Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dezArgumenta 2021 19 1 Clara Maria Roman BORGES Ana Cláudia da Silva ABREU2 ASVOZESSILENCIADASNAS DENÚNCIASDEFEMINICÍDIO NOESTADODOPARANÁ(20152020):CONTRIBUIÇÕESPARA UMOLHARDESCOLONIALDO SISTEMADEJUSTIÇACRIMINAL THE VOICES SILENCED IN FEMINICIDE COMPLAINTS FILED IN THE PARANÁ STATE (2015-2020): CONTRIBUTIONS TO A DECOLONIAL LOOK AT THE CRIMINAL JUSTICE SYSTEM LAS VOCES SILENCIADAS EN LAS QUEJAS DE MUJERES EN EL ESTADO DE PARANÁ (2015-2020): CONTRIBUCIONES A UNA VISIÓN DECOLONIAL DEL SISTEMA DE JUSTICIA PENAL Journal Law n. 35 p. 19-49 jul/dez 2021 Como citar este artigo: BORGES, Clara, ABREU, Ana. As vozes silenciadas nas denúncias de feminicídio no Esado do Paraná (20152020): contribuições para um olhar descolonial do Sistema de Justiça Criminal. Argumenta Journal Law, Jacarezinho – PR, Brasil, n. 35, 2021, p. 19-49. Data da submissão: 18/07/2021 Data da aprovação: 22/07/2021 SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. A “denúncia padrão” de feminicídio no Estado do Paraná; 3. Pressupostos para uma crítica feminista descolonial da atuação do Sistema de Justiça; 4. O discurso jurídico hegemônico na “denúncia padrão” de feminicídio; 5. As vozes silenciadas nas denúncias de feminicídio no Estado do Paraná; 6. O direito que escuta: possíveis caminhos para as práticas descoloniais do sistema de justiça criminal; Conclusão; Referências. RESUMO: O presente artigo analisa as denúncias oferecidas pelo Ministério Público do Paraná, nos casos de feminicídio, com o objetivo de demonstrar qual tem sido a contribuição desse órgão para diminuição dessa violência máxima contra a mulher. Com base nas teorias feministas descoloniais, identifica uma “denúncia pa- 1. Universidade Federal do Paraná - Brasil 2. Universidade Federal do Paraná - Brasil 20 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 drão” pretensamente objetiva, que acaba por silenciar as vozes das vítimas mais vulneráveis a esse crime. Para recuperar essas vozes, retrata como as ausências verificadas nessa peça acusatória dissimulam o racismo e o machismo estrutural que fazem das mulheres negras as vítimas preferenciais do feminicídio e dos homens negros os principais encarcerados por esse delito. ABSTRACT: This article analyzes the feminicide complaint filed by the Paraná State Prosecutor’s Office, in cases of femicide, in order to demonstrate what has been the contribution of this body to reduce this maximum violence against women. Based on decolonial feminist theories, it identifies a supposedly objective “standard complaint”, which ends up silencing the voices of the victims most vulnerable to this crime. To recover these voices, it portrays how the absences verified in this complaint disguise racism and structural machismo that make black women the preferred victims of feminicide and black men imprisoned for this crime. RESUMEN: El presente artículo analiza las denuncias ofrecidas por el Ministerio Público de Paraná, en los casos de feminicidio, con el objetivo de demostrar cuál ha sido la contribución de ese órgano para disminuir esa violencia máxima contra la mujer. Con base en las teorías feministas descoloniales, identifica una “denuncia estándar” supuestamente objetiva, que acaba por silenciar las voces de las víctimas más vulnerables a ese crimen. Para recuperar esas voces, retrata cómo las ausencias verificadas en esa acusación disimulan el racismo y el machismo estructural que hacen de las mujeres negras las víctimas preferenciales del feminicidio y de los hombres negros los principales encarcelados por ese delito. PALAVRAS-CHAVE: Feminicídio; Sistema de Justiça Criminal; Discurso jurídico; Denúncia; Feminismo descolonial. KEYWORDS: Feminicide; Criminal Justice System; Legal discourse; Charge; De- Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 21 colonial Feminism. PALABRAS CLAVE: Feminicidio; Sistema de Justicia Penal; Discurso jurídico; Denuncia; Feminismo decolonial. 1. INTRODUÇÃO Em que pese não tenha sido uma pauta unânime nos movimentos sociais, a criminalização do feminicídio no Brasil se apresentou como a principal resposta do Estado brasileiro ao crescente número de assassinatos de mulheres motivados por questões de gênero. Cinco anos após a edição da Lei nº 13.104, que tornou o ato de matar mulheres por razões da condição do sexo feminino homicídio qualificado e crime hediondo, percebe-se que o número de casos dessa espécie de delito aumenta ano após ano. Segundo o 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2019), foi de 62,7% o aumento de casos registrados desde então. Além disso, de acordo com tal pesquisa, no período entre 20172018, 61% das vítimas foram mulheres negras, 58% jovens na faixa etária entre 20 e 39 anos, e 70% tinham baixa escolaridade, ou seja, as mulheres não brancas, jovens e pobres são as mais vulneráveis a essa violência. Durante a pandemia do Covid-19, os números se tornaram ainda mais alarmantes, conforme o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2020), no primeiro semestre de 2020, os feminicídios cresceram 1,9%, se comparados com o ano anterior. Há muito tempo se investigam os fatores que tornam o feminicídio corriqueiro na sociedade brasileira e para tanto múltiplas ferramentas já foram utilizadas, desde as fornecidas pelas teorias feministas clássicas (CAMPOS, 2015) até aquelas construídas pelas descoloniais1 (MARQUES, 2019). Tais investigações por vários caminhos constataram que a desigualdade estabelecida a partir da imposição de uma superioridade do homem branco, inclusive pelo próprio colonizador nos países periféricos, reservou o lugar de fragilidade para a mulher branca e desumanizou as mulheres não brancas, tornando-as vulneráveis em diferentes graus e expondo-as à violência de seu dominador. Nesse contexto, o feminicídio 22 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 se apresentaria como forma de eliminar a mulher que transgrediu o seu papel, seja o de fragilidade ou de animal servil, reafirmando e mantendo o poder masculino. Por outro lado, análises jurídicas competentes da Lei nº 13.104/15 foram realizadas desde a sua vigência, sendo que a maioria delas concluiu fundamentadamente no sentido de que o texto legal finalmente aprovado na Câmara dos Deputados, que tinha no seu comando um homem branco, heterossexual e economicamente favorecido, sofreu influência e ruidosa resistência da bancada evangélica2, o que se refletiu nas suas tendências conservadora e excludente, como deixar de reconhecer o feminicídio de mulheres trans e de investir inocuamente na violência do sistema carcerário para atacar um problema decorrente do machismo estrutural (CAMPOS, 2015) (FLAUZINA, 2016). Sem dúvida, é preciso reconhecer que o direito brasileiro é produzido nas bases da colonialidade do poder, portanto é produto de uma modernidade eurocentrada, é masculino, racista e tem servido à expansão do capitalismo global. Tal se verifica na medida em que está centrado na norma estatal, a qual na sua pretensa objetividade e universalidade reafirma o poder político e econômico do homem branco, por um lado tratando a mulher branca, heterossexual e economicamente favorecida como vítima necessitada de assistência, por outro criminalizando os homens negros e pobres, bem como invisibilizando as mulheres não brancas. Entretanto, para se pensar um novo direito ou uma nova forma de regulação social, que seja produzida para além da colonialidade do poder, distante da violência da norma patriarcal e racista, é necessário entender não só como o texto da lei é opressor e vulnerabiliza certos grupos sociais, mas como as práticas judiciárias responsáveis pela sua aplicação reproduzem suas violências de uma forma ainda mais contundente, não só nos seus discursos, mas também nos seus silêncios e apagamentos. Sabe-se que um direito descolonial não vai surgir do dia para noite, incólume a tensões e resistências, até porque uma proposta de pureza e cientificidade nos remeteria às violências produzidas pelo direito do colonizador, mas será construído de múltiplas formas, terá como ponto de partida novas práticas e não teorias universalizantes, será menos punitivo e mais responsabilizador. Provavelmente, nas lutas que tensionam as velhas práticas colonizadoras deverão se engendrar essas novas formas de Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 23 regulação social que superarão a ineficácia e inadequação das atuais na resolução dos conflitos e problemas sociais (FERRAZ; BORGES, 2020). Então, para contribuir com a discussão de um direito descolonial, a presente pesquisa se propôs a dar um passo na direção de desvelar as atuais práticas do sistema de justiça criminal, não somente pelo que é enunciado nos discursos dos seus atores, mas também no que é silenciado, no que não é dito e que se for dito pode contribuir para subvertê-las, transformá-las. Portanto, elegeu-se como marco inicial dessa ampla investigação a análise das denúncias elaboradas pelo Ministério Público nos casos de feminicídio, não só no que se refere ao seu conteúdo, mas também às suas ausências. Para tal exame, estabeleceu-se um recorte territorial e temporal, isto é, decidiu-se mapear as denúncias do Estado do Paraná, oferecidas no período entre 2015 a 2020 (após a promulgação da Lei do Feminicídio). Desta forma, compilou-se uma amostra significativa de acesso facilitado, que abrangeria tanto a capital, quanto o interior, que possuem realidades sociais distintas, bem como um momento em que o crime de matar mulheres por sua condição do gênero feminino já fazia parte do vocabulário jurídico dos atores do sistema de justiça criminal. Nesse estudo utilizou-se o método da análise de conteúdo (BARDIN, 2011), que permitiu identificar um padrão de denúncia produzido nas várias comarcas do Estado do Paraná e assim projetar o discurso uniformizado dos promotores e das promotoras nesses casos. Então, com base numa revisão bibliográfica das principais obras das autoras descoloniais, realizou-se o exame desse discurso, de evidências de um direito produzido nas bases da colonialidade do poder (QUIJANO, 2005) e, principalmente, das faltas e das vozes silenciadas na imputação do crime de feminicídio. Além disso, buscou-se identificar como esse discurso pode contribuir para a manutenção e crescimento dos números de feminicídios, para a reprodução dos fatores que geram essa espécie de violência, que vulnerabiliza mulheres não brancas e pobres, que criminaliza homens negros e pobres, e que mantém o poder do homem branco e rico. Por fim, de maneira ensaística, refletiu-se sobre um caminho possível para a descolonização desse discurso e a concepção de um novo direito, não racializado e não patriarcal, apto a contribuir para a diminuição 24 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 dos feminicídios na sociedade brasileira. Certamente, o resultado que ora se apresenta é parcial e faz parte de um amplo projeto, que terá continuidade na análise dos discursos dos outros atores do sistema de justiça criminal. 2. A “DENÚNCIA PADRÃO” DE FEMINICÍDIO NO ESTADO DO PARANÁ A escolha inicial da denúncia para esse estudo feminista descolonial do processo penal nos casos de feminicídio não foi aleatória, mas se deu porque é essa acusação formulada pelo Ministério Público que circunscreve o limite da atuação do juiz e do próprio júri na apuração do crime, isto é, estabelece um fio condutor para o processo penal. É justamente a narrativa fática, que imputa a prática do fato delituoso ao acusado, realizada pelo promotor de justiça nesse ato inaugural da fase processual, que condiciona o exercício da jurisdição na medida em que delimita os fatos que serão apurados e levados ao plenário pelo juiz, bem como serão julgados pelos jurados. Note-se que se esses limites da imputação forem ultrapassados pelos julgadores, o processo será considerado absolutamente nulo (BADARÓ, 2020), isso significa que a narrativa fática contida na denúncia deve ser o mais detalhada possível, como exige o art. 41, do Código de Processo Penal, permitindo ao juiz uma cognição válida dos fatos em todas as suas circunstâncias e motivações para que possa decidir se levará o caso ao julgamento dos jurados e quais fatos serão discutidos no plenário. Além disso, é preciso salientar que, após a publicação do chamado Pacote Anticrime (Lei nº 13.964/19) e a introdução do juiz das garantias no sistema processual penal brasileiro, apesar de sua implementação encontrar-se temporariamente suspensa por decisão do STF (BRASIL, 2020), a denúncia ganhou ainda mais destaque, na medida em que recebida será a única peça que chegará às mãos do juiz instrutor, responsável por pronunciar o acusado e levá-lo ao julgamento em plenário. Inclusive, de acordo com a recente redação do art. 3º-B, § 3º, do Código de Processo Penal, após o recebimento da denúncia pelo juiz das garantias, que atuará na fase do inquérito policial, os autos que contêm as provas e informações apuradas até o momento não deverão ser apensados ao processo para evitar que o juiz responsável pela instrução na fase processual se contamine Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 25 com atos e decisões tomadas de maneira precária ainda na fase da investigação preliminar. Todavia, em que pese a importância dessa peça processual, uma análise do conteúdo das denúncias de feminicídio oferecidas no Estado do Paraná entre março 2015 e março de 2020, numa base de 519 processos e 531 feminicídios, que não se encontravam em segredo de justiça, permitiu identificar uma narrativa comum e simplificada desse crime em mais de 70% dessas acusações, apresentadas normalmente em singelas duas páginas de formato A4, o que de pronto provocou questionamentos sobre possíveis ausências, silêncios e naturalização da violência descrita. No caso de feminicídio consumado, verificou-se que essa “denúncia padrão” continha essencialmente a qualificação do réu, com dados relativos ao seu estado civil, sua profissão, sua idade e sua residência, indicava dia, hora aproximada, local (cidade), em que ele, prevalecendo-se das relações familiares e domésticas, agrediu a sua (ex-)companheira, ciente da ilicitude e reprovabilidade de sua conduta, agindo dolosamente (ou com vontade e consciência), com a intenção de matar (ou animus necandi), portando uma arma branca/de fogo, desferiu golpes/tiros contra sua (ex) companheira causando-lhes os ferimentos descritos no laudo de necropsia. Além disso, explicitava se o crime fora praticado com emprego de meio insidioso/cruel ou mediante recurso que impossibilitara a defesa da vítima e destacava brevemente a sua motivação, afirmando que fora cometido contra mulher por razões da condição sexo feminino, no contexto de violência doméstica e familiar ou das relações íntimas de afeto e, ainda, por motivo fútil ou torpe. Destaca-se desde logo o tom ascético, contido, dessa peça acusatória modelo, que praticamente repete as situações previstas no texto frio da lei e reduz conflitos, vidas, mortes, dramas a uma narrativa comum insensível. A preocupação estritamente técnica do órgão acusador, com a descrição controlada dos elementos constitutivos do delito, tais como o dolo do agressor, o nexo causal entre sua conduta e o resultado morte, bem como sua culpabilidade, ofusca fatores fundamentais para a análise da violência de gênero. Certamente, a justificativa para essa atuação pode ser encontrada nos manuais de direito penal e de direito processual penal, que apontam a necessidade de universalidade, objetividade, imparcialidade e cientifi- 26 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 cidade para proteger o cidadão de uma atuação arbitrária do sistema de justiça criminal. Segundo os estudiosos do direito penal (CAPEZ, 2020) (GRECO, 2020) (MASSON, 2020) (NUCCI, 2020) que normalmente se inspiram em autores alemães, a leis penais devem estabelecer quais são as condutas puníveis e as sanções a elas cominadas, de modo a evitar ao máximo o uso de expressões vagas, equívocas ou ambíguas (BITENCOURT, 2011, p. 49). Além disso, segundo os processualistas penais (LOPES JR., 2020) (BADARÓ, 2020) (LIMA, 2020), que costumam se inspirar nos italianos, a imputação contida na peça acusatória deve ser clara, precisa e individualizada ao narrar a conduta praticada pelo acusado, a fim de evitar dúvidas no momento de apuração dos fatos e de subsunção legal, bem como para assegurar a ampla defesa do acusado (PACELLI, 2013, p. 166). Esses argumentos permitem concluir que no processo penal brasileiro a atuação do órgão de acusação acaba pautada por uma norma universalizante e por um discurso supostamente garantista transplantado e assimilado da tradição europeia (FERRAZ; BORGES, 2020), os quais se mostram desconectados da realidade brasileira e aparentemente inócuos para auxiliar no enfrentamento do problema social inerente ao alto de número de feminicídios. Para compreender como se forjam tais práticas, que nos remetem a um discurso objetivo, neutro e eurocentrado, bem como seus fundamentos e efeitos concretos, pode-se fazer uso das ferramentas forjadas pelas teorias feministas decoloniais. Sua crítica fornece o arsenal teórico para analisar como esse discurso jurídico hegemômico acaba por vulnerabilizar, criminalizar, invisibilizar e silenciar certas identidades, sob a justificativa de garantia de direitos. Ademais, o olhar descolonial permite identificar as lacunas, as ausências do discurso do promotor de justiça que tornam a “denúncia padrão” por feminicídio mais uma peça nesse jogo racializado e sexista do direito brasileiro. 3. PRESSUPOSTOS PARA UMA CRÍTICA FEMINISTA DESCOLONIAL DA ATUAÇÃO DO SISTEMA DE JUSTIÇA O feminismo descolonial acadêmico surge por volta de 2008 como uma inflexão às teorias feministas liberais do Norte global, propondo-se a revisar as questões feministas a partir da crítica à colonialidade do poder, Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 27 do saber e do ser. Com base nas análises do feminismo negro das mulheres latinas e do Grupo Modernidade/Colonialidade (BALLESTRIN, 2013), as feministas decoloniais recuperam o pensamento crítico latino americano e assumem uma postura de tensionamento, de insurgência, de transgressão do discurso hegemônico das feministas brancas. Maria Lugones, uma das figuras mais importantes desse movimento, em seu texto Colonialidad y Genero (2008), indica os primeiros passos para uma crítica do feminismo hegemônico com base na intersecção entre raça, classe, gênero e sexualidade. Seu objetivo é demonstrar como as lutas libertárias das feministas do Norte reproduzem o sistema moderno-colonial de gênero e promovem exclusões históricas e teórico-práticas das “mulheres de cor”. Para tanto, afirma que as normas e padrões da sexualidade dos gêneros, culturalmente estabelecidos pelos europeus, encontram-se fortemente vinculados à classificação racial, expressão da duradoura dominação colonial da América. Nessa lógica, complementa que na categoria gênero, tão central nas teorias feministas brancas, estão inscritos o dimorfismo biológico, a dicotomia homem/mulher, a heterossexualidade e o patriarcado, que têm servido à opressão das diversas identidades não brancas desde então (LUGONES, 2008, p. 78). De acordo com a autora, a classificação racial foi responsável por reorganizar as relações de dominação para o desenvolvimento do capitalismo no processo colonial europeu, estabelecendo a superioridade do homem branco, europeu e heterossexual, a inferioridade da mulher branca e a desumanização das negras, dos negros, das indígenas e dos indígenas. Nesse sentido, o sistema de gênero que se consolidou nesse momento construiu hegemonicamente o lado visível do gênero e das relações de gênero, que ordenou as vidas de homens e mulheres brancos e ricos, a partir das características cruciais como a pureza e passividade das mulheres brancas, as reprodutoras ideais para os homens brancos dentro de uma heterossexualidade compulsória, bem como um lado oculto, muito mais violento que reduziu mulheres e homens negros à animalidade, ao não-humano, autorizando sua escravização, seu estupro e sua morte (LUGONES, 2008, p. 94). Portanto, para Maria Lugones (2008), usar a categoria gênero, marcada pela colonialidade, para pensar uma teoria feminista libertária seria 28 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 contraditório e promoveria a reprodução do discurso hegemônico colonizador, a inferiorização da mulher branca e a invisibilização das pessoas negras. Yuderkys Espinosa Miñoso acrescenta a essa análise as contribuições do feminismo pós-colonial, especialmente das feministas negras (CARNEIRO, 2019) e da teoria do ponto de vista (HARDING, 2004) para explicar como a colonialidade do saber afeta a agenda dos movimentos feministas latino-americanos, que acabam assumindo pautas do Norte global (CASTRO, 2020). No seu projeto de crítica à razão feminista moderna eurocêntrica, por meio do método genealógico, busca revelar os jogos de poder que ocultam e atuam na produção do lugar de subalternidade no Sul global, com o objetivo de construir uma contramemória capaz de romper o sujeito colonial internalizado. Assim, conclui inicialmente que os feminismos hegemônicos do Norte precisam da cumplicidade dos feminismos hegemônicos do Sul para continuar o processo de colonização e manter o compromisso da razão feminista com os pressupostos da modernidade. Revela, ainda que esse ciclo promove uma colonização epistêmica dos discursos e práticas feministas do Sul global, tornando-os inócuos na medida em que se universalizam e se pautam por questões do Norte global, tais como direito ao aborto, igualdade de gênero ou direitos reprodutivos (MIÑOSO, 2020). Diante disso, a autora propõe a descolonização (CASTRO-GOMEZ,2005), do feminismo latino-americano, a partir da revelação das fissuras, dos vazios, das rupturas e linhas de fuga (FOUCAULT, 1977) do discurso hegemônico iluminista e eurocentrado, de modo a desvendá-lo, problematizá-lo e, finalmente, desnaturalizá-lo no Sul global (CASTRO, 2020). Nesse sentido, afirma que uma genealogia (FOUCAULT, 1977) dos feminismos construídos a partir das experiências dos corpos submetidos ao empobrecimento, ao despejo, à negação sistemática de sua capacidade de desenvolver saberes, críticas e projetos, permite compreender o investimento epistemológico do Norte no Sul e projetar um futuro para os feminismos do Sul. (MIÑOSO, 2020, p. 108-108). Note-se que dessa maneira Yuderkys Espinosa Minõso (2020, p. 110 e ss.) tensiona e ressignifica as ferramentas foucaultianas (BALLESTRIN, 2013), evidentemente pós-estruturalistas, para demonstrar como os dis- Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 29 cursos das mulheres vulnerabilizadas no Sul-global não foram levados em conta pelo feminismo eurocentrado e como foram considerados inválidos e inúteis para integrar suas pautas, sendo apagados para sustentar uma razão feminista moderna ocidental compromissada com a colonialidade. Com esse esforço, a autora acredita que será possível costurar novas narrativas e interpretações que poderão descentralizar o sujeito normativo clássico do feminismo e ao mesmo tempo romper o quadro teórico-conceitual por ele produzido. Em suma, pode-se dizer que o feminismo descolonial tem como objetivos interpelar o discurso feminista hegemônico sobre o hábito epistemológico de pensar a mulher de forma universalizante, com base em teorias objetivas; preconizar que seja considerada a diversidade, as diferenças coloniais e as subjetividades; e compreender a subalternização do Sul global e a partir dela e de seu compartilhamento articular resistências (LUGONES, 2010). Para tanto, recomenda desengajamentos epistemológicos com base nas práticas políticas de ativistas e pensadoras com pontos de vistas particulares, que apresentam novas categorias não ocidentais ou que com base nelas elaboram novos conceitos não hegemônicos de interpretação sobre as “outras”, sem recolonizar imaginários e com o objetivo de transformação social. (CURIEL, p. 135-136) Isso significa que, o primeiro passo para se pensar na descolonização feminista do discurso jurídico hegemônico brasileiro, implica primeiramente identificá-lo como um discurso racializado, produto da colonialidade do poder e do gênero, marcado pela universalizadora modernidade eurocêntrica. Deste modo, é imprescindível pensar que tanto a norma, como as práticas do sistema de justiça promovem uma classificação racial, não consideram a diversidade, constituem identidades fixas a partir de binários de raça, gênero, sexo, entre homens e mulheres, enunciando aqueles que devem ser protegidos, “tutelados” pelo direito e aqueles que devem ser condenados à exclusão e à invisibilidade. 4. O DISCURSO JURÍDICO HEGEMÔNICO NA “DENÚNCIA PADRÃO” DE FEMINICÍDIO Em análise à chamada “denúncia padrão”, oferecida nos processos de feminicídio do Estado do Paraná, é possível prontamente percebê-la como produto do discurso jurídico hegemônico, que circula e permeia as 30 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 práticas do sistema de justiça criminal, promovendo processos racializados e generificados de subjetivação de seus atores. Veja-se que o texto da Lei nº 13.104/15 está fundado nos binômios de sexo e gênero, bem como se encontra marcado por uma heterossexualidade compulsória, na medida em que estabelece como requisito para configuração do feminicídio a morte de mulher do sexo biológico feminino, causada intencionalmente por alguém de seu convívio doméstico e familiar ou motivada pelo menosprezo à sua condição feminina. Em síntese, para ter sua vulnerabilidade reconhecida pela referida lei, a vítima precisa ter a genitália feminina, uma família, uma casa, ou ainda deve parecer e se comportar como uma mulher, a ponto de causar menosprezo por essa condição, caso contrário seu algoz não será reconhecido como feminicida. Deste modo, levando em conta os altos índices de feminicídio mesmo após a edição da Lei, é possível afirmar que a mulher protegida pelo crime de feminicídio é a mulher branca, que ousa não ser submissa e acaba morta por seu companheiro, numa situação que ultrapassa os limites sociais de tolerância à agressividade validadora da virilidade masculina. Todas as demais mulheres, que são assassinadas longe de casa, fora das relações de afeto, que transgridem o seu papel social por serem mulheres sem a genitália definida como feminina pelo discurso biológico, que são lésbicas e vivem sozinhas, estão praticamente excluídas da proteção da lei, até porque a disposição que define o feminicídio como o assassinato de mulher por menosprezo à sua condição feminina é nebulosa, aberta, não objetiva, quase não jurídica e por este motivo dificilmente aplicada. Nesse sentido, constata-se que tal lei produz e protege uma identidade feminina distante da realidade brasileira, em que a maioria das mulheres vítimas de violência de gênero são minorias vulnerabilizadas como mulheres negras e pobres, muitas vezes trans ou travestis, as quais dificilmente têm acesso aos órgãos de denúncia e cujas mortes sequer são apuradas. Além disso, o sistema de justiça criminal, responsável por aplicar tal lei, também é formado em sua maioria por homens, brancos, heterossexuais e economicamente favorecidos, cuja masculinidade foi forjada num discurso que os colocou num patamar de superioridade racial e econômica, que lhes atribuiu privilégios e confiscou a sensibilidade necessária Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 31 para compreender as exclusões, os silêncios e as sombras invisibilizadoras da Lei nº 13.104/15. Nesse sentido, apontam os dados obtidos em pesquisas realizadas sobre o Poder Judiciário nos últimos anos. Segundo a pesquisa feita pelo CNJ no ano de 2018, as Justiças Estaduais, responsáveis por processar os feminicídios, apresentam um percentual de 37,4% de magistradas, sendo que dessas apenas 21,3% atuam nos Tribunais de Justiça como desembargadoras (CNJ, 2019). Ademais, de acordo com o estudo realizado pelos sociólogos Luiz Werneck Vianna, Maria Alice Rezende de Carvalho e Marcelo Baumann Burgos, por meio de questionários enviados aos magistrados brasileiros, apenas 18,4% dos magistrados e magistradas de primeiro grau da Justiça Estadual não são brancos, 32,3% concluíram o ensino médio em escola pública e 20% não são casados ou estão em união estável (AMB/PUC-RIO, 2018). No que se refere ao Ministério Público, autores das denúncias por feminicídio, o quadro não se altera e o perfil dos promotores é ainda mais elitizado. Conforme a pesquisa realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, a partir de questionários enviados aos promotores e promotoras das várias unidades da Federação, apenas 23% não são brancos, 30% são mulheres, cerca de 60% são filhos ou filhas de pai que completou o ensino superior, e 47% de mães que concluíram o ensino universitário (LEMGRUBER, J. e outros, 2016). Esse mesmo cenário se reproduz nos processos de feminicídio no Estado do Paraná, uma vez que das 173 denúncias, oferecidas pelo Ministério Público no período de janeiro de 2018 a março de 2020, apenas 66 foram oferecidas por mulheres, isso significa que quase dois terços das denúncias de feminicídio no Estado do Paraná foram oferecidas por homens. Ademais, a produção científica das ciências criminais também é racializada e machista (PRANDO, 2018) (FLAUZINA; FREITAS, 2018) (BAGGENSTOSS; OLIVEIRA, 2019), o que se reflete nas produções acadêmicas sobre a violência de gênero e o feminicídio no campo do direito penal. De acordo com a breve pesquisa realizada por Soraia Mendes (2020), no banco de dados da Biblioteca Digital Jurídica do STJ e da Biblioteca do Senado Federal, verifica-se que apenas 1% das obras sobre direito processual penal contidas nesses acervos são de autoria individual 32 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 de mulheres, o que não indica necessariamente que nesse percentual estão contidas análises propriamente feministas, mas esse dado certamente permite constatar o protagonismo masculino na produção do conhecimento das ciências criminais no Brasil. Esse conhecimento racializado e patriarcal, que serve de subsídio para interpretação e aplicação dessas leis, pode ser encontrado nos manuais de direito penal (CAPEZ, 2020) (GRECO, 2020) (MASSON, 2020) (NUCCI, 2020), que expressam de forma evidente a dificuldade de seus autores para definir quem é a vítima do feminicídio, quem é essa mulher cuja condição torna hediondo o crime de matar alguém. Para escapar das discussões mais aprofundadas sobre as questões de gênero e raça, acabam por afirmar que a vítima do feminicídio é a mulher reconhecida juridicamente como tal, seja na certidão de nascimento ou na retificação da identidade civil, não importando o critério biológico ou psicológico3. Segundo Cezar Roberto Bitencourt (2020) somente o critério jurídico apresenta a segurança necessária para se reconhecer a condição de mulher da vítima, pois “para fins penais, considerando que estamos diante de uma norma penal incriminadora, a qual deve ser interpretada restritivamente, evitando-se uma indevida ampliação do seu conteúdo que ofenderia o princípio da legalidade estrita.” Assim, o discurso jurídico hegemônico define que a vítima do feminicídio é a mulher por ele reconhecida como tal, subjetivada pelo direito como mulher, independentemente das questões de gênero e raça envolvidas. Em suma, sob a máscara da objetividade e universalidade, que supostamente sustentariam uma “democracia racial”, o discurso jurídico brasileiro sobre o feminicídio e a atuação do sistema de justiça criminal nesses casos acabam por manter o lugar de superioridade do homem branco, heterossexual, rico, que simbolicamente protege mulheres, brancas e frágeis dos homens pobres e negros, relegando as mulheres negras ao silêncio das coisas, inanimadas e úteis, quebradas e esquecidas. Aliás, talvez essa seja a face mais perversa da Lei do Feminicídio que, sob o pretexto de combater a violência de gênero, acaba muitas vezes promovendo o encarceramento homens negros, representados no imaginário social como violentos, lascivos, agressivos, animais a serem temidos/punidos, e simplesmente sepulta em silêncio as mulheres negras mortas pela violência de gênero ou nas “sutilezas do emaranhado racista” Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 33 lhes imputa a culpa pelo nascimento desses criminosos “indesejáveis.” (REIS, 2010). Nesse sentido, Juliana Borges (2019) afirma que “esses processos de desumanização e objetificação marcam os corpos e os sujeitos negros comprometendo, inclusive sua capacidade de enxergar-se como indivíduos que têm ou devem buscar seus lugares no mundo.” Assim, pode-se concluir que esse discurso jurídico que mata, pune, tortura a população negra, confisca a sua palavra e interdita a verbalização de sua dor, garantindo a naturalização do terror racial e do genocídio negro em curso no Brasil. (FLAUZINA; FREITAS, 2018). No que se refere às mulheres negras, Soraia Mendes (2020) alerta que se assiste a um feminicídio de Estado, mediante uma política ora subterrânea e ora visível de extermínio das mulheres. 5. AS VOZES SILENCIADAS NAS DENÚNCIAS DE FEMINICÍDIO NO ESTADO DO PARANÁ Para analisar os processos de invisibilização decorrentes do racismo, do sexismo e do classismo do discurso jurídico contido nas denúncias padrão de feminicídio, faz-se necessário entrar no jogo das sombras do sistema de justiça criminal brasileiro. Isso implica entender o que há por trás do discurso garantista da necessidade de objetividade na aplicação do direito e revelar que suas lacunas, suas ausências, seus pontos escuros, na verdade gritam para silenciar outras vozes que poderiam interpelá-lo e tensioná-lo. Ao ler a “denúncia padrão” de feminicídio é possível perceber que há uma qualificação do réu, um relato breve indicando sua profissão, seu estado civil e até seu endereço, o que permite ter uma ideia de quem é esse agressor e sua classe social. Porém, sua cor não está explicitada, nada se sabe se é branco ou não, o que só se descobriria compulsando os autos e encontrando uma foto contida em algum documento pessoal anexado ou assistindo aos vídeos das audiências. É possível que a cor do acusado tenha influenciado no oferecimento das denúncias de feminicídio no Estado do Paraná, mas não há como obter maiores evidências desse fenômeno, que talvez tenha interferido nos julgamentos e até na defesa do réu, mas essa constatação dependeria de um acompanhamento minucioso dos processos e da investigação da vida dos promotores, juízes, jurados e ad- 34 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 vogados que atuaram nos casos, o que sem dúvida seria de difícil acesso. Para o pesquisador, que está como observador dos documentos escritos, como aquele que olha para os arquivos eletrônicos e tenta compreender como ocorre o encarceramento em massa dos homens negros nos casos de feminicídio, não há elementos que permitam estabelecer de forma direta uma linha de causalidade entre o racismo estrutural e as condenações criminais. Algo está encoberto, sombreado no jogo elitizado de cumplicidades dos atores brancos do sistema de justiça criminal, sob o conhecido argumento contido no brocardo romano de que “o que não está nos autos, não está no mundo.” Ressalta-se que o grande problema em relação ao racismo no sistema de justiça criminal não são as decisões escancaradamente preconceituosas, como a proferida por uma juíza do Paraná que assegurou a participação de réu em grupo criminoso em razão da sua cor (FERREIRA, 2020), mas as que escondem nas entrelinhas a máquina de guerra silenciosa armada pelo discurso jurídico hegemônico contra a população não branca (MBEMBE, 2018). Outra observação é a falta de descrição de quem era a vítima, a única menção que se tem na peça acusatória é de sua condição em relação ao réu, isto é, esposa, companheira, namorada, como se sua existência fosse reduzida ao laço que manteve com o agressor. Não há descrição de seu estado civil, de ocupação, de seus filhos, só o que se sabe é que foi morta normalmente por um ato violento de um homem conhecido, em quem deveria confiar. Também nada se fala sobre sua cor, sua condição econômica, o que permitiria compreender porque estava mais vulnerável a essa violência, pois as mulheres não brancas são as grandes vítimas da violência doméstica, como comprovam as pesquisas já citadas. Certamente, é possível vasculhar os autos e encontrar essa informação, principalmente no laudo de necropsia, mas igualmente está perdida, escondida entre os documentos, o que dificulta a constatação de que as mulheres negras são as mais vulneráveis ao feminicídio e o Estado nada faz para lhes proteger, não há políticas públicas específicas para evitar esse genocídio negro levado a cabo por tantas frentes (FLAUZINA, 2008). Além disso, na peça acusatória, verifica-se a ausência de detalhamento do comportamento do acusado em relação a essa e outras mulheres, nada consta sobre o relacionamento íntimo do agressor com a vítima, que não pode mais dar seu depoimento para explicar como esse fator Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 35 contribuiu para a agressão. Em síntese, não há nenhuma pista de como o machismo da sociedade brasileira colocou esse homem num lugar de superioridade, que o autorizou a violentar e matar essa mulher que não se comportou como ele esperava. Se a configuração de feminicídio exige que a morte da mulher tenha sido causada por sua condição feminina, significa dizer que é necessário constar na denúncia a sua motivação, o que levou o homem a eliminar essa mulher, o ciúme, a raiva por ter sido desobedecido, o orgulho ferido por ter sido substituído por outro homem, isto é, a explicação de como o machismo estrutural o impulsionou a essa violência extrema. Uma descrição genérica do motivo do crime, como fútil ou torpe, o que acontece em boa parte das denúncias pesquisadas, acaba escondendo o caráter misógino dessas mortes e a lógica moral masculina de que as mulheres devem ser controladas. Através da análise das denúncias, verificou-se que as principais motivações para esses assassinatos costuma ser o ciúme ou a decisão feminina de terminar o relacionamento, dos 532 feminicídios e tentativas de feminicídio analisados, 95 foram motivados pelo ciúme e 165 pelo inconformismo com o término da relação, o que pode ser interpretado como a perda do poder masculino. Constata-se que a violência feminicida revela a incapacidade desses homens em aceitar a autonomia e a liberdade feminina, bem como o sentimento de posse que eles têm em relação a essas mulheres. Portanto, se o sistema de justiça criminal pretende combatê-la, a peça processual que demarca o início de sua apuração judicial deve lembrar esse propósito, deve denunciar os motivos que estão no substrato da eliminação da mulher, no seu silenciamento irreversível. Note-se que a indicação dos meios utilizados para praticar o crime, o número de facadas ou tiros ou a impossibilidade de defesa da vítima não são suficientes para entendermos sua motivação, para concluirmos que foi praticado contra a mulher por razões da sua condição feminina. Essa informação serve para fornecer pistas, mas somente será decifrada se houver a exata compreensão do que significa a condição feminina, isto é, a condição de inferiorização, de subalternização, que só é reconhecida por aqueles que têm o esclarecimento necessário para perceber o quanto as práticas de poder servem para manter a superioridade branca, masculina e daqueles economicamente favorecidos. 36 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 Ademais, a ausência dos elementos concretos presentes na narrativa do meio cruel ou do recurso que impossibilitou a defesa da vítima, esconde que esses ataques são de surpresa, marcadamente covardes, que negam às vítimas o direito de se defender, suprimindo a sua autonomia e subjetividade. Esses ataques também são planejados, pois os agentes comumente aguardam a vítima recolher-se para o repouso noturno, ou seja, são premeditados, não são expressões de um rompante descontrole emocional momentâneo do agressor., conforme constatou-se na pesquisa empírica, pois em 202 ocorrências, os feminicídios (tentados ou consumados) foram executados através de um ataque inesperado, ou seja, os crimes foram praticados mediante surpresa, dissimulação, traição, emboscada, ataque pelas costas, situações em que fica claro que o agente planejou o ataque e aguardou um momento em que a vítima estivesse indefesa. Nesse sentido, tais dados não são apenas detalhes ou circunstâncias fáticas de menor importância, mas são elementos que caracterizam a violência de gênero, estruturantes de uma ordem social fundada hierarquização entre os sexos, e podem indicar o que impulsiona o feminicídio narrado na peça acusatória. Para a ocorrência do feminicídio é necessário que o agressor mate a vítima de sua relação familiar ou doméstica com o objetivo de reafirmar sua suposta superioridade, de exterminar aquela que a colocou em risco, que a desafiou, devendo estar explícito na sua denúncia que essa foi a justificativa para seu ato, pois somente dessa maneira a vítima será lembrada como aquela que foi morta em razão do machismo estrutural, para que o Estado seja lembrado de sua inação, da deficiência de políticas públicas para atacar a raiz desse problema. Outra falta perceptível na “denúncia padrão” é a indicação do local em que o crime foi cometido, que foi constatada em 72 feminicídios, sendo que essa ausência acaba mais uma vez por eclipsar um dado importante que permitiria constatar que a mulher normalmente sofre violência em sua casa, onde ocorrem os abusos dentro das relações íntimas de afeto, no lugar em que o homem pode praticar sua violência distante dos olhos alheios e contando com o silêncio da vítima. Inclusive, mesmo após a separação do casal, as agressões e violações costumam ser praticadas no antigo lar, para que o homem possa demonstrar a continuidade do seu controle sobre a família e para afastar outros homens que possam vir Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 37 a se relacionar com sua ex-companheira. Portanto, omitir na narrativa do crime essa circunstância significa camuflar como o ambiente familiar e o lar podem ser justamente o espaço do controle e da validação da superioridade do homem sobre a mulher, que estaria na base da ação feminicida (ORTEGA, 2011). Por certo, seria defensável pensar que todas essas ausências são fruto da necessidade de objetividade do direito, da necessidade de isenção do promotor, um funcionário público que deve atuar como acusador e fiscal da lei, como se lê nos manuais de direito processual penal, inclusive nos mais garantistas, quando afirmam categoricamente que “como servidor público está obrigado à estrita observância dos princípios da objetividade, impessoalidade e, principalmente, legalidade.” (LOPES Jr., p. 352). Porém, é preciso reconhecer que toda essa assepsia exigida até então na atuação do sistema de Justiça Criminal não o tornou menos racista, menos sexista e elitizado, bem como não contribuiu para a diminuição do número de feminicídios. Note-se que a análise crítica da “denúncia padrão” não tem por objetivo invalidar o discurso garantista do direito, cujo propósito declarado é a democratização do Direito e do sistema de justiça criminal brasileiro, mas conscientizar os atores desse sistema e os estudiosos do direito de que se trata de um discurso permeado por valores da modernidade eurocentrada e que reproduz na realidade brasileira o emaranhado de opressões que subalternizam aqueles que estão à margem do Norte global. Também não pretende sustentar a eficácia da criminalização para combater injustiças sociais, mas busca demonstrar como o discurso garantista eurocêntrico pode servir de forma disfarçada para fins nada democráticos. Noutra palavras, a presente pesquisa não pretende destruir de forma irresponsável e de uma hora para outra discursos que significaram até o momento importante algum contraponto às práticas punitivistas do sistema de justiça criminal, mas busca evidenciar como a interpretação do feminicídio, da lesão corporal qualificada pela violência doméstica e dos crimes sexuais, sem levar em conta a perspectivas feministas decoloniais, traduz-se numa enorme falta, num silêncio inquieto e potencialmente violento. Como se viu, a maioria dos atores do sistema de justiça criminal é de homens brancos, que não compreendem as especificidades da violência 38 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 de gênero, tampouco que a morte violenta de mulheres é uma demonstração de uma violência estrutural, que articula os espaços público e privado e que tem seu pilar na divisão dos papeis entre os sexos e na hierarquização entre homens e mulheres no âmbito familiar. Afinal, esses atores são formados em Faculdades de Direito, em que os conteúdos relativos à temática de gênero não são exigência curricular. (MEC, 2018) Não assumir a cor, o gênero e classe social desses discursos jurídicos masculinos e universalizantes pode significar cumplicidade em relação a essa violência que há anos tem invisibilizado, criminalizado e vulnerabilizado grupos não brancos na sociedade brasileira. Por óbvio, sabe-se que a transformação do discurso jurídico brasileiro não ocorrerá do dia para a noite, como num passe de mágica, mas a análise descolonial, com seus tensionamentos críticos e a genealogia das vozes silenciadas pela sua colonialidade, pode contribuir para miná-lo aos poucos e para sugerir-lhe novas formas e indicar-lhe caminhos não universalizados para sua descolonização. 6. O DIREITO QUE ESCUTA: POSSÍVEIS CAMINHOS PARA AS PRÁTICAS DESCOLONIAIS DO SISTEMA DE JUSTIÇA CRIMINAL Segundo Judith Butler (2020, p. 40-51), a vulnerabilidade não deve ser considerada um estado subjetivo, mas uma característica da vida compartilhada e interdependente, portanto, nunca se é simplesmente vulnerável, mas se é vulnerável à uma situação, pessoa ou estrutura social. Pode-se dizer que a vulnerabilidade se estabelece quando o meio ambiente e as estruturas sociais que possibilitam a vida falham, tornando-a precária. Isso significa que o vínculo social que torna a vida possível pode ser muitas vezes a condição para sua exploração e violência. De outro ponto de vista, a precariedade da vida também pode fazer com que os vulneráveis se unam e resistam, a partir das mais variadas ações políticas, que podem ou não conduzir à sua emancipação. No processo de colonização da América Latina, vínculos sociais de dependência foram patologicamente impostos aos colonizados para subjugá-los de forma violenta e explorá-los, sob a justificativa de que seriam essenciais para garantir-lhes uma vida digna e civilizada. Previsivelmente, essa precarização da vida e sua vulnerabilização criaram desde logo uma tensão, uma resistência dos colonizados, que inevitavelmente desaguou Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 39 na luta por independência. Em que pese essa independência tenha sido vista num primeiro momento como uma conquista emancipatória do colonizado, na prática traduziu-se como uma continuidade de sua submissão, pois em verdade a relação de dependência não se estabelecera com o colonizador, mas com o estado injusto e o casamento explorador que haviam sido por ele impostos (BUTLER, 2020). Nesse sentido, pode-se dizer que o real vínculo de dependência com o colonizador não fora quebrado, ao contrário disso, os antigos vínculos de interdependência entre os colonizados haviam sido destruídos e os únicos que os uniam no pós-independência eram os da desigualdade e da falta de liberdade partilhada por todos, próprios do período colonial. Além disso, essa tortuosa tentativa de emancipação também evidenciou uma perversa dependência do colonizador em relação ao colonizado, na medida em que a conservação dos antigos vínculos se mostrou imprescindível para o desenvolvimento do projeto do capitalismo global e, consequentemente, para a manutenção da superioridade do Norte em relação ao Sul. Tal raciocínio pode ser comprovado na medida em que se mantêm atuais discussões sobre o genocídio negro, trabalho escravo, tráfico de pessoas, exploração do meio ambiente, dentre outras. Isso significa que a transformação desse quadro de violência e exploração somente ocorrerá quando forem refundados os vínculos de interdependência entres os colonizados e com os colonizadores, de modo que as relações e estruturas sociais se tornem não violentas e mais igualitárias. Trata-se de um trabalho árduo, que não será finalizado de maneira imediata, mas que deve iniciar para que futuramente os elos que unem os indivíduos sejam modificados, de modo que uma vida não valha mais do que a outra, de modo que não se autorize um grupo ou uma pessoa a eliminar ou explorar a vida de alguém para proteger a si mesmo ou aqueles com quem compartilha uma identidade social, ou seja, que lhe são próximos geograficamente, culturalmente e economicamente (BUTLER, 2020). Ao tornar o feminicídio crime hediondo, o direito penal brasileiro caminhou no sentido oposto e estabeleceu que uma vida vale mais em detrimento das outras, autorizou o Estado a proteger a mulher branca, a praticar violência da omissão em relação às mulheres negras e a acirrar o 40 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 encarceramento em massa dos homens negros. Ademais, na sua pretensa objetividade e universalidade, ditadas por uma epistemologia eurocentrada, classificou quais vidas são enlutáveis, lamentáveis e quais não são, isto é, quais vidas devem valer algo para a sociedade brasileira e quais não devem, naturalizando dessa forma o genocídio negro em curso desde o início do processo de colonização. Os estudos jurídicos sobre esse crime e as práticas do sistema de justiça criminal responsáveis pela sua punição caminham justamente nessa direção, na medida em que não se questionam, não se percebem racistas e patriarcais, até porque são (re) produzidos por homens brancos, que na tentativa de manter sua superioridade contribuem ainda mais para o desenvolvimento de masculinidades violentas que têm vitimizado as mulheres negras (FLAUZINA, 2016). Em suma, a criminalização, apresentada pelo Estado, pelo direito e algumas vezes pelos próprios movimentos sociais como solução ao problema do feminicídio, consiste numa solução paternalista que pode aliviar momentaneamente a precariedade de algumas vidas com a falsa sensação de segurança, mas que não afeta as estruturas, as relações que constituem a vulnerabilidade feminina. Ademais, Judith Butler (2020, p. 189) ressalta que o tratamento dado pelos poderes públicos brasileiros ao feminicídio classifica as mulheres pobres, negras e trans como matáveis, reforçando sua subordinação, seu silêncio e endereçando-lhes a mensagem “subordinem-se ou morram”. Essa mensagem é reforçada e apoiada pela polícia e pelo sistema judiciário quando não recebem devidamente as denúncias, não reconhecem a gravidade e as motivações dessa violência, não punem e não reparam as vítimas desse crime. Para modificar esse cenário, como se viu, é necessária uma refundação dos vínculos estabelecidos no Sul global, para que se fortaleça uma interdependência não violenta e não parasitária de uns sobre os outros e se afaste a dominação exercida a partir de uma classificação racial e de gênero estabelecida no período colonial. O discurso jurídico e o sistema de justiça podem contribuir para essa refundação, desde que se libertem de suas matrizes modernas, eurocêntricas e patriarcais, superando a centralidade da norma e criando novas formas para regulação da sociedade e solução dos conflitos (BORGES; FERRAZ, 2020). Esse novo direito, para além da norma (FOUCAULT, 1994, p. 189), constituído por e constituinte de novas práticas, será um direito que ouve Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 41 mais do que prescreve, que se sensibiliza às dores ao invés de punir, que censura e responsabiliza para proteger todas as vidas, sem classificações de raça ou gênero. Isto porque não basta que o direito e as práticas jurídicas sofram uma lavagem negra ou rosa (PUAR, 2020), de modo a promover a criminalização espetaculosa do racismo, da transfobia, da violência contra a mulher, mas é preciso que promovam novos processos de subjetivação menos opressores e se abram a novas subjetividades menos oprimidas, a devires menos vulneráveis e precários. Portanto, o novo discurso jurídico também não pode ser paternalista, identificando grupos vulneráveis e lhe concedendo formalmente direitos para aplacar a culpa dos que oprimem e dar a falsa sensação de segurança aos oprimidos, mas deve se enlutar pelas vidas perdidas - por todas elas -, deve ouvir os vulneráveis, buscar soluções para os problemas sociais que precarizam suas vidas, dando-lhes voz e não silenciando com medidas que perpetuam as estruturas e relações que os torna matáveis. Para que esse direito que escuta possa ser concebido e concretizado, aqueles que (re)produzem o discurso jurídico precisam ter consciência de sua branquitude e de como suas práticas têm perpetrado o racismo e o machismo, isto é, devem passar por um longo processo de autoconhecimento, reflexão e transformação, que tem cinco estágios: negação, culpa, vergonha, reconhecimento e reparação (KILOMBA, 2019, p. 43). No Brasil, observa-se legisladores, estudiosos do direito brasileiro e integrantes do sistema de justiça criam leis, proferem decisões e desenvolvem práticas jurídicas que aparentemente protegem todos e todas de forma igualitária, mas que no fundo reconhecem direitos a identidades brancas, heterossexuais e economicamente favorecidas, negando ainda que sub-repticiamente que o direito é racializado e machista (BORGES, 2019). Esse negacionismo se evidencia ainda mais nos dias de hoje como um reflexo do avanço do discurso autoritário, que tem sido perpetrado por uma classe média conservadora, sem escolaridade e evangélica, a qual chegou ao poder movida pelo descontentamento decorrente da perda de privilégios frente ao desenvolvimento do neoliberalismo (ALMEIDA, 2017). Com o objetivo de retomar seu domínio e suas antigas prerrogativas, esse grupo tem difundido um discurso virulento e agressivo, exaltando a meritocracia, pregando a cassação de direitos das minorias, atacando a educação pública e defendendo a eliminação dos inimigos políticos, sob 42 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 o argumento de que movimentos sociais negros, feministas, de populações de rua somente querem apenas tumultuar, já que legalmente todos têm os mesmos direitos (BROWN, 2019). Algumas vezes, percebe-se que os (re)produtores do discurso jurídico alcançam o segundo e o terceiro estágios do processo de conscientização de suas práticas opressoras, sentindo culpa e vergonha. Assim, quase que simultaneamente experenciam o estado emocional em que passam pelo conflito de terem feito algo que não deveriam ter feito, o que os deixa preocupados com a punição, e sentem o medo do ridículo por não admitirem seus privilégios de branquitude masculina (KILOMBA, 2019, p. 44-45). A vivência dessas fases se traduz normalmente no movimento de criminalização de condutas que atentam contra os direitos das minorias, isto é, o racismo, o feminicídio, a transfobia, a violência contra a mulher, como tem ocorrido nos últimos anos no Brasil, sem promover verdadeiramente uma mudança no quadro opressor. Por outro lado, os estágios do reconhecimento e da reparação ainda não se concretizaram no discurso jurídico brasileiro, uma vez que ainda não houve reconhecimento por parte dos operadores do direito de quem eles são e de quem são esses Outras/outros que tiveram a vida precarizada, bem como da necessidade de lhes reparar pelo racismo perpetrado, modificando estruturas, agendas, espaços, posição, relações, vocabulários (KILOMBA, 2019, p. 46). Portanto, ainda é preciso avançar nesse sentido, pois para que possa realmente ouvir os vulneráveis, o direito precisa reconhecer suas existências e necessidades, de modo que suas vidas não valham menos que a de outros, precisa reparar-lhes as perdas, curar suas feridas causadas por uma sociedade injusta. Nesse sentido, deve garantir a ampla acessibilidade dos vulneráveis aos espaços onde direitos são demandados; promover a reforma do sistema de justiça para que fique mais negro, mais feminino, mais queer; reformular os discursos acadêmicos e as práticas dos operadores do direito, abrindo mão da objetividade e imparcialidade, em nome da sensibilidade e do acolhimento, e abandonar o vocabulário jurídico de tradição europeia, de jargões latinos, para assumir uma linguagem compreensível por aqueles que mais precisam lutar por seus direitos. No que se refere especificamente ao feminicídio, esse direito que escuta não deve ter como preocupação central a criminalização, mas deve Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 43 ampliar o significado dessa violência, incluindo as mulheres trans e travestis como suas vítimas; permitir o acesso das mulheres negras e pobres aos locais de denúncia, onde serão acolhidas para que possam contar suas histórias e não censuradas ou punidas socialmente; deve criar mecanismos para que a violência cotidiana cesse antes que suas mortes se tornem inevitáveis; deve conscientizar todos aqueles que atuam no sistema de justiça criminal sobre suas práticas racistas, machistas e sobre a necessidade de mudança, para que não seja autorizada tacitamente a morte de mulheres negras e o encarceramento em massa dos homens negros; deve exigir que os integrantes desse sistema desde a sua formação universitária façam cursos sobre racismo, feminismo e violências estruturais, para que suas denúncias, decisões, pareceres e alegações sejam sensíveis à gravidade desse crime, à profundidade de suas causas, e à necessidade de não naturalizá-lo. Certamente, essa breve reflexão sobre o direito que escuta e o feminicídio é apenas uma das contribuições possíveis para a empreitada de descolonização do direito, mas diversos são os caminhos, os olhares que poderão apoiar a refundação dos vínculos da sociedade brasileira, longe das amarras e da memória do açoite do colonizador, distante da tradição opressora de uma modernidade eurocentrada, para que os devires negros não sejam asfixiados, para que suas mortes sejam finalmente enlutáveis e possam fomentar ações políticas não violentas com o objetivo de evitá-las. CONCLUSÃO Como se viu, a partir de uma análise das acusações de feminicídio formalizadas pelo Ministério Público do Paraná, entre 2015 e 2020, foi possível identificar uma “denúncia padrão”, um modelo de peça acusatória repetido na maioria dos processos e que continha uma narrativa acética desse crime gravíssimo, transcrita em apenas duas páginas de formato A4. Essa avaliação preliminar levantou imediatamente indagações sobre possíveis lacunas, ausências no discurso do órgão acusador, bem como questionamentos sobre os eventuais efeitos desses silêncios na luta para diminuição dos assassinatos de mulheres na sociedade brasileira, os quais só têm aumentado desde a edição de Lei nº 13.104/15. Para responder essas questões, realizou-se um exame detalhado da “denúncia padrão” de feminicídio a partir das teorias feministas descolo- 44 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 niais, cuja crítica permitiu reconhecer que o Ministério Público reproduziu nessa peça inaugural do processo penal um discurso jurídico hegemônico, de matriz moderna, eurocêntrica, responsável pela colonização do saber e das práticas do sistema de justiça brasileiro. Além disso, foi possível verificar que esse discurso racializado e patriarcal acabava por não revelar que as mulheres negras são as principais vítimas desse crime, que as reais motivações são decorrentes do machismo estrutural e que os negros provavelmente são a maior parte dos encarcerados pela sua prática. Então, concluiu-se que a narrativa contida na “denúncia padrão”, com seu reducionismo, sua suposta objetividade e universalidade, bem como suas omissões, acabava justamente por invisibilizar a violência sofrida pelas mulheres negras, as mais vulneráveis ao feminicídio, e desta forma autorizar tacitamente a sua perpetração, contribuindo para o genocídio negro em curso desde os tempos coloniais. Enfim, com o objetivo de apoiar os projetos de transformação desse cenário, refletiu-se sobre a necessária descolonização do direito e apresentou-se o direito que escuta como um dos caminhos possíveis para alcançá-la. Esse novo direito engendraria novas práticas jurídicas e seria um direito que ouve mais do que prescreve, que se sensibilizaria com o sofrimento dos vulneráveis ao invés de punir, que censuraria e responsabilizaria para proteger todas as vidas sem classificações de raça ou gênero. No que se refere ao feminicídio, sua preocupação não seria a criminalização, mas a escuta e o acolhimento das vítimas, o atendimento de suas necessidades e demandas para a prevenção dessa violência, também pautaria uma atuação do sistema de justiça criminal não racializada, não machista, atenta à gravidade desse crime, à profundidade de suas causas e consciente dos efeitos nefastos da sua naturalização na sociedade brasileira. REFERÊNCIAS ALMEIDA, Ronaldo. A onda quebrada – evangélicos e conservadorismos. Dosssiê Direitos, Moralidades, Conservadorismo e Violência. Cadernos de Pagu (50), 2017:e175001. BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: RT, 2020. BAGGENSTOSS, Grazielly Alessandra. Direito Brasileiro: Discurso, Método e Violências Institucionalizadas. In: BAGGENSTOSS, Grazielly Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 45 Alessandra. (Org). Direito e feminismos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Iuris, 2019. BALLESTRIN, Luciana. América Latina e o giro decolonial. In: Revista Brasileira de Ciência Política, n. 11, Brasília, pp. 89-117, maio- agosto, 2013. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011. BITENCOURT, Cézar Roberto. Tratado de direito penal: parte especial (crimes contra a pessoa). 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2020. BORGES, Juliana. Encarceramento em massa. São Paulo: Sueli Carneiro/ Polén, 2019. BRASIL. AMB/PUC-RIO. Quem somos: a magistratura que queremos. Rio de Janeiro, 2018. Disponível: https://www.amb.com.br/wp-content/ uploads/2019/02/Pesquisa_completa.pdf. Acesso em: 12 dez. 2020. BRASIL, CÂMARA DOS DEPUTADOS. Diário da Câmara dos Deputados. Ano LXX – Nº 029, QUARTA FEIRA, 04 DE MARÇO DE 2015. Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_discursos?idProposicao=858860&nm=EDUARDO+CUNHA+%28PRESIDENTE%29&p=PMDB&uf=RJ# . Acesso em: 09 jun. 2021. BRASIL. CNJ. Diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário. 2019. Disponível: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/ conteudo/arquivo/2019/06/42b18a2c6bc108168fb1b978e284b280.pdf. Acesso em: 12 dez. 2020. BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Resolução n 5º, de 17 de dezembro de 2018. Disponível em: https://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/55640393/do1-2018-12-18resolucao-n-5-de-17-de-dezembro-de-2018-55640113. Acesso em: 10 jun. 2021. BRASIL. STF. Decisão liminar em ADI nº 6298 -DF. Plenário. Rel. Min. Luiz Fux. j. 22/01/2020. BROWN, Wendy. Nas ruínas do neoliberalismo: a ascensão da política antidemocrática no ocidente. Trad. Mario A. Marino, Eduardo Altheman C. Santos. São Paulo: Editora Filosófica Politeia, 2019. BUTLER, Judith. The force of nonviolence. New York: Verso, 2020. 46 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 CAMPOS, Carmen Hein de. Feminicídio no Brasil: uma análise crítico-feminista. In: Sistema penal e violência, v. 7, n. 1, pp. 103-115, jan.jun., 2015. CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte especial. 20. ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020. CARNEIRO, Sueli. Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América Latina a partir de uma perspectiva de gênero. In: HOLLANDA, Heloísa B. (Org). Pensamento Feminista Hoje: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 313-322. CASTRO-GOMEZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da “invenção do outro”. In: LANDER, E. (Org). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO, 2005, p.169-186, 2. CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon. Giro descolonial, teoria crítica e pensamento descolonial. In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; GROSFOGUEL, Ramon (Org.). El giro decolonial: reflexiones para uma diversidad epistêmica más allá del capitalismo global. Bogotá: Siglo del Hombre Editores, Universidad Central, Instituto de Estudios Sociales Contemporáneos, Pontificia Universidad Javeriana, Instituto Pensar, 2007, p. 09-24. CASTRO, Susana. “Aposta epistêmica”: o feminismo descolonial de Yuderkis Espinosa Miñoso. Revista Ideação, n. 42, pp. 86-93, jul.-dez, 2020. CURIEL, Ochy. Construindo metodologias feministas a partir do feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloísa B. (Org). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 120-138. DELEUZE, Gilles. Que és um dispositivo? In: BALIBAR, E.; DREYFUS, H.; DELEUZE, G. e outros. Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa, 1999, p. 155-163. FERRAZ JR., Tércio; BORGES, Guilherme R.. A superação do direito como norma: uma revisão descolonial da teoria do direito brasileiro. São Paulo: Almedina, 2020. FERREIRA, Lola. Decisão de juíza no Paraná é reflexo do racismo no Judiciário, avaliam juristas. Notícias UOL, 13/08/2020, 12h08. Disponível Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 47 https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/13/decisao-de-juiza-no-pr-e-reflexo-de-racismo-no-judiciario-avaliam-juristas.htm. Acesso em 13 dez. 2020. FLAUZINA, Ana. A medida da dor: politizando o sofrimento negro. In: FLAUZINA, Ana; PIRES, Tula. (Org.) Encrespando - Anais do I Seminário Internacional: Refletindo a Década Internacional dos Afrodescentendes. Brasília: Brado Negro, 2016. FLAUZINA, Ana. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida de Estado. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008. FLAUZINA, A.; FREITAS, F.. Enunciando dores, assinando resistência. In: FLAUZINA, A.; FREITAS, F.; VIEIRA, H.; PIRES, T.. (Org.). Discursos negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro, 2018. FLAUZINA, Ana. O feminicídio e os embates das trincheiras feministas. In: Discursos Sediciosos. Rio de Janeiro, v. 23/24, p. 95-106, 2016. FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 13º Anuário de Segurança Pública. São Paulo, ano 13, 2019. Disponível: https:// forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2019/10/Anuario-2019FINAL_21.10.19.pdf. Acesso em: 10 dez. 2020. FORUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. 14º Anuário de Segurança Pública. São Paulo, ano 14, 2020. Disponível: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2020/10/anuario-14-2020-v1-final.pdf. Acesso em: 10 dez. 2020. FOUCAULT, Michel. Cours du 14 janvier 1976. In: DEFERT, D.; EWALD, F. (Org.). Dits et Écrits III. Paris: Gallimard, 1994. FOUCAULT, Michel. Nietzche, Genealogy, History. In: BOUCHARD, D. F (Ed.). Language, conter-memory, practice: selected essays and interviews by Michel Foucault. Ithaca: Cornell University Press, 1977, p.139-164. GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte especial. 16. ed. Niterói, Impetus, 2018. v. II. KILOMBA, Grada. Memórias de plantação: episódios de racismo cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. LEMGRUBER, Julita; RIBEIRO, Ludmila; MUSUMECI, Leonarda; 48 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021 DURTE, Thais. Ministério Público: guardião da democracia brasileira. Rio de Janeiro: CESEC, 2016. LIMA, Renato B.. Manual de processo penal: volume único. 8. ed., Salvador: JusPodivum, 2020. LOPES JR., Aury. Processo Penal. 17. ed., São Paulo: Saraiva, 2020. LUGONES, María. Colonialidad y género. Tábula Rasa, Bogotá, n. 93, pp. 73-101, jul.-dez., 2008. LUGONES, María. Rumo a um feminismo descolonial. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 22, n. 3, pp. 935-952, set.-dez, 2014. HOLLANDA, Heloísa B. (Org). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 120-139. MARQUES, Clarice Gonçalves Pires. Colonialidade e feminicídio: superação do “ego conquiro” como desafio do direito. Opinión Jurídica, 19 (38), jan.-jun, 2020, pp. 201-226, MASSON, Cléber. Direito Penal. Parte Especial. 13. ed. São Paulo: Editora Método, 2020. v. 2. MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção e política da morte. Rio de Janeiro: n-1 edições, 2018. MENDES, Soraia. Os rumos epistemológicos da criminologia e do processo penal feminista a partir de um ponto de vista interseccional e decolonial. In: MAGNO, P. C.; PASSOS, R. G. (Org.). Direitos humanos, saúde mental e racismo. Rio de Janeiro: Defensoria Pública, 2020, p. 145-155. MENDES, Soraia. Processo penal feminista. São Paulo: Atlas, 2020. MIÑOSO, Yuderkis Espinosa. Fazendo uma genealogia da experiência: o método rumo a uma crítica da colonialidade da razão feminista a partir da experiência histórica da América Latina. In: HOLLANDA, Heloísa B. (Org). Pensamento Feminista Hoje: perspectivas decoloniais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 96-120. NUCCI, Guilherme de Souza. Nucci, Curso de direito penal: parte especial: arts. 121 a 212 do código penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. ORTEGA, Francisco. Genealogias da amizade. São Paulo: Iluminuras, 2011. PRANDO, Camila Cardoso de M.. A criminologia crítica no Brasil e os Argumenta Journal Law n. 35 - jul / dez 2021 49 estudos críticos sobre a branquidade. Revista Direito e Práxis. Rio de Janeiro, v. 9, n. 1, p. 70-84, 2018. PUAR, Jasbir K.. Homonacionalismo como mosaico: viagens virais, sexualidade afetivas. In: HOLLANDA, Heloísa B. (Org.). Pensamento Feminista Hoje: sexualidades do sul global. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2020, p. 159-185. QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, Eurocentrismo e América Latina. In: LANDER, Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: Clacso, 2005, p. 117-142. REIS, Vilma. Atucaiados pelos Estado: as políticas de segurança pública implementadas nos bairros populares de Salvador e suas representações de 1991 a 2002. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal da Bahia, 2005. 'Notas de fim' 1 1 No debate entre os termos decolonial e descolonial, há preferência pelo segundo, por superar a condição de anglicismo e por complementar a categoria descolonização, utilizada pelas ciências sociais no final do século XX. (CASTRO-GÓMEZ; GROSFOGUEL; 2007, p. 9). 2 Apesar das discussões que as parlamentares travaram na Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, que produziram o texto inicial do projeto que deu origem a Lei do Feminicídio, no momento da votação na Câmara dos Deputados mal foram ouvidas. Aprovação ocorreu no final de uma sessão tumultuada, comandada pelo ex-Deputado Eduardo Cunha e repleta de interrupções masculinas que buscavam colocar em pauta outros temas de seu interesse (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2015). 3 A doutrina penal consultada trata a questão a partir da definição do conceito de mulher e apresenta três perspectivas distintas: o critério psicológico, que leva em conta o modo como a pessoa vivencia a sua identidade gênero, ou seja, o gênero que ela se identifica, independentemente da sua genitália e condição genética; o critério biológico, o qual identifica a mulher segundo seu sexo morfológico (órgão genitais – externos e internos e extragenitais – caracteres secundários), sua concepção cromossômica (genética) e endócrino (identificado pela glândulas sexuais); e, finalmente, o critério jurídico, segundo o qual a mulher é reconhecida como aquela pessoa portadora de um documento oficial (certidão de nascimento, documento de identidade) em que figure o seu sexo feminino. 50 Argumenta Journal Law n. 35 -jul / dez 2021