A vida da angústia
É possível morrer de angústia? Talvez. Hoje, numa pandemia que se não mata
pelo vírus tem gerado tamanha angústia na vida do mundo, talvez seja mesmo possível morrer
de angústia. Certo é, porém, que a angústia está estreitamente ligada à experiência da presença
da morte na vida. A experiência da presença da morte na vida não é o mesmo que a consciência
de que, sendo vivo, se é mortal, ou seja, de que quem vive um dia haverá de morrer. Sem dúvida,
a consciência da morte como uma certeza não é coisa simples, pois a morte certa é ela mesma
incerta, já que, à exceção de uma execução, não se sabe quando a morte chega. Pode-se então
dizer que a consciência da morte é a consciência de uma certeza incerta. Por oposição à
consciência da morte, a experiência da presença da morte na vida, é a experiência de um
estreitamento da vida, da vida estreitada, apertada, estrangulada. Isso tampouco é o mesmo que
temer a morte. Como entender esse aperto da vida na vida, que chama de angústia?
Vários filósofos e psicanalistas insistiram sobre a necessidade de se distinguir a
angústia do medo. A distinção proposta em várias discussões filosóficas e psicanalíticas referese sobretudo à diferença do “objeto” no medo e na angústia. Enquanto o medo tem um objeto
– tem-se medo da morte, do cachorro, até do futuro, a angústia não tem objeto: não se sabe bem
o que angustia, por que acordamos angustiados, com coração apertado, o peito estrangulando.
Parece que a angústia vem mesmo do nada e nos leva para o nada. Não se sabe o que angustia,
mas que se está angustiado.
Heidegger propôs uma interpretação da angústia que é um marco não só para a
investigação do fenômeno psicológico da angústia, mas para a própria compreensão da filosofia
que atenta para como os conceitos, teorias e idéias se enraízam no modo como a existência
humana é no ser. Pois o homem não está simplesmente dado como algo que meramente “está
aí”, mas que é enquanto uma relação com esse é. O homem é relação e não algo que é e depois
tece relações com as coisas, consigo mesmo, com os outros, com o mundo. Como ser é para
Heidegger relação, dizer o homem é, significa dizer que o homem se relaciona e que são as
relações que constituem o seu ser. Ser relação é ser tocado e só assim se tocar e tocar; ou ainda,
é tocar e se tocar ao ser tocado por tudo que ele não é. Esse foi o modo como Heidegger definiu
ser-relação. Para salientar esse tocar e se tocar em sendo tocado, essa ação recíproca, que é
atividade e passividade ao mesmo tempo, o que os gramáticos chamam de “voz média”,
Heidegger definiu o ser-relação constitutivo do ser do homem como disposição. Ser relação é
ser disposição e não ocupar uma posição. Essa disposição não é contudo meramente racional
e sim uma “disposição afetiva”, um “humor”, uma “tonalidade afetiva”, usando aqui algumas
traduções do termo alemão usado por Heidegger que é Stimmung. Essa palavra alemã e nórdica
é difícil de ser traduzida devido à sua rica polissemia. Provém de Stimme, que significa voz.
Como verbo, stimmen não significa uma tonalidade, mas o afinar, ajustar, como um
instrumentista afina o seu instrumento. Daí o sentido extensivo de concordar, votar, ajustar uma
voz à voz dos outros, à voz de uma coletividade. Como substantivo, Stimmung diz, em seu uso
cotidiano, atmosfera, clima, ambiente, quando se afirma por exemplo, a presença de fulano
criou um clima pesado ou o inverno nórdico tem uma atmosfera muito peculiar, intimista. Essa
terminologia que provém da palavra para dizer voz, Stimme, traz o som como seu elemento, e
o som é por natureza algo que envolve e circunda tudo e nunca algo que se dá apenas
parcialmente, apenas de um lado, em frente, atrás, ou do lado. Ao afirmar que o melhor é a
Stimmung, a afinação da alma pela atmosfera que a envolve, o poeta alemão Novalis considerou
que essa afinação era propriamente uma “acústica da alma”, um campo ainda a ser explorado,
caracterizado por vibrações harmônicas e desarmônicas ao mesmo tempo1.
1
Hoje se eu fosse retraduzir Ser e Tempo usaria vibração para dizer Stimmung em português]
Para Heidegger o homem só pode se colocar a pergunta sobre o sentido de ser e
da existência numa afinação, numa vibração afetiva, numa Stimmung. Pois essa pergunta não
se coloca todos os dias ou a qualquer hora. É preciso que o fato de ser, o fato bruto de que há
ser, toque a existência humana. E uma das vibrações privilegiadas para que a pergunta sobre o
sentido de ser se coloque é, segundo ele, a angústia e o tédio. Mas não apenas estas: também a
alegria e o amor são vibrações fundamentais. Heidegger não desenvolve estas últimas e dele
guardamos a análise existencial-fenomenológica da angústia e do tédio. Não vou reproduzir
aqui a análise heideggeriana mas apenas chamar atenção que a angústia heideggeriana,
desprovida de objeto, é angústia diante do nada da existência. Mas é nessa atmosfera e vibração
da existência não valendo nada, não tendo sentido ou valor, que se pode fazer duas grandes
descobertas: a primeira, a descoberta do que é ser-todo, ser-tudo. Pois o nada da angústia
avassala tudo. Mas com isso, descobre-se que há tudo e o todo. A segunda descoberta é talvez
a mais importante: a de que a experiência da existência sem valor ou sentido algum também faz
aparecer que a existência vale por ela mesma, e que seu sentido não está fora dela mas somente
no existir. Pode-se assim descobrir que todo o valor e sentido da existência está em existir sem
razão e sem finalidade fora dela, que existir é entregar-se ao existir, que ser é entregar-se a ser,
não isso ou aquilo, não em razão ou em vista disso ou daquilo, mas simplesmente a existir e
ser, intransitivamente.
Por isso, Heidegger considera a angústia uma vibração fundamental da alma, um
modo fundamental como a alma vibra no ser de maneira a mostrar que ser é “nada”, ou seja,
coisa alguma, mas um verbo em aberto. O nada de um sem saída assustador esconde um em
aberto liberador, como dois lados de uma mesma folha de papel em branco. Às análises
filósoficas, poderíamos somar as contribuições da psicanálise, como as clássicas de Freud e
Lacan, que buscam justamente explicitar como a angústia diante do nada, da falta, do todo
avassalador e sem saída atua no âmbito da esfera igualmente aterradora da liberação
transformadora. A angústia age na soleira que faz coincidir o sem-saída e o em-aberto, o
supradeterminado e o supra-indeterminado.
Mas em todas essas análises da angústia acentua-se a angústia da existência
individual diante da totalidade e imensidão do mundo e da vida. Nelas, o foco está na existência
humana, no modo como o homem existe na vida do mundo e no mundo da vida. Mas há ainda
outras dimensões desse fenômeno chamado angústia. Uma outra dimensão é o que o filósofo
que também se situa na atmosfera do romantismo alemão Friedrich Wilhelm Joseph von
Schelling descreveu como a angústia da própria vida. Para ele, é antes de mais nada a vida
quem se angustia e não apenas o homem jogado na vida. A vida se angustia no sentido de
estreitar-se, de ser um estreitamento de sua força explosiva e criadora ao se ‘confinar’ por assim
dizer numa existência finita, numa forma de vida. Pois vida é pura dinâmica de formação, força
de proliferação e transformação, uma movimentação que como tal não é nada determinado, mas
continua possibilidade e possibilitação , que no entanto só pode ser essa continua possibilitação,
ao se determinar em múltiplas e infinitas formas finitas de vida. Os românticos estavam
possuídos pelo sentido de vida como dialética entre o infinito e o finito, entendendo a vida finita
como o modo em que o infinito se realiza e concretiza, opondo-se a si mesmo. Não precisamos
entrar em muitos detalhes mas eu trouxe essa breve referência à expressão schelligniana de
“angústia da vida” para indicar que não só o homem se angustia mas também a vida se estreita
e aperta e que talvez esse seja um bom modo de definir a finitude, não só temporalmente mas
como uma dinâmica de expansão vital através de contrações, como se dá na vida nascente, essa
que em algumas espécies, dentre as quais a humana, nasce contraindo-se. A angústia da vida é
o modo como a vida se cria e expande no modo paradoxal e até trágico de expandir-se ao
contrair-se, de crescer ao estreitar-se. A angústia da vida faz aparecer uma dimensão digamos
extra-humana da vida, ou seja, não como o homem é na vida mas como a vida é no que vive,
inclusive no homem. Nesse sentido, a angústia não é uma exclusividade humana, mas o modo
como a vida inclui tudo o que vive. A angústia da vida faz aparecer a possibilidade de uma vida
da angústia.
A linguagem romântica que trata a angústia num sentido metafísico e cósmico e
não somente existencial e psicológico, ou seja, como fenômeno especificamente “humano” faz
aparecer a angústia como uma condição criadora de existência. Foi essa condição criadora de
existência que também orientou o pensamento que inaugurou a compreensão existencialista da
angústia com Kierkegaard, que guarda, em muitos aspectos, profundas conexões com a filosofia
do romantismo e idealismo alemão. Kierkegaard partiu da questão do homem criado, da criação
divina do homem. Nos vários tratamentos filosóficos da angústia, sejam eles metafísicos ou
existencialistas, está em questão antes de tudo a criação de existência, como a existência se cria
enquanto algo que é para si, enquanto busca de si, enquanto existência singular. A angústia
pode ser tomada filosoficamente como dinâmica de singularização e finitização – a dinâmica
em que se vem a ser o que se é – o que significa, do vir a ser o que se pode ser.
Mas o que dizer de uma angústia que não é só “minha”, de uma angústia
compartilhada? Não falo aqui de uma angústia coletiva pois isso seria mais a transposição de
um “eu” singular para um “eu” geral ou coletivo. O que dizer da angústia enquanto uma
experiência compartilhada? É possível compartilhar a angústia, esse estreitamento no peito,
esse tremendo aperto no coração, que tira a fala dos lábios, que sufoca e asfixia a singularidade
de cada um? Aos tratamentos filosóficos hoje já clássicos da angústia caberia acrescentar uma
reflexão sobre a partilha da angústia, sobretudo quando hoje nos vemos combalidos e assolados
por uma tremenda angústia comum a ponto de talvez ser necessário acrescentar à angústia do
homem e à angústia da vida, uma outra angústia, a angústia do mundo: sim o estreitamento do
mundo na sua expansão digital virtual – um estreitamento que se mostra de forma violenta na
pandemia.
Clarice Lispector pode nos dar alguns sinais para aprofundar essa questão. 30 de
novembro de 1968, Clarice publica uma crônica intitulada Angina petoris da alma. Angina
pectoris é o nome científico para o “estrangulamento no peito”, a dor toráxica devido à baixa
entrada de oxigênio, provocada geralmente por aterosclerose ou trombo. É o nome científico
dos mesmos sintomas da angústia. Clarice fala do estrangulamento do peito da alma, do aperto
do coração da alma, quando o peito e o coração da alma se estreitam. Ela parte de que a alma
tem um peito e um coração. Ela descreve a angústia como um acontecimento e não como uma
atmosfera ou vibração. Na crônica se lê: “quando mal vem, o peito se torna estreito, e aquele
reconhecível cheiro de poeira molhada naquela coisa que antes se chamava alma e agora não é
chamada nada”. Ela descreve a angústia como a experiência do mal estar vindo e não do mal
que já chegou. Não descreve a angústia como uma disposição humana diante de um sentimento
de vazio abissal, de falta de futuro ou esperança, mas como acolhimento desse estar vindo. Fala
de como o que antes se chamava alma agora não é chamada nada. Clarice situa, portanto, a
angústia como experiência de uma perda do nome e dos chamados do nome. Ela escreve ainda
que a angústia é “a falta de esperança na esperança”, um “confirmar-se sem se resignar”. Ao
dizer falta de esperança na esperança, Clarice sublinha que existir não é poder ter ou não
esperança, mas que existir é esperança e que a angústia é quando se experimenta falta de
esperança na esperança, uma falta de existência na existência, já que é preciso existir para sentir
angústia. Em um de seus livros, a Maçã no Escuro, Clarice fala de que não se trata de conseguir
ter ou reaver esperança de um mundo melhor, mas de que o mundo é que espera de nós a
esperança – pois nós somos a esperança do mundo. A crônica de Clarice continua dizendo que
na angústia, eu cito, “Não se consegue confessar a si próprio porque nem se tem mais o quê.
Ou se tem e não se pode porque as palavras não viriam. Não ser o que realmente se é, e não se
sabe o que realmente se é, só se sabe que não se está sendo. E então vem o desamparo de se
estar vivo. Estou falando da angústia mesmo, do mal. Porque alguma angústia faz parte: o que
é vivo, por ser vivo, se contrai”2.
Essa breve crônica pensa a angústia desde os seus “sintomas”, digamos, básicos:
não conseguir respirar, não conseguir falar. É uma reflexão que aprofunda os sentidos apertados
e estrangulados no peito. É um pensamento da angústia como aperto e estrangulamento no peito
dos sentidos. Na angústia, quando o peito e o coração da alma se apertam, as palavras não vem,
o que antes se chamava alma agora não é chamada nada. Clarice relaciona essa impossibilidade
de dizer e chamar, da linguagem vir à boca ao não estar sendo. E faz aparecer um traço muito
decisivo na angústia que é não estar existindo na existência, não estar sendo no sendo. Ela pensa
a angústia como uma relação interrompida, sufocada, com o sendo da existência, que impede a
presença no presente, mais do que a vibração na qual o todo e o nada se tocam, o sem-saída e
o em aberto co-incidem. Para Clarice, a angústia chega mesmo a ser descrita como a
“incapacidade de enfim sentir a dor,” como ela diz no livro a Aprendizagem ou o Livro dos
prazeres. Porque a angústia sufoca e obstrui o estar sendo, porque ela tira a possibilidade de
dizer e exprimir ela atravanca a partilha da existência. Como compartilhar a angústia?3 Num
conto chamado Mensagem, Clarice descreve a partilha da angústia entre dois jovens. Não no
sentido de que os dois jovens sentiam a mesma angústia, mas que compartilhavam a
discrepância entre a experiência da angústia, a sua vida, e a palavra angústia, o dizer dessa
experiência. Eles compartilham a angústia de ter de falar o que não se deixa falar, e falar na
língua dos “outros”, já que a linguagem é sempre a língua dos outros, a língua aprendida e
herdada numa cultura, num mundo. A grande angústia partilhada era de compartilhar o que não
pode ser compartilhado, de comunicar o que não se deixa comunicar. Eles queriam dizer a
2
3
In A descoberta do mundo, 155-156
Heidegger em seus escritos políticos, chegou a falar de um espírito de comunidade que se
forma na angústia quando vivida não como intimismo mas como uma espécie de solidariedade
dos abalados pela dor metafísica, cf. GA 39, Hölderlins Germanien, p. 87 e outras.
experiência e não podiam pois experiência sempre gagueja na boca, fica na ponta da língua
procurando palavras precisas e só encontrando a precisão da palavra. Experiência, escreve
Clarice nesse conto, “às vezes também se confundia com mensagem”4. Nem a palavra poesia
era capaz de dizer essa angústia de não poder dizer a angústia. Na literatura de Clarice, a
angústia é a experiência de como experiência é ela mesma a mensagem e de como isso fala uma
língua impossível, a língua da linguagem atravessada na garganta, a língua do não conseguir
dizer. Os dois jovens estão andando em Botafogo, na rua apertada em frente ao cemitério. Todos
as experiências descritas no conto trazem a marca da angústia: caminho apertado e estreito,
morte diante de si, e de repente uma casa “ensobrada e enraizada”, como ela diz, uma “casa
angustiada”5. A casa é que era angústia e calma, como palavra nenhuma o fora, podemos
continuar a ler. A casa era “aquela catedral do medo solidificado”6, “aquela coisa erguida tão
antes deles nascerem, aquela coisa secular já esvaziada de sentido, aquela coisa vindo do
passado”7. A angústia literária, por assim dizer, pensada por Clarice é a angústia do passado
vazio, do passado que se esvazia ao permanecer em forma de sentidos fixos e solidificados,
como por exemplo na palavra angústia. A casa – quer era a angústia como nenhuma palavra o
fora – era a expressão vazia de expressão, a expressão em busca de sua própria expressão. O
conto acaba com os dois jovens descobrindo-se homem e mulher sentindo a angústia de estar
sendo o que eram – não homem ou mulher – não isso ou aquilo mas o estar sendo naquela
partilha do que não se sabe ou pode compartilhar.
A contribuição literária de Clarice para as visões filosóficas e psicanalíticas da
angústia faz aparecer a difícil vida da angústia, a vida que por ser e estar viva é sempre uma
partilha, mas que inclui a partilha do que não se pode partilhar. Essa talvez seja a experiência
literária da angústia, que faz do não conseguir dizer um modo de dizer. Não que a literatura
4
Felicidade clandestina, 125.
Ibdiem, 128.
6
Ibdiem, 129.
7
Ibidem.
5
consiga dizer o que comumente não se consegue dizer mas de dizer esse não conseguir dizer;
de a literatura ser uma língua onde a própria linguagem está sempre na ponta da língua e o peito
apertado e o coração estrangulado vaza em sons e murmúrios inauditos.
Essa reflexão final sobre a contribuição literária de Clarice para pensar a angústia
talvez nos dê alguma coisa hoje, quando fazemos a experiência de uma angústia comum – onde
a experiência, a mensagem, se vê arrancada da experiência, quando tudo vira vivência e
espetáculo, alcançando um grau de narcisismo que tanto envergonharia o velho Narciso e faz
do narcisismo um verbo transitivo direto quando a pratica social se reduz a um “eu te narciso”
e “nós narcisamos você ou vocês”, como se isso pudesse anestesiar o coração apertado do
mundo, o peito estrangulado da vida. A contribuição literária de Clarice parece pedir de nós
leitores – que ao lermos sobre a angústia, ao citarmos os filósofos e teóricos da psicanálise
refletindo sobre a angústia – não esquecermos da necessidade de ouvir as batidas do coração
apertado do mundo, de auscultar o peito estrangulado da vida buscando vir à palavra, como os
índios livres que escutam os tremores e tenores da vida com orelhas coladas no chão. Assim
nascem palavras vindas da vida da angústia, pois se a angústia designa falta de vida na vida,
falta de esperança na esperança, essa falta é ela mesma viva. E mesmo se a experiência, a
mensagem, se vê hoje, como Clarice escreve no final do conto, “esfarelada na poeira que o
vento arrastava para as grades do esgoto” é preciso falar como quem tem farelos de poeira na
boca. Num mundo da ambiguização de todos os sentidos, da manipulação de todos significados,
da mutação de todos os valores, do esvaziamento de toda existência quando tudo que é pode
ser qualquer coisa, na experiência de um capitalismos virulento que nada mais faz do que
“qualquerizar” tudo o que é para substituir qualquer coisa que seja por qualquer coisa que seja,
nunca foi tão necessário reaprender a falar, nunca foi tão necessário re-existir, não para existir
de forma mais autêntica e verdadeira mas para existir e dizer, escutando o bater do coração
estrangulado, o sem fôlego da vida apertada. Se comecei dizendo que a angústia é a presença
da morte na vida, talvez agora depois de uma reflexão possamos dizer que a nossa angustia
comum refere-se à experiência da morte ou ausência da presença na vida. Talvez a grande lição
literária de Clarice tenha sido indicar que a relação entre a angústia da vida e a angústia da
existência humana na vida seja que a angústia humana é a angústia da angústia da vida
Marcia Sá Cavalcante Schuback
Rio de Janeiro, 2021