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ANAIS CBCS 2021 | 4 a 7 de outubro de 2021 | Centro Universitário Santo Agostinho - Teresina – PI | www.unifsa.com.br/cbcs2021/ Processo transexualizador no Piauí: impasses e desafios na Implantação do Ambulatório Trans Makelly Castro1 Ana Kelma Cunha Gallas2 Olívia Cristina Perez3 RESUMO Este trabalho investiga o processo de implantação do Ambulatório Trans Makelly Castro, conduzido pela Secretaria de Saúde (Sesapi) como um dos desdobramentos da Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - PNSI LGBT (Portaria nº 2.836/2011). Trata-se de uma abordagem qualitativa, contemplando o método de estudo de caso, sendo a coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas com: a) grupos ou organizações LGBTQI+ que reivindicam o processo transexualizador no Piauí; b) gestores institucionais que atuam, direta e indiretamente, na constituição do Ambulatório Trans Makelly Castro. Como as políticas sociais se situam no interior de um tipo particular de Estado, aponta-se para a necessidade de entender como o arcabouço político e ideológico assumido pelo Governo do Estado do Piauí influencia na escolha de determinadas políticas públicas em detrimento de outras. Palavras – chave: Políticas Públicas. Saúde. PNSI LGBT. Pessoas Trans. INTRODUÇÃO O atendimento especializado a sujeitos que vivem “o gênero fora do binarismo” como são as travestis, os transexuais e os transgêneros” (SIQUEIRA, 2017), efetiva o reconhecimento dos direitos sociais e políticos de grupos identitários que são os mais vulneráveis e interseccionais entre os LGBTQI+4. Entre os demais fatores, a desestabilização provocada pela performance de gênero de sujeitos, cuja identidade não-heterossexual é constantemente associada a um conjunto de estereótipos 1 Trabalho apresentado no 2º Congresso Brasileiro Ciência e Sociedade (CBCS 2021), promovido pelo Centro Universitário Santo Agostinho, de 04 a 07 de outubro de 2021, em Teresina-PI. 2 Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas na Universidade Federal do Piauí (PPP/UFPI); Professora do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. 3 Doutora em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP), mestre em Sociologia, também pela Universidade de São Paulo e especialista em Tecnologias, Formação de Professores e Sociedade (Unifei). Cursou o bacharelado e licenciatura plena em Ciências Sociais na Universidade Estadual Paulista (FCLAr/UNESP). Professora Adjunta no curso de Ciência Política da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Acrônimo das identidades sexuais e de gênero de parte significativa da população: Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Queers e Intersexuais (e todas as demais identidades simbolizadas pelo +). 4 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 negativos, tornam as pessoas trans, e de forma específica, as travestis, vítimas preferenciais de violência LGBTfóbica (CARRARA; VIANNA, 2006). Corroborando com o pressuposto de que “a transformação do corpo pode se constituir em determinante social à saúde da população trans” (ROCON, et al., 2019, p.1), o ambulatório trans atende a uma das principais demandas desse grupo identitário no Piauí. O espaço foi inaugurado em janeiro de 2020, no Hospital Getúlio Vargas (HGV), que é referência na rede do SUS no atendimento de casos de média e alta complexidade. O espaço, uma sala de pouco mais de cinco metros, foi significativamente batizado com o nome de Makelly Castro, uma mulher trans assassinada em 2014, em Teresina. Entendendo que as políticas sociais se situam no interior de um tipo particular de Estado (HOFLING, 2001), e assumem diferentes configurações a depender das dinâmicas da sociedade na qual estejam inseridas, pretende-se, neste trabalho, analisar as variáveis de natureza estrutural e institucional (ARRETCHE, 1999) que contribuem para a oferta de serviços de saúde às minorias sexuais e de gênero no Piauí. Uma vez que as dificuldades e recuos na implementação da política de saúde integral para esses grupos identitários parecem depender, em muitos casos, diretamente da configuração ideológica dos governos e dos representantes que estão em cargos públicos (FEITOSA, 2017), aponta-se para a necessidade de entender como o arcabouço político e ideológico assumido pelo Governo do Estado do Piauí influencia na escolha de determinadas políticas públicas em detrimento de outras. Ao se caracterizar como um sistema dinâmico, complexo e interativo (FURTADO; SAKOWSKI; TÓVOLLI, 2015), as políticas públicas tentam responder aos problemas entendidos como relevantes na esfera pública. É o “Estado em Ação” implantando “um projeto de governo, através de programas, de ações voltadas para setores específicos da sociedade” (HOFLING, 2001, p. 31), exigindo uma análise dessas relações para além das dicotomias tradicionais da ciência política (clientelismo vs. universalismo), que ofereçam uma nova perspectiva analítica não dualista (BORGES, 2010). Para desenvolver essa investigação adotou-se a abordagem qualitativa, considerando que esta é a mais adequada para analisarmos os “produtos das interpretações que os humanos fazem a respeito de como vivem, constroem seus artefatos e a si mesmos, sentem e pensam” (MINAYO, 2014, p. 57). Optou-se pela 2 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 técnica da entrevista semiestruturada, com uma estrutura flexível e questões abertas definidas a partir da área temática a ser explorada, contemplando as seguintes categorias de informantes: a) grupos ou organizações LGBTQI+ que reivindicam o processo transexualizador no Piauí; b) gestores institucionais que atuam, direta e indiretamente, na constituição do Ambulatório Trans “Makelly Castro”. Em vista da temática, os participantes foram selecionados pela metodologia bola de neve, “forma de amostra não probabilística, que utiliza cadeias de referência” (VINUTO, 2014, p. 203) e de “grande utilidade no processo de seleção dos sujeitos” (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 2000, p.163). Escolheu-se a entrevista por sua natureza interativa, permitindo "tratar de temas complexos que dificilmente poderiam ser investigados adequadamente através de questionários, explorando-os em profundidade" (ALVES-MAZZOTTI; GEWANDSZNAJDER, 2000, p.168). Os dados obtidos na fase de entrevistas foram analisados e confrontados com as informações de outros informantes, sobre os mesmos temas, contribuindo para definir os contornos da pesquisa. O encerramento da coleta ocorreu ao se alcançar um “ponto de redundância”, a partir do qual novos dados foram ficando vez mais raros (LINCOLN; GUBA, 1985), verificando-se, assim, uma saturação teórica, quando as novas entrevistas não apresentavam mais elementos substancialmente novos (FONTANELLA; et al, 2011). Por meio da análise crítica dos materiais, objetivou-se reconhecer as dicotomias, as interrelações e as contradições presentes no processo de implantação do ambulatório Makelly Castro, bem como, verificar as continuidades e descontinuidades na formulação de políticas de saúde voltadas, especialmente, às pessoas trans no Piauí. PANORAMA DO PROCESSO TRANSEXUALIZADOR PELO SUS No Brasil, conforme a Portaria Nº 457/2008, o processo de credenciamento da Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador é descentralizado, podendo ser de inteira responsabilidade da gestão municipal ou estadual, como ocorre no Piauí. A Atenção Especializada é um dos requisitos do Processo Transexualizador e só pode ser realizada por um estabelecimento de saúde cadastrado no Sistema de Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde (SCNES). O Piauí, embora ofereça 3 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 alguns serviços da Atenção Especializada à população LGBTQI+, não possui hospitais habilitados para a oferta do processo transexualizador pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Desde a Portaria Nº 2.803/2013, que redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador no SUS, o número de estabelecimentos habilitados em Unidade de Atenção Especializada no Processo Transexualizador pouco se alterou, constando ainda, praticamente os mesmos estabelecimentos que existiam em 2011, quando foi instituída a Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT (PNSI-LGBT), por meio da Portaria nº 2.836/2011. Até abril de 2021, conforme dados do Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde (DATASUS), apenas cinco estados brasileiros (Pernambuco, Rio de Janeiro, São Paulo, Rio Grande do Sul e Goiás) possuíam hospitais credenciados para cirurgias de redesignação sexual do sexo feminino e masculino. Entre os estabelecimentos credenciados, a grande maioria é de hospitais universitários, como o Hospital de Clínicas de Porto Alegre (Universidade Federal do Rio Grande do Sul/Porto Alegre RS); O HUPE (Hospital Universitário Pedro Ernesto), vinculado à Universidade Estadual do Rio de Janeiro – UERJ; o Hospital de Clínicas da Faculdade de Medicina/FMUSP, vinculado à Fundação Faculdade de Medicina – MECMPAS, de São Paulo (SP); e o Hospital das Clinicas, vinculado à Universidade Federal de Goiás/Goiânia (GO). A exiguidade da oferta de estabelecimentos de saúde habilitados no SUS refletese diretamente no número de procedimentos transexualizadores realizados no Brasil entre 2010 e 2021. Nesse período, foram realizados apenas 518 procedimentos hospitalares de redesignação sexual no SUS, sendo a maior parte (64,1%) realizados no sudeste do país: 28,19%, no Rio Grande do Sul; 23,55%, em São Paulo; 12,36%, no Rio de Janeiro (tabela 1). Estes estados foram os primeiros a realizar procedimentos transexualizadores no âmbito do SUS, na perspectiva definida pelo PNSI LGBT. TABELA 1 - Procedimentos hospitalares de redesignação sexual no SUS no Brasil segundo unidade da federação, 2010 a 2021. Região Pernambuco Rio de Janeiro São Paulo Rio Grande do Sul N 80 64 122 146 % 15,44 12,36 23,55 28,19 4 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 Goiás 106 20,46 Total 518 100,00 Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) Dados do SIH/SUS, do Ministério da Saúde, evidenciam como as “demandas de pessoas que reivindicam o pertencimento a um gênero distinto daquele que lhe foi imposto" (BENTO, 2008, p.12) são atravessadas por desafios orçamentários, uma vez que a exiguidade de recursos financeiros destinados aos procedimentos transexualizadores incidem diretamente na efetividade do cumprimento do Plano Operativo da PNSI LGBT. Conforme esse plano, caberia ao Ministério da Saúde, no âmbito federal, monitorar e estabelecer diretrizes gerais para que o Plano Nacional de Saúde Integral LGBT fosse concretizado, enquanto as secretarias estaduais e municipais de saúde teriam a responsabilidade de concretizar as diretrizes do atendimento especializado para pessoas LGBTI+ (BRASIL, 2011), exigindo uma dotação de recursos adequados para atender a essa finalidade5. Assim, as pactuações orçamentárias entre a Secretaria de Saúde e as Unidades responsáveis pela oferta do serviço acabam por determinar o número de procedimentos possíveis e quais os insumos são disponibilizados à população usuária, o que podem ser insuficientes (ROCON; et al, 2019). Entre 2010 e 2020, o Ministério da Saúde, conforme o SIH/SUS, dispendeu o valor de R$ 559.466,83 pelos 518 procedimentos transexualizadores. Além de a exiguidade de recursos provocar uma extrema seletividade de acesso ao Processo Transexualizador, é, também, contrária à proposta da universalidade e equidade no SUS, podendo ser encarada como “uma contradição inerente à regulamentação das vidas trans pelo Estado” (ROCON; SODRÉ; RODRIGUES, 2016, p. 268). Significativamente, no Brasil, as unidades habilitadas para a oferta do processo transexualizador do SUS concentram-se em 3 dos 4 estados da Região Sudeste, financeiramente mais próspero, responsável por 55% do Produto Interno Bruto (PIB) do país. Já a região Norte, que possui o segundo menor IDH (0,683) do país, não possui nenhum estabelecimento de saúde credenciado para o atendimento das demandas de saúde da população LGBTQI+. Da totalidade dos 518 procedimentos hospitalares de redesignação sexual no SUS no Brasil, entre 2010 e 2021, 39,58% foram de redesignação sexual no sexo masculino, ou seja, cirurgias de genitoplastia feminizante e de aplicação de próteses mamárias, e, em menor parte, devido à sua maior 5 De acordo com a Lei 8.080/90, a União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios deverão no que concerne à saúde, pautar-se pelos seus planos de saúde para a elaboração das respectivas propostas orçamentárias anuais. Assim as ações previstas nos Planos de Saúde devem constituir a base sobre a qual será feita a proposta orçamentária para a área da saúde (BRASIL, 2003, p.84) 5 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 complexidade, as de redesignação sexual no sexo feminino (0,97%), cirurgias de genitoplastia masculinizante, como a mastectomia e a histerectomia. Gráfico 1 - Procedimentos hospitalares de redesignação sexual no SUS no Brasil conforme tipo de procedimento, 2010 a 2021. Redesignação sexual no sexo feminino 5 Redesignação sexual no sexo masculino 205 Cirurgias complementares de Redesignação Sexual 118 Redesignação sexual 2º tempo 148 Redesignação sexual 1º tempo 42 0 50 100 150 200 250 Fonte: Ministério da Saúde - Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS) Os procedimentos de vaginectomia e neofaloplastia, com implante de próteses penianas e testiculares, e de clitoroplastia e cirurgia de cordas vocais, em pacientes em readequação para o fenótipo masculino, são feitos pelo SUS em caráter experimental, nos termos da Resolução nº 1.955/2010, do Conselho Federal de Medicina (CFM), que dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo. Pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o acesso aos procedimentos cirúrgicos é regulado por meio da Central Nacional de Regulação de Alta Complexidade (CNRAC), sendo os procedimentos cirúrgicos destinados a pacientes maiores de 21 anos, e com acompanhamento prévio de 2 anos pela equipe multiprofissional que acompanha o(a) usuário(a) no Serviço de Atenção Especializada no Processo Transexualizador. Como lembram Fleury e Ouverney (2008), quando se desenvolvem políticas de saúde, conforme avaliam é importante definir as decisões, as estratégias, os instrumentos e as ações (programas e projetos) que possibilitarão o cumprimento das metas estabelecidas. Assim, “o volume de recursos disponíveis, a origem deles, os indicadores que serão utilizados para avaliar sua execução e outros de natureza mais prática” (FLEURY; OUVERNEY, 2008, p.21). 6 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 AMBULATÓRIO TRANS MAKELLY CASTRO No Piauí, tensionamentos, impasses e recuos, especialmente, de ordem orçamentária, marcaram diretamente o processo de instalação do Ambulatório Trans Makelly Castro, que pode ser situado em duas etapas bem demarcadas: a primeira etapa, iniciada em 2015, com a elaboração do primeiro projeto, sob impulso das reivindicações dos movimentos sociais LGBTQI+, e a segunda etapa, a partir de 2019, quando o projeto foi judicializado pelo Ministério Público, após denúncia do Grupo Piauiense de Travestis e Transexuais (GPTRANS) e a Associação Transmasculina do Piauí (AFRAMS). Entre as duas etapas, seguiu-se um momento de intensa articulação, especialmente centrada na formação de uma equipe multiprofissional que exerceria as atividades junto aos grupos de transgêneros masculinos e femininos, e travestis. Apesar dos impasses, a equipe foi escolhida e por volta de 2017, ocorreram as primeiras capacitações com especialistas de centros de referências de São Paulo, da Paraíba e do Rio Grande do Sul, resultado da parceria entre o movimento LGBTQI+ (Grupo Matizes), Conselho Regional de Medicina (CRM), SESAPI e Ministério da Saúde. A equipe foi treinada, mas não designada para o ambulatório trans, o que acabou frustrando as expectativas dos movimentos sociais envolvidos: Quando passou todo esse processo, teve a cobrança (dos movimentos), teve a denúncia, e a gente indo atrás, mas sentia a dificuldade. A gente solicitou a cessão de um médico endocrinologista da Fundação Municipal de Saúde, mas não conseguimos êxito porque a gestão do município, naquele momento, não queria liberar o profissional. E como contratar esse profissional? Não tinha recurso pra isso. (...). Uma coisa interessante a observar é que o Matizes fez todo esse trabalho pra treinar os médicos e depois esses profissionais não foram aproveitados. E aí, dois anos atrás, acho que foi em 2018 ou 2019, não recordo agora, o próprio HGV tomou a iniciativa de fazer isso. Então, eu fiquei até admirado: “olha, que interessante”. A gestão aqui, da SESAPI, ficou meio parada nesse movimento todo. E aí, de repente, a demanda já veio lá do serviço (Nelson Muniz, técnico da Secretaria de Saúde do Piauí, e um dos autores do projeto do ambulatório trans Makelly Castro, entrevista gravada e autorizada, 2021). Conforme discute Fleury e Ouverney (2018), a fixação de critérios valorativos de distribuição de recursos financeiros coletivos acompanham gastos públicos com saúde. “Os valores sociais são empregados e reforçados sempre que Política de Saúde houver necessidade de se optar por investir em uma política setorial em detrimento de outra” (FLEURY; OUVERNEY, 2008, p. 38-39). Mas, além dos entraves orçamentários 7 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 alegados, o processo de implantação do ambulatório trans emperrou em 2018, sobretudo em decorrência de mudanças do quadro da gestão estadual da saúde, na mudança de governo do estado. À época do primeiro projeto do ambulatório, houve mais ou menos assim, uma seleção dos profissionais pela população que iria utilizar o serviço. E esses profissionais, inclusive, passaram por processo de qualificação. Eles estavam super alinhados com a população, porém, por alguns motivos, né, de gestão, de mudança de gestão, principalmente da fundação hospitalar, porque na época, o HGV pertencia à gerência da Secretaria de Estado, e com a criação da Fundação Hospitalar, mudaram os atores, né? E aquele processo todo de implantação que a gente idealizou, trabalhou durante um bom tempo, junto com a população, acabou se perdendo (Luciana Sena Sousa, gerente de atenção à saúde da SESAPI, entrevista gravada e autorizada, 2021). Em 2019, o Grupo Piauiense de Travestis e Transexuais (GPTRANS) manteve as tentativas de se articular com os gestores da saúde, especialmente quando ocorreu a reforma administrativa na saúde, empreendida pelo Governador Wellington Dias (PT) naquele ano: A gente sentou, formou essa comissão, né, pra poder desenhar o projeto do ambulatório, onde tinha pessoas da área técnica da SESAPI pra poder fazer isso, e teve algumas visitas institucionais em ambulatórios desse tipo que já existiam na Paraíba e São Paulo. Foi uma pessoa da equipe da Equidade para fazer esse trabalho, realmente, in loco. Então, a gente fez todo o projeto, né? Só que a gente esbarrou em alguns... alguns gestores que não tinham, digamos assim, boa vontade... e essas coisas. A gente esbarrou em algumas pessoas que vinham sempre com um lado pessimista: “como é que a gente vai fazer isso?”, não sei o que... Então, levamos cinco anos para a implantação do ambulatório. E só foi possível quando teve uma ruptura na saúde, digamos assim: uma parte da saúde, ficou a Fundação Hospitalar, e a outra, com a SESAPI (...). A gente meio que achou: “ah, então, agora a gente vai conseguir andar, porque mudou alguns gestores, né?”. A gente tentou mais uma vez, junto com a Fundação Hospitalar, e na época, tentamos articular uma reunião com a equipe que já estava trabalhando, essa que tinha chegado com a nova gestão. Mas ainda não conseguimos. E só fomos conseguir no finalzinho de 2019, quando já era outra gestão, porque o governo, que entrou em 2014 encerrou em 2018, e embora continuasse sendo o governador Wellington Dias, sempre tem essa dança das cadeiras, né? Com a reforma administrativa em 2019, a nova gestão desse governo a gente conseguiu dialogar mais sobre isso, né? (Maria Laura Reis, uma das lideranças do GPTRANS, que atua, desde 2010, como secretária executiva do Centro de Referência LGBT Raimundo Pereira, órgão ligado à SASC). Em 2019, o Grupo Piauiense de Travestis e Transexuais (GPTRANS) e a Associação Transmasculina do Piauí (AFRAMS) entraram com uma ação no Ministério Público do Piauí, que, dotado de um arcabouço jurídico-normativo de proteção e defesa 8 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 dos direitos fundamentais, especialmente, de grupos mais vulneráveis, frequentemente, se utiliza de estratégias judiciais (judicialização) e extrajudiciais (juridicização) para fazer valer esses direitos. Embora esses recursos possam ser admitidos como um “elemento importante na tomada de decisão dos gestores” (VENTURA, et al., 2010, p.77), vem sempre acompanhados de controvérsias. Não raro, o sistema de justiça – Poder Judiciário, Defensoria Pública, Ministério Público e advogados – demonstra desconhecimento quanto aos regulamentos da saúde pública (VENTURA, et al., 2010; GOMES et al., 2014), provocando um debate sobre a interferência autoritária do judiciário sobre o SUS. Por outro lado, considerando as necessidades emergentes de acesso aos procedimentos de média e alta complexidade, Fleury (2012), defende que a judicialização pode ser uma aliada do SUS, por sinalizar as deficiências e estimular novas ações e serviços de saúde, enquanto Sant'Ana (2018, p. 195) argumenta que a judicialização pode ser um “instrumento de estruturação do SUS, especialmente na correção de falhas e injustiças no acesso à saúde pelos cidadãos de baixa renda”. Na judicialização que deu origem ao ambulatório trans no Piauí, o Ministério Público intimou a SESAPI para, no prazo de 7 dias, remeter à 49ª Promotoria de Justiça (PJ) toda a documentação referente ao Projeto e ações do Ambulatório de Saúde Integral para a População de Travestis e Transexuais do Piauí. Foi firmado, ainda, um compromisso entre a SESAPI e a FEPISERH para a implantação do ambulatório trans no prazo de 60 (sessenta) dias. Nessa segunda e última audiência pública sobre essa implantação, em setembro de 2019, estavam presentes, além da PJ, da 12ª Defensoria Pública do Estado do Piauí e Defensoria Pública do Estado do Piauí, representantes da SESAPI, do Hospital Getúlio Vargas (HGV); da Fundação Estatal Piauiense de Serviços Hospitalares (FEPISERH); e da Fundação Municipal de Saúde (FMS); Saúde do Estado do Piauí (SESAPI) e da Secretaria de Estado da Assistência Social e Cidadania (SASC), além de universidades, Conselhos Regionais (Psicologia e Serviço Social), e entidades do movimento social LGBTQI. Objeto de judicialização, a implantação do Ambulatório Trans Makelly Castro se fez acompanhar de diversos desafios, obstáculos e impasses, como: a) ausência de unidades habilitadas para a oferta do processo transexualizador no âmbito SUS no estado do Piauí; b) ausência de diretrizes de assistência ao usuário(a) com demanda para realização do Processo Transexualizador no SUS; c) falha no atendimento à 9 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 integralidade da atenção a transexuais e travestis, não se restringindo à meta terapêutica às cirurgias de transgenitalização e demais intervenções somáticas; d) (in)existência, capacitação e atuação das equipes de saúde interdisciplinares e multiprofissionais nas ações e serviços em atendimento aos procedimentos transexualizadores no Piauí. Discutir esses entraves são particularmente importantes para entender o processo de formulação e de implementação de políticas públicas voltadas para minorias sexuais e de gênero, especialmente, quando sua implantação resulta de processos de judicialização. Apontam-se, como consequências, a oferta de serviços apenas pela modalidade ambulatorial. Sem dotação orçamentária, a oferta de serviços de saúde a população trans e travesti é bastante reduzida, incidindo, ainda, sobre os custos da medicalização. Conforme estimativa da SESAPI, cerca de 80 usuários estão em atendimento desde a inauguração do ambulatório trans, em janeiro de 2020. A maior parte é beneficiada com a hormonioterapia. Mas, como os medicamentos relacionados ao processo transexualizador não estão previstos na RENAME, a Rede Nacional de Medicamentos, a sua aquisição desses medicamente é assumida pelo próprio usuário. Como a implantação do ambulatório trans ocorreu no início da pandemia da Covid-19, foi garantida, apenas, a infraestrutura mínima para o funcionamento do serviço, mas sem ser acompanhadas de ações para a qualificação dos/as profissionais contratados/as, para atuar no serviço, bem como, diminuir as práticas estigmatizantes que persistem no interior das instituições de saúde. CONSIDERAÇÕES FINAIS Embora a implantação do ambulatório trans Makely Castro seja considerada uma conquista que contribui para diminuir as desigualdades de acesso à saúde por parte da população LGBTQI+, a falta de implementação, nesse serviço, das dimensões previstas pela PNSI LGBT demonstra a sua fatuidade. Resultado de uma judicialização, o ambulatório trans funciona, até o momento desta pesquisa, sem definições técnicas básicas, como um faturamento específico para o serviço, o que revela muito sobre o seu caráter provisório. O próprio Hospital Getúlio Vargas (HGV), onde o ambulatório 10 https://proceedings.science/p/137883 ISBN: 978-65-89463-20-7 DOI: 10.17648/cbcs-2021-137883 trans Makelly Castro está instalado, ainda não está oficialmente credenciado junto ao Ministério da Saúde para oferta do processo transexualizador. Apesar de possuir pessoas trans em secretarias estratégicas, como a SASC, o pressuposto de que o arcabouço político e ideológico assumido pelo Governo de Wellington Dias (PT), possa ser determinante para a escolha de políticas públicas voltadas para estes grupos, precisa ser melhor investigado. Na prática, o ambulatório trans foi instalado, mas não foi acompanhado de outras dimensões importantes previstos na PNSI LGBT no âmbito da saúde, significando uma evidente desconexão entre os objetivos e propósitos definidos pelo próprio projeto. REFERÊNCIAS ALVES-MAZZOTTI, Alda Judith. GEWANDSZNAJDER, Fernando. O método nas ciências naturais e sociais: pesquisa quantitativa e qualitativa. 2.ed. 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