http://dx.doi.org/10.18593/r.v42i1.10600
COMPLEXIDADE E TRANSDISCIPLINARIDADE:
CONVITES PARA A COLABORAÇÃO E
CORRESPONSABILIDADE EDUCATIVA
COMPLEXITY AND TRANSDISCIPLINARITY: INVITATIONS
FOR COLLABORATION AND EDUCATIONAL SHARED
RESPONSIBILITY
COMPLEJIDAD Y TRANSDISCIPLINARIEDAD: INVITACIONES
PARA LA COLABORACIÓN Y LA RESPONSABILIDAD
EDUCATIVA
Andréia de Andrade Moraz1
Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Pesquisadora do Programa Observatório
da Educação (Obeduc)
Roque Strieder2
Universidade do Oeste de Santa Catarina (Unoesc), Professor do Programa de Pós-Graduação em
Educação (PPGEd); Pesquisador colaborador do Programa Observatório da Educação (Obeduc)
Resumo: Somos reféns de uma organização social enraizada em uma extensa lista de
dispositivos de ordem, que geram grave crise pedagógica e educacional. Diante desse contexto e da lógica racional dos conhecimentos, e considerando a etimologia de
complexus (o que é tecido junto), no trabalho indicamos a transdisciplinaridade como
oportunidade de articular os elementos contraditórios desse “tecido junto” também no
aspecto pedagógico e formativo. Fruto de reflexões teóricas, sugerimos a complexidade para reconhecer a emergência de diferentes níveis de realidades, seja das coisas
do mundo, da vida, seja das organizações humanas, e como uma possibilidade para
alargar a compreensão do real pela abertura e aceitação da presença auto-organizativa
em cada ser humano. Concluímos: essa abordagem cria sensibilidade para a responsabilidade na transformação de si, do outro e do mundo.
Palavras-chave: Educação. Complexidade. Transdisciplinaridade. Colaboração.
1
Mestre em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação (PPGEd) da Universidade do Oeste
de Santa Catarina (Unoesc); Bolsista do Programa Observatório da Educação (Obeduc).
2
Doutor em Educação pela Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep); Mestre em Educação pela
Universidade Federal de Santa Catarina.
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Abstract: We are hostages of a social organization rooted in a long list of order devices, that generate a serious pedagogical and educational crisis. Given this context
and the rational logic of knowledge, and considering the etymology of complexus
(what is built together), this work indicates the transdisciplinarity as an opportunity
to articulate the contradictory elements of this “built together” also in the pedagogical and formative aspect. Result of theoretical reflections, we suggest the complexity
to recognize the emergence of different levels of reality, considering things from the
world, life and/or human organizations, and as a possibility to expand the understanding of the real by opening and acceptance of the self-organizing presence in each
human being. We conclude: this approach creates sensibility to the responsibility in
its own transformation as well as in the transformation of the others and the world.
Keywords: Education. Complexity. Transdisciplinarity. Collaboration.
Resumen: Somos rehenes de una organización social, basada en una larga lista de
dispositivos que generan orden pedagógico serio y crisis de la educación. En este
contexto y la lógica racional de los conocimientos y teniendo en cuenta la etimología
de complexo “que está tejido en conjunto”, el trabajo indica la transdisciplinariedad
como una oportunidad para articular los elementos contradictorios de este “entrelazados”, también en el aspecto educativo y formativo. El resultado de consideraciones
teóricas, se sugiere la complejidad de reconocer la aparición de diferentes niveles de
la realidad, si las cosas del mundo, la vida y / o las organizaciones humanas. Una
posibilidad para ampliar el conocimiento de la verdadera apertura y la aceptación
de la presencia de auto-organización en cada ser humano. Llegamos a la conclusión:
este enfoque crea sensibilidad de la responsabilidad en la transformación de sí mismos, los demás y el mundo.
Palabras clave: Educación. Complejidad. Transdisciplinariedad. Colaboración.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Planejamentos fechados, trabalho burocrático, exigências legais, metas e
resultados e engessamento do currículo escolar são fatores que têm contribuído para
uma regulação cada vez mais ampliada dos processos educativos. Esse engessamento
acaba por minimizar as ricas possibilidades de ensino e aprendizagem, como experiências de vida, que podem ser construídas na escola. Por isso, a educação necessita
de uma desorientação; pressupõe, portanto, o abandono de verdades normatizadas,
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estáticas e absolutas. Caminhos prontos, já construímos demais e sentimos na pele o
fracasso que a rigidez de planos fechados podem ocasionar.
Se, como escreve Minayo (1991, p. 72), a ciência moderna, pela fragmentação do conhecimento, ignora “o ser humano como ponto de partida e de chegada”,
“desnaturaliza a natureza” e “desumaniza a humanidade”, ela também promove a ruptura entre o conhecimento da natureza e o conhecimento do mundo social. Aprendemos a segmentar, a compartimentalizar e a isolar e dificilmente percebemos o mundo
articulado, colaborativo e simbiótico. Precisamos educar nosso olhar para perceber as
interconexões, para perceber que o todo em movimento significa implicações para um
devir humano, interdependente desde o princípio.
Assim, temos como objetivo compreender como o pensamento complexo
e a transdisciplinaridade podem contribuir para a efetivação de processos pedagógicos e formativos permeados pela colaboração e, então, de corresponsabilidade entre
humanos e entre saberes. O humano é humano no acontecer da e em coletividade, e,
nessas inter-relações estabelecidas, as pessoas têm a possibilidade de ensinar e aprender. A escola é essencialmente um lugar de relações, de encontros e diálogos, por isso
é um campo fértil para uma “reforma de pensamento” que permita novas percepções
sobre os conhecimentos, sobre a condição humana e sobre os processos de ensino e de
aprendizagem (MORIN, 2004).
Diante das novas e imprevisíveis demandas educativas, este trabalho, fruto
de investigações em referenciais teóricos, resulta em um convite para refletir sobre o
pensamento complexo e as possibilidades de alargamento de contribuições pedagógicas pela abordagem transdisciplinar. Pulsa a necessidade de compreendermos e acolhermos a transdisciplinaridade como um convite para abandonar as visões simplistas
e fragmentárias ainda presentes em espaços educativos.
Entendemos que aceitar a transdisciplinaridade possibilita navegar entre
incertezas, colocar-se à disposição para pensar de forma processual ações pedagógicas e formativas amplas, abertas, flexíveis e colaborativas, em que os envolvidos se
sintam corresponsáveis pelo processo.
2 PENSAMENTO COMPLEXO: NAVEGANDO POR LUGARES
SURPREENDENTES
A humanidade encontra-se em constante processo de transformação, assim como a ciência que, da segurança nas verdades, reconhece a incerteza e aceita
a complexidade das interdependências. A revolução da tecnociência equivale a uma
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revolução paradigmática com implicações profundas em diversos âmbitos da vida
relacional humana, econômica, ambiental, política e educacional. Todos esses âmbitos, na atualidade, estão merecendo atenção e investigações, visando ampliar a
compreensão das profundas interferências no modo de ser humano. Em particular, no
campo educacional são amplos e inovadores os debates provocados por reflexões de
reconhecimento dos limites do arcabouço simplista, presente nas teorias pedagógicas
tradicionais cada vez mais insuficientes para explicações e compreensões das diversas
realidades emergentes. Morin (1987, 1989, 1992, 1996, 2002, 2005), formulador do
método3 da complexidade, toma como ponto de partida a inadequação dos conhecimentos compartimentados para explicar as realidades e suas problemáticas polidisciplinares e multidimensionais. Morin é enfático ao afirmar a necessidade de uma reforma paradigmática do pensamento. Essa reforma do pensamento tem como desafio
a compreensão de que visões fragmentadas e compartimentalizadas são insuficientes
para conhecer realidades amplas e complexas. Focar o olhar sobre determinado fenômeno, a partir de uma posição fixa e objetiva, é cegar-se para outras tantas dimensões
que envolvem os fenômenos. Para Morin, a forma objetiva e simplista é grave problema para conhecimentos mais extensivos, ou seja, a eliminação do observador isola e
desconsidera sua participação no acontecer dos fenômenos.
Essa reforma do pensamento consiste na amplificação do reconhecimento e
da compreensão da complexidade. Complexidade, segundo Morin (2003), é um desafio e não uma resposta ou uma receita para as problemáticas existentes na contemporaneidade. Para explicar o significado da complexidade, o autor vai às raízes etimológicas da nossa língua, o latim, em busca de sentidos que se perderam no decorrer dos
tempos (GELATI, 2010). A palavra complexidade deriva do termo latino complexus e
quer dizer o que está junto, o que é tecido junto. Concebe imaginários de uma trama
de fios que se entrelaçam formando algo maior, um tecido. Na formação do tecido, os
fios não se anulam, entrecruzam-se e mantêm sua singularidade, mas compõem uma
nova unidade não mais na singularidade, mas na diversidade (MORIN, 2003).
O conceito de complexidade de Morin está indissociavelmente ligado à
ideia de uma reforma do pensamento que possibilita compreender a dinâmica interdependente entre os fenômenos e, assim, pensar a multidimensionalidade presente
3
O método da complexidade, formulado por Morin, é composto por seis volumes, ou seja, O Método I: a
natureza da natureza (Portugal: Publicações Europa-América, 1987); O Método II: A vida da vida (2. ed.
Portugal: Publicações Europa-América, 1989); O Método III: o conhecimento do conhecimento (2. ed.
Portugal: Publicações Europa-América, 1992); O Método IV: as ideias – a sua natureza, vida, habitat e
organização (Portugal: Publicações Europa-América, 1996); O Método V: a humanidade da humanidade
(Porto Alegre: Sulina, 2002); e O Método VI: ética (Porto Alegre: Sulina, 2005).
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nas interações. “Trata-se de procurar sempre as relações e inter-retro-ações entre cada
fenômeno e seu contexto, as relações de reciprocidade todo/partes: como uma modificação do todo repercute sobre o todo e como uma modificação do todo repercute sobre
as partes.” (MORIN, 2004, p. 25).
Ainda influenciados pelo modelo cartesiano, a tendência é segmentar pressupondo a possibilidade de compreensão; certamente, na tranquilidade simplificadora, visualizar e experienciar a complexidade é incômodo e, para muitos, assustador.
No seio da complexidade o considerado real e absoluto se fragiliza em argumentos
insustentáveis e insuficientes diante da presença de variáveis e dimensões múltiplas.
As tradicionais tentativas teóricas de conhecimento e compreensão, tendo como base
a decomposição da totalidade, dificultam, também nos ambientes da educação escolar,
a ampla e complexa tarefa de construir conhecimentos pertinentes.
O fenômeno da eletrólise das moléculas da água a fragmenta nos seus elementos químicos constituintes: o gás hidrogênio e o gás oxigênio. Mas como explicar
um todo líquido – água – como sendo o resultado da soma de dois gases? Ou seja, a
lógica de que a “soma das partes é igual ao todo” é simplesmente insuficiente, pois
algo a mais emerge da organização de dois moles de hidrogênio e um mol de oxigênio,
pois, nesse caso, gás mais gás não se reduz a um simples gás, mas origina um líquido.
São essas emergências, presentes nas inter-retro-ações das organizações, que o pensamento complexo quer conhecer e compreender e é isso que podemos denominar de
conhecimento pertinente.
É nesse sentido que o pensamento complexo pode ser validado como princípio epistemológico de diferentes estratégias pedagógicas. Entenda-se que a complexidade não exclui os princípios da ciência clássica quanto à ordem, à lógica e à
separabilidade, no entanto procura alternativas de visualização e compreensão das
dinâmicas emergentes da e na organização, para além de sequencialidades e justaposições. Em toda obra de Morin perpassa um compromisso com a questão do conhecimento, e ele o afirma escrevendo: “O problema cognitivo é o problema quotidiano de
cada um e de todos. A sua importância política, social e histórica torna-se decisiva.”
(MORIN, 1992, p. 221). Diante de realidades complexas, a simples descrição analítica e a explicação com base em modelos simplificadores, analisando cada parte sem
descrever o todo, e vice-versa, não possibilitam conhecimentos pertinentes.
A fragmentação do conhecimento em componentes curriculares oportuniza
também que cada um deles crie seu próprio território de saber e poder, generalizando
e se especializando em pedaços de saberes. Insiste-se na cegueira daquilo que exprime
o surgimento do inédito e do inesperado. Por isso Morin (2003, p. 260) afirma que “O
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todo é uma macrounidade, mas as partes não estão fundidas ou confundidas nele; tem
uma dupla identidade, identidade própria que permanece (portanto, não redutível ao
todo) identidade comum, a da sua cidadania sistêmica.” Essa característica constitui
um circuito ativo, um jogo no qual o todo e as partes não se reduzem um ao outro,
mas se complementam.
O todo é maior que a soma das partes já que contém propriedades que
somente se manifestam nessa conjuntura. É, por exemplo, o que pode acontecer quando se possibilita a abertura para o conversar com outras áreas do saber. Também o
todo é menos do que a soma das partes, se no momento da organização de umas
com as outras houver a inibição de algumas de suas propriedades ou de alguma(s)
singularidade(s). Quando tentamos olhar somente o todo estamos deixando de ver especificidades que somente se encontram nas individualidades. Também Morin (2003)
afirma que o todo é mais do que o todo, porque em um movimento recíproco o todo
fomenta o desenvolvimento das partes, assim como as partes contribuem para o desenvolvimento do todo que se refaz em novos patamares. Esse último aspecto pode ser
comparado ao ambiente escolar, na medida em que o professor, que ensina, também
aprende, e o mesmo acontece com os alunos; uma coparticipação como dinâmica de
diversas interações complexas entre a unidade e a diversidade com predisposição para
aprender a compreender a complexidade da vida, do ser humano, do conhecimento.
“Trata-se, ao mesmo tempo, de reconhecer a unidade dentro do diverso,
o diverso dentro da unidade, de reconhecer, por exemplo, a unidade humana em
meio às diversidades individuais e culturais, as diversidades individuais e culturais
em meio à unidade humana.” (MORIN, 2004, p. 25). É a unidade na diversidade
que oportuniza considerar as emergências inscritas nos fenômenos da natureza,
nos fenômenos biológicos como resultantes do acaso, do ruído e da presença das
desordens e bifurcações. Possibilita reconhecer que as emergências, de ordem física
ou sociocultural, são sempre inesperadas e incertas. Acaso, ruídos e incertezas são
decorrências da dinâmica do movimento da ordem e da desordem e das emergências
que dele fluem.
A dinâmica das interações permitiu a Morin (2005) a concepção da Unitas
multiplex. Por meio dessa expressão o autor reconhece e deseja compreender a importância das interações entre o uno e o múltiplo, ou/e ao mesmo tempo do todo e das
partes. É um foco epistemológico formulado para captar e compreender a complexidade inerente às realidades em si. No contexto da Unitas multiplex o universo físico
e cultural, incluído o ser humano é um todo complexo e não pode ser compreendido
de forma apropriada quando reduzido a regras e modelos simplificadores. A Unitas
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multiplex evidencia a necessidade de um pensamento complexo para compreensões
mais amplas daquilo que, por natureza, é complexo. Por isso “[...] a ideia de unidade
complexa adquire densidade se pressentimos que não podemos reduzir nem o todo às
partes, nem as partes ao todo [...] mas que precisamos conceber em conjunto, de modo
complementar e antagônico, as noções de todo e de partes, de um e de diversos.”
(MORIN, 2002 p. 135).
Complexidade é um convite para reunir, como complementares e não
existentes separadamente, noções que na visão simplista foram e são separadas: uno-múltiplo, todo-partes, bem-mal, sujeito-objeto, ordem-desordem, certeza-incerteza,
completude-incompletude. Esses pares binários, antagônicos na lógica da modernidade, são agora entendidos como complementares, em contextos dinâmicos de implicações mútuas em (re)organizações.
Essa concepção da dinâmica organizativa estava ausente da ciência moderna que tinha como referência os princípios da redução e disjunção, um paradigma
simplificador com uma visão que considerava ser a natureza sólida, governada pelo
princípio da estabilidade e da ordem. Para Morin (2002, p. 126), “[...] talvez não exista a última ou primeira realidade indivisível ou isolável, mas um continuum (teoria
do bootstrap),4 e até uma raiz unitária fora do tempo e do espaço.” Isso significa um
novo olhar sobre o universo. Não pensamos mais na menor partícula ou unidade indivisível, mas no conjunto que todo o universo representa, em um sistema complexo
que se auto-organiza.
Na obra O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza, Prigogine
(1996) apresenta uma nova racionalidade filosófica e científica que sinaliza para o fim
das certezas. Para o autor, a lógica científica da modernidade e seu sustento na certeza
das leis físicas e a consequente garantia da previsibilidade do futuro e do conhecimento certo estão equivocadas. Para ele, “A ciência clássica privilegiava a ordem, a
estabilidade, ao passo que em todos os níveis de observação reconhecemos agora o
papel primordial das flutuações e da instabilidade.” (PRIGOGINE, 1996, p. 12). Se
existem flutuações e instabilidades, então, o absoluto e o “em-si” das coisas dão lugar
às dinâmicas processuais nas quais a organização e a auto-organização terão lugar de
destaque.
A teoria bootstrap (presilha de bota), iniciada e defendida por Geoffrey Chew, não aceita a ideia da
existência de constituintes fundamentais da matéria, como também não aceita quaisquer espécies de
entidades fundamentais – nenhuma constante, lei ou equação fundamental. Na abordagem boostrap o
universo é visto como uma teia dinâmica de eventos inter-relacionados. Nenhuma das propriedades de
qualquer parte dessa teia é fundamental, todas elas decorrem das propriedades das outras partes do todo, e
a coerência total de suas inter-relações determina a estrutura da teia (CAPRA, 2000).
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Na ciência clássica, baseada em uma lógica estrutural que não comportava a desordem, o sentido de organização era desconsiderado. Com o emergir da
desordem também ressurge a organização. Mas, o que se entende por organização?
“[...] a organização é o encadeamento de relações entre componentes ou indivíduos
que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas
quanto aos componentes ou indivíduos.” (MORIN, 2002, p. 133). O autor sustenta
que na organização existe um circuito trinitário: a organização que acontece por meio
de processos de ordem e desordem constituindo uma inter-relação que por sua vez
possibilita a constituição do sistema. As três noções apresentam-se indissociáveis, porém distinguíveis, remetendo-nos a pensar novamente no conceito Unitas multiplex,
ou seja, em uma dinâmica de interdependência.
Na interdependência consideramos o uno e o múltiplo em uma relação mútua, na qual a imprevisibilidade, a contradição e a criatividade das e nas inter-relações
podem emergir. Ordem e desordem coexistem, e, embora possamos, em um dado
fenômeno, verificar regularidades e repetições, também se pode prever a ocorrência
de desvios e irregularidades que, ocasionais ou não, fazem parte do contexto do fenômeno.
A complexidade possibilita um jeito de ser e estar não previsível, que oportuniza o reconhecimento do desconhecido, o reconhecimento dos limites dos conhecimentos, ao mesmo tempo em que impulsiona a curiosidade para novas descobertas.
Um conhecimento não mais emanado das coisas e dos fenômenos, mas resultado de
um amplo exercício reflexivo e recorrente e, por isso mesmo, recheado de afirmações
provisórias e questionáveis, distantes e negando posições dogmáticas, determinadas
e últimas.
Diferentemente do caminho pronto e estável, a complexidade abre-nos a
possibilidade participativa e tem na incompletude e na imprevisibilidade do caminhar
e da chegada a sua dinâmica mais intensa. Isso significa pervagar na obscuridade do
conhecido em aliança com o desconhecido, do construído e do em construção. Na
nebulosa viagem pelo desconhecido, já não existe um foco único, uma verdade única,
uma luz indicativa da certeza, mas penetramos em um ambiente como um todo, incógnito e que nos interpela, como afirma Agamben (2009). Permitir-se ser interpelado é,
para Agamben (2009), ser contemporâneo, é visualizar a complexidade do universo,
como um escuro que não é “[...] a simples ausência da luz, algo como uma não visão,
mas o resultado da atividade das off-cells, um produto da nossa retina.”
Ao contrário da clareza e da ordem, experimentamos o desafio de enxergar
sob a penumbra. Assim, a complexidade comporta a multidimensionalidade e não
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exclui a segurança de caminhar sob a projeção da luz, mas nos aproxima das variáveis e dos diversos significados que a penumbra pode provocar ao observarmos um
fenômeno. Sabemos que a luz, ao atingir determinado objeto, clarifica uma das faces,
mas deixa as demais encobertas pela penumbra. O que o pensamento complexo nos
propõe é uma percepção para além do aparente, uma visão capaz de compreender o
entrelaçamento das diferentes linguagens para a compreensão de um fenômeno. Isso
significa que na complexidade se abrem oportunidades para as mais diversas visões
sobre determinado fenômeno, desestabilizando o caminho pronto, único e verdadeiro.
A complexidade é uma oportunidade contrária à submissão dos conteúdos
curriculares e das relações pedagógicas à tirania da fragmentação e da verdade absoluta. É uma oportunidade para perceber que o “todo tecido junto”, a interdependência
e a Unitas multiplex são o escuro não como “[...] uma forma de inércia ou de passividade, mas implica uma atividade e uma habilidade particular” para reavivar ambientes
pedagógicos e educativos descobrindo “[...] as suas trevas, o seu escuro especial, que
não é, no entanto, separável daquelas luzes.” (AGAMBEN, 2009, p. 63). De suas
concepções amplas e abertas abrem-se as portas para a emergência da transdisciplinaridade, indicativo de que podemos nos relacionar com o mundo de diferentes formas,
engendrando as diferentes áreas do conhecimento nos processos de aprendizagem.
Um convite para atitudes de humildade diante dos inúmeros saberes e como anúncio
de efetiva participação, esta como fundamental nas relações pedagógicas em substituição à persistência no individualismo e no personalismo profissional e disciplinar.
3 TRANSDISCIPLINARIDADE E ENVOLVIMENTO
COLABORATIVO
Com a emergência do paradigma da complexidade surge a necessidade de
ultrapassar a tradicional forma de educar e também de revisar os alicerces epistemológicos que sustentam as práticas educacionais e lhes dão sentido. O simplismo do
paradigma cartesiano já não é suficiente para atender à demanda educacional, política,
social e ética nos cenários complexos da contemporaneidade, já que
Os grandes problemas políticos do mundo contemporâneo referem-se ao desarmamento, aos equilíbrios ecológicos, às mutações da economia e do trabalho, ao desenvolvimento dos países
do hemisfério sul, à educação, à miséria, à manutenção do laço
social etc. Ninguém possui a solução simples e definitiva para
resolvê-los. [...] Além disso, os problemas em questão estão todos, em maior ou menor medida, interconectados em um espaço mundializado. Enfim, sua resolução exige negociações entre
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atores muito numerosos, de porte, cultura e interesses a curto
prazo heterogêneos. Praticamente nenhum sistema de governo
contemporâneo foi concebido de modo a responder a tais exigências. (LÉVY, 1998, p. 61).
Também, para Morin (2004), quanto mais os problemas se tornam multidimensionais, mais difícil é para pensá-los. Quer dizer que o retalhamento que ocorreu com a divisão do conhecimento em disciplinas torna impossível compreender o
que é tecido junto. Se por um lado os desenvolvimentos disciplinares das ciências
nos oportunizaram novas formas de organização e divisão do trabalho, por outro,
levaram-nos aos inconvenientes do individualismo e do confinamento. O isolamento causa a cegueira e a ilusão da unidimensionalidade e autossuficiência, atrofiando
diálogos produtivos entre disciplinas e entre seres humanos. Dessa forma, segundo
proposição de Morin (2013, p. 194), um diferente desafio da educação “[...] ensinaria
uma concepção complexificada dos termos aparentemente evidentes, não apenas de
racionalidade, mas também de cientificidade, de complexidade, de modernidade, de
desenvolvimento.”
Conhecer e compreender essas concepções complexificadas é também
entender que as experiências humanas, além de históricas, estão circunscritas não
na exclusiva certeza e clareza do conhecimento, mas comportam também fronteiras
misteriosas, recheadas de incertezas e ambiguidades. Permite compreender que todas
as experiências de conhecimentos antropológicos, filosóficos, sociológicos e outros
resultam de interpretações a partir de sistemas de pensamentos que entrelaçam a construção da condição humana de forma interdependente, envolvente e envolvida em seu
universo existencial. Se “Conhecer o humano não é separá-lo do universo, mas situá-lo nele” (MORIN, 2004, p. 37), já não cabe a versão antropocêntrica, mas reconhecer
que o ser humano se encontra em constante interação com o universo; interação que
possibilita reconhecer ser a condição humana resultado de ações colaborativas.
Então, também como perspectiva pedagógica se coloca o desafio da colaboração entre disciplinas, como forma de fecundar as reflexões das possibilidades
de conhecer os conhecimentos, fecundidade da qual pode emergir uma inteligência
coletiva, como expressa Lévy (1998), permitindo reconhecer a pertinência do entrelaçamento de diferentes discursos, conversas, reflexões e escutas. Implica uma ressignificação epistemológica e cultural assentada no pressuposto de que “[...] na sociedade
estão em jogo muitas linguagens diferentes e uma imensa gama de elementos heterogêneos, incongruências e incredulidades que inviabilizam uma saída salvadora e
única.” (GOERGEN, 2012, p. 158).
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Para Lévy (1998, p. 17), a mobilização colaborativa possibilita o reconhecimento da responsabilidade mútua, pois “Se nos engajássemos na via da inteligência
coletiva, progressivamente inventaríamos as técnicas, os sistemas de signos, as formas de organização social e de regulação que nos permitiriam pensar em conjunto.”
Uma forma de os especialistas contribuírem para um processo de construção colaborativa em uma versão diferente da descrita por Nicolescu (1999, p. 51):
Dois especialistas na mesma disciplina têm, hoje em dia, dificuldade em compreender seus resultados recíprocos. Isso nada
tem de monstruoso, na medida em que é a inteligência coletiva
da comunidade ligada a esta disciplina que a faz progredir e não
um único cérebro que teria de conhecer todos os resultados de
todos seus colegas cérebros, o que é impossível. Pois, hoje em
dia, existem centenas de disciplinas. Como poderia um físico
teórico em partículas dialogar com um neurofisiologista, um
matemático com um poeta, um biólogo com um economista,
um político com um especialista em informática, exceto sobre
generalidades mais ou menos banais?
A compartimentalização do conhecimento, em forma de disciplinas, contribui para a hiperspecialização, dificulta o diálogo produtivo e determina territórios
como agregados competitivos. Para Popper (1972, p. 95-96):
A idéia de que a física, a biologia e a arqueologia existem por
si mesmas, como campos de estudos ou disciplinas distinguíveis entre si pela matéria que investigam, parece-me resíduo da
época em que se acreditava que qualquer teoria precisava partir de uma definição do seu próprio conteúdo. Na verdade não
é possível distinguir disciplinas em função da matéria de que
tratam; elas se distinguem umas das outras em parte por razões
históricas e conveniências administrativas (como a organização
do ensino e do corpo docente), em parte as teorias que formulamos para solucionar nossos problemas têm a tendência de se
desenvolver sob a forma de sistemas unificados.
Organizações disciplinares fechadas tendem a impedir os avanços de ações
pedagógicas colaborativas e persistem na oferta de mecanismos formativos defasados
e sem ênfase na compreensão dos conhecimentos, sequer na compreensão das condições e experiências de vida. Por isso, Nicolescu (1999) afirma ser necessário cometer
o “sacrilégio” de cruzar as fronteiras da própria disciplina e visualizar uma ponte que
possibilita estudar fenômenos situados fora e além do âmbito disciplinar.
Esse “sacrilégio” poderá qualificar as ações pedagógicas e educacionais,
o que significa contribuir para que o ser humano seja capaz de conhecer melhor o
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mundo em que vive, compreendendo os fenômenos do mundo, da natureza e da humanidade. Essa requalificação do cenário pedagógico pode ser potencializada pela
transdisciplinaridade, esta que significa o “[...] que está acima das disciplinas [...]
que transcende ou abrange as disciplinas, [sendo mais completa e complexa do que a
interdisciplinaridade] que liga as disciplinas.” (NICOLESCU, 1999).
Trata-se de uma visão diferente da proposta pela educação simplificadora,
dogmática e disciplinar, por atrofiar a aptidão de contextualizar os conhecimentos e
valorizar muito mais a separação que a associação de ideias em um todo significativo.
O termo transdisciplinaridade foi usado por Piaget em 1970 em um congresso sobre interdisciplinaridade ao afirmar que a etapa interdisciplinar deveria ser
sucedida por outra de caráter transdisciplinar. A visão da transdisciplinaridade tem
origem no teorema de Gödel, proposto em 1931, visando distinguir a existência de
vários níveis de realidade e não somente de um nível, como o dogma da lógica clássica em seu axioma do Terceiro Excluído afirmava: “[...] não há um termo T, que é,
ao mesmo tempo, A e não-A. [A existência de] um terceiro termo T, que, ao mesmo
tempo, é A e não-A” (NICOLESCU, 1999, p. 29) leva a outro nível de realidade, diferente do nível anterior, nos termos da lógica da não contradição. Abre-se uma janela
de possibilidades para novas e diferentes visões das realidades.
A transdisciplinaridade não elimina a multidisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e nem mesmo a disciplinaridade, pois ela
emerge da necessidade de complementar essas dinâmicas trazendo à tona um olhar
para realidades multidimensionais e multirreferenciais que têm a colaboração como
pressuposto fundamental. “A disciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a transdisciplinaridade são as quatro flechas de um único e mesmo arco: o
do conhecimento” (NICOLESCU, 1999, p. 55), porque a compreensão das realidades
ascende a outros níveis com significados mais abrangentes e abertos para novos processos.
A atitude transdisciplinar traduz a necessidade indispensável de encontrar
princípios e vínculos de unidade entre as diferentes ciências e diferentes disciplinas.
Ela implica uma atitude epistemológica que, ao mesmo tempo em que junta e visualiza articulações, procura superar as particularidades, conjugando os saberes para, a
partir de diferentes aportes, perceber a complexidade do conhecimento. É uma abertura para reflexões complexas, não conclusivas, pois o pensar complexo nos diz que o
conhecimento nunca estará completo e que a racionalidade tem limites.
A transdisciplinaridade não visa ao conhecimento total, mas aspira saberes
menos particulares e compreende cada vez mais que conhecer o conhecimento é exi-
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gência de um processo repleto de variáveis complexas e inseparáveis. Essa abertura
e envolvimento com varáveis complexas comporta a aceitação do desconhecido, do
inesperado e do imprevisível. São atitudes epistemológicas que refletem avanços no
processo de construção de conhecimentos, cujos novos patamares evidenciam os limites que as disciplinas apresentam para a compreensão dos fenômenos do mundo, da
natureza e da humanidade.
Para Nicolescu (1994, p. 3), enquanto
Todo o conhecimento ocidental assenta sobre a eficácia da especialização, o que é uma ideia justa [...] a Transdisciplinaridade não é uma nova disciplina, não diz respeito nem ao método,
nem à justaposição de conhecimentos que fazem parte de uma
disciplina já existente. É, antes, uma atitude rigorosa em relação a tudo o que se encontra no espaço que não pertence a
nenhuma disciplina.
Por isso, em termos pedagógicos e formativos, ela significa uma oportunidade para que os seres humanos – estudantes – sejam capazes de conhecer melhor
o mundo em que vivem também com a percepção das tramas e dos envolvimentos
presentes.
Um mundo reconhecidamente envolvido em fenômenos de maior complexidade exige para seu conhecimento concepções de natureza teórica e metodológica distintas, diversificadas e dispersas, mas interligadas e enredadas, possibilitando
conhecimentos concebidos e frutos de uma rede de interconexões rizomáticas. Uma
visão que considera insuficiente a formação linear e especializada, para uma formação
mais geral capaz de aprendizagens colaborativas.
No artigo 3º da Carta da Transdisciplinaridade lemos que ela
[...] é complementar à abordagem disciplinar; ela faz emergir
do confronto das disciplinas novos dados que as articulam entre
si; e ela nos oferece uma nova visão da Natureza e da Realidade. A Transdisciplinaridade não busca o domínio de várias
disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa
e as ultrapassa. (NICOLESCU, 1999, p. 148).
Então, a transdisciplinaridade implica abrir-se ao diálogo, questionar e
questionar-se para verificar a autenticidade argumentativa das discussões. A atitude
do diálogo possibilita reconhecer a legitimidade dos olhares de outras disciplinas, e
a partir deles possibilitar a revisão das bases limitadoras de nossa própria disciplina.
Para Flickinger (2010, p. 53), esse diálogo questionador “[...] não nos abre os olhos
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para enxergar melhor o que se passa em outras áreas, senão nos torna cada vez mais
especialistas em nossa disciplina de origem. Somente assim se abre um leque mais
amplo de conhecimentos, capaz de integrar os mais diversos acessos ao mundo.”
É um estaleiro de acessos em forma de rede de referenciais de leitura de
mundo em construção e reconstruindo a si mesmo nas interações com os colegas e
pelo conhecimento. Essa rede de referenciais complexas sobre o significado de ser
humano e sobre o processo de conhecimento, constitui e é constitutiva do paradigma
educacional baseado na transdisciplinaridade. Ele oportuniza a organização de questões de estudo e investigações coletivas sobre determinado objeto ou fenômeno. O
resultado será um conhecimento, fruto de uma rede de articulações que encontra na
humildade do diálogo o alimento dos diferentes enfoques.
Humildade que possibilita a acolhida das contribuições de outro, como escreve Follmann (2005, p. 10, grifo nosso), já que a
[...] atitude transdisciplinar é, sobretudo, uma atitude de humildade, no sentido de estar sempre pronto para acolher a contribuição do outro. Posso dizer que tenho atitude trans se minha
postura é de reconhecimento do outro e da possível pertinência
de sua contribuição, para além dos meus limites e de minha
imaginação.
Na posição de Folmann (2005), a atitude transdisciplinar, como atitude de
humildade, implica a aceitação e o reconhecimento do direito às ideias e verdades,
mesmo que contrárias às nossas. Existe uma premissa fundamentando o respeito ao
modo de ser de cada um, ao modo como cada um se envolve na aprendizagem e se
faz ser humano em convivência. Ou seja, como atitude transdisciplinar se entende
que a sala de aula é muito mais o encontro entre indivíduos do que entre disciplinas.
A atitude de humildade, que permite aceitar o diferente, também possibilita aceitar a
diferença entre as disciplinas e reconhecer sua responsabilidade mútua. Morin (2004,
p. 18) foi enfático ao afirmar que a fragilização de percepções globais também fragiliza “[...] o senso de responsabilidade – cada um tende a ser responsável apenas por
sua tarefa especializada –, bem como ao enfraquecimento da solidariedade – ninguém
mais preserva seu elo orgânico com a cidade” e nem com os demais seres humanos.
A atitude de humildade, tendo o diálogo como exigência das formas relacionais entre
pessoas e entre disciplinas, faz da abordagem transdisciplinar um desafio inerente
capaz de estabelecer inter-relações das diversas complexidades, dos diferentes níveis
de realidade e contextos.
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Essa (co)responsabilidade no processo de aprendizagem estende-se para o
universo da solidariedade, um indicativo para compromissos coletivos para com as
urgentes mudanças nas diversas organizações humanas, como escreve Trocmé-Fabre
(2005, p. 6, grifo do autor): a transdisciplinaridade oferece à escola “[...] a ocasião e
os meios de ser um imenso terreno no qual o aprendizado tem a possibilidade de se
tornar um elemento responsável e parceiro da mudança social, econômica e política
da qual o planeta necessita crucialmente.”
A transdisciplinaridade, como base das ações pedagógicas, expressa a complexidade do ser humano, a complexidade social econômica e política. Os padrões
de aluno, de sociedade, de economia ou de conhecimentos prefigurados, caros para
a modernidade, não passam de abstrações e equívocos conceituais. Na atualidade,
a interdependência, os envolvimentos e as interconexões são partes dos desafios de
diversas disciplinas escolares a construírem diferentes olhares sobre o ser humano, a
natureza e o próprio conhecimento.
Trocmé-Fabre (2005) lembra que o ser humano, como sistema vivo, tem
como primado a exigência da presença e da proximidade, a exigência de se auto-organizar e de se auto-estruturar. É, então, fundamental que o sentido e as responsabilidades educativas criem ambientes e condições favoráveis para experiências de
aprendizagens capazes de organizar envolvimentos e interações, possibilitando parcerias com o coração do ser e estar vivo. Também viabilizar a emergência do conversar
que tem na colaboração a exigência de levar o outro a sério para encontrar princípios
convergentes entre culturas, nações, religiões e relações eco-ambientais.
Se, como escreveu Margulis (2001, p. 106),
A vida é uma interdependência incrivelmente complexa de matéria e energia entre milhões de espécies fora (e dentro) de nossa própria pele. Esses estranhos da Terra são nossos parentes,
nossos ancestrais, e parte de nós. Eles reciclam nossa matéria e
nos trazem água e alimento. Não sobrevivemos sem “o outro”.
Nosso passado simbiótico, interativo e interdependente, é interligado por águas agitadas.
A colaboração somente e exclusivamente é possível nas relações de respeito mútuo. E o respeito mútuo acontece fora das relações hierárquicas, fora das relações de dominação, de submissão, subserviência e obediência. Para Maturana (1998),
foi um modo de vida em colaboração e compartilhamento que originou a linguagem e
com ela a aventura da humanização. Conforme o autor, a condição humana, as raízes
da humanização se fundamentam na colaboração, tendo nela sua fonte originária.
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[...] o humano se constitui na história dos primatas bípedes à
qual pertencemos, com a origem da linguagem. E a linguagem
se origina em uma certa intimidade do viver cotidiano, no qual
esses nossos antepassados conviviam compartilhando alimentos, na sensualidade [...] na participação dos machos na criação
das crianças [...] E ali surge a linguagem como um domínio de
coordenações de coordenações consensuais de conduta. (MATURANA, 1998, p. 46).
A transdiscipinaridade é uma oportunidade de religação aos primórdios do
processo de humanização, uma possibilidade de transformar a sala de aula em um ambiente de respeito mútuo, de corresponsabilidade aprendente e de experiências formativas na convivialidade. A experiência da atitude transdisciplinar pode ser uma oportunidade para que no futuro, como pessoas adultas, as hoje crianças e adolescentes
não vivam a alienação dos fundamentos da humanização, não vivam na priorização da
alienação da apropriação, do poder, das hierarquias, dos ódios e da indiferença. É uma
oportunidade para viver em espaços de coexistência nos quais a aceitação da legitimidade de todas as formas de vida e da possibilidade de consensos possibilitam a “[...]
geração de um projeto comum de convivência.” (MATURANA; DÁVILA YÁÑEZ,
2009, p. 107). A atitude transdisciplinar nos abre a possibilidade de compreender
tanto a vida quanto a natureza como emergências sistêmicas e a oportunidade para
visualizar e vivenciar a interação, a coparticipação e a colaboração. Significa também
avançar o conhecimento científico na perspectiva de uma concepção de racionalidade
mais ampla, capaz de contemplar o ser humano, a vida em geral e a natureza como
unidades interativas, colaborativas e criativas em vez de dissociadas.
Para Capra (1997, p. 193, grifo nosso), em A teia da vida
O reconhecimento da simbiose como uma força evolutiva
importante tem profundas implicações filosóficas. Todos os
organismos maiores, inclusive nos mesmos, são testemunhas
vivas do fato de que práticas destrutivas não funcionam a longo prazo. No fim os agressores sempre destroem a si mesmos,
abrindo caminho para outros que sabem como cooperar e como
progredir. A vida é muito menos uma luta competitiva pela sobrevivência do que triunfo da cooperação e da criatividade.
Na verdade, desde a criação das primeiras células nucleadas,
a evolução procedeu por meio de arranjos de colaboração e de
co-evolução cada vez mais intrincados.
Na vida e nas convivências em colaboração, podemos recuperar a sensibilidade individual e coletiva, a cordialidade e o encantamento como forma de viver
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o e no autorrespeito e o e no respeito pelo outro. Na reflexão de Papst (2005), experiências educativas transdisciplinares não paralisam o desenvolvimento como ser
humano. Crianças e estudantes não serão educados com o estigma de seres humanos
deformados a carregarem por toda a vida os mais diversos tipos de danos mentais e
psíquicos para viverem no desespero, na desolação e na perda de enraizamento. Por
isso, escreve Papst (2005, p. 17):
As crianças devem ser levadas a sério em vista de suas expressões, esperanças e desejos, introspecções e temores individuais.
Elas desenvolvem suas personalidades individuais no ambiente
em que vivem e, ao mesmo tempo, elas mudam continuamente
o ambiente além do que se pensa, de acordo com consistentes e
bem inspiradas idéias que trazem.
Levar a sério o dizer de cada criança e de cada ser humano é proporcionar
o desenvolvimento de reflexões a partir de diferentes lógicas que tornam possível o
exercício de liberdade. Essa prática pedagógica, a partir da abordagem transdisciplinar, reconhece o aluno como um Terceiro Incluído e não mais como um Terceiro
Excluído, como referendava a lógica absoluta da ciência tradicional.
Nas palavras de Maturana (2000, p. 104, grifo nosso),
Para transpormos fronteiras, precisamos de liberdade. Isso significa que temos de nos comportar de maneira que possamos
emergir, sem que tenhamos medo de desaparecer no que fazemos. Assim, podemos voltar ou ficar lá; ou podemos ir além de
juntar coisas que de outra maneira não seriam juntadas, porque
campos diferentes não se relacionam, mas somos nós, seres humanos, que os relacionamos.
Uma relação pedagógica na qual o sujeito – estudante – é o ponto de partida. Na sensibilidade dessa relação a solidariedade se desenvolve entre os alunos que
concebem ser a interligação com tudo e todos a fonte da responsabilidade. Responsabilidade de cada um por toda e qualquer ação individual ou coletiva, uma sensibilidade capaz de resgatar o sentido humano e social de que podemos saber juntos com foco
na colaboração e na coevolução.
A abordagem transdisciplinar inverte a aposta na lógica da agressão que
exclui, inverte a lógica da luta e da competição para reflexões e ações sem obsessão à
fragmentação e ao controle, mas atenta às emergências da harmonia na congruência
com outros seres humanos, com outros seres vivos e com o mundo natural, como
sinaliza Maturana (1998, p. 34, grifo nosso):
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Não é a agressão a emoção fundamental que define o humano,
mas o amar, a coexistência na aceitação do outro como um legítimo outro na convivência. Não é a luta o modo fundamental de
relação humana, mas a colaboração. Falamos de competição e
luta criando um viver em competição e luta, e não só entre nós,
mas também com o meio natural que nos possibilita. Assim, dizem que os humanos devemos lutar e vencer as forças naturais
para sobreviver, como se isso tenha sido e seja a forma normal
do viver. Mas não é assim. A história da humanidade na guerra,
na dominação que subjuga, e na apropriação que exclui e nega o
outro, se origina no patriarcado […] antes do patriarcado se vivia na harmonia com a natureza, no gozo da congruência com o
mundo natural, na maravilha de sua beleza não na luta com ela.
Por fim, o convite transdisciplinar é um convite para olhares que transcendem as disciplinas individuais das ciências exatas, das ciências humanas e das ciências tecnológicas. Ela transcende a fragmentação, a lógica da hierarquia, do controle
e da verdade absoluta. A abordagem transdisciplinar encoraja para religações pela via
da sensibilidade, do encantamento pela condição humana. Encoraja para conceber
visões e ações integradas umas com as outras, sem esquecer da presença de cada um
e de todos em um ambiente de aprendizagem e de formação escolar. Para possibilitar
a congruência consigo, com outros, com a natureza e com os conhecimentos, a abordagem transdisciplinar oportuniza aprendizagens com as quais se olha, escuta-se e se
aprende sem o estigma da submissão, sem o estigma da não aceitação, da indiferença
e da rejeição, nem da busca ansiosa por algo que não se é.
O caminhar aprendente e formativo, no seio da transdisciplinaridade, reconduz-nos ao envolvimento sem exigências, tanto na construção e reconstrução de
conhecimentos pertinentes quanto na construção e reconstrução do humano no humano.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em meio à profunda crise existencial, nosso anseio e necessidade gira em
torno da procura por planos salvacionistas capazes de nos livrar das inúmeras adversidades vivenciais. Buscamos por receitas prontas, para facilitar o trabalho pedagógico e formativo e que, ao mesmo tempo, responda aos objetivos de um sentido mais
humano para a vida de cada ser humano. Triste equívoco, descobrimos de maneira
perversa que isso não é possível.
A desconstrução de ideais, como boa nova salvacionista, possibilita a emergência da complexidade e da transdisciplinaridade nas quais as interdependências são
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aberturas rizomáticas para também estratégias formativas e de aprendizagens processuais cujas fronteiras não objetivam fragmentar o ser humano, os conhecimentos, as
aprendizagens e a vida. A complexidade tem sua âncora na existência de diferentes
níveis de realidades, reconhece a organização sistêmica e interdependente, tanto das
coisas do mundo natural quanto da vida e/ou das organizações humanas. A multidimensionalidade das realidades é cada vez mais indispensável, uma vez que quanto
mais estreito e simplista for o nível de compreensão, menor e mais pobre será o sentido da vida humana.
A transdisciplinaridade é uma possibilidade de alargarmos a compreensão
das realidades multidimensionais, pelo rigor das reflexões, pela abertura às diversas
manifestações e pela aceitação da presença de um fundo auto-organizativo em cada
ser humano. Reaprender a e pela transdisciplinaridade significa consagrar o diálogo
entre diferentes campos de saber sem impor o domínio de uns sobre os outros. Firma
alianças entre os profissionais e seus conhecimentos disciplinares para ações pedagógicas e formativas por meio de posturas de interação, aceitando a presença de competências individuais e coletivas. Mesmo tendo dificuldades de perceber a complexidade
e as conexões visíveis e invisíveis que ela possibilita, confiamos na transdisciplinaridade, pois até mesmo sua etimologia nos propõe aberturas o que está entre, o que
transita e o que extrapola o fragmentado, para reconhecer a interdependência.
Ações pedagógicas e formativas transdisciplinares transpassam os mecanismos do conhecido para evidenciarem a dúvida, a incerteza, as criatividades originais
nos caminhares que se integram, complexamente, por diferentes e controversos contextos das realidades e da vida humana; uma formação que pode mobilizar a sensibilidade
humana para vivenciar culturas diversificadas e complexas, porque cheias de vida.
A abordagem transdisciplinar é uma oportunidade para colocar em questão
as lógicas hierárquicas e as normatizações curriculares e dar espaço ao rizomático,
que aproxima, entrelaça e possibilita múltiplas e diferenciadas conexões entre os saberes. Ao mesmo tempo em que firma a interdependência entre os conhecimentos, ela
é motivadora de uma diferente organização social, na qual a questão da solidariedade,
recolocada, torna-se um indicador-guia para as convivências.
Assim, as leituras e reflexões envolvendo a complexidade e a transdisciplinaridade são janelas abertas para compreender o quão indispensável é reconhecer
a interdependência para reavivar a condição humana. O ainda inconcluso sonho de
humanidade, como nossa responsabilidade, reencontra-se no berço da colaboração,
germina e se retroalimenta nos braços da solidariedade rizomática e no diálogo da
aceitação de si e do outro.
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Recebido em: 07 de abril de 2016
Aceito em: 13 de dezembro de 2016
Endereço para correspondência: Rua Getúlio Vargas, 2125, Bairro Flor da Serra,
Joaçaba, Santa Catarina, Brasil; roque.strieder@unoesc.edu.br
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