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ESTUDOS ORIGINAIS A governação em saúde e a utilização de indicadores de satisfação PEDRO LOPES FERREIRA*, VITOR RAPOSO** RESUMO É amplamente reconhecido que as perspectivas dos doentes são importantes na medição da qualidade dos cuidados prestados e que as avaliações que produzem têm valor como medidas de efectividade clínica e eficiência económica. Por outro lado, ter em conta estas avaliações é uma forma de contribuir para a democratização dos serviços de saúde. Com base no estudo EUROPEP e na apresentação de alguns conceitos relacionados – governação em saúde e processos para a mudança – neste artigo apresentamos uma proposta de classificação dos centros de saúde centrada na avaliação efectuada pelos seus utilizadores sobre a qualidade dos cuidados prestados. Com base neste sistema de classificação arriscaremos também uma proposta de medidas a tomar pelas entidades de governo da saúde. Utilizaram-se as respostas dos 11.166 utilizadores de todos os centros de saúde (CS) do Continente que participaram no projecto EUROPEP executado pelo CEISUC e proposto pelo IQS em 2003. Os indicadores resultantes do projecto de investigação EUROPEP agrupam-se em 5 grandes áreas: (i) a relação e a comunicação entre o médico e o utilizador; (ii) os cuidados médicos prestados; (iii) a informação e o apoio fornecidos; (iv) a continuidade de cuidados e a cooperação entre cuidados primários e hospitalares; e, por fim, (v) a organização dos serviços do centro de saúde. É também considerado um indicador de satisfação global que resulta da agregação dos anteriores segundo um conjunto de critérios. Com base nos valores obtidos para cada um dos indicadores, e nos respectivos quintis, criámos um sistema de classificação para cada indicador. De seguida aplicámos estes critérios aos CS. Os resultados mostram que existe alguma assimetria tendo em conta a comparação entre sub-regiões e mesmo considerando o interior de cada sub-região. Tendo por base os resultados obtidos e a classificação proposta são avançadas intervenções concretas para os centros de saúde que vão desde novas liberdades de gestão e organização para os mais bem classificados, até intervenções externas para os mais mal classificados. O sistema que apresentamos está organizado para classificar os CS com base na avaliação da qualidade expressa em termos da satisfação que os utilizadores têm face aos cuidados prestados. Esta avaliação é muito dependente das expectativas dos que a fazem e estas expectativas num indivíduo podem ser baixas devido a vários factores. Não é um sistema perfeito e está sempre dependente da vontade e da disponibilidade dos utilizadores para responderem ao questionário que anonimamente preenchem e enviam por correio. No entanto, apesar disto, os resultados são baseados na melhor informação disponível e foram obtidos de uma forma independente. Defendemos que, mais do que criar um sistema absoluto de critérios, há necessidade de proceder a um benchmarking, comparando uns CS com outros e ajustando os critérios à distribuição das pontuações. Classificação JEL: I18 Palavras-chave: Governação, Governação em saúde, Satisfação, Qualidade. *Professor Associado. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra **Assistente. Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Centro de Estudos e Investigação em Saúde da Universidade de Coimbra INTRODUÇÃO conceito de governação aparece associado aos mais diversos contextos da vida humana. Uma pesquisa rápida em bases de dados bibliográficas ou em motores de pesquisa devolve uma enorme quantidade de referências que abarcam, entre outras, aspectos gerais e específicos da economia, saúde, educação, ciência, ambiente e investigação. Em termos gerais, a governação é definida como o conjunto de acções e meios adoptados por uma sociedade para promover a acção colectiva e lançar soluções na procura de objectivos comuns.1 A governação engloba todos os métodos — bons e maus — que as sociedades utilizam para distribuir poder e gerir os recursos públicos e os problemas.2 Estas definições surgem de uma forma neutra e complexa na medida em que envolvem múltiplos actores e dimensões e afastam, à partida, a existência de qualquer estrutura de governo. De facto, a governação não é sinónimo de governo. Em parte, a governação está relacionada com a forma como os governos e outras organizações sociais interagem, a forma como se relacionam com os cidadãos, e como as decisões são tomadas num mundo complexo. Como tal, a governação é um processo através do qual as sociedades ou as organizações tomam as suas decisões mais O Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 285 ESTUDOS ORIGINAIS importantes, determinam quem é envolvido no processo e como serão distribuídas as responsabilidades e a prestação de contas.3 No fundo, a governação é o termo usado para descrever o espaço de interacção entre os cidadãos e os seus governantes e os vários meios pelos quais os governos podem ajudar ou impedir os seus constituintes de atingirem ou alcançarem satisfação e prosperidade material.4 Em termos organizacionais, um dos objectivos da boa governação é o de permitir que a organização realize todo o seu trabalho e implemente a sua missão. Desta forma, a boa governação reflecte-se em termos de efectividade organizacional e está sobretudo relacionada com atingir os resultados desejados e atingi-los da forma correcta, isto é, não interessa apenas o resultado em si, mas também a forma com ele é atingido.5 Uma vez que essa «forma correcta» é moldada pelas normas e valores da organização, não existe um enquadramento universal para a boa governação, cabendo a cada organização definir à sua medida o seu enquadramento de boa governação de modo a atingir as suas necessidades e os seus valores. Nesta óptica, os seguintes nove princípios da boa governação das Nações Unidas, dado o seu carácter quase universal, podem ser utilizados para balizar a boa governação nas organizações: • Participação – todos devem ter voz nos processos de tomada de decisão, quer directamente quer através de instituições que representam as suas intenções. Esta participação alargada é baseada na liberdade de associação e expressão, bem como na capacidade de participar de forma construtiva; • Orientação de consensos – mediar diferentes interesses de modo a atingir um consenso alargado naquilo que é o melhor interesse do grupo e, quando possível, nas políticas e nos procedimentos; 286 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 • Visão estratégica – perspectiva de longo prazo, tendo em conta os aspectos históricos, culturais e as complexidades em que a perspectiva é baseada, na boa governação e no desenvolvimento humano, tendo em conta o que é necessário para tal desenvolvimento; • Resposta – as instituições e os processos tentam servir todos os interessados; • Efectividade e eficiência – os processos e as instituições produzem resultados que satisfazem as necessidades tendo em conta a melhor utilização possível dos recursos; • Prestação de contas/responsabilização – os agentes de decisão (governo, sector privado, sector civil) são responsáveis perante a população bem como perante os interessados institucionais; • Transparência – os processos, as instituições e a informação estão disponíveis para aqueles que com eles estejam preocupados. É fornecida informação suficiente para os entender e monitorizar (fluxos livres de informação); • Equidade – todos tem oportunidades de se envolverem nos processos de decisão para melhorar e manter o seu bem-estar; • Primado da lei – o enquadramento legal deve ser justo e imparcial, particularmente as leis dos direitos humanos. A governação na saúde diz então respeito às acções e aos meios adoptados por uma sociedade para se organizar a si própria na promoção e na protecção da saúde da sua população.1 Junta numa plataforma comum duas realidades complementares: por um lado, o enquadramento dos objectivos sociais e dos compromissos que são considerados na formulação das políticas de saúde; e, por outro, o emaranhado existente entre os processos políticos, os legítimos interesses, públicos e privados, na ESTUDOS ORIGINAIS definição de prioridades, o uso e a alocação de recursos, e as pressões provenientes de utilizadores e profissionais insatisfeitos.6 Para a Organização Mundial da Saúde7,8 a boa governação para a saúde é a capacidade de activar a participação de todos os que estão interessados na formulação e no desenvolvimento de políticas, programas e práticas que conduzam a sistemas de saúde mais equitativos e sustentáveis. Nesta perspectiva, alguns dos elementos mais comuns associados à boa governação são a centragem nas pessoas, a prestação de contas, a transparência, a participação dos cidadãos, a monitorização e avaliação regulares. Desta forma, a boa governação na saúde significa considerar um conjunto de boas práticas que definem as regras do jogo relativamente à tomada de decisão, à implementação de soluções, à sua avaliação e monitorização e, consequentemente, à correcção no caso de eventuais desvios. Implicitamente, estamos a falar da capacidade de implementar mudanças efectivas que permitam melhorar o sistema de saúde, respondendo às reais necessidades dos seus utilizadores e garantindo princípios de equidade e de igualdade. A mudança é fundamental para se atingir a qualidade desejada. Os indivíduos e as organizações sentem-se ameaçados pela mudança, porque supõem que podem ser perdidas experiências, processos e rotinas que funcionavam bem, porque pressentem que não têm energia ou apoio suficiente para iniciar essa mudança, ou porque, pura e simplesmente, julgam que a mudança necessita da autorização de alguém. Contudo, a mudança pode ser olhada de uma forma mais positiva se tivermos em conta que ela ocorre à nossa volta em diversas áreas. Praticamente nada é imune à mudança de uma ou de outra forma e, como tal, não nos devemos sentir ameaçados por ela. A mudança pode ser uma possibilidade para melhorar as coisas com base em novos pressupostos mas também aproveitando a memória passada, isto é, experiências, processos e rotinas que funcionavam bem. Neste artigo propõe-se um sistema de medição e de avaliação da qualidade que tem na sua génese alguns princípios que devem à partida ser explicitados de forma a compreender a sua abrangência: (i) a avaliação da qualidade é expressa em termos da satisfação que os utilizadores têm face aos cuidados prestados; (ii) é um sistema parcelar devendo ser incluído num sistema mais amplo de indicadores; (iii) pressupõe uma visão de melhoria contínua de qualidade; (iv) propõe um conjunto de intervenções para os centros de saúde; e (v) pressupõe a existência de um sistema de contratualização. METODOLOGIA Os dados de satisfação dos utilizadores dos centros de saúde foram recolhidos através do questionário EUROPEP, um instrumento de medição da satisfação dos utilizadores da prática da medicina geral e familiar na Europa.9-13 Para além da medição da satisfação, este instrumento pode fornecer informação útil para a administração e governação em saúde e para os grupos de cidadãos organizados e interessados numa melhor prestação de cuidados de saúde.14 Começou a ser utilizado em Portugal em 2000 na ARS de Lisboa e Vale do Tejo como ferramenta de avaliação dos cuidados primários em saúde baseada na perspectiva dos seus utilizadores.15 Em 2001/2002 foi aplicado aos centros de saúde de todo o país que se ofereceram como voluntários para uma avaliação16 e, em 2003/2004, foi aplicado em todos os centros de saúde do país, com excepção de um pequeno centro de saúde da sub-região de saúde do Porto. Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 287 ESTUDOS ORIGINAIS O conjunto de indicadores-chave foi inicialmente estabelecido pelo grupo europeu EUROPEP e, desde há alguns anos, tem vindo a ser amplamente validado nos diversos países europeus e também em Portugal. São os indicadores mais significativos sempre que os utilizadores avaliam a qualidade dos cuidados primários. O Quadro I apresenta cada um destes indicadores e as perguntas que os compõem. Para todas as perguntas associadas a estes indicadores-chave EUROPEP foram utilizadas escalas de Likert de 1 (má qualidade) a 5 (qualidade excelente), mais uma categoria prevendo situa- ções em que a pergunta não se aplicava ou não era considerada relevante para a situação específica de cada utilizador. Para cada indicador foi calculado um índice, obtido através de médias, após uma conversão de todas as respostas para uma escala de 0 a 100, em que 0 corresponde à pior qualidade e satisfação possíveis e 100 às melhores imagináveis. É também possível construir-se um índice de satisfação global, incluindo as respostas a todas as 23 perguntas. O universo deste estudo foi constituído por indivíduos utilizadores de todos os centros de saúde de Portugal Conti- QUADRO I PERGUNTAS DOS INDICADORES-CHAVE EUROPEP Relação e comunicação sentir que tinha tempo suficiente durante as consultas. sentir que houve interesse nos seus problemas de saúde facilidade com que se sentiu à vontade para contar os seus problemas. forma como foi envolvido nas decisões sobre os cuidados prestados forma como o médico o ouviu. confidencialidade da informação sobre o seu processo Cuidados médicos alívio rápido dos sintomas ajuda para se sentir bem e poder desempenhar as tarefas diárias atenção dispensada exame que o médico lhe fez oferta de serviços de prevenção de doenças Informação e apoio explicação detalhada dos objectivos dos exames e dos tratamentos informação sobre o que queria saber em relação aos sintomas e à doença ajuda para enfrentar os problemas emocionais relacionados com a saúde encorajamento para compreender a importância de seguir os conselhos Continuidade e cooperação conhecimento sobre o que o médico fez e disse em consultas anteriores preparação sobre o que esperar dos cuidados hospitalares Organização dos serviços apoio do pessoal do centro de saúde, além dos médicos facilidade em marcar uma consulta que lhe servisse no centro de saúde facilidade em falar pelo telefone para o centro de saúde facilidade em falar pelo telefone com o médico de família tempo que esperou na sala de espera rapidez com que os problemas urgentes foram resolvidos 288 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 ESTUDOS ORIGINAIS QUADRO II DISTRIBUIÇÃO GEOGRÁFICA DAS RESPOSTAS Regiões de Saúde Norte Centro Lisboa e Vale do Tejo Alentejo Algarve Sub-regiões de Saúde todas Braga Bragança Porto Viana do Castelo Vila Real todas Aveiro Castelo Branco Coimbra Guarda Leiria Viseu todas Lisboa Santarém Setúbal todas Beja Évora Portalegre Faro Total nental, com excepção dos utilizadores do Centro de Saúde de Carvalhos. A amostra estudada corresponde às respostas fornecidas pelos utilizadores de 358 centros de saúde, num total de 11.166 indivíduos. O Quadro II apresenta as distribuições dos respondentes pelas regiões e pelas sub-regiões do continente. Pode observar-se que em todas as sub-regiões houve um número significativo de respostas e que as taxas de respostas se distribuíram quase uniformemente pelo território. RESULTADOS Conforme se pode ver no Quadro III, os n 3.194 639 303 1.560 327 365 3.392 719 328 666 354 592 733 3.059 1.753 610 696 1.069 390 292 387 452 11.166 Respostas Taxa de resposta 16,8% 16,4% 16,9% 17,5% 14,9% 16,1% 17,8% 18,0% 17,7% 17,6% 16,5% 18,0% 18,2% 17,7% 19,0% 15,9% 16,6% 16,5% 18,6% 14,1% 16,9% 17,5% 17,3% 11.166 utilizadores dos 357 Centros de Saúde eram na sua maioria (65,9%) do género feminino. Esta predominância do género feminino entre os utilizadores dos Centros de Saúde mantém-se em todas as regiões e sub-regiões de saúde. Em relação à idade, encontrou-se uma população envelhecida, com uma média geral de 56,49 anos, em especial nas regiões do interior do país; 5,8% tinham menos de 25 anos, 22,3% tinham de 25 a 44 anos, 31,1% tinham de 45 a 64 anos e os restantes 40,8% tinham 65 ou mais anos. A distribuição etária pouco variou de região para região. Uma terceira variável determinante da satisfação dos utilizadores dos Centros de Saúde é o grau de escolaridade, obviamente também correlacionado Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 289 ESTUDOS ORIGINAIS QUADRO III CARACTERÍSTICAS DA AMOSTRA Amostra total Sexo Grupo etário Nível de instrução Estado marital Situação face ao trabalho Auto-percepção da saúde Feminino Masculino Menos de 25 anos 25-44 anos 45-64 anos 65 ou mais anos Não sabe ler nem escrever Só sabe ler e escrever 1º ciclo do ensino básico (1º - 4º ano) 2º ciclo do ensino básico (5º - 6º ano) 3º ciclo do ensino básico (7º - 9º ano) Ensino secundário (10º - 12º ano) Ensino médio Ensino superior (politécnico ou universitário) Casado/a ou em união de facto Solteiro/a ou viúvo/a Divorciado/a ou separado/a Trabalha por conta própria Trabalha por conta de outrem Pensionista Desempregado Vive de rendimentos Reformado/a ou aposentado/a Estudante Excelente / óptima Muito boa Boa Razoável Má com a idade. 11,3% destes utilizadores não sabiam sequer ler nem escrever, 11,4% apenas sabiam ler e escrever, mas não tinham completado nenhum nível do ensino básico, mais de metade (57,0%) dos utilizadores tinham completado o ensino básico, 10,1% tinham completado o ensino secundário, 2,7% tinham completado o ensino médio e 7,5% o ensino superior politécnico ou universitário. Também a situação familiar foi inquirida por nós neste estudo. 69,4% era ca290 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 n 11.166 7.115 3.675 621 2.364 3.301 4.337 1.207 1.213 4.043 1.079 957 1.077 287 799 7.492 2.932 371 1.125 2.753 2.352 1.005 96 2.660 306 198 524 1.731 5.989 2.394 % 100,0% 65,9% 34,1% 5,8% 22,3% 31,1% 40,8% 11,3% 11,4% 37,9% 10,1% 9,0% 10,1% 2,7% 7,5% 69,4% 27,2% 3,4% 10,9% 26,7% 22,8% 9,8% 0,9% 25,8% 3,0% 1,8% 4,8% 16,0% 55,3% 22,1% sado ou vivia em união de facto, 27,2% era solteiro ou viúvo e 3,4% era divorciado ou separado, sem grandes variações de região para região. Grande parte deles (62,4%) encontra-se inactivo ou sem trabalho, apenas 26,7% trabalha por conta de outrem e 10,9% por conta própria. De entre os que se encontram inactivos, grande parte está reformado ou aposentado ou é pensionista (36,7%). A percepção do estado de saúde também não apresentou grandes surpre- ESTUDOS ORIGINAIS sas. De facto, como se esperava, tendo em conta outros estudos realizados com a população portuguesa, a distribuição da auto-avaliação do estado de saúde dos valores correspondentes aos piores estados de saúde é enviesada, com mais de metade dos respondentes (55,3%) a declarar ter uma percepção razoável do seu estado de saúde e 22,1% uma percepção má. No entanto, quando as percepções do estado de saúde dos homens são comparadas com as das mulheres, estas apresentam uma percepção mais negativa do que aqueles. Os grupos mais jovens até aos 44 anos de idade são os que avaliam o seu estado de saúde como melhor; em contrapartida, os utentes mais velhos com idade superior ou igual a 45 anos avaliam essencialmente o seu estado de saúde como razoável ou mau. Em relação aos cinco indicadores-chave EUROPEP e ao indicador de satisfação global, encontrámos os valores apresentados no Quadro IV. Como pode observar-se no quadro anterior, os utilizadores dos centros de saúde do continente que frequentaram a consulta estão mais satisfeitos com a prestação do seu médico de família, em especial com a relação e a comunicação que conseguem manter (67,6%), assim como com a informação e apoio que recebem (59,5%) e a qualidade dos cuidados médicos prestados (59,3%). Por outro lado, é com a organização dos serviços que os utilizadores se apresentam mais insatisfeitos (42,8%). Tomando em consideração os dados pessoais dos utilizadores e começando pelo género, podemos afirmar que as mulheres apresentaram sempre uma satisfação inferior à dos homens (p<0,001). Analisando os indicadores EUROPEP através dos vários grupos etários, detectamos que, para todos os indicadores, os mais jovens estão sempre menos satisfeitos do que os mais idosos (p<0,001). Com base nos quintis, criámos um QUADRO IV DESCRITIVOS DOS INDICADORES-CHAVE EUROPEP Relação e comunicação Cuidados médicos Informação e apoio Continuidade e cooperação Organização dos serviços Satisfação global EUROPEP Min 40,7% 36,7% 32,9% 29,4% 19,4% 34,1% Máx 85,1% 79,9% 80,1% 77,4% 73,0% 76,4% Média 67,6% 59,3% 59,5% 55,7% 42,8% 56,9% Desvio Padrão 27,4% 28,6% 31,4% 32,2% 29,1% 26,4% Perc. 20% 61,1% 51,7% 51,8% 47,7% 33,3% 49,9% Perc. 40% 66,0% 56,7% 56,8% 53,4% 39,8% 54,5% Perc. 60‰ 70,0% 61,2% 61,4% 57,8% 45,6% 59,0% Perc. 80% 74,0% 66,7% 67,0% 62,7% 51,9% 63,5% QUADRO VI CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DOS CENTROS DE SAÚDE Caras tristes / Sorrisos LL L ☺ ☺☺ ☺☺☺ Qualidade Muito insuficiente Insuficiente Suficiente Boa Muito boa Indicador de qualidade Menor do que 20% Entre 20% e 40% Entre 40% e 60% Entre 60% e 80% Acima de 80% Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 291 ESTUDOS ORIGINAIS QUADRO VI CRITÉRIOS DE CLASSIFICAÇÃO DOS CENTROS DE SAÚDE Classificação: Qualidade Região de Saúde Norte Centro Lisboa e Vale do Tejo Alentejo Algarve Sub-região de Saúde Braga Bragança Porto Viana do Castelo Vila Real Aveiro Castelo Branco Coimbra Guarda Leiria Viseu Lisboa Santarém Setúbal Beja Évora Portalegre Faro Muito Insuficiente LL 21% 8% 33% 0% 6% 5% 9% 0% 14% 35% 38% 9% 27% 30% 36% 29% 25% 19% sistema de classificação com critérios aplicados a cada indicador e apresentados no Quadro V a seguir. Da aplicação destes critérios aos 358 centros de saúde do continente resultaram os valores do Quadro VI aqui agrupados por sub-região. Neste quadro estão apresentados os números dos centros de saúde classificados, para o indicador de satisfação global, segundo o sistema atrás referido. Como se pode observar neste quadro, há alguma assimetria tendo em conta a comparação entre sub-regiões e mesmo considerando o interior de cada sub-região (não representado neste quadro). Assim, por exemplo, Viseu apresenta uma percentagem nula de centros de saúde muito bons, ao passo que na sub-região da Guarda há 43% de centros de saúde nesta categoria. Em relação à percentagem de centros de 292 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 Insuficiente L 32% 17% 12% 23% 19% 21% 27% 5% 14% 24% 23% 18% 9% 35% 7% 36% 19% 38% Suficiente ☺ 16% 17% 21% 31% 31% 16% 18% 14% 14% 18% 19% 38% 9% 25% 14% 14% 6% 13% Boa ☺☺ 21% 33% 17% 23% 25% 32% 18% 45% 14% 6% 19% 18% 18% 5% 21% 7% 19% 19% Muito Boa ☺☺☺ 11% 25% 17% 23% 19% 26% 27% 36% 43% 18% 0% 18% 36% 5% 21% 14% 31% 13% saúde em situação muito insuficiente, na sub-região de Coimbra não há centros de saúde nesta categoria e na sub-região de Viseu, de novo, há 38%. O mesmo acontece em relação às outras categorias intermédias. DISCUSSÃO Face a estes resultados temos sempre que ter consciência que, embora não sejam perfeitos, são baseados na melhor informação disponível e – aspecto fundamental – foram obtidos de uma forma independente. Por outro lado, para além da disseminação dos resultados, consideramos absolutamente necessário que, numa perspectiva de melhoria contínua da qualidade, se estabeleça um sistema de incentivos para recompensar os bons e apoiar os me- ESTUDOS ORIGINAIS nos bons para que melhorem. A discriminação positiva de centros de saúde é possível e desejável. Assim, as unidades mais bem classificadas deveriam receber recompensas extra e novas «liberdades» de gestão e organização que as ajudassem a serem ainda melhores. Como parte de uma estratégia que seria desejável que existisse de devolver poder aos serviços de «fim-de-linha», estas unidades receberiam financiamento para criarem novos serviços e para recompensarem os profissionais pelo seu desempenho. Com este sistema, as unidades ganhariam cada vez mais autonomia e o controlo seria cada vez menos central e cada vez mais periférico. As unidades classificadas como sendo «apenas» boas ou suficientes seriam forçadas a discutir com os serviços das agências locais de contratualização sobre a forma de melhorar o seu desempenho. Garantir-se-ia assim que os recursos seriam orientados para as áreas mais carentes de melhoria de desempenho. As unidades avaliadas na terceira categoria, já com uma qualidade apercebida insuficiente, antes de gastarem qualquer verba, teriam de elaborar um plano de acção em conformidade com regras definidas pela entidade de contratualização. Esta entidade estabeleceria com os centros de saúde acções específicas e objectivos muito concretos a atingir nas várias fases. Se, depois de terem recebido este apoio, as unidades não fossem capazes de melhorar o seu desempenho, haveria lugar a formas mais directas de intervenção. Por fim, as unidades menos bem classificadas e consideradas pelos utilizadores com uma qualidade muito insuficiente receberiam uma ajuda financeira extraordinária e uma intervenção externa imediata. Parte-se aqui do princípio de que não é correcto nem aceitável que os cidadãos dessas áreas geográficas continuem a sofrer dos maus desempenhos locais dos centros de saúde. As respectivas entidades de contratualização interviriam e os gestores destes centros seriam avisados de que teriam imediatamente de desenvolver planos para a melhoria do seu desempenho. Se isso não acontecesse, ou se houvesse uma qualquer reacção negativa e de oposição, dever-se-ia equacionar a demissão da direcção e a nomeação, no mais curto prazo possível, de outra capaz de cumprir os objectivos estabelecidos. Em qualquer dos casos seria atribuído um financiamento de emergência para ultrapassar a situação inaceitável. CONCLUSÃO A governação em saúde pode ser vista na sua dimensão macro, isto é, a nível sistémico, mas também ao nível micro das organizações que prestam cuidados de saúde, nomeadamente os centros de saúde e os hospitais. Nestas últimas, os conceitos de governação clínica e de governação hospitalar assumem uma grande importância. Antes de mais há que dizer que o sistema aqui apresentado está organizado para classificar os centros de saúde com base na avaliação da qualidade expressa em termos da satisfação que os utilizadores têm face aos cuidados prestados. E é sabido que esta avaliação é muito dependente das expectativas dos que a fazem e que estas expectativas num indivíduo podem ser baixas e resultantes de uma baixa assunção de direitos de cidadania face a um serviço público (coitados, fazem o que podem e eu é que estou a incomodá-los com um problema que é pessoal); noutros, no entanto, pode também ser resultado de uma sensação de propriedade egoísta do sistema (eles estão a trabalhar para mim) e de uma sensação pouco colectiva da sociedade (eles estão aqui apenas para me servir, os outros que se desenRev Port Clin Geral 2006;22:285-96 293 ESTUDOS ORIGINAIS rasquem). Não podemos esquecer, no entanto, que não é um sistema perfeito e está sempre dependente da vontade e da disponibilidade dos utilizadores para responderem ao questionário que anonimamente preenchem e enviam por correio. O sistema que apresentamos é apenas parte de um sistema mais abrangente que deverá incluir outro tipo de indicadores à semelhança do que é feito no SNS britânico de onde o conceito de governação clínica é originário. Isto significa que este sistema fará parte de um tableau de bord, que deverá utilizar um conjunto de indicadores relativos a cuidados de saúde primários diversificados. Para além dos indicadores de satisfação aqui considerados, deverá incluir outros indicadores em áreas como disponibilidade, acessibilidade, produtividade, continuidade, efectividade e eficiência, por exemplo.17 Significa também que se deverá ter em conta os benefícios e os riscos inerentes à utilização de indicadores.18 A utilização dos indicadores de qualidade tem como principais vantagens: (i) permitir comparações entre diferentes práticas clínicas ao longo do tempo relativamente a valores padrão, estimulando e motivando, desta forma, a mudança; (ii) permitir avaliações objectivas das iniciativas de melhoria de qualidade; (iii) serem usados para assegurar a prestação de contas/responsabilização e identificar desempenhos inaceitáveis; (iv) estimular o debate informado relativo a questões da qualidade dos cuidados e do nível de recursos utilizados; (v) chamar a atenção para a questão da qualidade da informação na prática clínica; (vi) ajudar a alocar os recursos para as áreas mais necessitadas; (vii) são ferramentas mais baratas e mais fáceis de aplicar para a avaliação da qualidade, relativamente a outras (por exemplo, a revisão por pares); (viii) permitem informação para a tomada de decisões de compra e planeamento de 294 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 acordos de prestação de serviços18. O sistema que propomos considera a existência de um conjunto de incentivos e de intervenções para os centros de saúde, que dependem da classificação em termos de qualidade. Como é óbvio, uma fraca pontuação de um centro de saúde que decorra da aplicação deste sistema de classificação nunca quer necessariamente significar que estejamos perante um centro de saúde que não pratica níveis aceitáveis de cuidados médicos. Apenas que a experiência dos utilizadores é fraca e, por consequência, a avaliação que fazem é penalizadora. Estas intervenções podem ir desde a atribuição de maior autonomia e controlo às unidades mais bem classificadas, até ajudas financeiras e intervenções externas para as mais mal classificadas. Os doentes, os utilizadores e o público em geral têm direito a ter informação sobre o desempenho das várias organizações de saúde. As próprias organizações necessitam também de saber o seu posicionamento face às restantes, de modo a que os seus êxitos sejam partilhados e que os pontos fracos possam ser identificados e constituam uma oportunidade e um ponto de partida para novas intervenções de mudança. Estes foram, em resumo, os pressupostos e os objectivos do presente trabalho. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1. Dodgson R., Lee K., Drager N. Global Health Governance: A Conceptual Review. Geneva: World Health Organization and London School of Hygiene and Tropical Medicine; 2002. 2. United Nations Development Programme. Reconceptualising governance. New York: Management Development and Governance Division Bureau for Policy and Programme Support, United Nations Development Programme; 1997. 3. Graham J, Amos B, Plumptre T. Principles for good governance in the 21st century. Ottawa: Institute on Governance; 2003. 4. Rotberg RI. Strengthening governance: ESTUDOS ORIGINAIS ranking countries would help. 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Patients’ priorities with respect to general practice care: an international comparison. Fam Pract 1999 Feb; 16 (1): 4--11. 12. Grol R, Wensing M, Mainz J, Jung HP, Ferreira P, Hearnshaw H, et al. Patients in Europe evaluate general practice care: an international comparison. Br J Gen Pract 2000 Nov; 50 (460): 882-7. 13. Wensing M, Mainz J, Ferreira P, Hearnshaw H, Hjortdahl P, Olesen F, et al. General practice care and patients’ priorities in Europe: an international comparison. Health Policy 1998 Sep; 45 (3): 175-86. 14. Ferreira PL, Raposo V, Godinho P. A voz dos utilizadores dos centros de saúde. Lisboa: Instituto da Qualidade em Saúde; 2005. 15. Ferreira PL, Luz A, Valente S, Raposo V, Godinho P, Felício ED. Determinantes da satisfação dos utentes dos cuidados primários: o caso de Lisboa e Vale do Tejo. Rev Port Saúde Pública 2001; Volume Temático 2: 53-61. 16. Ferreira PL, Raposo V. A voz dos utentes dos Centros de Saúde. Rev Qual Saúde 2003; 7: 23-26. 17. Marshall M, Campbell S, Hacker J, Roland M, editors. Quality indicators for general practice: a practical guide for health professionals and managers. London: Royal Society of Medicine Press, 2002. 18. Marshall M, Roland M, Campbell S, Kirk S, Reeves D, Brook R, et al. Measuring general practice. a demonstration project to develop and test a set of primary care clinical quality indicators. London: Nuffield Trust; 2003. Agradecimentos Os autores querem agradecer ao Instituto da Qualidade em Saúde quando, em boa hora, sentiu necessidade de medir a avaliação dos utilizadores sobre a qualidade dos cuidados prestados nos centros de saúde, propôs este projecto a financiamento ao Programa Operacional Saúde XXI e consultou o CEISUC para a sua implementação e responsabilidade científica. É também de justiça reconhecer o apoio sempre recebido pelas várias estruturas do Ministério da Saúde que, sempre que solicitadas, responderam com entusiasmo. Realço as autorizações e as reacções de apoio dos 358 directores dos centros de saúde, quando contactados por nós na fase inicial do estudo. Por fim, não podemos esquecer os 11.166 cidadãos que decidiram responder ao nosso questionário e aceitaram participar neste estudo – valorizando-o – e em fazer ouvir a sua voz. Especialmente a estes, um sincero muito obrigado. Endereço para correspondência: Pedro Lopes Ferreira Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra Av. Dias da Silva 165 3004-512 Coimbra E-mail: pedrof@fe.uc.pt Recebido em: 3/4/2006 Aceite para publicação em: 9/5/2006. Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96 295 ESTUDOS ORIGINAIS ABSTRACT It is well known that patients’ views are important in measuring the quality of health care delivery and that their assessments are valuable measures of clinical effectiveness and economic efficiency. Also, taking into account these evaluations is a way to foster health services democratisation. Based on the EUROPEP study and some related concepts – health governance and procedures towards change – , in this paper we present a proposal to classify health centres focused on the assessment their users make of the quality of health care. Departing from this classification system, we will also suggest some possible measures to be taken by health governing organizations. The answers of 11,166 users of all mainland centres were used, in the framework of the EUROPEP study conducted by the CEISUC (Centre for the Study and Research in Health of the University of Coimbra) and proposed by the IQS (Health Quality Institute) in 2003. The indicators resulting from the research project EUROPEP are grouped into 5 major areas: (i) relationship and communication between doctor and patient; (ii) provided health care; (iii) information and support; (iv) health care continuity and cooperation between primary and hospital care; and (v) service organization. We also consider a global satisfaction indicator, resulting from the clustering of the above mentioned indicators according to a set of criteria. On the basis of the values obtained for each indicator, and corresponding quintiles, a classification system for each indicator was created, and the criteria were then applied to the health centres. The results show some existing asymmetry, taking into account the comparison between sub-regions and even inside each sub-region. On the basis of the results obtained and the proposed classification, we propose some actual intervention in the health centres, ranging from new management and organization freedom for the better classified through external intervention for the worse. The system we present is organized to classify the health centres on the basis of their quality assessment, expressed in terms of the satisfaction of the users with the health care received. This assessment largely depends on the expectations of those who perform it and these individual expectations can be low due to several reasons. It is not a perfect system and it always depends on the willingness of the users to answer the questionnaire, which they anonymously fill and send by mail. However, the results are based on the better available information and were obtained in an independent way. We argue that, more than to create an absolute criteria system, there is a need to perform a benchmarking, comparing Health Centres and adjusting the criteria to the scores distribution. 296 Rev Port Clin Geral 2006;22:285-96