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A CONTROVÉRSIA DO CÂNONE: CRIADO DAS ELITES OU MINISTRO DA MORTE? THE CONTROVERSY OF THE CANON: A SERVANT OF THE DOMINANT CLASSES OR THE MINISTER OF DEATH? Fabrício Tavares de Moraes (PG - UFJF) RESUMO: O presente trabalho busca traçar uma análise sobre a questão do cânone literário, abordando seus sistemas de valorização estética, bem como sua funcionalidade no presente contexto acadêmico, no qual parte da crítica literária frequentemente negligencia uma valoração e investigação profunda dos aspectos formais das obras a fim de se deter exclusivamente sobre os elementos ideológicos que as perpassam ou não. Dessa forma, através das considerações presentes nas obras de críticos literários tais como Leyla Perrone-Moisés, Harold Bloom, Ezra Pound e outros, pretende-se tecer reflexões sobre a real natureza do cânone, abordando criticamente as objeções feitas em relação a ele e posteriormente apresentando um conjunto de argumentações que dissertam a respeito não apenas da utilidade, mas também da necessidade de uma sistematização que leve em conta toda a diversidade e complexidade da produção literária do passado e da contemporaneidade. Palavras-chave: Cânone; valor estético; tradição. ABSTRACT: This paper aims to draw an analysis about the questions around literary canon by an approach of its systems of esthetical valorization as well as its functionality in the current academic context, in which part of the literary criticism frequently despise the valuation and a thorough research of the formal aspects of the literary works, in order to detain exclusively over the ideological elements that permeates them or not. Therefore, through the reflections present in essays by literary critic such as Leyla Perrone-Moisés, Harold Bloom, Ezra Pound and others, we intend to scrutinize about the real nature of the canon by approaching critically the objections against it. Hence, we will present a set of argumentations that dissert not only about the utility, but also the necessity of a systematization that takes into account all the diversity, richness and complexity of the past and contemporary Literature. Keywords: Canon; aesthetical value; tradition. 1. Introdução Ao se tratar da polêmica questão da canonização de obras literárias é necessário não apenas uma cautelosa tessitura conceitual, mas, sobretudo, um profundo exame das ideias já consolidadas e, por isso mesmo, defasadas, que perpassam toda a discussão. Talvez um dos maiores equívocos com relação à natureza do cânone se deva a uma insuficiente compreensão da própria etimologia da palavra, pois, já sedimentada no senso comum, ela invariavelmente invoca os textos hagiográficos ou sagrados estabelecidos como revelação divina em determinada tradição religiosa. Contudo, F.F. Bruce, em seu livro O Cânon das Escrituras, afirma que o termo somente veio a ser utilizado no sentido sacro no ano de 367 d. C., em uma carta aberta de Atanásio, bispo de Alexandria, na qual tratava sobre as cartas e textos que embasavam a REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 tradição cristã. De fato, ainda segundo as observações de Bruce, kan n)1. Em grego, isso significa uma vara, espe- língu cialmente uma vara reta, usada como régua (BRUCE, 2011, p. 17). Dessa acepção adveio outro sentido também comumente utilizado nos dias atuais, a saber, uma regra, um padrão ou uma medida estabelecida. Essa visão do cânone como um elemento paramétrico e objetivo evidencia-se, sobretudo, na emulatio clássica, na qual o autor que se propunha alcançar renome deveria emular contra os predecessores, num combate regido tanto pela admiração quanto pelo desejo de superação. Segundo a fórmula de Quintiliano, não existe crescimento apenas pela imitação, pois apenas serão celebrados aqueles que tiverem superados seus antecessores e, dessa forma, ensinado os seus sucessores. Entretanto, as discussões acerca do cânone se detêm, sobretudo, no seu caráter político e ideológico. Vários críticos e autores contemplam as obras do passado como arautos de determinada ideologia política dominante: súmulas da visão de mundo (Weltannschauung) de determinada parcela social em geral, opressora. Partindo dessa perspectiva surgem os chamados canon-busters (destruidores do cânon) que insistem não apenas na abertura do cânone, mas, primariamente, em uma total relativização dos valores estéticos objetivos que regem e que estão por trás das diversas e distintas manifestações literárias. Um ponto controverso que necessita ser elucidado é o que diz respeito às novas modalidades literárias e aos autores ditos periféricos 2 que, conforme apontam os detratores do cânone, têm sido incluídos nas novas listagens bibliográficas e nas pesquisas da academia. Segundo eles, o fato de tais autores estarem atraindo a atenção de estudiosos, professores e pesquisadores marca o início de uma nova concepção sobre a literatura, concepção essa mais solidária para com a diferença e alteridade, o que, consequentemente, a torna mais tolerante. Todavia, essa afirmação retrata o cânone de forma hiperbólica e distorcida como se este fosse um Index Librorum Prohibitorum3 ao aves1 Bruce mais adiante afirma que a palavra grega provavelmente foi tomada de empréstimo da palavra hebraica canna tem a mesma origem. neh) que (qa- 2 ligadas às minorias étnicas, sociais ou de gênero. Por vezes, o termo é tomado indistintamente, pois acaba tentando homogeneizar em um agregado indistinto várias individualidades efetivas que não guardam a mínima semelhança (ou que possuem em comum apenas aspectos secundários que nada tem a ver com a matéria literária ou artística que é o objeto da crítica literária) entre si. 3 O Index Librorum Prohibitorum (Índice dos Livros Proibidos) foi uma lista de obras e publicações literárias proibidas pela Igreja Católica, na qual ainda se encontravam as características essenciais que determinavam se um livro entraria ou não na lista. Em 1559, o Papa Paulo IV promulgou a primeira versão do Index e uma versão revista foi autorizada pelo Concílio de Trento (1545-1563) que era administrado pelo Tribunal do Santo Ofício (Inquisição). A última edição do índice foi publicada em 1948 e o Index só veio a ser abolido pela Igreja Católica em 1966 pelo Papa Paulo VI. Na 120 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 so, isto é, como se se tratasse de uma lista hermética e formalmente fechada (espécie de cartilha moral e legalista) que, além de impingir a leitura (daí funcionando como os métodos arcaicos da tabuada) aos educandos, repudia automaticamente qualquer obra que não se enquadre em seus esquemas datados e uniformes. Contudo, tal visão não faz jus à realidade, pois conforme afirmou Leyla Perrone-Moisés, em sua obra Altas Literaturas (1998): Ignorando a flexibilidade e a abertura dos cânones modernos internacionais, e considerando apenas o currículo habitual dos departamentos de inglês, os canon-busters [demolidores de cânone] ou canon-openers [abridores de cânone] têm uma concepção fechada e imobilista de um suposto Cânone Ocidental, que teria sido imposto aos alunos com objetivos ideológicos escusos. O pressuposto é historicamente falso. Mesmo no que concerne às listas de leituras recomendadas , um estudo dessas listas entre 1880 e 1940 demonstra que elas foram centenas e muitas variadas (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 196). Sendo assim, afirmar um suposto fechamento e segregacionismo do cânone é desconhecer sua própria natureza e mobilidade ao longo do tempo. Ora, o primeiro argumento contra essa visão equivocada é a própria diversidade de temáticas, métodos e técnicas narrativos, perspectivas existenciais e morais dos vários livros que atualmente podem ser considerados canônicos. Mesmo se se comprovasse que o cânone é dominado pelo homem branco europeu (o que é evidentemente falso), ainda assim não seria possível levantar a acusação de que ele é dominado por uma ideologia ou uma cosmovisão monolítica, una, enfadonha e defasada. Bloom aborda essa questão em seu polêmico e controverso livro O Cânone Ocidental (2010) com as seguintes palavras: [...] Gostaria de observar que a autoridade da morte, literária ou existencial, não é basicamente uma autoridade social. O Cânone, longe de ser o criado da classe social dominante, é o ministro da morte (BLOOM, 2010, p. 38)4. À guisa de exemplificação da variedade ideológica dos livros canônicos basta observar as visões diametralmente opostas de um personagem como Julien Sorel de O vermelho e o negro, de Stendhal e do jovem padre do livro Diário de um pároco de aldeia, de Georges Bernanos. Ambos os personagens são jovens autoridades clericais, com a mesma instrução intelectual e, sobretudo, conterrâneos. Apesar disso, não se poderia conceber duas mentalidades e espiritualidades tão antípodas como as desses dois personagens. A segunda objeção ao pensamento dos canon busters emerge da simples observação dos livros tidos como canônicos há autores e autoras das mais diversas nacionalidades (obviamente lista encontravam-se livros que divergiam dos dogmas da Igreja, cujos conteúdos e assuntos eram considerados como impróprios pelo clero. Deste modo, a lista buscava evitar a corrupção de seus fiéis, principalmente contra as ideias do então nascente protestantismo. 4 ta aos leitores de que o tempo de vida (e consequentemente o de leitura) é limitado. Sendo assim, o cânone agiria como uma orientação para que o leitor possa extrair o essencial do labirinto quase infindável da literatura, antes que seu tempo de vida e leitura esgotem. 121 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 incluindo autores nãoeuropeus que pertencem a países economicamente subdesenvolvidos) e das mais diversas etnias. Nesse sentido, nunca houve razão em dizer que o cânone se configura como um elemento exclusivista, pois, por assim dizer, ele está apto a englobar as mais distintas manifestações literárias provenientes dos mais diversos entes pessoais (independente de suas origens sociais ou étnicas), contanto que tenha vencido o ágon da tradição (no dizer de Bloom), se impondo como um fenômeno estético inconteste. As obras de wa Thiong o são consideradas verdadeiros monumentos estéticos, a despeito de suas etnias e nacionalidades; podem-se listar também os projetos literários de Nadine Gordimer, Karen Blixen, Katherine Mansfield e Clarice Lispector, todos eles listados no cânone, o que, consequentemente, invalida a afirmação da exclusão de gênero. 2. A natureza do cânone Todavia, é preciso discernimento para analisar a real natureza do cânone. Pode-se, com efeito, afirmar que em certo sentido o cânone não é inerentemente exclusivista 5 (os vários autores citados confirmam isso), configurando-se permanentemente como uma convocação estética. Contudo, isto não significa dizer que o cânone é, por definição, um retentor ou um arquivo indelével. Em termos formais, é lícito afirmar que aquilo que hoje é listado como canônico indubitavelmente possui qualidade estética e densidade experiencial; porém, nem todas as obras literárias que possuem esses atributos são consideradas canônicas. Inúmeras obras grandiosas se perderam ao longo da história, quer seja por fatores externos e involuntários (desgaste dos suportes), quer por agentes conscientes (incêndios de bibliotecas, listas proibitivas e supressões). Herman Melville, por exemplo, após o fracasso de vendas de Moby Dick, teve seu manuscrito The Isle of the Cross rejeitado pelo editor e, posteriormente, se extraviou. Hoje tal texto está irrecuperavelmente perdido. Sendo assim, o cânone, como qualquer técnica ou instrumento humanos, está fadado à incapacidade de retenção e armazenamento indefinidos. Dada sua finitude (bem como de seus autores, leitores e métodos), o cânone invariavelmente sempre estará defasado de seu tempo, quando contrastado com o presente, e incompleto e repleto de lacunas, quando cotejado com as obras do passado. Como observou a professora Leyla Perrone-Moisés: 5 Quando se trata de pressupostos sociais e econômicos dos autores e de outros elementos extraliterários. Cabe ressaltar, no entanto, que o cânone é esteticamente exclusivista é fato. Contudo, conforme mencionado, isso não implica necessariamente em um segregacionismo social, étnico ou de gênero. Primeiro porque a literatura é, por definição, um ato estético (o que a difere da dissertação científica que está baseada em atos empíricos e repetíveis e da propaganda ideológica que se baseia em atos político-partidários). Uma exceção se dá em países ou regiões onde imperam ditaduras, guerras ou qualquer outro estado de exceção, pois aí não apenas a literatura, mas todos os fatos e elementos sociais são governados, segregados e selecionados por uma força maior, geralmente tirânica, que leva em consideração não a estética, mas sim a afirmação e manutenção de sua visão e ideologia política. 122 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Convém não esquecer que as grandes obras ocorrem tendo como chão e húmus uma cadeia ininterrupta de obras menores, e que os produtores da literatura presente são tão devedores das grandes obras do passado quanto dos milhares de obras menores que prepararam terreno para as maiores (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 24). Fundamentando-se nessas reflexões, poderia se levantar um último argumento contra a visão dos detratores do cânone: as obras ditas canônicas são uma espécie de resquícios de um naufrágio mnemônico. Dito de outra forma, são traços recuperados do esquecimento, uma espécie de bússola estética que fornece um direcionamento, não sistematizado e estanque como o mapa, mas com a mobilidade e adaptação próprias da bússola. Como Ezra Pound em seu ensaio The Tradition observou: a tradição é uma beleza que preservamos e não um conjunto de grilhões para nos aprisionar (POUND, 1981, p. 91)6. A sistematização canônica é, conforme já dito, uma instrumentalização das obras literárias concretas e singulares, uma disponibilização ordenada (e não necessariamente hierarquizada) dos objetos estéticos do passado e do presente. Portanto, é uma construção humana para fins humanos. Sendo assim, sua imposição arbitrária e impensada trata-se, na verdade, de uma deformação tanto de seu propósito quanto de sua natureza como se tem observado nas listas dos programas de ingressos nas universidades, nas quais as recomendações de leituras de clássicos da literatura parecem se dirigir a um aglomerado impessoal e indistinto, e não a entes pessoais e concretos. De modo semelhante, é possível distorcer os propósitos do cânone de forma a delimitar um campo bibliográfico para defesa de posicionamentos políticos. E esse caso extremo, no qual o mau uso do cânone (e não este elemento em si mesmo) gera um separatismo exacerbado, excluindo as obras que não estão em conformidade com determinada moral ou posicionamento político, é visto pelos detratores do cânone como se fosse a natureza do mesmo. É o que ocorreu com as obras dos russos Alexander Soljenítsin e Boris Pasternak, ambas censuradas pelas autoridades soviéticas, embora atualmente sejam listadas como canônicas e tidas como patrimônios estéticos. Sendo assim, cabe ressaltar novamente que a natureza do cânone (e da tradição literária) configura-se, primordialmente, como instrumental e neutra. É a maneira pela qual se faz uso desse instrumento que determinará sua função segregacionista ou museológica . Atualmente as pesquisas e estudos se debruçam sobre questões não necessariamente estéticas e literárias, tais como a etnia, gênero e orientação sexual de seus autores. De fato, não há nada reprovável nessa abordagem, embora alguns vejam nela um retorno ao biografismo de SaintBeuve. Contudo, a questão se torna problemática na medida em que ocorre uma rejeição generali6 p. 91). 123 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 zada dos elementos estéticos e formais e, por vezes, até mesmo uma supressão voluntária das obras tidas como canônicas. Sobre tal questão, Leyla Perrone-Moisés acentua: Considerando que os estudos literários difundiam e reforçavam a ideologia ocidental , qualificada, de modo simplificador, como ideologia machista , imperialista e burguesa , numerosos professores norte-americanos passaram a estudar as obras curriculares a partir de seus conteúdos ideológicos e, em caso de desaprovação, a suprimi-las dos currículos (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 192). Além disso, é nítida a contradição do discurso dos intelectuais que buscam subverter a ordem branca e patriarcal do cânone ao inserir ícones e personalidades literárias que correspondam aos seus pressupostos teóricos e críticos há, assim, uma espécie de esquema baseado em dire- trizes solidárias e inclusivas, mas que, incoerentemente, exclui outros nomes apenas pelo fato de não estarem enquadrados em sua ideologia tolerante 7. Tais intelectuais parecem não notar que todas as formas de pesquisa e estudo pressupõem um objeto (que é tomado dentre outros e, assim, considerado como de maior importância para a pesquisa) e um método objetivo de aferição que será projetado sobre o objeto. Considerando as especificidades dos estudos literários, pode-se afirmar que a simples escolha de determinada obra ou autor já pressupõe um juízo de valor (afinal, como já disse Pierre Bayard, abrir um livro para ler implica em fechar todos os demais ) e o método crítico utilizado para tal averiguação deve ser até certo ponto objetivo e aplicável, para que a crítica não se torne um simples exercício impressionista. Portanto, uma vez que a literatura se manifesta como um elemento estético e de linguagem figurativa, torna-se necessário, por conseguinte, que sua análise esteja pelo menos em parte baseada em pressupostos formais e estéticos. Afinal, a defesa do estético, como tudo, está compromissada com uma ideologia. Mas a valorização do estético não é necessariamente reacionária (PERRONE-MOYSÉS, 1998, p. 201). Além do mais, a arte que se volta primordialmente (mas não exclusivamente) para si mesma não é, necessariamente, alienada do real. Como diria W.H. Auden, em nossa época, a mera criação de uma obra de arte é em si um ato político (AUDEN, 1965, p. 182)8. Anteriormente foi mencionada a natureza sempre provisória do cânone. No entanto, é lícito esclarecer que isso não significa que as categorias pelas quais o cânone é regido sejam relativas, particularistas e efêmeras. Até porque algo assim dificilmente seria apreensível e, muito menos, 7 Desses nomes excluídos, tidos como persona non grata devido aos seus posicionamentos políticos, sociais, econômicos e até mesmo ecológicos, pode-se listar: Knut Hamsun, vencedor do Nobel, hoje condenado devido à sua simpatia pelos governos de direita; Mark Twain que, segundo os críticos detratores, era a favor do escravagismo nos Estados Unidos; e Herman Melville, considerado antiecológico devido aos seus relatos de baleação, a caça às baleias. 8 No original In our age, the mere making of a wo 124 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 funcional. Embora exista uma espécie de rotatividade de obras, há uma sólida permanência de alguns princípios que subjazem à estrutura do cânone e cabe dizer que mesmo essa rotatividade não é tão abrangente como se possa imaginar, uma vez que obras como A Odisseia, A Ilíada 9, a Bíblia, A Divina Comédia, Ramayana e outros são permanentemente listadas como patrimônios estéticos há séculos. Caso não houvesse princípios objetivos e permanentes para a apreensão literária, isto é, se de fato os juízos de valor variassem completamente10 ao longo da história, seria inconcebível que obras da antiguidade como as citadas acima pudessem agradar leitores contemporâneos. Em suma, há elementos objetivos e em certa medida permanentes que pautam a seleção canônica, pois, caso contrário, só restaria um amontoado de apontamentos subjetivos que impossibilitaria a discussão. Nesse sentido, é interessante citar os valores literários objetivos comumente apontados por autores e críticos modernos do porte de T.S. Eliot, Ezra Pound, Jorge Luis Borges, Octavio Paz e Haroldo de Campos listados pela pesquisa da professora Leyla Perrone-Moisés, os quais são: maestria técnica, concisão, exatidão, visualidade e sonoridade, intensidade, completude e fragmentação, intransitividade, universalidade, novidade e outros. Nessa perspectiva, cabe lembrar também os valores (leveza, rapidez, exatidão, visibilidade, multiplicidade e consistência) que Italo Calvino havia proposto para um futuro próximo em sua obra Seis propostas para o próximo milênio, os quais são ilustrados com exemplos de inúmeras obras literárias (desde a antiguidade, passando pela Idade Média e abordando também os, então, contemporâneos de Calvino) pertencentes às mais variadas tradições. Como foi visto, é possível citar os princípios e valores objetivos que perpassam o cânone os quais são valorizados nas obras clássicas. Contudo, não é possível afirmar as obras que permanecerão ao longo da passagem do tempo e que no futuro serão apreciadas. Uma obra literária se assemelha ao epicentro de um terremoto: é o princípio de uma série de vagas sísmicas que se desdobrarão ao longo da história e da sociedade. Após alcançar plenamente o imaginário coletivo com suas ondas, pode-se dizer que concluiu seu trabalho11. 9 Lembrando que a literatura épica romana tem como marco inicial as traduções de obras gregas por Lívio Andrônico, dentre as quais se destaca sua versão de A Odisseia, de Homero. Tais traduções foram feitas com a intenção de suprir uma lacuna na educação artística dos romanos, visto que os livros de Homero eram considerados como obras grandiosas e, portanto, essenciais ao crescimento intelectual do homem. 10 Não se pode negar que alguns elementos e, principalmente, gêneros literários (como a epopeia, por exemplo, hoje não mais realizada, com raras exceções) variam com o tempo. A já citada emulatio foi hoje substituída pelo conceito da originalidade e inovação românticas, porém é lícito lembrar que alguns princípios, tais como a maestria técnica da linguagem e a intensidade (condensação de significados) estão presentes atualmente na avaliação crítica, assim como estiveram no passado. Isso se deve ao fato da natureza mesma da literatura que é uma arte que trabalha com as possibilidades e potencialidades da linguagem, buscando sempre clarificar e aperfeiçoar seu impacto sobre o espírito humano. 11 Um exemplo disso é a obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, que ao criar uma descrição tão vívida dos tormentos e aspectos do inferno acabou por influenciar diretamente a Teologia católica (o Papa Bento XVI a considerou como , consequentemente, o acervo imagístico e imaginativo das pessoas, a ponto de 125 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Harold Bloom compreendeu essa questão de forma profunda ao intitular uma de suas obras como Shakespeare: a invenção do humano afinal, as obras literárias (as artísticas, como um todo) são verdadeiros blocos de experiências simbólicas, vivenciais, espirituais e sensoriais do real que estão disponíveis como patrimônio humano. E é ainda o crítico norte-americano quem, em seu já citado livro O Cânone Ocidental, argumenta de forma provocativa, apontando para a falsa antítese que se estabeleceu entre os valores estéticos e as agendas políticas: Ou existiram valores estéticos, ou existem apenas os superdeterminismos de raça, classe e gênero sexual. Deve-se escolher, pois se se acredita que todo valor atribuído a poemas, peças, romances ou contos é apenas uma mistificação a serviço da classe dominante, então por que se deve ler afinal, em vez de ir servir às desesperadas necessidades das classes exploradas? A ideia de que beneficiamos os humilhados e ofendidos lendo alguém das origens deles, em vez de ler Shakespeare, é uma das mais curiosas ilusões já promovidas por ou em nossas escolas (BLOOM, 2010, p. 673). Cada perspectiva inclui um posicionamento frente ao real e à literatura, tomada como objeto. Bloom assinala as consequências extremas que a relativização/negação total dos elementos estéticos podem gerar, lançando um desafio que se configura como impraticável ou extremista. 3. Pequena apologia ao cânone Ezra Pound em seu famoso livro ABC da Literatura observou que literatura é linguaado até o máximo grau possível (POUND, 1997, p. 32). Portanto, é possível afirmar que determinado escritor se destaca dentre os demais à medida que expande a moldura das palavras, desdobrandoas em várias camadas superpostas, numa verdadeira evolução 12 da linguagem. Assim, mais do que um simples inventor (terminologia poundiana, conforme será visto adiante), um escritor original e forte é aquele que sabe se utilizar das potencialidades inerentes à palavra, uma vez que o desenvolvimento só é possível caso a forma desenvolvida (ao menos na esfera virtual) já exista no organismo ou elemento primário. É conhecida a comparação feita por Mallarmé da linguagem com uma moeda de câmbio passada de mão em mão até o ponto do desgaste. Nessa perspectiva, o papel do escritor (principalmente do poeta) é evitar a defasagem total e radical da linguagem cotidiana, buscando insuflar nela, por meio de sua poética, o sopro primordial . Na maioria das vezes, a linguagem da qual atualmente se dispõe é compreendida como hoje inúmeras pessoas (até mesmo as que nunca leram a obra) conceberem o inferno segundo a descrição de Dante. 12 No sentido proposto pela própria etimologia da palavra: do latim evoluere (ex. Sendo assim minal. 126 r- REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 sinal do exílio humano em relação ao uno primordial (Das Ur Eine) e de sua destituição da comunhão silenciosa com a natureza, conforme se pode notar nas citações de Alfredo Bosi, presentes no seu livro O ser e o tempo da poesia: A poesia, que se faz depois da queda, é linguagem da suplência. Primeiro coral, depois ressoante no peito do vate que se irmana com a comunidade, enfim reclusa e posta à margem da luta, a sua voz procura ministrar aos que a ouvem o consolo do velho canto litúrgico, aquele sentimento de comunhão do homem com os outros, consigo, com Deus (BOSI, 2010, p. 202). Contudo, por outro aspecto, a linguagem não é simplesmente uma estrutura plenamente impositiva e embrutecedora que rege completamente os falantes, obrigando-os a seguirem à risca suas formulações e princípios. Na verdade, se assim o fosse, a espontaneidade e a criação literária seriam impossíveis; contudo, é justamente nas lacunas e brechas que perpassam toda a linguagem que o escritor encontra o seu nicho e seu habitat natural para a criação. Além do mais, conforme já citado, há certa potencialidade orgânica na linguagem que a permite desdobrar-se indefinidamente e também se saturar, como um palimpsesto, de sentidos e alusões. Nesse sentido, a literatura não apenas atua como um repositório da substância das experiências humanas (quer sejam históricas, psíquicas, espirituais ou simbólicas), mas também como uma espécie de lapidação do instrumento simbólico exclusivamente humano, a saber, a linguagem. As grandes obras literárias, de certa forma, não apenas apuram a capacidade de contemplação e apreensão do real, como também aperfeiçoam o domínio da linguagem, o que possibilita uma transmissão mais fiel da experiência individual ao coletivo. Durante a transposição da apreensão subjetiva à exposição, inevitavelmente ocorre um vazamento da substância experiencial. É o fenômeno que se dava com Agostinho ao tentar explicar o tempo: O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei (AGOSTINHO, 2000, p. 322). Portanto, nesse caso, o domínio e lapidação da linguagem são essenciais para uma maior eficiência no transporte da experiência individual à comunicação coletiva. As obras do passado que se sedimentaram como patrimônios estéticos, invariavelmente, possuem em comum o fato de terem transposto o mais eficazmente possível uma experiência nova do real para a representação simbólica. É como se tais autores tivessem desvendado uma parcela desconhecida do real, conduzido a névoa do mistério em suas mãos, plasmando-a permanentemente em suas obras. Como depositário do imaginário e da espiritualidade de um povo, a língua é uma espécie de arquivo noético que guarda as riquezas do pensamento e concepções de toda uma coletividade. As obras literárias, por sua vez, se configuram como um tipo de meta-arquivo dessa língua que 127 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 condensa em uma estrutura semifixa toda a súmula da substância noética, simbólica e existencial de seus falantes. É por isso que a morte de uma língua é sempre e fatalmente uma perda para toda a humanidade. O mesmo se aplica a uma obra literária que foi capaz de sumarizar e concatenar os vários elementos de determinada língua. Se a civilização só é possível mediante a linguagem, uma vez que é desta que se origina, pode-se inferir que o desgaste e dessacralização da linguagem conduzem ao inverso: à barbárie. Daí surge a dura tarefa do escritor e-voluir a linguagem, impedindo-a de se esfacelar pelo uso trivial e cotidiano. Portanto, toda obra que surge deve ser considerada mediante os seguintes aspectos: ela, de fato, busca explorar ao máximo as potencialidades de sua língua ou é apenas uma súmula mimética dos discursos prosaicos já destituídos de substância? Tal obra almeja criar camadas cada vez mais densas de significação que busquem, na medida do possível, representar a plenitude do pensamento de sua coletividade ou é apenas um agregado de pressuposições unilaterais e paroquiais? É nesse sentido que Ezra Pound também afirma que a literatura é novidade que permanece novidade (POUND, 1997, p. 33) e ilustra essa afirmação com os seguintes exemplos: Não posso, por exemplo, esgotar meu interesse no Ta Hio de Confúcio ou nos poemas homéricos. É muito difícil ler o mesmo romance policial duas vezes. Em outras palavras, somente um policial muito bom será passível de releitura, depois de um longo intervalo, e isso porque a gente prestou tão pouca atenção a ele que já esqueceu quase completamente a sua história (POUND, 1997, p. 33). A natureza inexaurível da grande literatura é o que de fato garante sua sobrevivência ao longo dos tempos. Como afirmou Ítalo Calvino, em sua obra Por que ler os clássicos?, os clássicos são livros que quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato mais se revelam novos, inesperados e inéditos (CALVINO, 1997, p. 12). Em resumo, uma grande obra não é aquela que comunica um único sentido a diferentes homens, mas aquela que comunica a cada homem uma série incontável de sentidos e interpretações. No dizer de Schelling, cada grande obra literária é um infinito representado de modo finito, o que anula todas as oposições internas; ela se apresenta, pois, como um microcosmo auto-suficiente (PERRONE-MOISÉS, 1998, p. 161). Sendo assim, autores como Homero, Dante, Shakespeare, Petrarca e Yeats legaram aos demais homens verdadeiros universos estéticos que, de certa forma, alumiaram um pouco a nebulosidade do real. Na filosofia grega antiga, quando o discurso oficial (mitos, religiões, filosofias, ciências, instituições) se tornava insuficiente ou restrito para explicar a realidade e manter coesa a inte128 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 ração dos indivíduos entre si no que dizia respeito à sua ação na existência, urgia que viesse à tona aquilo que eles chamavam de thaumázein, termo que poderia ser traduzido tanto por admiração , espanto , perplexidade ou até mesmo angústia . Esse conceito diz respeito à exposição de uma circunstância, um aspecto da realidade ou uma cosmovisão que antes eram ignoradas ou que não eram percebidas como problemáticas. Transportando tal conceito para a literatura, pode-se afirmar que as grandes obras literárias se configuram como a concretização de uma exploração espeleológica da realidade e do Ser o lançar de uma pequena luz em fenômenos e substratos escondidos nas sombras. 4. Considerações finais Deste modo, torna-se necessário não uma transmissão restrita dos conteúdos das diversas obras clássicas, ou, em seu lugar, uma transmissão dos conteúdos de obras contemporâneas que se coadunam com posições teórico-críticas defendidas pelos detratores do cânone. Ao contrário, é necessário o desenvolvimento da percepção e fruição crítica, além do desenvolvimento da sensibilidade e autonomia intelectual. Nas palavras enfáticas de Ezra Pound: Em geral, não creio que o ensino possa fazer muito mais que não seja denunciar obras espúrias, levando assim o estudante gradualmente às obras válidas (POUND, 1997, p. 151). De fato, não sabemos quais obras serão preservadas do esquecimento próprio da passagem do tempo. Todavia, isso não anula os valores estéticos objetivos das obras presentemente inseridas no cânone. Este só tem valor na medida em que se volta para fins humanos como um ins- trumento forjado pelo homem e para o homem, e não como um sistema restritivo e impositivo. Afinal, como já afirmou o professor Joel Rufino dos Santos, a literatura desempenha o mesmo papel que a filosofia: desestabilizar a ciência, ao mesmo tempo que se apresenta como outro conhecimento do mundo e dos homens. Ela trata do homem na sua anterioridade de homem: como ser que ama e odeia, sempre ao mesmo tempo. A literatura vive lembrando à ciência que o homem, antes de ser inteligência do mundo e senhor das máquinas, é desejo insatisfeito (SANTOS, 2008, p. 36). A literatura, portanto, é uma forma de percepção e conhecimento do real; uma forma de apreensão que amalgama a razão, sentimento, vontade e corporalidade pectiva holística o ser visto sob uma pers- durante sua interação com a realidade. Sua principal tarefa talvez não seja a de melhorar a vida do homem, mas sim a de lembrá-lo de sua morte, atuando como um arauto de sua contingência. O que se vê hoje, contudo, é a primazia de superestruturas teóricas (psicanálise, multiculturalismo, neofeminismo) que atuam como verdadeiras chaves interpretativas sobre a literatura. 129 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 Em outras palavras, a literatura perde sua ipseidade e torna-se apenas o campo experimental de sistemas conceituais que não levam em conta a singularidade e a gênese única de cada obra literária. Cada objeto literário que vem à tona transforma e amplia o conceito atual de literatura de fato, os chamados gêneros literários são posteriores às obras tomadas em sua individualidade e concretude13. Sendo assim, a mais profunda verdade sobre a formação de cânone secular é que não é feita nem por críticos nem por acadêmicos, e muito menos por políticos. Os próprios escritores, artistas, compositores determinam cânones, fazendo a ponte entre fortes precursores e fortes sucessores (BLOOM, 2010, p. 673). Em suma, não seria exagerado propor que o cânone está sendo constante reformulado não necessariamente por instituições ou ideologias, mas sim por indivíduos concretos que, acuados pela perspectiva de sua finitude, resignadamente aceitam o axioma infalível da morte e, tomando-o como certeza inquestionável, tentam relativizar através de suas obras a certeza quase infalível de virem a naufragar no esquecimento. Referências AGOSTINHO. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos; Ambrósio de Pina. São Paulo: Nova Cultural, 2000. AUDEN, W. Hugh. The poet and the city. In: SCULLY, James (Org.). Modern poetics. New York: McGraw Hill, 1965. p. 175-184. BOSI, Alfredo. O ser o tempo da poesia. 8. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BLOOM, Harold. O cânone ocidental: os livros e a escola do tempo. Trad. Marcos Santarrita. 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Portanto, romance: simplesmente se não é possível catalogar um perguntará se a obra candidata à identidade romanesca têm traços comuns suficientes com outros textos já considerados São os textos efetivamente publicados que determinam nossa ideia do romance, e não o contrário 130 REVELL Revista de Estudos Literários da UEMS ANO 4, v.2, Número 7 TEMÁTICO ISSN: 2179-4456 Dezembro de 2013 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas literaturas. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. POUND, Ezra. ABC da literatura. Trad. Augusto de Campos e José Paulo Paes. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1997. ________. Literary essays of Ezra Pound. 11. ed. New York: New Directions Publishing Co., 1981. SANTOS, Joel Rufino dos. Quem ama literatura não estuda literatura. Rio de Janeiro: Rocco, 2008. 131