Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                
ARTIGOS _________________________________________________________________ MARIA DO ROSÁRIO E FERNANDA MELCHIONNA: O DISCURSO JORNALÍSTICO DE DEPUTADAS BRASILEIRAS E OS ACIONAMENTOS DE VIOLÊNCIA DE GÊNERO NA PANDEMIA MARIA DO ROSÁRIO AND FERNANDA MELCHIONNA: THE JOURNALISTIC SPEECH OF DEPUTIES AND THE OPERATIONS OF GENDER VIOLENCE IN THE PANDEMIC MARIA DO ROSÁRIO Y FERNANDA MELCHIONNA: EL DISCURSO PERIODISTICO DEL DIPUTADOS BRASILEÑOS Y LA VIOLENCIA DE GÉNERO EN LA PANDEMIA _________________________________________________________________ Francielle Esmitiz1 Letícia Rossa2 Resumo Com a intenção de entender a construção do discurso jornalístico das deputadas brasileiras Maria do Rosário (PT) e Fernanda Melchionna (PSOL), este artigo propõe a discussão de questões de gênero, por meio de relações de poder; da mulher na política, através de índices de ocupação em cargos de liderança; e do jornalismo, a partir da produção do acontecimento. Deste modo, segundo uma metodologia inspirada na Análise de Conteúdo e na Análise do Discurso francesa, é possível averiguar que a atuação das duas deputadas contra a violência de gênero evidencia que seus discursos e práticas estão alinhados com as propostas de trabalho e atuação política a que se dedicam. Palavras-Chave: Gênero; Política; Jornalismo. Abstract With the intention of understanding the construction of the journalistic discourse of Brazilian deputies Maria do Rosário (PT) and Fernanda Melchionna (PSOL), this article proposes the discussion of gender issues, through power relations; of women in politics, through occupation rates in leadership positions; and journalism, from the production of the event. Thus, according to a methodology inspired by French Content Analysis and Discourse Analysis, it is possible to verify that the actions of the two 1 Doutoranda em Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos. E-mail: fran.esmitiz@gmail.com. 2 Doutoranda em Comunicação. Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Unisinos. E-mail: leticiaf.rossa@gmail.com. 191 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 deputies against gender violence show that their discourses and practices are aligned with the work proposals and political actions to which they are dedicated. Keywords: Gender; Policy; Journalism. Resumen Con la intención de comprender la construcción del discurso periodístico de las diputadas brasileñas Maria do Rosário (PT) y Fernanda Melchionna (PSOL), este artículo propone la discusión de las cuestiones de género, a través de las relaciones de poder; de las mujeres en la política, a través de las tasas de ocupación en puestos de liderazgo; y periodismo, desde la producción del evento. Así, de acuerdo con una metodología inspirada en el Análisis de Contenidos y Análisis del Discurso francés, es posible constatar que la actuación de las dos diputadas contra la violencia de género muestra que sus discursos y prácticas están alineados con las propuestas de trabajo y acción política a las que se dedican. Palabras clave: Género; Política; Periodismo. INTRODUÇÃO: CAMINHOS PARA PENSAR A PESQUISA Entre os meses de março e abril de 2020, os casos de feminicídio cresceram em 22% em 12 Estados do Brasil, conforme assinala o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (Letycia BOND, 2020a).3 Apenas em São Paulo, a violência contra a mulher apresentou um índice de crescimento de 44,9% diante da pandemia (BOND, 2020b). No Rio Grande do Sul, de janeiro a maio, registrou-se um acréscimo de 34,4% na taxa de mulheres mortas por questões de gênero (ILHA, 2020). Em 2020, com a pandemia de Coronavírus, os casos de violência contra mulheres dispararam. As medidas de segurança contra a Covid-19 se tornaram mais um elemento para controle e violência (Mariana MENEGATTI et al., 2020), dificultando inclusive o acesso a serviços básicos de saúde e justiça, contribuindo para a diminuição das denúncias. Segundo pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública de 2021, os registros policiais por lesão corporal contra mulheres diminuíram 7,5% em relação a 2019, totalizando mais de 230 mil. No entanto, os pedidos por medidas protetivas de urgência cresceram 4,4%, assim como os chamados à Polícia Militar por violência doméstica tiveram aumento de 16,3%. Os dados indicam que 694.131 ligações de violência doméstica foram feitas por terceiros, representando 1,3 chamada por minuto no país. O problema da violência de gênero, que já era grave, se aprofunda na pandemia, sem mencionar outras violências e violações às quais as 3 Por se tratar de uma pesquisa feminista, as autoras mulheres, quando citadas pela primeira vez, terão seus prenomes incluídos com o objetivo de evidenciar a autoria feminina. 192 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 mulheres estão sujeitas devido à pandemia e à consequente crise econômica, social e política que o país vive. A pandemia também evidenciou e intensificou outras desigualdades enfrentadas pelas mulheres, segundo pesquisa da Gênero e Número com a Sempreviva Organização Feminista: 35,7% das entrevistas revelaram ser as únicas responsáveis pelo trabalho doméstico e 50% delas passaram a cuidar de alguém durante a pandemia. A mesma pesquisa revela a percepção do aumento do trabalho doméstico para 57%. Num contexto de crise econômica, desemprego e trabalho informal, há um acúmulo maior de tarefas para mulheres que geram ainda mais sobrecarga física e mental, o que sujeita mais mulheres a violações de direitos e violências (MENEGATTI et. al, 2020). Estas amostras revelam traços violentos de um Brasil diante das recomendações de isolamento social motivadas pela pandemia de Coronavírus. São fatos. A partir deste cenário que se desenha desde o primeiro semestre do ano passado – e que se intensifica desde então – a pesquisa se propõe a entender a construção do discurso jornalístico de duas deputadas brasileiras segundo estes acionamentos de violência de gênero. Ou seja: como se dá o comportamento destas lideranças políticas, quando estas se apropriam do discurso jornalístico referente aos tópicos relacionados à violência de gênero. As selecionadas são as deputadas federais Maria do Rosário (PT) e Fernanda Melchionna (PSOL) – as duas mulheres gaúchas mais bem votadas para a Câmara dos Deputados em Brasília na eleição nacional de 2018. Para certificação da pesquisa, serão validadas as problematizações de gênero (com relações de poder), mulher na política (com índices de ocupação em cargos de liderança) e jornalismo (com produção do acontecimento). A viabilização do estudo se dará por meio de uma metodologia inspirada na Análise do Conteúdo e também na Análise do Discurso francesa. A proposta é avaliar o discurso jornalístico destas deputadas mulheres no mês de julho de 2020, a partir do perfil oficial no Facebook de cada uma das gestoras públicas. Com este percurso, é possível inferir sobre as práticas comunicacionais destas mulheres deputadas a fim de compreender a construção de seus discursos jornalísticos a partir da incorporação do jornalismo sobre a violência de gênero. 193 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 GÊNERO E RELAÇÕES DE PODER: UMA BINARIEDADE HIERÁRQUICA A construção social de gênero aparece como resultado de relações de poder. É a partir deste arranjo conceitual que se colocará o avanço da pesquisa. A proposta é tomar o gênero enquanto um articulador dos atributos específicos direcionados historicamente (Guacira Lopes LOURO, 1997) àquilo que se convencionou como correto para homens e aquilo que se atribuiu como mais adequado para mulheres. Isto é, os padrões de comportamento e as expectativas direcionadas a cada um destes gêneros (LOURO, 1997). Enquanto que, socialmente, espera-se que homens atuem segundo uma lógica dura, fria, forte e decisiva, também há uma naturalização em idealizar mulheres a partir de uma conduta gentil, doce, frágil e dependente. Deste modo, ao ocupar um espaço de protagonismo em um ambiente como a política (que é historicamente vinculado a homens), mulheres inauguram uma série de sentidos e de novos moldes gerando a concepção de que “[...] gênero é um campo primário no interior do qual, ou por meio do qual, o poder é articulado” (Joan SCOTT, 1995, p. 88). À vista deste entendimento percebe-se o gênero não apenas em corpos, mas atravessando contextos sociais e impalpáveis – estas marcas construídas e reproduzidas geracionalmente (e, por vezes, sem intenção) também agem no jornalismo, na ciência, no trânsito, na sala de aula, na academia de dança, no estúdio de música, na política. Ou seja: em todos os espaços, vivências e/ou trocas em que podem ser concebidas relações de poder. Esta organização de pensamento dicotômica (LOURO, 1997) indica que, portanto, há supostas hierarquias a serem cumpridas e desempenhadas em sociedade. Deste modo, alguém está acima – para que alguém esteja abaixo. Ao tomar este movimento, o gênero opera padrões de referência. No entanto, fissuras apresentadas na performance de homens e mulheres (que não cumprem com o socialmente estabelecido) podem, por vezes, romper imaginários e gerar acontecimentos jornalísticos – como será descrito mais adiante. Estas normas de poder reproduzidas até a atualidade têm sido tecidas desde o processo colonizador (GROSFOGUEL, 2016), que constituiu a epistemologia do que é ser uma sociedade; e definiu o gênero, a raça e a sexualidade legítimos para o mundo. Assim sendo, a problematização se complexifica. Mas, simultaneamente, também dá luz à percepção de que o poder (FOUCAULT, 1988) consiste em um exercício 194 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 concretizado em variadas direções, por e para toda a sociedade. Por conseguinte, esta ideia se afastaria da lógica unilateral (e naturalizada até então) de que, em um sistema hierárquico de gênero, homens ordenam e mulheres cumprem. A partir desta perspectiva, para Dagmar Meyer (2012) o conceito de gênero rejeita a ideia de que o gênero estava relacionado com o sexo anatômico ou biológico e que as desigualdades entre homens e mulheres são construídas social e culturalmente. Gênero não é algo dado, mas construído ao longo da vida, a partir de diversas instituições e práticas, em um processo não linear tampouco harmônico ou completo (MEYER, 2012). Nessa perspectiva, compreendendo gênero como uma construção, Louro (1997; 2000) propõe pensar de forma plural, observando as diversas representações de homens e mulheres, considerando que as noções de gênero diferem entre as sociedades e seus momentos históricos. Gênero é uma parte constituinte da identidade do sujeito, sendo essa identidade plural, passível de transformações, instável e até contraditória, fabricada a partir da reiteração de práticas e discursos da igreja, da mídia e da escola (LOURO, 1997). Importante destacar que “[...] a inscrição dos gêneros — feminino ou masculino — nos corpos é feita, sempre, no contexto de uma determinada cultura e, portanto, com as marcas dessa cultura.” (LOURO, 2000, p. 6). A ideia de que homens e mulheres são diferentes biologicamente e que a relação entre eles se constrói com base nessa diferença é apenas uma forma de justificar a desigualdade de gênero (LOURO, 1997). Socialmente se construiu e se definiram por meio de práticas, normas e discursos as características compreendidas como femininas ou masculinas, e essas características são representadas e valorizadas de formas diferentes no interior das sociedades (LOURO, 1997). Essa diferença é uma forma de produção de desigualdade, porque historicamente ela é construída para nomear aqueles que diferem de um “eu” normativo e predominante. Na sociedade ocidental, esse “eu” é o homem branco, cisgênero, heterossexual, cristão. Atributos como força, virilidade, autoridade e coragem são lidos como masculinos e, portanto, mais valorizados. Atributos considerados femininos como fragilidade, delicadeza, submissão são menos valorizados na ótica social porque se distanciam da matriz referencial. Gênero é, assim, uma forma de compreender e produzir conhecimento sobre o mundo, não se limitando a características biológicas. É um organizador do sistema 195 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 social que produz significados e é marcado por lógicas de poder. Concordamos com Alinne Bonetti (2011), quando esta diz que gênero é marcado pelo contexto histórico e por um sistema de prestígio. Nesse sentido, aqueles que se afastam das concepções hegemônicas de gênero, sexualidade, raça, são marcados como diferentes e assim, sujeitos a discriminação e/ou subordinação (LOURO, 1997). Dessa forma, estruturam-se práticas que delegam posições de subalternidade aos sujeitos, tornando-os marginais e abjetos. Nos termos de Butler (2017), vidas que não são reconhecíveis como vidas e, portanto, não consideradas como potencialmente lamentáveis (HENN; DIAS, 2019, p. 9). As diferentes formas de violência a que estão submetidas mulheres e LGBTQIA+ 4 se dão em função dessa compreensão, de que por se distanciarem da norma hegemônica, suas vidas não fossem tão importantes ou valiosas. A violência de gênero se dá através de crimes de ódio que têm origem nos valores sociais e culturais construídos socialmente que concedem aos homens a dominação masculina (Aline BRILHANTE et al. 2016). A violência de gênero é como “[...] uma força social com capacidade de estruturar as relações sociais” em que o controle e o poder embasam as práticas de relacionamento entre homens e mulheres (Lourdes BANDEIRA, 2017, p. 23). Francisca Oliveira et al. (2016) acrescenta que a violência é um fenômeno social que tem como ambiente principal o espaço doméstico e que é resultado de um sistema moralizador que quer reduzir a mulher à condição inferior. Nesse sentido, desconstruir a noção binária das concepções de gênero para que diferenças não sejam motores de desigualdades é um desafio a ser encarado pela sociedade atual. O jornalismo tem papel importante nesse processo enquanto um lugar de produção e circulação de conhecimento e instigador de debates que podem promover transformações sociais. MULHERES NA POLÍTICA: QUAIS ESPAÇOS SÃO OCUPADOS O Brasil tem 147,9 milhões de cidadãs e cidadãos aptos ao voto, conforme estatísticas do Tribunal Superior Eleitoral. (TRIBUNAL..., [2021?]). Mulheres 4 A sigla diz respeito a pessoas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e travestis, queers, intersexo, assexuais, o mais representa e inclui outras identidades de gênero e sexualidade. 196 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 correspondem a 52,6% do eleitorado, mas em espaços de poder a porcentagem é minimizada. Há apenas 15% de deputadas federais e de senadoras e apenas um estado é governado por uma mulher. Existe, ainda, uma média nacional (Marieta CAZARRÉ, 2016) de 14% de vereadoras e de 12% de prefeitas. Como consequência deste panorama, em um ranking de 189 países, o Brasil ocupa a 131ª posição de acordo com o percentual de mulheres nos parlamentos. A classificação é da União Inter-Parlamentar. (PROCURADORIA..., [2021?]). Uma avaliação elaborada pela Procuradoria Especial da Mulher do Senado Federal aponta que 65% dos entrevistados acreditam que a eleição de uma mulher presidenta influencia os eleitores a votarem em mais mulheres – desde vereadoras até novas presidentas. Ainda, a maior parte do público consultado (39%, entre homens e mulheres) acredita que a falta de apoio de partidos políticos é o principal motivo que leva uma mulher a não se candidatar ou a ter receio de confirmar a sua candidatura. (PROCURADORIA... [2021?]). Estes índices manifestam, portanto, que o espaço ocupado por mulheres na política ainda é inferior (em grande escala) à proporção de homens em cargos de poder e de liderança. E é esta problemática que se percebe necessária para o atual contexto democrático nacional – ou seja, se entende que é preciso visualizar as diferenças destes dois gêneros na política e averiguar o porquê de estas distinções ainda se mostrarem de forma tão expressiva (conforme os números apontados acima). Deste modo, a proposta é analisar, por meio do discurso jornalístico apropriado por Maria do Rosário e Fernanda Melchionna, como se dá a ocupação de mulheres em posições de liderança na política e a narrativa produzidas por elas segundo este contexto. No caso desta pesquisa, o direcionamento se constitui a partir da violência de gênero na pandemia de Coronavírus – contudo, as problemáticas e inferências podem (e devem) ser atribuídas a outras socializações possíveis. A inserção de mulheres em uma ambiência como a política rompe uma série de normas até então naturalizadas desde a colonização da sociedade tal qual a reconhecemos na pós-modernidade: neste sistema patriarcal em que se organiza o comportamento humano, mulheres estão condicionadas a espaços secundários ou coadjuvantes. Daí a resistência do feminino em assegurar sua permanência nestes campos rígidos, duros e frios (atributos típicos do masculino). 197 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 A reação da maioria dos/as historiadores/as não feministas foi o reconhecimento da história das mulheres e, em seguida, seu confinamento ou relegação a um domínio separado ("as mulheres tiveram uma história separada da dos homens, em conseqüência deixemos as feministas fazer a história das mulheres que não nos diz respeito"; ou "a história das mulheres diz respeito ao sexo e à família e deve ser feita separadamente da história política e econômica"). No que se refere à participação das mulheres na história, a reação foi, na melhor das hipóteses, um interesse mínimo ("minha compreensão da Revolução Francesa não muda por saber que as mulheres dela participaram") (SCOTT, 1995, p. 74). É necessário que se compreenda, ainda, quem são as mulheres eleitas em termos de raça: nas eleições municipais de 2020, o Brasil registrou 84.418 mulheres negras como candidatas à vereança. Contudo, apenas 3.634 acabaram eleitas - o que representa 6%. Como resultado deste cenário, em 2.952 municípios do país, nenhuma mulher negra foi eleita à Câmara Municipal. No Poder Executivo, de 856 candidaturas negras, apenas 209 foram escolhidas para representar a população como prefeitas ou vices. Deste modo, mulheres negras são o menor grupo representado em prefeituras do Brasil, chegando a 4%. Na contramão deste contexto, homens brancos correspondem a 59% dos prefeitos eleitos. (CONHEÇA…, [2021?]). É possível visualizar, ainda, que das 295 candidatas trans e travestis que disputaram as eleições municipais em 2020, 26 foram eleitas. O índice da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra) corresponde a mais que o dobro das eleitas no pleito de 2016 (GUZZO, 2020). A partir desta conjuntura, é legítimo analisar a ocorrência da violência de gênero no Brasil – e a semelhança de mulheres violentadas (que, via de regra, aparecem em situação de vulnerabilidade) com aquelas eleitas ou não-eleitas para cargos de liderança na política (e que, portanto, são colocadas em uma posição de poder). No ano de 2016, o Mapa da Violência de Gênero aponta que negras foram 64% das vítimas de assassinato entre as mulheres. O Paraná aparece como o Estado com números mais expressivos: foram 297 homicídios de mulheres negras e 448 de não negras a cada 100 mil habitantes (MAPA…, [2021?]). O principal instrumento utilizado, no Brasil, para assassinato de mulheres, é a arma de fogo. A informação da Agência Patrícia Galvão mostra, ainda, que em 2019 70,5% das vítimas fatais dos crimes de gênero foram mulheres negras - o que significa que a taxa de mortalidade desta parcela da população é duas vezes maior do que a de não negras. A pesquisa confirma, também, que em 2020 há o registro de no mínimo 198 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 175 travestis e mulheres transexuais assassinadas. Desde 2008, a média destas ocorrências aumentou em 43,5% (70% DAS VÍTIMAS…, [2021?]). É a partir destas pontuações que se pode pensar, a seguir, na construção de um discurso jornalístico que inaugura sentidos, produz acontecimento e gera conhecimento sobre violência de gênero. JORNALISMO E A PRODUÇÃO DO ACONTECIMENTO O jornalismo é uma prática social que produz informação, conhecimento e cria realidades por meio de discursos que são lidos como verdade. Como um dos principais organizadores da produção de saberes cotidianos, o jornalismo é conduzido pela cultura e utiliza recursos técnicos e humanos que possibilitam ensinar esse conhecimento, produzindo sentidos e significados (Márcia VEIGA DA SILVA; Virgínia FONSECA, 2011). O jornalismo é uma forma de conhecimento da realidade, diferenciando-se do conhecimento produzido pelo campo científico. O jornalismo produz conhecimento com base na função de comunicar, informar. E mais do que produzir e reproduzir seu próprio conhecimento, o jornalismo reproduz conhecimento de outras instituições sociais (MEDITSCH, 1998), produz e circula valores, concepções e representações relativas a um conhecimento do cotidiano sobre os vários modos de ser, estar e ver o mundo, enxergar as pessoas e dar sentido às coisas. Parte da cultura e dos processos sociais, e o jornalismo produz e reproduz os valores circulantes na sociedade, se retroalimentando (VEIGA DA SILVA, 2010), em sentidos sobre gênero, raça, sexualidade, classe, na maioria das vezes, valores dominantes que marginalizam mulheres e LGBTs. Assim, conforme proposição de Rosa Fischer (2002), entendemos que o jornalismo exerce um papel formativo e educativo junto à escola, a família, a religião e outras instituições sociais. O jornalista é parte importante na produção das notícias, pois é quem seleciona e define quais acontecimentos serão ou não noticiados. Nesse sentido, o jornalista, enquanto sujeito, tem valores, visões de mundo e padrões de normalidade e anormalidade, que são compartilhados com a sociedade em que vive, e esses são pontos de partida que ajudam a selecionar o que é ou não notícia (VEIGA DA SILVA, 2014). O acontecimento só existe quando nomeado e este só tem significado enquanto discurso, ou seja, a violência de gênero só se torna acontecimento quando 199 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 narrada, quando, por exemplo, torna-se pauta do jornalismo. A narrativa torna os acontecimentos possíveis, viabilizando-os. O acontecimento, dessa forma, se dá na e pela narrativa; e ao ser narrado ele é construído. O modo de conhecimento do jornalismo tem sua força na singularidade do acontecimento (MEDITSCH, 1998). Dessa forma, entendemos o acontecimento, a partir da perspectiva de Queré (2005), como algo que se dá no campo da experiência, isto é, o acontecimento deve acontecer a alguém, afetar o sujeito, gerando efeitos da ordem do sentido. Para Queré (2005), o acontecimento é uma descontinuidade que só é percebida no fundo de uma continuidade e nesse processo e inaugura sentidos, marcando não apenas o fim de uma era, mas o começo de outra. Quando acontece, as coisas mudam e não são mais como antes. Há novas significações. Será através do jornalismo que o acontecimento na condição de signo ganhará textura definitiva. Tendo como epicentro a notícia, a narrativa jornalística, com seus códigos específicos, lógicas e processos de produção, trará pra si a competência de discernir para a sociedade a própria relevância do acontecimento (HENN, 2010, p. 87). A racionalidade do jornalismo, segundo Veiga da Silva e Beatriz Marocco (2018), é marcada por lógicas de poder positivistas-masculinistas. Os sentidos de gênero e poder ficam evidentes na sistematização das notícias, nos discursos produzidos e nas hierarquias das redações. As autoras, numa analogia às relações de gênero, sinalizam que as hardnews são as notícias que ocupam o topo da hierarquia do jornalismo porque são as notícias duras e fortes. A objetividade, a competitividade e o furo fazem parte da dinâmica do jornalismo masculinista (VEIGA DA SILVA, 2010), assim como tudo aquilo que é entendido como feminino socialmente: a subjetividade, a colaboração, compreendidas como atributos femininos, não têm valor para o jornalismo hegemônico, ficando na base da sua hierarquia. Donna Haraway (1995) propõe ressignificar objetividade a partir de uma objetividade corporificada, que coloca as pessoas como responsáveis por aquilo que aprendem a ver, por suas visões parciais e limitadas carregadas de subjetividade. Nesse caso, o jornalismo precisaria se conscientizar e se responsabilizar pela forma como narra os acontecimentos, deixando claro para o leitor a partir de que valores e posicionamentos está construindo aquele discurso. Nessa perspectiva, Oliveira, Osório e Henn (2019) sustentam que é necessária uma autorreflexão por parte do 200 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 jornalismo com o objetivo de rever práticas que simplificam os acontecimentos e seus sentidos, se colocando como mediador qualificado. Atualmente, o jornalismo vive uma crise sistêmica (HENN; OLIVEIRA, 2016) provocada pelas lógicas atuais do jornalismo em rede que modificaram, até certo ponto, as rotinas de produção e circulação das notícias. A crise sistêmica proposta por Henn e Oliveira (2016) é entendida numa perspectiva de possibilidade de transformação no jornalismo. Nesse processo, a participação de outros atores sociais intervindo nas dinâmicas do jornalismo coloca sentidos em disputa. A forma como o jornalismo narra e dá sentidos a um acontecimento, hoje, são mais facilmente questionados e muitas vezes contestadas (OLIVEIRA; OSÓRIO; HENN, 2019). O movimento feminista e LGBT, através de coletivos midiáticos e também da atuação de pessoas públicas como caso das deputadas, entra em constantes disputas de sentidos em função de acontecimentos que narram violências de gênero, por considerarem que as narrativas produzidas pelo jornalismo tradicional não dão a devida importância pra essa questão, quando não normalizam estes crimes. Corroborando com a discussão, o estudo que analisa notícias com a temática da violência de gênero de Dalila Coelho, Isabelle Chagas, Patrícia Prates e Carlos Carvalho (2019) percebe a partir da leitura dos dados coletados que as mortes e violências físicas e simbólicas contra mulheres não são discutidas pelo jornalismo a partir das lógicas sociais que produzem as violências de gênero, e muitas vezes reproduzem discursos do senso comum, que naturalizam os crimes, exploram a imagem e vida da vítima e até as culpabilizam. Há, por parte do jornalismo, um apagamento das condições de produção da desigualdade de gênero, e conforme os autores a violência de gênero ganha destaque no jornalismo quando há feminicídio. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS E ANÁLISE Para alcançar o objetivo proposto nos dedicamos a coletar, por meio de aplicativos de extensão do Google, as publicações de duas deputadas federais gaúchas nos seus respectivos perfis no Facebook no mês de julho. As escolhidas foram Maria do Rosário, deputada filiada ao Partidos dos Trabalhadores, e Fernanda Melchionna, deputada do Partido Socialismo e Liberdade. A escolha pelas duas deputadas se deu de forma intencional por serem deputadas em mandato atual, e que abordam em suas pautas a defesa pelos direitos das mulheres e LGBTQIA+. A intenção foi selecionar 201 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 as duas deputadas federais eleitas pelo Rio Grande do Sul que foram mais bem votadas nas eleições de 2018: Fernanda Melchionna (PSOL) somou 114.302 votos e Maria do Rosário (PT) chegou a 97.303 votos. Em terceiro lugar (portanto, não será incluída nesta análise) está Liziane Bayer (PSB), com 52.977 votos. Estas foram as três deputadas federais eleitas pelo RS no último pleito nacional. Deste modo, para apreender os discursos e sentidos produzidos pelas deputadas sobre violência de gênero a partir do jornalismo, procedemos com uma apropriação da Análise de Conteúdo e da Análise de Discurso francesa (Márcia BENETTI, 2011). Rocha e Deusdará (2005) pontuam que a Análise de Discurso (AD) busca uma sistematização de diferentes elementos textuais na tentativa de dar maior objetividade à análise. Os autores, ao diferenciarem Análise de Conteúdo e de Discurso, sinalizam que a de discurso procura compreender o plano discursivo, articulando contexto ideológico, sociedade e linguagem. Para Márcia Benetti (2016) o discurso se dá entre os sujeitos, ele é produto de sentido entre os interlocutores e é a partir da materialidade textual que os sentidos são produzidos por quem enuncia e por quem interpreta - não há sentidos literais. Dessa forma a AD é um ato interpretativo, mas em conformidade com Benetti (2010) entendemos que é preciso exercitar a interpretação a partir de um dispositivo teórico para entender como um discurso funciona. No caso deste texto, estamos orientadas pelos estudos de gênero e de jornalismo. Foram coletadas todas as publicações feitas pelas deputadas em seus perfis no Facebook. A partir da análise do formato e do conteúdo publicado selecionamos as publicações que abordavam a temática de gênero para análise do discurso. Nas seções seguintes é descrito como cada deputada acionou a temática em seus discursos. Após as especificações teóricas e metodológicas assinaladas nas etapas iniciais deste estudo, a análise será validada a partir das deputadas federais Maria do Rosário (PT) e Fernanda Melchionna (PSOL). A averiguação do discurso se dá no mês de julho, a partir do Facebook oficial de cada uma das gestoras públicas. Esse recorte se dá pela percepção de que a cobertura jornalística sobre violência de gênero havia se intensificado no período em consequência do aumento dos casos de violência e pela temática atravessar nossas pesquisas. 202 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 Fernanda Melchionna, em defesa de uma igualdade livre A deputada federal Fernanda Melchionna é natural de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Tem 36 anos, com ensino superior completo. Sua graduação é em Biblioteconomia, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em 2006. Também é especialista em História do Brasil Contemporâneo, pela UniRitter, em 2010. Atuou, ainda, como coordenadora geral do Diretório Central dos Estudantes da UFRGS, em 2005. Na atividade político-partidária, Fernanda foi vereadora em Porto Alegre em três ocasiões: de 2009 a 2012, de 2013 a 2016 e de 2017 a 2018. Toda sua atuação é vinculada ao PSOL. Na Câmara dos Deputados, a deputada integra a Comissão de Seguridade Social e Família e o Parlamento do Mercosul, além de presidir a subcomissão de seguridade social da mulher (CÂMARA..., [2021?]). Dentre suas principais defesas estão o feminismo, o ativismo social, a luta por um transporte público de qualidade, a moradia digna e popular, a educação pública e o combate aos privilégios de classe. (QUEM É..., [2021?]). Nas eleições nacionais de 2018, Fernanda Melchionna foi eleita com o PSOL para deputada federal pelo Rio Grande do Sul. Ela recebeu 114.302 dos votos nominais, na coligação PSOL/PCB. Foi a mulher mais bem votada do estado (TRIBUNAL..., [2021?]). A análise da deputada se dará por meio de sua página oficial no Facebook5, que soma 147,6 mil curtidas/seguidores. A coleta de material para análise se estende entre os dias 1º e 31 de julho de 2020. Neste período, foram contabilizadas 156 publicações – deste total, 21 tratam especificamente de abordagens de violência de gênero. São estes conteúdos que servirão como análise para a pesquisa. A maior parte das postagens se refere às temáticas de racismo, educação, combate a notícias falsas, enriquecimento de uma fatia da população, transporte público e igualdade de gênero. Há, ainda, em expressiva ênfase, um movimento de contrariedade e questionamento às decisões e propostas da Presidência da República, liderada por Jair Bolsonaro. Entre as 21 publicações de Fernanda que abordam questões de violência de gênero na pandemia, figuram problemáticas como: projeto de auxílio emergencial para mulheres mães, negado por Bolsonaro; a morte de Marielle Franco; e a igualdade para mulheres negras. 5 Disponível em: facebook.com/fernandapsol. 203 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 Há dois discursos reforçados pela deputada, no entanto, que emergiram mais sentidos diante do contexto desta pesquisa: o número de feminicídios na pandemia e a morte materna por Covid-19. Os dois serão detalhados a seguir. Em uma publicação no dia 9 de julho de 2020, o perfil da parlamentar do PSOL reproduz uma notícia veiculada em Gaúcha ZH que aborda o crescimento em 24% de feminicídios no Estado. A narrativa tecida pela deputada é de inconformidade, ao passo que reitera o quanto ainda há para avançar na luta contra o machismo e no combate à violência de gênero. O segundo apontamento se refere a uma postagem efetuada em 30 de julho de 2020 (Figura 1), quando a deputada federal replicou uma notícia da Folha de São Paulo sobre o Brasil ser o país com mais casos de mortes maternas por Covid19. A sentença de Fernanda é a de que, diante da pandemia, quem mais é atingido pelos malefícios da doença são mulheres pobres e negras. Figura 1 – Fernanda Melchionna Fonte: Elaborado pelas autoras, com base em Facebook. 204 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 Isto posto, parece possível assinalar que a performance de Fernanda Melchionna vai ao encontro do que a deputada propõe, de início: atuar coletivamente com mulheres brasileiras (em especial, as mais vulneráveis). O discurso jornalístico endossado no perfil oficial em análise apresenta-se mais potente diante da escassez de mulheres na política. Explicamos: apesar de haver um índice reduzido de lideranças políticas femininas na Câmara dos Deputados (tanto é que a nomenclatura do órgão aparece no masculino), a narrativa de Fernanda circula e ganha densidade na medida em que reforça noções de gênero e de representatividade. A deputada utiliza a sua voz, o seu espaço e a sua visibilidade para evidenciar problemáticas complexas da construção social brasileira. Ou seja: Fernanda Melchionna faz uso das relações de poder das quais têm domínio para reverberar argumentos que considera pertinentes à evolução do país. A deputada não dá continuidade ao discurso já naturalizado de que há um comportamento adequado para homens e outra conduta mais propícia a mulheres. Ora, a gaúcha nega a marca biológica enquanto determinante do nível de merecimento para cada um dos gêneros (partindo do princípio de binariedade, de que só existem dois gêneros). A narrativa entrelaçada por Fernanda Melchionna, a partir de notícias em seu Facebook, refere que na hierarquia imposta para as relações de poder dos gêneros alguém é a norma – e, portanto, o que foge a esta regra se torna o desvio. Mas a deputada contraria esta determinação ao garantir a busca por uma igualdade destes padrões de referência. Em vista disso, é possível conceber uma defesa de liberdade no discurso da gestora pública. As falas de Fernanda sublinham o exercício do poder (FOUCAULT, 1988) que consiste em um movimento com manobras sugeridas, mas também questionadas e resistidas. Esta inferência decorre da legitimidade do poder (LOURO, 19997) que só é verificado como coerente quando há espaço para resistência e contestação dos sujeitos envolvidos. Caso contrário, trata-se de violência – e aqui cabe considerar todas as agressões e invasões físicas, psicológicas e morais possíveis. A igualdade de gênero articulada à liberdade de existir dignamente aparece, portanto, como direito daqueles e daquelas que não se conformam com dada negociação de poder. Maria do Rosário, a luta contra a violência doméstica Maria do Rosário, nascida em 22 de novembro de 1966, é natural de Veranópolis, no Rio Grande do Sul. Pedagoga, mestre em Educação e Violência Infantil e doutora em Ciência Política pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Iniciou sua trajetória política em 1992, quando foi eleita pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB) vereadora de Porto Alegre, reeleita pelo Partido dos Trabalhadores em 1996. Em 1998 foi eleita deputada estadual e em 2002 foi eleita para o primeiro mandato como deputada federal, sendo reeleita nas quatro eleições seguintes, em 2006, 2010, 2014 e 2018. Em 2011, assumiu o cargo de Ministra Chefe da Secretaria dos Direitos Humanos. Desde o início da vida pública atua em favor da educação e dos direitos humanos, presidindo comissões e coordenando frentes parlamentares ligadas a essas temáticas. Atualmente é titular das Comissões de Constituição e Justiça e da Cultura e suplente nas comissões de Educação e de Legislação Participativa. Os sites de redes sociais são o ambiente de relacionamento e contato entre as pessoas, e com políticos não é diferente. As redes são utilizadas como espaço de 205 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 troca de informação, relato sobre atividades parlamentares e mobilização social. Nos diferentes sites de redes sociais, a deputada conta com quase 940 mil seguidores até a data de fechamento deste texto. No Facebook, espaço escolhido para análise, são 420 mil seguidores6. A coleta aconteceu por meio de printscreen das publicações feitas na página do Facebook entre os dias 1 de julho e 31 de julho de 2020. Nesse período foram 209 publicações em formatos diversos, com temas diversos. Observamos o uso de imagens, links, vídeos, transmissões ao vivo e compartilhamento de publicações, o que dá indícios de aproveitamento das ferramentas disponibilizadas pela plataforma. As publicações em sua maioria eram acompanhadas de textos médios, que foram separados por categorias: texto crítico, texto opinativo, texto reflexivo. Os itens analisados foram: quantidade de publicações, formato de publicação, conteúdo/temática e legenda. Como dito anteriormente, foram coletadas 209 publicações ao longo de 31 dias, uma média de 6,6 publicações por dia. No período da coleta observamos que foram feitas publicações todos os dias, sem exceção, e o dia com mais publicações foi dia 21 de julho, com 15. Os dias com menos publicações foram 4, 11, 12 e 19 de julho, com 3 publicações cada. O formato mais acionado pela deputada foi o uso do link de portais de notícias, foram 83 publicações. A maioria das publicações acompanhadas de links de notícias era de portais de notícias do jornalismo tradicional: Folha de São Paulo e G1 são os portais mais referidos. Importante dizer que o jornalismo tradicional ocupa espaço de saber e de poder legitimado na sociedade, especialmente porque se coloca como discurso de verdade. Imagens foram o destaque de 61 publicações, a maioria delas produzidas em softwares de edição. Destaque para as charges: no período da coleta, foram 5 publicações utilizando-as, especialmente para criticar o governo. A transmissão ao vivo foi o terceiro tipo de publicação mais utilizado, 34 vezes. Na maioria das vezes foi utilizada para promover debates sobre temas específicos. Os vídeos foram o quarto formato mais utilizado, 25 vezes. A maioria dos vídeos era uma fala da deputada Maria do Rosário sobre algum tema específico, como projetos de lei e votações em andamento na câmara. As temáticas mais presentes no discurso publicado no Facebook são a crítica ao governo como um dos temas principais das publicações feitas pela deputada, críticas à gestão da economia, da saúde, da educação e dos direitos humanos. As discussões sobre gênero e violência, foco dessa análise, foram a segunda temática mais acionada com 25 publicações. Na sequência, aparecem educação, saúde/covid-19 e direitos humanos. Outras temáticas também aparecem, como economia, racismo, meio ambiente, cultura e discursos sobre acontecimentos específicos. As discussões com a temática de gênero no perfil de Maria do Rosário são, na grande maioria, sobre direitos das mulheres e LGBTs, violência de gênero e desigualdade de gênero. Especificamente sobre violência de gênero, foram 11 publicações, a maioria delas tratando sobre a violência doméstica na pandemia. A deputada, junto com a bancada feminina, protocolou e colocou em votação projeto específico para diminuir a violência doméstica durante o período de isolamento. Dessas publicações, 5 estavam acompanhadas de links de portais de notícias. Na Figura 2, destacamos a notícia do Uol: Registro de violência doméstica cai na quarentena, mais mulheres morrem, publicada no dia 27 de julho. 6 Disponível em: facebook.com/DeputadaMariaDoRosario. 206 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 Figura 2 – Maria do Rosário Fonte: Elaborado pelas autoras, com base em Facebook. No texto da legenda, Maria do Rosário cita a lei recém aprovada em que é autora e coloca a partir da informação da notícia que com o distanciamento as mulheres se tornam vítimas sem chance de denúncia. Percebe-se o acionamento do jornalismo para informar também sobre sua atividade parlamentar em favor dos direitos das mulheres, especialmente contra a violência. As notícias utilizadas pela deputada abordam a violência doméstica e de gênero e a desigualdade de gênero. É importante destacar que a atuação em favor dos direitos humanos, das mulheres e LGBTs e da educação fica evidente na análise, são temas que ganham maior atenção da deputada, o que demonstra a consonância entre a prática e o discurso empregado. A luta contra a violência doméstica aparece com mais destaque em função do projeto de lei proposto e aprovado na Câmara que tem como objetivo central diminuir a violência doméstica no período do isolamento. Além disso, é importante destacar que a deputada é uma das poucas representantes femininas no Congresso que trabalha em favor dos direitos humanos das mulheres e dos LGBTs, o que denota que ser mulher não significa efetivamente atuar na luta pelos direitos das mulheres. Maria do Rosário, ao acionar o jornalismo para debater sobre a temática da violência de gênero, visibiliza as informações ao colocá-las em circulação, 207 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 acrescentando sua interpretação, produzindo sentidos sobre a notícia e abrindo espaço para o debate sobre a temática no seu perfil. Entretanto, percebe-se que a deputada legitima o discurso jornalístico como verdade. Como coloca Charadeau (2007), o acontecimento só se dá por meio da narrativa, portanto, quando a deputada carrega o discurso jornalístico para o seu perfil, evidencia a importância do papel de mediador que ele contém. CONSIDERAÇÕES FINAIS O jornalismo enquanto uma forma de conhecimento produz e reproduz sentidos que circulam na sociedade, muitas vezes reproduzindo discursos dominantes sobre violência de gênero. A partir de estudo sobre violência contra a mulher nas narrativas jornalísticas, os autores constataram que o jornalismo não discute as desigualdades de gênero de forma aprofundada, muitas vezes produzem sentidos que corroboram para a naturalização das violências. Além disso, produzem apagamento das dinâmicas sociais que produzem as violências de gênero. O jornalismo é uma prática social que tem nos seus discursos um senso de verdade, no entanto, está atravessado por dinâmicas da sociedade e da cultura, tomando como noção a ideia de que o jornalismo não é neutro, pois enquadra e organiza os acontecimentos conforme critérios e dinâmicas próprias que muitas vezes passam pelos valores dos jornalistas que produzem as notícias. A partir das análises é possível perceber que a atuação das duas deputadas contra a violência de gênero evidencia que seus discursos e práticas estão alinhados com as propostas de trabalho e atuação política a que se dedicam. A violência de gênero é temática destaque nos perfis do Facebook das deputadas, que recirculam o discurso jornalístico para propor discussões e marcar sua atuação política. A violência de gênero é entendida por nós como um acontecimento que muitas vezes só ganha o status de acontecimento quando há feminicídio ou quando há uma celebridade ou pessoa pública afetada. O jornalismo enquanto lugar de conhecimento e que se postula como mediador da sociedade precisa fazer uma reflexão sobre suas práticas, se conscientizar da sua parcialidade e subjetividade na condução dos processos de produção e circulação das notícias e se responsabilizar pelos discursos que produz, discursos estes que muitas vezes contribuem para a manutenção da desigualdade de gênero. 208 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 REFERÊNCIAS 70% DAS VÍTIMAS de agressão com armas de fogo em 2019 foram mulheres negras. In: Agência Patrícia Galvão. [S. l.], [2021?]. Disponível em: https://dossies.agenciapatriciagalvao.org.br/violencia-em-dados/70-das-vitimas-deagressao-com-armas-em-2019-foram-mulheres-negras/. Acesso em: 22 nov. 2021. BENETTI, Márcia. Análise de discurso como método de pesquisa em comunicação. In: MOURA, Claudia Peixoto; LOPES, Maria Vassalo (Org.). Pesquisa em Comunicação, metodologias e práticas. Porto Alegre: EdiPucrs, 2016. BOND, Letycia. Casos de feminicídio crescem 22% em 12 estados durante pandemia. Agência Brasil, São Paulo, 1 jun. 2020a. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-06/casos-defeminicidio-crescem-22-em-12-estados-durante-pandemia>. Acesso em: 10 ago. 2021. BOND, Letycia. SP: violência contra mulher aumenta 44,9% durante pandemia. Agência Brasil, São Paulo, 20 abr. 2020b. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2020-04/sp-violenciacontra-mulher-aumenta-449-durante-pandemia>. Acesso em: 10 ago. 2021. BONETTI, Alinne de Lima. Gênero, poder e feminismos: as arapiracas pernambucanas e os sentidos de gênero da política feminista. Labrys, études féministes/estudos feministas, jan./jun. 2012. Disponível em: <https://www.labrys.net.br/labrys20/brasil/aline.htm>. Acesso em: 25 jul. 2021. CÂMARA DOS DEPUTADOS. Fernanda Melchionna. Brasília, [2021?]. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/deputados/204407/biografia>. Acesso em: 10 ago. 2021. CAZARRÉ, Marieta. Mulheres representam 13% das vereadoras e 12% das prefeitas de todo o país. Agência Brasil, Brasília, DF, 20 mar. 2016. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/politica/noticia/2016-03/mulheres-representam-13das-vereadoras-e-12-das-prefeitas-de-todo-o-pais>. Acesso em: 10 ago. 2021. CHARAUDEAU, P. Discurso das Mídias. São Paulo: Contexto, 2007. COELHO, Dalila; CHAGAS, Isabelle; PRATES, Patrícia; CARVALHO, Carlos. A violência contra mulher em portais de notícias: (des) continuidades narrativas na cobertura jornalística. In: LEAL, B. S.; CARVALHO, C.A; ANTUNES, E. (Orgs.). Um problema do cotidiano: jornalismo e violência contra a mulher no Brasil. Belo Horizonte: Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2020. CONHEÇA as eleitas. In: Gênero e Número. [S. l.], [2021?]. Disponível em: https://generonumero.media/eleicoes2020/. Acesso em: 22 nov. 2021. FISCHER, Rosa Maria Bueno. O dispositivo pedagógico da mídia: modos de educar na (e pela) TV. Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 28, n. 1, p. 151-162, jan./jul. 209 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 2002. Dispo-nível em: < http://www.revistas.usp.br/ep/article/view/27882/29654>. Acesso em: 25 jul. 2021. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. Rio de Janeiro: Graal, 1988. FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA. Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2021. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/anuariobrasileiro-seguranca-publica/ acesso em out. 2021. GÊNERO E NÚMERO; SEMPRE VIVA ORGANIZAÇÃO FEMINISTA; Relatório Sem Parar: o trabalho e a vida das mulheres na pandemia. 2020. Disponível em <https://mulheresnapandemia.sof.org.br/wpcontent/uploads/2020/08/Relatorio_Pesquisa_SemParar.pdf> Acesso em nov. 2021. GROSFOGUEL, Ramón. A estrutura do conhecimento nas universidades ocidentalizadas: racismo/sexismo epistêmico e os quatro genocídios/epistemicídios do longo século XVI. Revista Sociedade e Estado, v. 31, n. 1, p. 25-49, jan./abr. 2016. GUZZO, Morgani. Mais mulheres feministas ocupam vagas no legislativo municipal em 2020. In: Catarinas. [S. l.], 18 nov. 2020. Disponível em: https://catarinas.info/mais-mulheres-feministas-ocupam-vagas-no-legislativomunicipal-em-2020/. Acesso em: 22 nov. 2021. HARAWAY, Donna. Saberes localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu, n. 5, p.7-41, 1995. HENN, R.; DIAS, M. S. M. “Se ela é não-binária, por que referem no feminino?”: um corpo estranho em disputa. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 26, n. 3, set./dez. 2019. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/33922/ 19368>. Acesso em: 10 ago. 2021. HENN, R. O acontecimento em sua dimensão semiótica. In: BENETTI, Marcia; FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira (Org.). Jornalismo e Acontecimento: mapeamentos críticos. Florianópolis: Insular, 2010. HENN, R; OLIVEIRA, F. M. Jornalismo e movimentos em rede: a emergência de uma crise sistêmica. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 22, n. 3, p. 77-95, jul./ago./set. 2015. Disponível em: <https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/20560/ 13269>. Acesso em: 10 ago. 2021. ILHA, Flavio. Há uma epidemia de violência doméstica dentro da pandemia. Extra Classe, [S.l.], 15 jul. 2020. Disponível em: <https://www.extraclasse.org.br/geral/2020/07/ha-uma-epidemia-de-violenciadomestica-dentro-da-pandemia/>. Acesso em: 10 ago. 2021. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: uma perspectiva pósestruturalista. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1997. 210 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 LOURO, Guacira Lopes. Gênero e sexualidade: pedagogias contemporâneas. ProPosições, v. 19, n. 2, maio./ago. 2008. LOURO, Guacira Lopes. Pedagogias da Sexualidade. In: LOURO, G. L (Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2000. MAPA da violência de gênero. In: Mapa da Violência de gênero. [S. l.], [2021?]. Disponível em: https://mapadaviolenciadegenero.com.br/. Acesso em: 22 nov. 2021. MENEGATTI, Mariana et al. Retratos da violência doméstica de gênero na pandemia da Covid-19. In: Comunicação & Inovação, São Caetano do Sul, SP, v. 21, n. 47, p. 158-175, 2020. MEDITSCH, E. Jornalismo como forma de conhecimento. Revista brasileira de Ciências da Comunicação. São Paulo, v. 21, n. 1, p. 25-38, jan./jun. 1998. Disponível em: <http://www.portcom.intercom.org.br/revistas/index.php/revistaintercom/article/view/9 56/859>. Acesso em: 8 ago. 2021. MEYER, D. E. Gênero e educação: teoria e política. In: LOURO, G.L; FILIPE, J.; GOELLNER, S.V. (Org.). Corpo gênero e sexualidade: um debate contemporâneo na educação. Petrópolis: Vozes, 2012. OLIVEIRA, F. M.; OSÓRIO, M.; HENN, R. Agir cartográfico: proposta teóricometodológica para compreensão e exercício do jornalismo. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 28., 2019, Porto Alegre. Anais eletrônicos... São Paulo: Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2019. Disponível em: <http://compos.org.br/biblioteca/trabalhos_arquivo_VOHR9REETUOVW8I3TZYF_28 _7626_21_02_2019_07_24_15.pdf>. Acesso em: 8 ago. 2021. PROCURADORIA ESPECIAL DA MULHER. Mulheres na política. Brasília, [2021?]. Disponível em: <https://www12.senado.leg.br/institucional/procuradoria/procpublicacoes/cartilha-mulheres-na-politica>. Acesso em: 10 ago. 2021. QUEM É Fernanda Melchionna. Deputada Federal Fernanda Melchionna. [S.l.], [2021?]. Disponível em: <https://fernandapsol.com.br/perfil/>. Acesso em: 10 ago. 2021. QUERÉ, Louis. Entre facto e sentido: a dualidade do acontecimento. Trajectos – Revista de Comunicação, Cultura e Educação. Lisboa, n. 6, p. 59-76, 2005. ROCHA, D.; DEUDARÁ, B. Análise de Conteúdo e Análise do Discurso: aproximações e afastamentos na (re)construção de uma trajetória. In: ALEA v 7, n 2 julho dezembro, 2005. SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação & Realidade, Porto Alegre, vol. 20, n. 2, p. 71-99, jul./dez. 1995. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71721/40667>. Acesso em: 8 ago. 2021. 211 Revista Contraponto v. 8, n. 3 (dez/2021) ISSN: 2358-3541 TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL (TSE). Estatísticas do eleitorado. Brasília, [2021?]. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/eleicoes/estatisticas/estatisticaseleitorais>. Acesso em: 10 ago. 2021. VEIGA DA SILVA, Marcia; MAROCCO, Beatriz. O feminino no livro de repórter: uma mirada epistemológica de gênero sobre as práticas jornalísticas. In: ENCONTRO ANUAL DA COMPÓS, 26., 2017, São Paulo. Anais eletrônicos... Belo Horizonte: Associação Na-cional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação, 2017. Disponível em: <http://www.compos.org.br/data/arquivos_2017/trabalhos_arquivo_HPYP1U9GFDE8 MPXCN9XH_26_5505_20_02_2017_15_11_31.pdf>. Acesso em: 25 jul. 2021. VEIGA DA SILVA, Marcia. Masculino o gênero do jornalismo: modos de produção da notícia. 2010. 250 f. Dissertação (Mestrado em Comunicação e Informação) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação, Universidade Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, 2010. Disponível em: <https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/25629/000753018.pdf?sequence =1&isAllowed=y>. Acesso em: 25 jul. 2021. VEIGA DA SILVA, Marcia. Masculino o gênero do jornalismo: modos de produção das notícias. Revista Insular, Florianópolis, 2014. VEIGA DA SILVA, Marcia; FONSECA, Virginia Pradelina da Silveira. A contribuição do jornalismo para a reprodução de desigualdades: um estudo etnográfico sobre a produção de notícias. Verso e Reverso, vol. 25, n. 60, p. 183-192, set./dez. 2011. Disponível em: <http://revistas.unisinos.br/index.php/versoereverso/article/view/ver.2011.25.60.05>. Acesso em: 25 jul. 2021. * Artigo recebido em 12 de agosto de 2021, aprovado em 12 de novembro de 2021. 212