
momento, deixa de ser o efeito de uma impossibilidade do
próprio, da falta de condição da identidade, de uma submissão
a certo “estado de coisas” precário e assistemático, e se
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O apocalipse revisto por Deus-dará
converte em defesa das produções significantes contraditórias,
plurivocais, perspectivistas, que todo signo monista ou esconde
ou abstrai. A propósito dessa dupla significação, João Camillo
Penna recupera a querela entre Roberto Schwarz e Caetano
Veloso em torno do valor e do significado de “povo” na obra
Terra em transe, de Glauber Rocha, termo este que entra em
disputa semântica, e, de algum modo, distingue, ao menos, dois
modos de crítica e de posicionamento. Trata-se, a rigor, de uma
divergência quanto à natureza do enfrentamento e da resposta
à realidade brasileira, encarada também na brutalidade do
estado brasileiro, que estrutura de tal forma nossa sociedade
(sendo o golpe de 1964 apenas um dos exemplos), que o dado
e o construído são ambos agentes e sujeitos da violência,
no processo circulador de identificar deus e o diabo nesta
terra ensolarada. Aqueles paralelos dos trópicos de Câncer
e Capricórnio perdem a sua distância analógica e revelam a
contiguidade possível, ainda que nem sempre desejada, diante
do que parecia imobilizar o imaginário dessas vidas secas. É
contra essa imobilização que os tropicalistas reagem, e com
vistas a reabilitar o imaginário que jamais se descola do real.
Penna, com um fôlego notável, analisa a querela a partir
dos dois eixos da cultura brasileira, a canção popular e a crítica
universitária, para tratar, quase que arqueologicamente, da
tensa relação entre a esquerda, representada ali por Schwarz
e o seu projeto de uma “aliança de classes”, e o tropicalismo,
associado à “desfaçatez de classe” e ao “viés de classe”. Os
textos nos quais o embate se deu, entrelaçando Verdade Tropical
(1997) de Caetano, são “Cultura e política, 1964-1969” (1970) e
“Verdade tropical: um percurso de nosso tempo (2012)” – nesse
último, Schwarz reitera o mesmo veredicto promulgado a
respeito do movimento, agora tendo como objeto a biografia.
Penna cita ainda alguns outros desdobramentos da discussão,
como o artigo publicado na Folha de São Paulo, em 2007, na
qual o crítico literário, para justificar o embasamento de sua
advertência, reitera o erro-acerto do movimento: “As alegorias
do absurdo-Brasil, com seu poço de ambiguidades, com seu
vaivém entre a crítica, o conservadorismo e a adesão, são o
achado e a contribuição do movimento” (SCHWARZ apud
PENNA, 2017, p. 51).
Acusados, portanto, de colocar em circulação o arcaico
e o moderno, a crítica e a adesão, o capital e a ironia, de que
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2
Curiosamente,
Caetano, ao
rememorar sua
indiferença à cultura
norte-americana,
exposta numa
Marilyn Monroe ou
em Elvis Presley, por
exemplo, dirá que
apenas quando Andy
Warhol se apropriou
destas imagens, é
que estas figuras se
tornaram personagens
reais. O que nos faz
pensar no gesto da
pop art ou mesmo do
tropicalismo como
tradução de toda
uma iconografia
que é também a
produção que enfim
libera e liberta um
valor, aparentemente
já dado, mas
virtualmente
construído.
também se acusou a pop art na figura de Andy Warhol,2 não
restariam dúvidas, segundo um Schwarz lucáksiano, de
que tal indecisão alegórica, manifesta na forma cancional
ou memorialística, corresponderia a um posicionamento de
classe alienado, se comparado à realidade do trabalhador e
do pobre. Penna faz dessa imprecisão do juízo de Schwarz o
motivo de sua obra, pois, onde o segundo vê apenas listas e
citações estrangeiras nas composições, o primeiro é sensível
ao viés da repetição oblíqua, negativa e regeneradora, a expor o
absurdo reiterado e indiferente de nosso país. Enquanto, para
Schwarz, o intemporal é efeito desta justaposição de tempos,
para Penna, há um trabalho que considera os anacronismos das
ideias, ou de um jogo linguístico, como aquele de “Circuladô”
ou de “Fora da ordem”, ou, ainda, dos filmes de Glauber,
exemplos da experiência da montagem e da desmontagem tão
tipicamente tropicalista, mas que, lembremos, se faz também
com a imagem “do cano da pistola que as crianças mordem”.
Caetano é, no entanto, certeiro quando mira no ponto de onde
parte em “Fora da ordem”: “Eu não espero pelo dia em que
todos concordem/ Apenas sei de diversas harmonias bonitas
possíveis sem juízo final” (VELOSO, 2003, p. 187). Por focar
essencialmente na ideia da mediação universal, Schwarz não
perceberia, segundo Penna, “os modos particulares de a arte
universalizar, como a arte do período não deixou de fazer, e
como não poderia deixar de ser” (PENNA, 2017, p. 74).
Recupero a pergunta de Santoro (2018, p. 265) sobre o
acesso aos fatos universais considerando a particularidade
da língua portuguesa. Esta perspectiva do pendor estético
corrobora o gesto de Penna em enfatizar a importância da
experiência singular, da não concordância das crianças que
mordem e, anagramaticamente, deglutem a ordem, para esse
universal que só se realiza, posteriormente, levando em conta
o que é de outra natureza, na perecibilidade de um sentido
em desfiguração, na transitoriedade e na mudança ínfima a
partir da repetição e da citação, no refletir de todas as cores
da paisagem neste cano mordido da pistola. Ainda que essa
posição, equilibrada em uma espécie de corda bamba, inerente
aos acontecimentos, “de onde mal se vê quem sobe ou desce a
rampa” (VELOSO, 2003, p. 186), não desfaça os perigos da ilusão
de ótica, são essas alternâncias visuais e melódicas que podem,
no entanto, nos revelar. Ivã Carlos Lopes e Luiz Tatit, em um
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ensaio sobre os aspectos sintáticos e semânticos da canção de
Caetano, alertam-nos para o crescente da entoação da voz por
sobre a forma da melodia, soando “como se, por um momento,
o ‘eu’ substituísse o canto, com suas leis musicais, pela fala pura
e simples, deixando-se conduzir pelas determinações do aqui
e agora” (LOPES; TATIT, 2004, p. 103-104)
O anacronismo, os volteios, as figuras de linguagem, bem
como o jogo que se estabelece entre melodia e canto ou entre
melodia e letra, aliam-se na recusa à submissão da linguagem
à comunicação, bem como liberam a particularidade de ser
apenas parte de um todo que a inclui para exclui-la. Esta
experiência fora da ordem, da nossa particular modulação
entre estar e ser, como diz Caetano, “É muito, é grande, é total”
(2003, p. 186). A repetição e a estabilidade estão ali para garantir
a ênfase na alteração simbólica, na totalização confidencial de
uma transa, seja no domínio da palavra, seja no âmbito musical,
seja, ainda, no indiscernível dessas duas instâncias. Por essa
razão, em nosso projeto trópico, só podemos desejar estar onde
não somos esperados, entre índios, Bruce Lee, Muhammad Ali,
Peri, Filhos de Gandhi; na relação complexa entre a sonoridade
e a expressão desses agentes e dessas gentes que tornam
polirrítmica e multissignificativa nossa musicalidade.
Tampouco Verdade tropical, enquanto relato de um
movimento de inserção global, está isento da mistura entre
continuidade e interrupção, ou entre digressão e elipse, como
reitera Caetano (2017, p. 52) em sua autobiografia que é, também,
relato de um movimento. Lembremos do palíndromo, título da
única canção que o cantor diz ter escrito na prisão, como um
antídoto de dois lados, graças à lembrança da irmã: “Irene ri”.
Essa frase pode ser lida em dois sentidos, ainda que os dois
sentidos pareçam não definir se se trata de riso ou de ironia, de
confissão ou derrisão. Por isso, faz-se mais importante do que
nos traduzirmos em universais, perceber a aventura imediata
da palavra de atravessar sentidos únicos, nos quais falha tanto
o universal quanto o local, instaurando-se um a mais na cadeia
significante pela via de mão dupla da significação.
A tradução que Caetano fez e faz, Penna a descreve como
o investimento nas ilusões e nos tropos enquanto prática da
equivocidade entre “uma aparência, duas essências distintas”
(2017, p. 106). Algo como a equivalência enigmática de “capteme” e “it’s up to me” de “Rapte-me, camaleoa”, a intraduzir “ser”,
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3
Este encontro
fônico, ou sinfônico,
que ocorre por
descuido, é evocado
em Verdade tropical,
quando Caetano
narra o processo de
nomeação do disco
coletivo Tropicália ou
Panis et circenses. O
músico acreditava
que a expressão em
latim, aprendida em
uma conversa com
Wanderlino Nogueira
Neto, se tratava de
dois substantivos no
genitivo com função
partitiva, quando, na
verdade, a expressão
era “panis et circenses”,
sendo o segundo
termo um adjetivo
que se substantiva
significando “coisas
de circo”. Esse
equívoco de memória
ou de assimilação
se transforma,
tropicamente, não só
em um “mau latim”,
mas toma a força de
um “desprendimento
intelectual”. Cf.
Verdade tropical, 2017,
p. 288-9.
4
Sobre este aparente
paradoxo, Cf.
Aleijadinho e a dança
estática, de Joaquim
Ribeiro Carmo.
“querer ser”, “merecer ser” (VELOSO, 2003, p. 136). A ideia do
duplo-sentido, ou de uma homofonia construída por desleixo,3
não deixam de ecoar a perspectiva da língua como movência,
não deixando de intraduzir a variação linguística de nossos
múltiplos modos e usos de fazer sentido, sendo, parecendo,
merecendo ser. O original remetendo ao passado lança-nos ao
tempo anacrônico entre “ainda não” e “já é”, em que se cruzam
o imprevisto de um qualquer indefinido, afinal, traduzir uma
parte em outra parte é experiência de linguagem tanto quanto
de vertigem, haja vista a possibilidade da rima bilíngue, isto
é, dessa consonância na diferença.
Ao fora da ordem, haveria uma chance de opor uma
ordem do fora, na qual incluiríamos, ainda, o movimento
de um Aleijadinho, que fazia suas esculturas dançarem;4 a
multiplicação das identidades no Teatro Oficina, descrita por
Penna como uma operação de identificação forçada e catártica
entre espectador e seus inimigos; o perspectivismo ameríndio
teorizado por Eduardo Viveiros de Castro e Tânia Stolze
Lima, que faz da posição uma relação; os mantos meticulosa e
excessivamente ordenados a partir dos restos por Artur Bispo
do Rosário, artista tanto da privação quanto da opulência;
a homenagem de Augusto de Campos a Caetano com seu
oximoro “VIVA VAIA”; o uso subversivo que se faz da palavra
ladrão em um disco como o do artista Djongador. Todos esses
exemplos, singularmente, no que eles possuem de recusa
ao genérico e ao dualismo local versus universal, desafiam a
interpretação por investirem no potencial da ambiguidade
como uma das marcas do que não cessamos de traduzir – ou
do que, na tradução, é o próprio não cessar.
O sentido desfigurado
Depois de identificar-se com “o vento que lança a areia
do Saara/ sobre os automóveis de Roma”, Caetano (2003,
p. 102). transportando o que não se transporta, sintetiza:
“Quem não pode ser recôncavo e nem pode ser reconvexo”.
A dupla-negação narcísica do tropo tropicalista propõe uma
travessia inerentemente política e estética, pautada pela
antifórmula do nem-nem. Por levar em consideração essa
aparente contradição, duplo impossível tornado possível pela
imaginação, que desejamos propor uma leitura de Deus-Dará,
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publicado originalmente em 2016, em Portugal, pela escritora
portuguesa Alexandra Lucas Coelho, na qual a abstração de
um Deus que não dá nos conduz à abstraição de um destino
jamais prometido. Segundo Guilherme Augusto Simões, no
Dicionário de Expressões populares portuguesas, o sentido de
abandono da frase popular tem origem em Portugal, na esfera
religiosa de seu uso, quando mendigos pediam esmola, “por
amor de Deus”, e aqueles que nada queriam dar, respondiam
“Deus dará”. Esses desafortunados sabiam não poder contar
com nada, nem com a própria sorte, nem com a benção divina,
nem com a benevolência humana, avisados, pelos mecanismos
da própria língua, de que a promessa é um meio de desobrigarse da responsabilidade.
De dádiva de Deus, quando restituída ao uso comum,
profanado, a expressão assume o significado inverso, passando
a corresponder à avareza do destino. Imersa no mais banal
de nossas comunicações e já fazendo parte não só de rituais
sagrados, atravessa-nos em diálogos e ocasiões muito distintas,
levando-nos a experimentar o tropismo pela indiscernibilidade
entre criação e destruição, referenciação e dessubstancialização.
O seu uso indiscriminado, como “só um modo de dizer”,
revela, afinal das contas, que o fim acontece diariamente, a
todo momento, tendo estado sempre aqui, concomitante à
própria língua. Não é fortuita a intensa e profícua presença
dessa expressão, inclusive no nosso cancioneiro, quando em
letras como “Partido alto”, de Chico Buarque, dúvida e dádiva
se confundem em versos tais como “Deus me deu mão de
veludo pra fazer carícia/ Deus me deu muitas saudades e muita
preguiça/ Deus me deu pernas compridas e muita malícia/
Pra correr atrás de bola e fugir da polícia”. Afinal, se deus deu,
dá ou dará, pouco importa; fica o dito pelo não dito, o dado
pelo não dado: e a benesse das pernas compridas cumpre outra
tarefa, que é mais de sobrevivência do que de fé. “Que Deus
entendeu de dar toda magia/ Pro bem, pro mal, primeiro chão
na Bahia”, canta ainda Gilberto Gil (GIL, 2003, p. 270), hesitando
entre o emprego incerto desse esoterismo, nessas terras onde
o sagrado e o profano não traduzem completamente o dom
da ilusão típico de suas composições, como marca José Miguel
Wisnik no prefácio à reunião das letras do cantor baiano, parte
importante do movimento tropicalista.
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Nosso cancioneiro é, portanto, testemunha de que o
irrealizável da graça é atravessado por uma potência de
encarnação, de vida nua. No “Fim da história” de Gil, “É como
se o livro dos tempos pudesse/ Ser lido trás pra frente, frente
pra trás/ Vem a História, escreve um capítulo/ Cujo título
pode ser ‘Nunca Mais’/ Vem o tempo e elege outra história, que
escreve/ Outra parte, que se chama ‘Nunca É Demais’” (GIL,
2003, p. 408). Essa reversibilidade entre um “não mais” e um
“nunca é demais”, constrói outro ângulo para o paradigma ótico
e sensível de “Fora da ordem”, nessa canção de Gil a figurar
o eterno retorno na figura particularíssima de Lampião, que,
como tantos cangaceiros, “Por mais que se matem/Sempre
voltarão” (GIL, 2003, p. 408). A nudez de uma vida exposta à
violência garante o retorno do que não cessa de morrer, de ser
morto, de ser ameaçado, e de propor outras traduções para a
morte insacrificável.
O subtítulo da obra de Alexandra Lucas Coelho (2019b)
é também importante para a hipótese de uma profanação
da estrutura mística, na qual o anacronismo surge pelo
cruzamento de um tempo messiânico com o contemporâneo,
ou de um eterno retorno do mito próprio ao esclarecimento:
“sete dias na vida de São Sebastião do Rio de Janeiro, ou o
apocalipse segundo Lucas, Judite, Zaca, Tristão, Inês, Gabriel
& Noé”. Esses, que são os personagens em torno dos quais
a narração gira, separada pelos dias da semana, em uma
espécie de espiral a abarcar uma série de outras narrativas e
temporalidades (guarani, tukano, yanomami, judaico-cristã,
lustropicalista, santo daime), dão a ver a contiguidade entre a
vida e a morte, a sorte e o abandono, através de figurações pósapocalípticas, em que o presente avança com o mais arcaico de
nossa origem de inquilinos, escravizados, fugitivos, imigrantes
e aventureiros. O hic et nunc do contexto da narração entrega
imediatamente à obra uma combinação de outros espaços e
tempos, colocando o próprio problema da mediação em cena,
uma vez que o tom de comentário aos acontecimentos factuais,
como a vinda do Papa ao Rio de Janeiro e as manifestações de
junho de 2013, se alia a recuos históricos bem como ao enredo
da vida desses personagens.
Judite e Zaca são dois dos três filhos de um casal que
não habita o Rio de Janeiro, mas a Amazônia, e vez ou outra
retornam à casa da família no Cosme Velho. Zaca, o biógrafo
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O apocalipse revisto por Deus-dará
sem biografia, procura um outro projeto, depois do sucesso
de sua obra que narra a vida do sambista Leão do Morro.
Sua irmã é uma advogada, em profundo desacordo com a
empresa onde trabalha, cuja atividade principal parece ser a de
livrar corruptos de responsabilidades. Tristão, um português
em ironia à melancolia portuguesa, está a meio caminho da
desistência de sua tese de antropologia que o levou ao Rio, e
recebe sua amiga também portuguesa Inês, com coração partido
por uma libanesa. Lucas é caboclo de família nortista, que fica
órfão e mudo nesta cidade traumática, mas se encontra com
Noé, ativista negra, finalista de Ciência Política da Pontifícia
Universidade Católica, e amiga de Gabriel, antigo morador da
mesma favela onde Noé mora com a mãe, um olho perdido
por bala, hoje professor de sociologia na PUC e habitante de
Laranjeiras. Esses são os que, durante os sete dias da cronologia
ilógica da narrativa, atravessarão o tempo em direção ao
passado e ao futuro, por meio de fotografias, dados históricos,
arqueologias subjetivas, a entrelaçar o detalhe mais discreto
de uma paisagem em decadência à abissal historiografia de
nossa colonização espacial, arquitetônica, linguística, racial e
simbólica. Vemos a vida deles através dos olhos do narrador,
que interliga os fatos e as ficções, o enredo e a narração, o tempo
messiânico do fim e do início à precariedade anacrônica porque
sempre presente de uma nudez incontornável, sem mediação.
Esses personagens, que narrarão o apocalipse, ao mesmo
tempo que tentam sobreviver a ele, parecem diluir-se na
mediação do que lhes convoca imediatamente. Pelo fato de o
desabrigo ser a condição do nosso estado de sobrevivência,
esses cavaleiros do apocalipse não são os que o preveem,
mas os realizadores de um outro fim, mais aberto à própria
indefinição da finalidade narrativa e da expressão que mantém
indeterminados sorte e azar. Tudo está, ao mesmo tempo, à
frente deles, e tudo a eles retorna na paisagem e nos costumes
que os atravessam nessa cidade colonial, fazendo de suas ações
e do que lhes impede (espacial, econômica e simbolicamente)
de agir uma das marcas da falha da encarnação, necessárias,
no entanto, para que um destino em comum possa se revelar,
pelo mínimo e pelo máximo dessa obra volumosa.
O mundo referencial, portanto, não é um dado, estático,
inamovível. Ainda que o Rio de Janeiro seja uma cidade antiga,
ainda que a promessa do fim ou a certeza do abandono tenham
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sempre assombrado o humano, esses fatos estão entregues às
paixões que os movimentam entre a literatura e a história.
Não por acaso, uma das epígrafes da obra, de Davi Kopenawa,
remonta à crença yanomami de que o inimigo sempre esteve
lá, e o mundo, portanto, sempre conviveu com a ameaça de
seu fim, imaginando-o veementemente, mesmo antes da
história: “De modo que já falavam dos brancos muito antes de
eles nos encontrarem”, cita Alexandra (2019, n.p.). São vários
os momentos da autobiografia etnográfica, A queda do céu, em
que Kopenawa manifesta esse convívio com o branco, inerente
à mitologia que se torna um dispositivo de aprendizagem do
antagonismo, como quando descreve os forasteiros:
Esses espíritos dos brancos são as imagens dos Hayowari
theri, um grupo de ancestrais yanomami levados pelas águas
e transformados por Omama em forasteiros. Vieram a existir
no primeiro tempo, na terra em que seus pais haviam sido
criados antes deles. São os fantasmas dos primeiros brancos;
são ancestrais brancos tornados outros que agora dançam
para nós como espíritos xapiri. (KOPENAWA; ALBERT, 2015,
p. 228-9)
Para além dessa queda do céu se apresentar sem moldura,
análoga e simultânea ao presente e ao real da malária, do
garimpo, do sarampo, das missões evangelizadoras, levada a
cabo por indivíduos que eram em si o fim do mundo, tornando
periódicos os apocalipses, há aí também a imaginação de
um “nós empiricamente anterior ao mundo” (DANOWSKI;
VIVEIROS DE CASTRO, 2014, p. 87), diferente do “mundo dos
homens sem mundo” dos modernos (DANOWSKI; VIVEIROS
DE CASTRO, 2014, p. 45). Curiosa é, também, a prevalência
de uma inclinação imaginativa, no limiar da destruição entre
esvaziamento e criação. Quando se refere ao pensamento dos
brancos, é comum o yanomami se valer do oximoro, de “um
pensamento cheio de esquecimento (KOPENAWA; ALBERT,
2015, p. 253), sinalizando a inversão própria de um barroco
também indígena, da troca de perspectivas, a entronizar o valor
dos outros invertendo seu sinal. Fato é que, nas nossas origens,
o apocalipse já estava previsto, na fórmula de nosso achamento
destrutivo, a fazer crer que essa seria uma via de mão única, e
que uma palavra como missão teria seu sentido arregimentado
pelos colonizadores. Como em uma das inúmeras vezes em
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O apocalipse revisto por Deus-dará
que essa ideia se expressa em Deus-dará: “Difícil saber se algo
está acabando ou começando” (COELHO, 2019b, p. 377), se é
a literatura que acaba quando o mediador encarnado abole a
mediação ao assumir a voz própria, ou se é a história maiúscula
que tem fim quando os personagens alçam ao estatuto de herói
as condições do qualquer com as quais se identificam.
Fato é que uma ideia, se levada propositadamente até o
seu limite, acaba por voltar ao início, transformando as duas
pontas de uma reta em uma curva. Da ideia do apocalipse
como discurso de poder, cuja finalidade é fazer desistir, à
concepção da catástrofe como esgotamento real de recursos,
Alexandra trabalha também o fim como recriação, uma vez que
Deus-dará é parte de uma trilogia de idas e vindas ao Brasil,
retomadas e recomeços, às quais se integram também Cinco
voltas na Bahia e um beijo para Caetano (2019a), último volume
da série, e Vai, Brasil (2015), composto pelas crônicas escritas
durante o período em que a escritora viveu no Brasil como
jornalista. De modo geral, podemos dizer que a chegada aqui
é, também, uma tentativa de fazer variar não só o gênero, do
tom de relato à narrativa ficcional, da literatura imediata das
crônicas à mediação problemática de Deus-dará mas também
o imaginário, as imagens, os valores e as perspectivas, pelas
quais Alexandra tem interesse e curiosidade, tendo vivido não
só aqui e em Portugal como também em Jerusalém e no México.
De algum modo, a narração, não sendo nem brasileira, nem
africana, nem árabe ou sul-americana, nem exclusivamente
jornalística ou literária, será a variação de todos esses pontos
de vista e dicções, postos em contato, partilha, fricção e disputa.
Os cavaleiros do apocalipse, figuras móveis entre a ficção
e a história, são todos habitantes ou transeuntes do bairro
Cosme Velho, o “bairro mais pré-rafaelita do Rio de Janeiro”,
que sobrevive de tantas lendas e personagens míticos, mas
também por seus moradores e sociedades judeus, muçulmanos,
evangélicos, espíritas, budistas e até taoístas. Na rua
homônima ao bairro, por exemplo, convivem como vizinhos
de casas geminadas, ao lado da Bica da Rainha, a bem tratada
construção onde se situa o Tempo da Transparência Sublime –
Sociedade Taoísta do Brasil e aquela habitação de Portinari, com
o ateliê projetado por Niemeyer. Mística, pintura e arquitetura
expressam a cesura entre valor e reconhecimento, tradição e
esquecimento, habilidade e disciplina. Mas, em outras tantas
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Carolina Anglada
ruas, também ostentam-se os sinais nos quais se verificam
o desenvolvimento, a expansão e o declínio do movimento
cosmopolitista desta que foi outrora a capital do Brasil.
O apocalíptico Rio de Janeiro, com seus mais de cem
túneis, cruzando as pedras e os morros, e mais especificamente
o panorâmico Cosme Velho, longe do cenário mais comum
das praias, fornece a paisagem para o cruzamento das
fronteiras entre subjetividades tão distintas, de verdades
nem só solares nem só sombrias. O dilema se emancipa na
paisagem e configura-se como um agente, uma vez que, no
Antropoceno, o ambiente é por demais determinante para ser
apenas cenário. Se Paul Gilroy, no seu fundamental Atlântico
Negro, debruça-se sobre o rizomático mar de influências das
culturas diaspóricas, Alexandra sobrepõe a dificuldade mesma
do mapa no qual a arquitetura não é só fundo mas também
figura em que o detalhe configura uma força, os ambientados
devem ambiente. A obra, por isso, é um réquiem, a relembrar
a transposição dos cortiços aos morros, a derrubada das matas
próximas ao que hoje é o Corcovado para instalação dos bondes
elétricos, a ressuscitação da Mata Atlântica por Pedro II depois
da completa devastação dos mananciais pelos cafezais, o rio
Carioca, que deu nome aos habitantes da cidade, e que nascia
junto ao icônico e atualmente remodelado Hotel das Paineiras,
descendo pelo aqueduto dos Arcos da Lapa. E é também um
manifesto antropofágico, “baralhando o possível, o provável
e o comum, como é próprio do apocalipse” (COELHO, 2019b,
p. 116), e intraduzindo a paisagem como um código por demais
difícil de ser lido linearmente, uma vez que a sua escala é
relacional (e não relativista), e os parâmetros espaciotemporais
se deformam.
Enquanto dá a ver a dificuldade de nossa forma, a
entrelaçar fundo e figura, geologia e moral, a obra também
cumpre com a tarefa crítica de colocar os pingos nos is,
separando o joio do trigo. Algo precisa ser decidido, e, enfim
feito, diante desse sensível estado de suspensão. Alexandra
confronta corajosamente os nós: nomeia António Vieira “o
mais brilhante antiescravagista seletivo (já que por negros
não empenhou o ouro da sua língua” (COELHO, 2019b, p.
69); questiona a inexistência de um museu ou um memorial
da escravatura em Portugal, revê constantemente a morte e a
vida das conceituações e juízos apressados e preconceituosos.
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O apocalipse revisto por Deus-dará
Nesse caso, o tornar-se outro dos ameríndios é crucial para
que, dessa vez, os portugueses revejam as imagens que os
sustentam, e, então, possam reencontrar-se com um futuro
outro, traçando, como os índios, outros desenhos e destinos
nos céus de estrelas. O alerta é diretivo: “Fomos para o mundo
a querer mudar os outros, e incapazes de ser mudados por
eles” (COELHO, 2019b, p. 125). É preciso olhar esse espelho
a contrapelo, como faz Alexandra por meio da narração, não
para se enxergar no que se vê, mas para não ver no outro o que
não se deseja enxergar em si – processo este que explica, em
parte, a outrização dos negros e ameríndios, tornados bodes
expiatórios do mal interno.
A narração, por isso, não está isenta: é o narrador, e não os
personagens apenas, que irá enigmaticamente nos atentar para
o enquadramento das realidades trazidas à luz. Em Deus-Dará,
num dos primeiros posicionamentos desse narrador intrusivo,
anuncia-se: “Língua que vai ao mar dá nisso, o narrador será
transatlântico ou não será” (COELHO, 2019b, p. 13.) Ao que ao
final, em uma das últimas cenas, se responde: “O passado que
falta comer é futuro. Transatlântico, transmarino, ultramarino:
até ficar só o azul” (COELHO, 2019b, p. 428). O ponto de partida
será, então, pós-colonial, ao que se fará necessário que, nessa
travessia, os protagonistas imediatizados pelo narrador que
apenas em certos momentos revela sua onisciência, transitem,
mudem de perspectiva, troquem de lugar, percam o foco,
afundem-se e submerjam, respirando este espaço que é de
trânsito, mas também de separação. A narração, ao mesmo
tempo popular e erudita, em vez de marcar sua singularidade,
dissolve-se no estilo indireto livre, em um impulso mais para
fora do que para dentro, a integrar-se neste espaço único que
é a São Sebastião do Rio de Janeiro.
O “Novo Mundo será sempre um ponto de vista”, escreve
o metanarrador em diálogo machadiano com a expectativa
de seu leitor. A rigor, quando lemos todos os endereçamentos
enigmáticos da voz àquele que, teoricamente, a acompanha,
“acreditando que restará um leitor lá adiante” (COELHO,
2019b, p. 123), observa-se uma espécie de devir-leitor do autor,
ou um devir-personagem de Alexandra – sendo ambos formas
de confrontos ao narcisismo de um humano já pronto. Nem
autor, nem leitor, nem personagem: a criação é revista pelo seu
fim. A finalidade dos papéis trai a obra, uma vez que, através
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Carolina Anglada
do apocalipse de todo dia, o colapso não é simplesmente
tematizado, mas convertido em “perspectivas”. Afinal, não
importa: leitor, autor, personagem estão todos implicados nesse
fim de mundo, que não é de um plano só, onde cada um tem
seu próprio espaço, mas o de uma configuração transversal,
em que há trocas, substituições, ilusões.
Nuno Ramos (2019), em sua teoria da cultura brasileira
como fita de Moebius, dirá que a proximidade entre autoria e
leitura de um Machado de Assis, por exemplo, tem a ver com
a inexistência de um público leitor mais amplo e consolidado,
a ser interiorizado no próprio texto pelo vocativo. Indaga o
ensaísta: “O leitor/leitora mencionado tantas vezes em seus
contos e romances não é justamente aquilo que lhe faltava
– opinião pública, embate ideológico consistente, em suma:
alguém do outro lado?” (RAMOS, 2019, p. 25). Em outras
palavras, poderíamos arriscar dizer que o que Ramos nomeia
de “parentética infindável entre narrador e leitor” (2019, p.
25) ecoa a ideia do xamã e do orixá, figuras de condução da
experiência perspectivista e transversal do real, tornando
sensível e legível o mundo que para outros seria apenas o nada
ou a completa opacidade, estando esses próprios condutores
implicados na tradução ou na produção de sentido e de
experiência mundana.
Assim como no xamanismo dos Araweté, profundamente
estudado por Eduardo Viveiros de Castro, uma instância só
poderá se autodeterminar pelo ponto de vista do outro, cada
lugar da fala se elabora e se modifica pela perspectiva alheia,
pela invasão e assalto da diferença, muitas vezes, decorrente
de um não ter-lugar. O lugar de onde se fala, superpovoado
e com diferenças na concentração de renda, revela o próprio
“ponto de vista como multiplicidade” (VIVEIROS DE CASTRO,
2013, p. 105), e também como guerra. Qual seria o modo mais
apropriado de Tristão elaborar um pensamento sobre a história,
sem desapropriar-se do seu lugar de enunciação mas também
sem apropriar-se acriticamente dessa espécie de sociabilidade
irrestrita dos personagens? Não seria a melancolia entrevista
em seu nome, uma das faces dessa inclinação apropriadora,
que sabe que está sempre perdendo na medida em que não
cessa de querer?
Toda a problemática do acesso aos universais, de que
fala Santoro (2018), está subentendida aqui, pela aproximação
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O apocalipse revisto por Deus-dará
da narração com o imaginário do perspectivismo ameríndio,
sobretudo se retornamos a Metafísicas canibais, de Viveiros de
Castro, quando, logo no início da obra, ao mencionar a noção
de afinidade para os índios sul-americanos, desloca a questão
para o objetivo de sua teoria ameríndia que seria “restabelecer
uma certa conexão entre a antropologia e a filosofia”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 31). No caso de Deus-dará,
partindo do fracasso e da tragédia da tradição (colonialista,
epistemológica), enseja-se a criação secularizada de depois do
fim. Essa transversalidade entre sensibilidade e conhecimento,
invisibilidade e experiência, assume-se na figura do narrador
onisciente, porta-voz de cada um dos personagens e responsável
por vermos os personagens para além deles mesmos, por
visadas que são ao mesmo tempo particulares, linguísticas,
sociais, antropológicas e históricas. Jamais identificado, ele, no
entanto, expressa sua paixão por Judite, falando de si do ponto
de vista de sua admiração, que não deixa de ser a experiência
da relação como visada. O parágrafo a seguir é exemplar do
modo como o ponto de vista do narrador se torna suspeito ao
mesmo tempo em que escancara a parcialidade da narração, a
princípio, heterodiegética, mas tornada homodiegética:
Porque o narrador, que só vê o que lhe dá gana, quer declarar
agora que ama Judite. Não pela beleza que todos podem
ver, mas pela insuficiência que a limitaria, por exemplo, no
exercício da advocacia criminal: fraca percepção do abismo.
O narrador ama, em suma, o ponto cego de Judite. E, imortal
como um orixá, sopra de leve a água onde ela flutua, jura ser
o seu bordão, o seu cordão, o seu colar de santo, o seu cão
celeste (COELHO, 2019b, p. 198)
Há uma implicação cada vez mais sensível e produtiva
desse narrador anônimo na obra, condutor de um tom e de
uma perspectiva, na maior parte das vezes, irônica. Por ser
esta espécie de xamã, ou orixá, é como se ele fosse capaz de ver
Judite pelo modo como ela se vê. A sátira se torna uma maneira
insidiosa de combate, não exatamente distante como a ironia
machadiana, e sim particularmente imediata, desemoldurada,
contínua ao dito, relativa ao objeto de afecção, na medida em
que localiza, a princípio, discretamente, sua subjetividade, mas
que logo ganha uma outra proporção se percebendo presente
nas estratégias de enquadramento. Em se tratando de uma
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Carolina Anglada
5
No ensaio escrito
para a edição
comemorativa dos 20
anos de publicação
de Verdade tropical,
Caetano, ao relembrar
os comentários de
Schwarz que teve
por base a versão
traduzida do inglês
para o francês,
declara: “Logo na
língua de Sartre,
Lévi-Strauss e
Proust, as maiores
influências estilistas
que se derramaram
pela composição do
livro, sua forma e
seu sentido foram
massacrados”
(VELOSO, 2017, p.
17-18). Para retomar
uma discussão da
traduzibilidade em
relação à querela
sobre o engajamento
político de Caetano,
poderíamos afirmar
que o traduzível da
língua portuguesa,
nessa edição
publicada na França,
de algum modo
solapa o intraduzível
do “nível da vida
intelectual brasileira”
(VELOSO, 2017,
p. 17), muito mais
amplo e potente para
arriscar afinidades e
sugerir semelhanças
insuspeitas na
literalidade.
obra anunciada como apocalíptica, a voz mítica descortina a
narrativa da criação mostrando o jogo que todo discurso cria
entre autoria, expectativa e leitura: “o narrador não entende
porque seria menos credível o homem surgir de uma cobra do
que a mulher da costela do homem, mas no meio destes fiéis
de Cristo não vai iniciar esse argumento (COELHO, 2019b, p.
206). Aquele que narra se furta ao dever de revelar-se, uma
vez que é esta inexatidão que sustenta a crença. Ele está e
não está ali; não está ainda mais porque a própria realidade
desses personagens encarnados no limiar do fim torna
obsoleta a mediação. Portanto, a obra (ou a metaobra) instiga
pelo que escreve, mas também pelo que deixa de escrever – o
que é natural de todo corpo que toma a posição de seu estilo,
não reduzindo-se a ele, e deixando o que está fora da ordem
provocar sua dicção.
Mas essa inexatidão enunciativa não corresponde a uma
indiferença. O ponto de vista é a diferença necessária às obras
que, como Deus-dará, atravessam oceanos a fim de se deixar
atravessar pelo inencontrável de uma voz em devir. A narração
se torna um motor de busca, mas também um afeto – uma
autoexposição com base naquilo que lhe comove, e, portanto,
move a narrativa através das centenas de histórias, estórias
e imagens que porta, realiza e interpreta. Trata-se não só de
uma cordialidade daquele que vive através da vida dos outros
mas também uma paixão daquele pela vida alheia, capaz até
de deixar de ser quem se é, sendo apenas através do que pode
ver ou não pode ver no sensível. As parcialidades do olhar
se encontram precisamente nesse apaixonar-se do narrador,
revelando que, assim como no afeto, nos furtamos ao dever da
resposta, por vermos não exatamente aquilo que se apresenta
a nós, mas levando em conta nossas sensibilidades, o que será
percebido. É uma experiência poderosa, essa que, desconfiando
da dádiva e do destino, se entrega a essa errância em um país
que não sabe bem o que é fim e o que é começo.
Trôpegos trópicos
Quando Lévi-Strauss (assumida referência da Verdade
tropical de Caetano) 5, em sua autobiografia etnográfica,
descreve o convite de Célestin Bouglé, então diretor da Escola
Normal Superior, para que se candidatasse como professor
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O apocalipse revisto por Deus-dará
de Sociologia da Universidade de São Paulo, rememora as
imagens pouco precisas que a ideia de Brasil e de América do
Sul suscitaram naquele que ainda não tinha posto os pés nos
trópicos: “Os países exóticos surgiam-me como o oposto dos
nossos, a designação de antípodas tomava no meu pensamento
um sentido mais rico e mais ingênuo do que o seu conteúdo
literal” (LÉVI-STRAUSS, 2018, p. 41, grifo nosso). De outro modo
– mas também no mesmo modo só que diferente –, o etnólogo
recusa a possibilidade de aqui encontrar uma espécie animal
ou vegetal com a mesma aparência daquela do outro lado do
globo, ao que completa: “Cada animal, cada árvore, cada tufo
de erva, deviam ser radicalmente diferentes, manifestar à
primeira vista a sua natureza tropical” (LÉVI-STRAUSS, 2018,
p. 41, grifo nosso).
Conduzido pelo estudo etnográfico a um tom ensaístico,
entrelaçando erudição e memória, impressão e pesquisa,
literatura e ciência, a natureza tropical desses trópicos
melancólicos acaba resultando em um tom de denúncia da
equivalência de opostos ou da contiguidade de dessemelhantes.
Isso já se coloca desde a aprendizagem do nome deste país,
“Brasil”, uma homofonia para o francês de “brasido”, o que
faz com que o etnólogo pense sobre esse lugar “primeiro como
um perfume queimado” (LÉVI-STRAUSS, 2018, p. 52), odor só
sentido quando extinta a matéria. Ou nas palavras de Caetano:
“O Brasil é um nome sem país” (VELOSO, 2017, p. 48).
Mais uma face do tropismo é revelada em sua desfiguração
de sentidos próprios na análise de uma mesma imagem. Claro
está que, em primeiro plano, essa associação entre quase
idênticos ou similares aponta para o método estruturalista
que ganha terreno à altura na antropologia, por oferecer um
mecanismo de comparação, que serve de base à identificação
pela diferença. Como quando escreve: “pergunto a mim
próprio se a etnografia não me terá atraído sem que eu
me apercebesse disso, em virtude de uma afinidade da
estrutura entre as civilizações que estuda e a do meu próprio
pensamento” (LÉVI-STRAUSS, 2018, p. 47, grifo nosso). No que
Gilles Deleuze e Félix Guattari se pautarão posteriormente para
afirmar a razoabilidade do mundo pelo viés estruturalista, ou
o que fornecerá meios para Caetano desconfiar da semelhança
entre o “design do avião Caravelle, a arquitetura de Niemeyer
e as harmonias da bossa nova” (VELOSO, 2017, p. 19), misto
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Carolina Anglada
de estratégia de assimilação por comparação e de disposição
crítica para atravessar os vícios do juízo e imaginação.
Mas há, no ímpeto comparativo tanto do antropólogo
quanto do compositor, diferentemente da perspectiva
estruturalista muito ancorada nas questões de afinidade e
troca, a identificação tropical de uma certa inclinação para
a veleidade, responsável por confundir não apenas termos
homofônicos, mas também, como nossa história nos mostra,
violência e justiça, caça e caçador, ou como descreve LéviStrauss, “mistura de malícia e ingenuidade – a propósito
de incidentes trágicos tratados como acontecimentos sem
importância da vida cotidiana” (LÉVI-STRAUSS, 2018, p. 253).
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que se é: assim a ciência,
na volta que dá ao mundo, acaba se reencontrando com o mito;
e a literatura, estranhada em sua disposição para acolher o não
literário, retorna àquele mistério de que fala Giorgio Agamben
em O fogo e o relato. Os contrários que podem ser tanto efeito
de uma simultaneidade quanto de impermanência revelam
também seu devir contraditório. É o que observa a personagem
Inês, que “vive fascinada pela forma como conflito no Rio
de Janeiro dispersa feito óleo, uma espécie de frivolidade da
violência” (COELHO, 2019b, p. 189). Isso seria tanto um drama
quanto uma tragédia. Afinal, como comenta o autor-devidoleitor,
estamos em São Sebastião do Rio de Janeiro, única cidade
que o narrador conhece num mesmo adjetivo, por exemplo,
irado, se juntam deus e o diabo. Quando algo é foda, é sinistro
(péssimo), quando algo é foda, é sinistro (ótimo). E, claro,
nada mais sinistro e mais foda do que esse brilho no coração
(COELHO, 2019b, p. 193)
Aqui, vale o retorno à teoria da fita de Moebius, de
Nuno Ramos, que acredita que vivemos em uma “crise do
mesmo e não da diferença, por semelhança e não por tensão
entre opostos inconciliáveis” (RAMOS, 2019, p. 11, grifo no
original). A contiguidade pode ser entendida, então, como
continuidade perversa, a mesmificar entropicamente toda
diferença, impossibilitando o infamiliar, o desconhecido, assim
como também o fora. Afinal, como explicar o fato sinistro de
que o metafórico ou o metonímico, figuras do deslocamento,
estejam sempre sendo usadas em prol de uma perversão da
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O apocalipse revisto por Deus-dará
6
Ailton Krenak, na
transcrição da palestra
Ideias para adiar o fim
do mundo, trata da
teoria perspectivista
como uma provocação:
“Nosso amigo
Eduardo Viveiros
de Castro gosta de
provocar as pessoas
com o perspectivismo
amazônico, chamando
a atenção exatamente
para isto: os humanos
não são os únicos
seres interessantes
e que têm uma
perspectiva sobre a
existência. Muitos
outros também
têm.” (KRENAK,
2019, p. 31-32). Esta
provocação teria como
um de seus objetivos
mostrar, com base no
exemplo ameríndio,
a capacidade de
atração de uns aos
outros pela diferença;
a sensibilização para
o fato de um rio, por
exemplo, poder ser
“uma pessoa, não um
recurso” (KRENAK,
2019, p. 40); e a
esgotabilidade do que
está no mundo.
literalidade? Se, por um lado, há uma força contra a nossa
imobilidade, por outro, há também a resistência do que
impede o significado mesmo. Por uma lógica similar ao termo
foda, dependendo de quem fala a palavra banzo, ela poderá
significar aldeia, do quimbundo, mbanza, mas, se o falante for
um dos seis milhões de africanos escravizados, cujo direito
ao olhar e ao dizer não lhe foram outorgados, significará a
falta da aldeia, também sinônima historicamente da apatia,
do envenenamento, do autoafogamento, do suicídio. A palavra
parece ser a mesma, mas a realidade que elas veiculam depende
do modo como ela é falada e sentida: aquele que a fala, no
segundo caso, incorpora ao termo a sua própria experiência.
Entre os dois sentidos, a crise não é a mesma, uma vez que o
mesmo significa a perversão da diferença.
O futuro do passado está em questão como uma espécie
de efeito da ausência de futuro. Sabemos, com Jorge Luis Borges,
que cada escritor (latino-americano) cria seus precursores,
porque não há ainda uma tradição ampla nem um sistema
literário (nos moldes europeus, ao menos) inabaláveis ao que
vem. A escrita modifica nossa concepção do passado assim
como há de modificar também o futuro, porque haveria algo
como uma potência do informe, operando nos restos e rastros
de nossa cultura, e transformando nossa fragilidade e nossa
impropriedade em devir alterante. Tradição e novidade se
encontram sincronicamente. O narrador de Deus-dará sinaliza
essa fórmula, sem precisar acertar o tom mágico do realismo:
“O futuro também muda o passado” (COELHO, 2019b, p. 310),
e continua:
Tal como o perspectivismo ameríndio, essa bomba que
Eduardo Viveiros de Castro lançou no meio da antropologia:
onça será homem quando olha homem, e homem será caça
quando é olhado por ela, porque humano é sempre quem
olha. Em suma, e revolvendo até Shakespeare, um homem
não é um homem não é um homem. Depende se alguma onça
(jaguar, gavião, jacaré, sucuri) estiver olhando. (2019b, p. 310)
Sabemos que, tanto o fato de o homem ser sempre quem
olha quanto a exigência do ser olhado para a caça, quando
transpostos para o domínio da arte não deixam de ser a
manifestação de um desejo ou uma provocação.6 Ser sempre
humano não é ser sempre humanista, mas perceber que, como
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Carolina Anglada
nos mostra Georges Didi-Huberman (2010), mesmo os blocos
minimalistas possuem um olhar para nós, que nos convoca à
decisão, ao ato, à mudança de posição. Antropologicamente,
do ponto de vista dos não índios, a ferocidade do olhar
animal não humano convoca a ausência de uma cultura do
cuidado e do respeito, enquanto para os ameríndios, trata-se
de uma reciprocidade ainda que perigosa, posto que toda
reversibilidade é da ordem do que está fora da ordem. É,
em parte, o mesmo processo que Lévi-Strauss sinaliza na
caracterização dos selvagens a partir de uma confusão de
sua fome, literal e simbólica, como “voracidade” e “rudeza”
(LÉVI-STRAUSS, 2018, p. 306). No imaginário ameríndio, é essa
simultaneidade do olhar e ser olhado que sustenta as posições,
bem como as transformações, posto que dá continuidade ao
descontínuo, atualizando os significados.
O limiar que separa animais não humanos e animais
humanos, literatura e ciência, mito e relato, é também uma
abertura para outros olhares e atrações. Podemos ler esse
encontro imprevisível, do ponto em que diferenças se tornam
simultâneas, como um efeito de parábola, como, quando, no
romance transatlântico, Lucas, o personagem emudecido pelo
irreparável da perda da mãe, se reencontra com a sua voz
através da ayahuasca e grita de dor, no exato momento em que,
distante dele, Noé descobre que está grávida. A saída é mágica,
mas é uma mágica ao estilo brasileiro de seus rituais religiosos:
por um alargamento da expressividade linguística não verbal,
em que a força não se identifica com a forma, furtando-se ao
sentido, estando os personagens em igual distância daquele
plano onde suas curvas se situam. Conversando sobre este
fato, chega-se à hipótese de a simultaneidade ser uma espécie
de inacabamento do próprio acontecimento, sua potência
suspensiva, ligada a um eixo pelo gesto da interpretação:
– [...] Mas nunca vou esquecer aquele grito do Lucas. Ele gritou
por mim, por este mundo e pelo outro.
– E não é incrível que isso tenha acontecido quando a Noé
acabava de saber que estava grávida?
– Mas o Lucas não sabia disso.
– Talvez algo nele tenha sabido.
– Algo tipo, a ayahuasca?
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– Tipo, tudo se ligou.
– Oh, please.
– O fim no princípio, o princípio no fim.
– Sério que acreditas nisso?
– Por que não? O apocalipse também é um gênesis, no mundo
judaico-cristão inaugura a era do bem. E os índios de 1500
com que eu estava a sonhar eram apocalípticos. Acreditam
que depois disso viria a Terra Sem Mal.
– Ainda acreditam?
– Não sei. Mas tenho andado a pensar.
– O quê?
– Que nunca fui a Bahia. (COELHO, 2019b, p. 339-40)
Lucas grita e, ao abandonar-se à morte (do sentido),
reencontra o sentido da morte, que é também o sentido
do anúncio da vida por vir. O apocalipse surge aí como
possibilidade de articulação criativa a graças à desarticulação
da linguagem em voz a-significante, estabelecendo-se como
uma espécie de dispositivo por meio do qual se vislumbra
sincronicamente passado, presente e futuro. O grito enlaça-se
no mundo, revelando o vazio entre a língua e a fala, o animal
humano e o animal não humano, bem como os acontecimentos
fora da linguagem que têm lugar no tempo e na experiência.
Por mais espontâneo que pareça, essa síncope de Lucas assim
como a expressão que dá nome ao livro extraem o máximo
do mínimo que lhe foi dado, concedendo ao enigma e ao
insondável a força de uma movimentação e um modo de uma
resistência a impedir que o que teve fim se torne passado. O
apocalipse aqui revela seu sentido de choque produzido pelo
encontro descentrado entre a exteriorização da dor de Lucas e
a descoberta do parto de Noé – aquela(e) que salva a terra por
acreditar na verdade da extinção e inclui na ameaça de um
“mundo sem nós”, o próprio mundo da natureza.
E é, então, no último livro da trilogia, o das voltas na
Bahia, que se elabora como resposta a Caetano sobre a não
presença desse estado brasileiro na obra anterior, que o
tropo se voltará precisamente para o seu sentido baiano. As
voltas dadas por Alexandra de 1997 a maio de 2019 não se
experimentam como continuidade positivada, tampouco em
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cada uma dessas obras a montagem está em consonância com
aquela intemporalidade da qual Schwarz acusa a Tropicália.
O anacronismo da experiência urbana moderna, dos
atravessamentos oceânicos, das conversões simbólicas dá a ver
não um processo de superação ou de continuísmo serial, mas
os contrastes e as irredutibilidades entre tantas perspectivas,
de tantas paradas, entre tantas reformulações, favorecidas não
exatamente por se tratar de um projeto, mas por se dar como
conhecimento em ato, por uma aposta no caminho. A obra é
resposta ao outro-outra, Caetano Veloso, esse descendente de
negros e indígenas e que, segundo Cortazar, é também Maria
Bethânia, um dos outros de si.
As voltas são respostas ao personagem Tristão, tornado
uma espécie de autor-interlocutor da obra seguinte, uma vez
que aí se diz: “Fazer o que esse personagem anuncia que
fará, continuá-lo pelas minhas próprias pernas, sequela do
livro fora do livro” (COELHO, 2019a, p. 32). A melancolia
tristonha demanda a continuidade mesmo quando sabe que
só tem para si restos, fragmentos, sombras e ecos. Na Bahia,
o fato de que a “África fica dos dois lados” (COELHO, 2019a,
p. 170), oferece-lhe, portanto, algo a mais para esse percurso
performativo, mas cuja adição é apenas efeito de uma ilusão.
O Novo Mundo se descobre no fim do mundo, sobretudo por
esse ser um dos problemas em que a razão se encontra com o
seu limite. O tempo é tanto extensivo quanto intensivo, e ambas
as margens do Atlântico são cenário dos fluxos e refluxos do
tráfico escravista, que fizeram do igual desterritorializado, um
diferente absoluto.
É o que narra a pesquisadora Manuela Carneiro da
Cunha (1985) sobre os negros escravizados que retornavam
a suas regiões de origem, e, lá chegados, pensam-se
brasileiros, falantes do português, católicos, mesmo tendo sido
originalmente muçulmanos em sua maioria, mesmo no Brasil
a religião dos orixás ter se mantido. Esses negros retornados
se tornam estrangeiros em suas próprias terras. As fotos de
Pierre Verger para o livro Da senzala ao sobrado, de Marianno
Carneiro da Cunha, e, mais recentemente, as de Tatewaki
Nio testemunham a herança barroca desses retornados,
responsáveis pela construção de casas no Benin e na Nigéria no
modelo colonial de cidades brasileiras. Esse complexo sistema
cultural, responsável, por exemplo, pela mesquita muçulmana
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de Porto Novo apresentar-se não com o minarete, mas com
duas torres, compondo um frontispício triangular, demanda
outros conceitos de identidade, como a que Manuela expõe ao
final de sua obra:
Passamos assim da identidade enquanto uma constante, algo
imutável que “caracterizaria” um grupo, presa à ideia de
uma história realmente presente em uma cultura anteposta,
a uma concepção mais adequada que poderíamos chamar
de “algébrica” da identidade, adotando assim uma imagem
de Simmel que comparar a identidade a uma variável numa
equação [...]: “Embora se trate sempre da mesma variável, seu
valor muda em função dos valores dos outros fatores” (DA
CUNHA, 1985, p. 208).
Jorge Mautner nunca deixou de colocar em perspectiva
as posições: Brasil é Oriente. Para Caetano, nossa realidade
é “extraocidental”, “fica à margem da margem” (VELOSO,
2017, p. 27). Pelo fato de nossa identidade estar intimamente
ligada a essa virtualidade do ponto de vista, o narrador de
Deus-dará aparece como rastro de uma ininterrupta esquiva
de apropriação, projetando-se sempre em outro lugar, outra
voz, outra imagem, diferindo do já apresentado. O imaginário
do fim do mundo apenas ressalta essa “vertiginosa sensação
de incompatibilidade – senão de incompossibilidade – entre o
humano e o mundo” (DANOWSKI; VIVEIROS DE CASTRO,
2014, p. 14), que se agrava com o Antropoceno. As marcas desse
antagonismo impedem, nas obras de Alexandra, a diluição
do político e do estético na institucionalização ou no poder
historicizante. A forma informe dessas obras confirma a
interrupção de uma concepção de tempo epocal, bem como a
problematização da mediação em territórios tropicais, a partir
da veemência do real desses personagens, dos usos e operações
dos poemas concretos, dos mapas antigos, listas, fotografias,
pinturas, relatos históricos e presentes, apresentadas pelo
enigmático narrador a deslocar o eixo da terra, dispersando
fatos entre ficções, de modo a tensionar o limite entre a crença
e o ritual, a sensibilidade e a anestesia.
A ambiguidade dos termos, o contraste de uma língua
devindo várias, o devir-leitor do autor, a indeterminação entre
gênese e apocalipse decorrente do choque de duas realidades
díspares, o deslocamento narrativo de um livro a outro, de uma
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7
Danowski e Viveiros
de Castro são precisos
quanto aos opostos
inequívocos: “há,
sobretudo, gente
de menos com
mundo demais e
gente demais com
mundos de menos – e
é aqui que a coisa
pega” (DANOWSKI;
VIVEIROS DE
CASTRO, 2014, p. 129)
margem de dois lados atlânticos, a orquestração sincrônicaantropofágica, marcam essa potência significante que não se
esgota no ato da nomeação e que não deseja, por estar revisando
a História, promover uma recombinação das estruturas formais
de cada uma das narrativas. Esse entregar-se às águas para
nelas ver o que ainda não foi escrito, o que está náufrago e à
deriva, desterritorializa os discursos, transmutando o delírio
em matéria crua, pensamento em imagem. Essa entrega só é
possível pela reversibilidade daqueles que foram entregues à
força, e esse gesto de reintegração por isso, deve ser levado às
últimas consequências. A simultaneidade de um acontecimento
como o do grito de Lucas e a descoberta de uma gravidez não
confirmam a relação inequívoca entre os fatos, mas acusam
principalmente o antirelacionismo de nosso tempo, ainda
muito ancorado nas essências e transcendências – o que daria
quase no mesmo.
Quem, como um xamã ou um orixá, experimentou o
lado de lá do significado, jamais fará uso de um signo sem
entender que, de modo distinto da lógica da analogia, um
significante na língua portuguesa é conduzido, estética e
politicamente, por sobrecarregamentos de sentido (e de
gente)7 por causa da insuficiência do mundo, isolando-se de
juízos como certo e errado e inviabilizando a síntese. O mito
de que Deus dará, por exemplo, expressão da duplicidade da
crença e do abandono, visibiliza a própria lógica mítica da
produção de sentido considerando-se as instâncias da natureza
e da cultura, que, por uma torção, misturam o dado com o
prometido, a transcendência com a imanência, o universal com
o particular. No entanto, como Viveiros de Castro nos mostra
a partir de Lévi-Strauss, haveria uma mitologia ameríndia da
ambiguidade, referente aos processos regressivos e às marchas
contraditórias do sentido em direção à matéria, em que as
linhas paralelas dos trópicos não operam por analogia, mas
por equívoco, fazendo da indeterminação e da dupla torção
barroca a condição do pensamento tropical e ameríndio,
simultaneamente espontâneo e engenhoso.
Esquivo do juízo final, esse apocalipse costumeiro,
profano e fractal, através das subjetividades transatlânticas,
devolve ao nosso olhar sua mirada simultaneamente
antropológica, estética e política, que performatiza o fim para
evitar sua realização definitiva. Uma curiosidade tradutiva
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entre os personagens e o cenário tornado agente desponta com
base, inclusive, no que não cessa de (não) se traduzir, uma vez
que a tradução não é um ato posterior à matéria. É com base
nesse terreno baixo, proteico e informe, inerente ao acaso e
ao intervalo, indeterminante do fato e do valor, que podemos
recuperar as forças épicas e sincrônicas de nosso barroquismo e
realizar uma segunda abolição, dando fim ao destino teleológico
e criando meios éticos para uma esfera de decisão, por maior que
seja a resistência em negá-la ou por mais que pareça impossível
inseri-las em magnitudes escalares. Esse acidente de percurso,
essa falha na oposição entre criação e destruição não é nem
auspiciosa, como certa recepção de Deus-dará inspiraria, nem
símbolo de mau augúrio: mas a inscrição de uma ontologia em
que forma e fundo se inseparam, realizando na palavra (esta
dimensão ainda maior que a natureza, como nos ditará nossa
herança barroca) a reescrita em devir da história tumultuada,
não unificada e em permanente guerra que constitui nosso
presente decisivo em termos de um porvir.
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Abstract
The apocalypse reviewed by Deus-dará
Inverting the figures of the creation’s myth of
Brazilians by the Europeans, the Portuguese
writer Alexandra Lucas Coelho focuses on the
apocalypse as a tropo not only tropicalist, but
also perspectivist, changing her position to see
the differences and the shares of this unusual
space that opens up between the opposites in the
Portuguese language. This essay, in response
to the provocation of Deus-dará, revisits
the places of our formation, reviewing above
all the transits that constituted us from the
point of view of movement, language-games
and the phenomenon of simultaneity, which
make creation and destruction undecidable,
order and disorder, fact and value. Baroqueism
that invests the Portuguese language with an
aesthetic tendency, sensitive in the form of
Alexandra’s work, in Caetano Veloso’s songs
and in Lévi-Strauss’s essay, provokes a critical
shift in the discussions of Lusophone and
Lusotropicalist bases, reviving the reflective
scenario and transatlantic politics with other
sensitive, imaginary and symbolic paradigms.
Keywords: Tropo, Tropic, Tropicalismo,
Baroque, Alexandra Lucas Coelho.
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