I CHING
A essência das Transmutações
Marcelo Bolshaw Gomes
No início, era o Tao. Uno, indivisível, absoluto e eterno; o Tao é o número 1.
Então, veio a Terra. Receptiva, magnética e aberta à vida; a Terra é o número 2.
Em seguida, surgiu o Céu e a luz das estrelas. Criativo, o Céu é o número 3.
E com base nesses números, os antigos calcularam o valor de todas as coisas. Contemplaram as mutações na escuridão e na luz e de acordo com elas estabeleceram os hexagramas. Provocaram movimentos no firme e no maleável, dando origem, assim, às diferentes linhas. Colocaram-se em harmonia com o Tao e a Vida estabelecendo, de acordo com isso, a ordem do que é correto. Refletindo sobre a ordem do mundo externo até as últimas consequências e explorando a lei de sua própria natureza interna em seu núcleo mais profundo chegaram à compreensão do destino. Shuo Kua (2006, p. 203)
História
O I Ching, o livro das mutações, é resultante da reflexão taoísta sobre as mudanças da natureza. Como sistema complexo de relações, ele é um sistema de representação de ‘momentos energéticos’, baseados na combinação da energia masculina (yang) com a energia feminina (yin). Mais do que um simples oráculo, o I Ching é um livro de sabedoria e está presente em toda cultura chinesa: na arquitetura tradicional (Feng Shui), nas artes marciais (Tai Chi Chuan e Kung Fu) e na medicina (acupuntura, Shiatzu, Do in) taoísta.
Ele é formado por 64 hexagramas, diagramas de seis linhas combinadas, que podem ser yin ou yang. Cada hexagrama possui três tipos de texto: a Imagem, o Julgamento e as linhas. No caso de uma consulta ao oráculo, o consulente joga (através de moedas ou varetas) e chega a um determinado hexagrama, representando a resposta do livro à questão indagada. No texto da imagem, o consulente lerá a situação em que se encontra diante da natureza; no texto do julgamento, receberá conselhos de como agir em relação à situação; e no texto das linhas, verá detalhada todas às mutações do ciclo que o hexagrama representa.
Mas, esse formato é recente. O I Ching é um sistema de três mil anos, composto por várias camadas sobrepostas ao longo do tempo. O I Ching surgiu na pré-história chinesa como um conjunto de oito Kua, figuras formadas por três (oito trigramas) e seis linhas sobrepostas (os 64 hexagramas).
A origem dos 64 hexagramas (o texto da Imagem) é atribuída a Fu Hsi, o criador mítico chinês. O tempo obscureceu a compreensão das linhas, e no começo da dinastia Chou (1150-249 a.C.) surgiram dois textos anexados: o Julgamento, atribuído pela tradição ao rei Wên (em suas meditações quando estava preso), e as Linhas, atribuídas a seu filho, o duque de Chou, ambos fundadores desta dinastia.
Mais tarde, quando o significado taoísta desses textos também começou a ficar obscuro, foram acrescentadas as Dez Asas (2006, p. 154-283), atribuídas a Confúcio e a Mêncio, no século VI a.C. O taoísmo e o confucionismo são formas bastante diferentes de pensar. O taoísmo é mais holístico, ligado à natureza e está ancorado na teoria dos cinco elementos (água, metal, madeira, ar e fogo); enquanto o confucionismo é mais voltado para ética de conduta em sociedade e para arte de governar. O livro escapou ainda da grande queima de livros feita pelo tirano Ch'in Shih Huang Ti. Nessa época, o I Ching era considerado um livro de magia e adivinhação, e a doutrina dualista do yin-yang foi sobreposta ao esquema dos cinco elementos mutantes e à visão holística do taoísmo.
Há duas grandes traduções do I Ching para o ocidente: a do filólogo James Legge, a tradução comentada do chinês para o inglês (1882), que ressalta o aspecto histórico e científico, mas acaba reproduzindo interpretações mais recentes do texto (o confucionismo e o dualismo entre yin e yang); e a tradução do místico taoísta, Richard Wilhelm, do chinês para o alemão (1923), com a supervisão do mestre, Lao Nai Suan, que morreu na noite seguinte a ser concluída a tradução.
Elementos e estrutura
O Criativo conhece através do fácil. O receptivo é capaz de agir através do simples. Aquilo que é fácil; é fácil de conhecer. Aquilo que é simples; é simples de seguir. Aquele que é fácil de conhecer; conquistará lealdade. Aquele que é simples de seguir; conseguirá trabalho. Através do fácil e do simples pode-se aprender as leis do mundo inteiro. Na compreensão das leis de todo o mundo; está a perfeição. Tachuan – o grande comentário (2006, p. 217)
O Criativo é dinâmico. Através do movimento ele consegue com facilidade unir o que está dividido. Ele, portanto, está livre do esforço, pois atua sobre o infinitesimal, orientando o movimento a partir desse estado mínimo.
O Receptivo é estático. Através do repouso o mais simples torna-se possível no âmbito do espaço. Essa simplicidade que surge da pura receptividade torna-se o germe de toda multiplicidade existente no espaço.
O Criativo é o Céu, e por isso é chamado o pai. O Receptivo é a Terra e por isso é chamada a mãe. Na união entre a Terra e o Céu, nasceram seis filhos: três homens (o Incitar ou o Trovão; o Abismal ou a Água; e a Quietude ou a Montanha) e três mulheres (a Suavidade ou o Vento; o Aderir ou o Fogo; e a Alegria ou o Lago).
O Criativo é forte. O Receptivo é maleável. O Incitar significa movimento. A Suavidade é penetrante. O Abismal é perigoso. O Aderir significa dependência. A Quietude significa imobilidade. A Alegria significa contentamento.
O Criativo manifesta-se na cabeça; o Receptivo, no ventre; o Incitar, no pé; a Suavidade, nas coxas; o Abismal, no ouvido; o Aderir (o resplendor), no olho; a Quietude, na mão; a Alegria, na boca. Shuo Kua (2006, p. 210)
Imaginemos uma relação sexual. No primeiro momento, a energia yang ocupa o centro motor, enquanto os centros emocional e mental permanecem receptivos – isto é o Incitar. Por isso, o trigrama é representado por uma linha inteira em baixo e duas cortadas no meio e acima. Em um segundo momento, a energia yang sob para o centro emocional, há algum descontrole – isto é o Abismal. Chega-se ao momento do orgasmo e a energia yang sob para cabeça gerando a Quietude, a ausência de pensamentos.
Começa, então, um ciclo receptivo, com a Suavidade, quando a energia yin invade o centro motor, enquanto os centros superiores ficam ativos. Em um segundo momento, a energia yin sobre para o centro emocional, no Aderir, quando há sensação de ‘derretimento’. E o ciclo se encerra, com a Alegria, com a satisfação provocada pela energia yin chegar ao centro mental, enquanto os centros abaixo permanecem yang.
Ao se praticar Tai Chi Chuan, algo semelhante acontece: a cada expiração a energia yang deve ascender do centro motor ao mental; e a cada inspiração é a energia yin deve subir, passando pelos três momentos.
A esse arranjo dos trigramas em pares de filhos/filhas chama-se Sequência do Céu Anterior ou Sequência Primordial. Esse arranjo remonta a Fu Hsi. Isso significa que essa ordenação já existia na época da compilação do Livro das Mutações, durante a dinastia Chou. Nesse arranjo, o Criativo se localiza no sul (representado do lado de cima) e o Receptivo no norte (representado no lado de baixo), correspondendo ao verão e ao inverno, respectivamente.
O firme e o maleável sucedem-se uns aos outros no interior dos oito trigramas. Assim, o firme torna-se maleável; o maleável endurece, tornando-se firme. Desta forma os oito trigramas se convertem uns nos outros numa sequência, e a alternância periódica dos fenômenos se processa.
Há duas direções de movimento: a progressiva, crescente, no sentido horário; e a retroativa, decrescente, no sentido anti horário. A primeira parte do ponto mais profundo, o Receptivo, terra do passado para o presente; a segunda parte do ponto culminante, o Criativo, céu, do futuro para o presente. Por exemplo: observando que uma semente do passado se tornou árvore no presente (movimento progressivo), podemos prever (regressivamente) que uma semente semelhante no presente se tornará uma árvore semelhante do futuro.
Além disso, os trigramas em pares simétricos (terra/céu, trovão/vento, água/fogo e montanha/lago) se completam e se anulam, garantindo assim a ordem do cosmo, acima de suas mutações e do acaso.
Céu e Terra determinam a direção. Montanha e Lago unem suas forças. Trovão e Vento estimulam-se um ao outro. Água e Fogo não se combatem. Assim, os oito trigramas se interligam. Shuo Kua (2006, p. 205)
O ciclo anual
Há também o arranjo de trigramas conhecido como a Sequência do Céu Posterior ou Ordem Interna do Mundo – atribuído ao rei Wen e a dinastia Chou. Nele, a distribuição dos trigramas se dá conforme as estações do ano e há uma nova correspondência com os pontos cardeais.
Os trigramas são retirados de seu agrupamento em pares de opostos e apresentados segundo a sequência temporal em que se manifestam no plano fenomênico durante os ciclos anual e diário.
Também se estabelecem correlações novas entre os pontos cardeais e os trigramas. Agora o polo sul será o Aderir (fogo); e o norte, o Abismal (água).
Todos os seres surgem no Incitar, que se encontra a leste. Eles chegam à plenitude na Suavidade, que se encontra a sudeste. O Aderir é a luminosidade, na qual os seres percebem-se uns aos outros, e está no sul. O Receptivo significa cuidado, quando os seres se ajudam uns aos outros, e está a sudoeste. A Alegria é o outono, que proporciona contentamento a todos os seres, e está a oeste. Ele luta no Criativo, quando o obscuro e o luminoso incitam-se um ao outro, e está no noroeste. O Abismal significa o esforço a que todos os seres estão sujeitos, e está no norte. A Quietude, onde se consuma o começo e o fim de todos os seres, está no nordeste. Shuo Kua (2006, p. 213)
O conceito de mutação
Mutação significa uma mudança de um estado para outro: de um trigrama para outro ou de um hexagrama para outro. O Livro das Mutações faz uma distinção entre três diferentes tipos de fenômenos: o tao imutável, a mutação cíclica e a mutação não recorrente.
Toda mutação supõe um ponto de referência. O Tao imutável é espaço permanente que torna possível a mutação. Ele estabelece um sistema de correspondências que interliga todas as coisas. O mundo é um sistema de referências integradas, um cosmos, não um caos; graças à ideia do Tao imutável.
A mutação cíclica consiste numa rotação de fenômenos que se sucedem uns aos outros, até que se chega de volta ao ponto de partida. A mutação cíclica é a mudança periódica que se produz na vida orgânica, enquanto que a mutação não recorrente é um movimento que nunca retorna a seu ponto de partida. É uma mudança irreversível, representada pela passagem de um estado para outro fora das sequencias previstas. Ou, como definem os tradutores da versão brasileira: “é uma mudança determinada por uma causalidade mecânica” – desconectada das sequências dos ciclos e do condicionamento simultâneo que as forças da natureza exercem sobre si e sobre o todo universo.
O uso oracular do I Ching
Como oráculo, o I Ching tem algumas diferenças com outros métodos. O Tarô, por exemplo, é formado por imagens iconográficas do inconsciente e é interpretado por outra pessoa. Os hexagramas não são ‘imagens do inconsciente’, mas diagramas que representam ideias sobre as transições e mudanças da natureza que governam nossas vidas. E, o mais importante no livro das mutações, é o próprio consulente que interpreta o oráculo, a partir dos textos e de sua imaginação.
O I Ching nunca falha; quem pode falhar é o consulente! Se a pergunta não foi clara e precisa, se a pessoa não tem clareza sobre o que deseja saber, então não entende a resposta. Há pessoas que, para focar a atenção na consulta, rezam ou fazem rituais antes de jogar. Assim, o livro das mutações, mesmo em seu uso oracular, é uma forma de meditação sobre as mutações da natureza, sobre si mesmo e sobre os contextos social e espiritual, em que se está inserida. O I Ching, abrangendo o significado essencial das diferentes situações da vida, dá ao homem condições de construir para si uma vida significativa, realizando, em cada caso, aquilo que a situação exige - segundo uma ordem e sequência perfeitas.
Para o jogador recorrente, o essencial passa a ser como dar à sua vida uma forma que corresponda a essas ideias, de modo a que a própria vida se torne um com as mutações – ou melhor: uma transmutação.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WILHELM, Richard. I Ching: o livro das mutações / tradução do chinês para o alemão, introdução e comentários Richard Wilhelm; prefácio C. G. Jung; introdução à edição brasileira Gustavo Alberto Corrêa Pinto; tradução para o português Alayde Mutzenbecher e Gustavo Alberto Corrêa Pinto. São Paulo: Pensamento, 2006.