História das Mulheres
no Brasil Meridional
Criada em 2012, a Coleção EHILA lançou, até o momento,
mais de uma dezena de volumes impressos. Pensando
principalmente na publicação de coletâneas, inauguramos
em 2014 a série E-book da Coleção Estudos Históricos
Latino-Americanos (EHILA), que chega neste momento
ao volume 9.
Ana Silvia Volpi Scott
José Carlos da Silva Cardozo
Jonathan Fachini da Silva
(Orgs.)
História das Mulheres
no Brasil Meridional
2a edição – E-book
Vol. 9
OI OS
EDITORA
Estudos Históricos
Latino-Americanos
São Leopoldo
2022
© 2022 – Editora Oikos Ltda.
Rua Paraná, 240 – B. Scharlau
93120-020 São Leopoldo/RS
Tel.: (51) 3568.2848
contato@oikoseditora.com.br
www.oikoseditora.com.br
Coleção Estudos Históricos Latino-Americanos – EHILA
Direção:
Maria Cristina Bohn Martins (Coordenadora do PPGH-Unisinos)
Luiz Fernando Medeiros Rodrigues (Editor – Linha de Pesquisa Sociedades Indígenas, Cultura e Memória)
Maíra Ines Vendrame (Linha de Pesquisa Migrações, Territórios e Grupos Étnicos)
Marluza Marques Harres (Linha de Pesquisa Poder, Ideias e Instituições)
Conselho Editorial:
Eduardo Paiva (UFMG)
Guilherme Amaral Luz (UFU, Uberlândia, MG)
Horacio Gutiérrez (USP)
Jeffrey Lesser (Emory University, EUA)
Karl Heinz Arenz (UFPA, Belém, PA)
Luis Alberto Romero (UBA, Buenos Aires, Argentina)
Márcia Sueli Amantino (UNIVERSO, Niterói, RJ)
Marieta Moraes Ferreira (FGV, Rio de Janeiro, RJ)
Marta Bonaudo (UNR)
Rodrigo Patto Sá Motta (UFMG)
Roland Spliesgart (Ludwig-Maximilians-Universität München)
Editoração: Oikos
Revisão: Rui Bender
Capa: Juliana Nascimento
Imagem da capa: Quadro (Colheita) de F. Scholles, 110 x 180cm, 2006.
<https://www.fscholles.net/>. Publicado em: Reinheimer, Dalva
et al. Quadros que falam: narrativas migratórias. São Leopoldo: Oikos,
2021. p. 94.
Diagramação e arte-final: Jair de O. Carlos
H673
História das mulheres no Brasil Meridional. 2. ed. [E-book]. / Organizadores: Ana Silvia Volpi Scott, José Carlos da Silva Cardozo e
Jonathan Fachini da Silva. – São Leopoldo: Oikos; Editora Unisinos, 2022.
v. 9 (539 p.); 14 x 21cm. – (Coleção Estudos Históricos LatinoAmericanos – EHILA)
ISBN 978-65-5974-065-9
1. Mulher – História. 2. Mulher – História Brasil Meridional. 3.
Mulher – História social. I. Scott, Ana Silvia Volpi. II. Cardozo, José
Carlos da Silva. III. Silva, Jonathan Fachini da.
CDU 396(091)
Catalogação na publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil – CRB 10/1184
Sumário
Palavras dos organizadores ..................................................... 7
Ana Silvia Volpi Scott, José Carlos da Silva Cardozo
e Jonathan Fachini da Silva
Prefácio ................................................................................. 11
Joana Maria Pedro
Mulheres e vida familiar na Porto Alegre oitocentista
(1800-1872) ...........................................................................21
Ana Silvia Volpi Scott e Dario Scott
Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres
na Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX ............................... 67
Denize Terezinha Leal Freitas
A geração de um mercado assistencial:
protagonismos femininos na criação dos expostos ................. 92
Jonathan Fachini da Silva
Mulheres e saúde no Brasil Meridional:
pobreza, assistência e relações sociais .................................. 115
Daiane Silveira Rossi
Mais do que uma condição social, uma escolha: viúvas e
a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX) ..... 135
José Carlos da Silva Cardozo
Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas
militares no extremo sul no século XIX ............................... 163
José Iran Ribeiro
As prisioneiras de Clio ........................................................ 185
Tiago da Silva Cesar
História social da escravidão sob a perspectiva interseccional:
mulheres escravizadas e as experiências de maternidade
(Rio Grande do Sul, século XIX) ......................................... 244
Bruna Letícia de Oliveira dos Santos e Marina Camilo Haack
“E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho na antiga
colônia alemã de São Leopoldo (final do século XIX
e início do século XX) ......................................................... 274
Daniel Luciano Gevehr e Marlise Regina Meyrer
Mulheres na zona de colonização italiana no sul do Brasil ...... 299
Vania B. M. Herédia
O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre
(final do século XIX) ........................................................... 321
Maíra Ines Vendrame
Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre ............... 356
Natália de Lacerda Gil
Memórias do magistério: narrativas de professoras egressas
da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970) ............ 382
José Edimar de Souza e Fabiano Quadros Rückert
Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil ................................................................... 406
Nikelen Acosta Witter
Rostos e gestos exigem contemplação: representações
de mulheres na Porto Alegre da década de 1930 pelas
fotografias da Revista do Globo .............................................. 427
Cláudio de Sá Machado Jr.
Mulheres e feminismos no sul do Brasil ............................... 453
Ana Maria Colling e Natalia Pietra Méndez
As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares
(1993-2020) ......................................................................... 480
Fabiane Simioni
Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916) .......................... 507
Adriana Kivanski de Senna
Sobre as autoras e os autores ............................................... 535
Posfácio da 2a edição ........................................................... 539
6
História das Mulheres no Brasil Meridional
Palavras dos organizadores
O livro que agora se publica, História das Mulheres no Brasil
Meridional, encerra uma trilogia, iniciada em 2014, no âmbito da
coleção Estudos Históricos Latino-Americanos (EHILA), parceria bem-sucedida entre a Editora Unisinos e a Oikos Editora, sob
os auspícios do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). A coleção (impressa e em formato e-book)1, inaugurada em 2012, vem ocupando um lugar importante na divulgação de estudos de História.
Há sete anos, no formato e-book, era lançada a primeira
parte da trilogia, História da Família no Brasil Meridional: temas e
perspectivas, que reunia treze autores e autoras que davam contribuições para uma temática que ganhava cada vez mais espaço
na historiografia. A marca essencial da publicação era a mescla
entre pesquisadoras e pesquisadores com trajetórias acadêmicas
consolidadas e jovens e talentosos(as) historiadoras e historiadores que desenvolviam seus estudos nos vários programas de pósgraduação espalhados pelo Rio Grande do Sul e outras paragens
brasileiras. Para mais, o livro se caracterizava também pela diversidade das abordagens, com fontes e metodologias variadas, que
buscavam abarcar a complexidade e a heterogeneidade dos arranjos familiares.
Em 2016, dois anos após o lançamento da História da Família no Brasil Meridional, se concretizava a publicação da História das Crianças no Brasil Meridional, que se escorou, sobretudo, na
vontade e disposição de continuar a problematizar e analisar temas que a historiografia internacional e brasileira estava pautando, mas com um olhar voltado para as vivências e as experiências
das populações que se radicaram nos extremos meridionais do
1
<https://oikoseditora.com.br/colecoes>.
7
SCOTT, A. S. V.; CARDOZO, J. C. da S.; SILVA, J. F. da • Palavras dos
organizadores
país. Mais uma vez, os organizadores apostaram na conjugação
de trajetórias acadêmicas que estavam em momentos diferentes,
consolidadas e em ascensão. Foram vinte os autores e autoras
que escreveram sobre as crianças e jovens no Brasil Meridional, a
partir de enfoques ricos e variados. Em 2020 saiu a 2ª edição da
História das Crianças no Brasil Meridional, na mesma coleção, em
formato e-book.
De lá para cá, a vida seguiu, plena de compromissos, demandas, mas a ideia de completar a trilogia, com uma História das
Mulheres no Brasil Meridional permanecia no horizonte. Assim, a
vontade e a determinação dos organizadores se sobrepuseram às
dificuldades que se avolumaram no contexto muito difícil que todo
o mundo e, especialmente os brasileiros e brasileiras, enfrentaram
com a pandemia. Crise sanitária, crise ambiental, crise econômica,
crise política e institucional, ataques à Ciência, negacionismo, corte de apoio e financiamento à pesquisa... Nada disso impediu que
a História das Mulheres no Brasil Meridional viesse a público!
A publicação acontece em um momento oportuno, pois são
os períodos mais difíceis, críticos e desafiadores que impõem a
reflexão sobre a sociedade (no passado e no presente) e demandam a participação de todas as Ciências, mas em especial, o olhar
sensível e, mais do que nunca, necessário das Ciências Humanas
e Sociais. No Brasil, como no mundo, as mudanças estão se acelerando e, por isso mesmo, exigem análises sobre a sociedade e os
novos papéis que as mulheres (e os homens) vêm desempenhando, assim como reflexões sobre as relações que se estabelecem
entre as pessoas. Afinal, a diversidade é uma realidade incontornável, está na pauta da sociedade e a aceitação delas é um desafio
que está posto.
Na sociedade brasileira, marcada pela diversidade e pela
desigualdade, as mulheres (assim como outros segmentos) vivenciam situações que se afastam da urgente e imprescindível equidade. É inegável que avanços ocorreram, mas estamos longe do
desejável e, pior ainda, corremos sérios riscos de retrocesso, com
o crescimento da onda conservadora e até reacionária, em nível
mundial e no Brasil, que ameaça as conquistas realizadas nas úl-
8
História das Mulheres no Brasil Meridional
timas décadas. Entre nós, o contexto atual colocou em evidência,
mais do que nunca, o traço perverso da desigualdade, com a qual
convivemos diariamente.
Neste cenário, esta História das Mulheres no Brasil Meridional
teve como meta principal dar a sua contribuição sobre tema caro
à historiografia internacional e brasileira. No Brasil, como será
visto no prefácio do livro, há uma produção considerável sobre a
temática, que inclui recortes regionais, na qual se integra este volume sobre as mulheres no espaço meridional.
Mantendo-se fiel ao eixo norteador das obras que a precederam, a História das Mulheres no Brasil Meridional reuniu pesquisadoras e pesquisadores em vários estágios da carreira acadêmica, alargou as temáticas, as fontes e as metodologias, assim como
o recorte temporal. Dos séculos iniciais da ocupação do Continente do Rio Grande de São Pedro, ao século XXI, a diversidade
de experiências, vivências e atuação das mulheres foi estudada e
analisada por um conjunto de mais de duas dezenas de estudiosos e estudiosas, reunindo contribuições de pesquisadoras e pesquisadores oriundos de várias instituições espalhadas pelo Rio
Grande do Sul e pelo Brasil.
Assim, encerra-se este ciclo de reflexão sobre o Brasil Meridional. A história das incontáveis Mulheres que viveram e vivem nesta porção de território foram objeto de atenção, ainda que
não deem conta de todos os aspectos que podem ser estudados,
mas, com certeza, dão um panorama da sua inserção e atuação
na sociedade, trazendo à tona, mais uma vez, seu protagonismo e
agência, que foram colocados em evidência em variadas situações e recortes temporais.
Diante disso, os organizadores só podem agradecer a todas
as pessoas envolvidas na iniciativa. Sem dúvida, as/os protagonistas dessa História das Mulheres no Brasil Meridional são os autores e autoras que acreditaram no projeto, doaram seu tempo e seu
conhecimento para refletir sobre as mulheres. Sem a generosidade e a confiança desse grupo não teríamos como reunir esse conjunto de contribuições.
9
SCOTT, A. S. V.; CARDOZO, J. C. da S.; SILVA, J. F. da • Palavras dos
organizadores
Mas, o que fazer com os capítulos reunidos, sem os recursos para transformá-los em um livro e levá-lo a um público mais
amplo? Aí é que o financiamento público à pesquisa se revela
fundamental. Os recursos podem ser alocados na divulgação dos
resultados, devolvendo à sociedade o investimento efetuado não
apenas na concretização dessa obra, mas, sobretudo na formação
de pesquisadores que, ao longo de suas carreiras, foram e são beneficiados com bolsas de estudo, com financiamento para projetos de pesquisa, com recursos para sua formação acadêmica, desde a Iniciação Científica, passando pelo Mestrado, Doutorado,
Pós-Doutorado, atuando nas suas instituições, nas mais variadas
funções, que incluem ensino e pesquisa.
Esta História das Mulheres no Brasil Meridional foi beneficiada por esses recursos públicos. Dessa forma, os organizadores
agradecem o apoio financeiro recebido, através da Capes, do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Estadual
de Campinas (Unicamp). Agradecem à Coordenação do Programa, assim como às áreas de “História Social, Diferenças e Conflitos” e “Dinâmicas e Linguagens Políticas”, que através das linhas de pesquisa “Mundos do Trabalho na Escravidão e na Liberdade” e “Deslocamentos, Desigualdades e Direitos” aprovaram os recursos para a publicação.
Por fim, mais uma vez, um agradecimento à direção da
EHILA, pela confiança na iniciativa da publicação da História das
Mulheres no Brasil Meridional.
Ana Silvia Volpi Scott
José Carlos da Silva Cardozo
Jonathan Fachini da Silva
Verão “pandêmico” de 2021/2022
10
História das Mulheres no Brasil Meridional
Prefácio
Em 14 de setembro de 2021 foi aprovado, por 20 votos a 5,
na Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, o PL 86/
2019, de autoria da Bancada Feminina da Alesc, que criou o estudo da História das Mulheres Catarinenses como conteúdo transversal nas escolas1. Para estas aulas já existe bibliografia disponível, em diferentes âmbitos, resultado de pesquisas que vêm sendo
desenvolvidas desde os anos oitenta do século XX.
A História das Mulheres ganhou notoriedade e sucesso editorial a partir dos anos 90 do século XX, quando Georges Duby e
Michelle Perrot coordenaram a coletânea em cinco volumes da
“História das Mulheres do Ocidente”2, com tradução para dez línguas. Esta obra inspirou, no Brasil, a “História das Mulheres no
Brasil”, coordenada por Mary Del Priore, publicada em 19973. Em
2012, tive a oportunidade de publicar, junto com Carla Bassanezi
Pinsky, a “Nova História das Mulheres no Brasil”4. Na Argentina,
também foi publicada uma coletânea semelhante chamada “Historia de las mujeres en la Argentina”, lançada em 20005, formada por
dois volumes. Em 2006, foi publicado, na Espanha, uma coleção
de quatro volumes sob o título “Historia de las mujeres en España
y América Latina”6. Todas fizeram muito sucesso.
1
Disponível em: <http://agenciaal.alesc.sc.gov.br/index.php/noticia_single/
plenario-aprova-projeto-sobre-ensino-da-historia-das-mulheres-de-sc>. Acesso em:
15 nov. 2021.
2
DUBY, Georges; PERROT, Michelle. História das mulheres no Ocidente. Porto:
Afrontamento; São Paulo: Ebradil, 1993.
3
PRIORE, Mary Del (org.). História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto/
Unesp, 1997.
4
PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova História das Mulheres
no Brasil. São Paulo: Contexto, 2012.
5
LOZANO, Fernanda Gil; PITA, Valeria Silvina; INI, María Gabriela (dirección).
Historia de las mujeres en la Argentina. Buenos Aires: Taurus, 2000. Tomo II, Siglo
XX.
6
MORANT, Isabel (dir.). Historia de las mujeres en España y América Latina: Del
siglo XX a los umbrales del XXI, v. IV. Madrid: Catedra, 2006.
11
PEDRO, J. M. • Prefácio
No Brasil, em âmbito estadual temos, também, várias publicações. Em 2001, Antônio Morga organizou “História das Mulheres de Santa Catarina”7. Em 2020, Georgiane Garabely Heil Vázquez organizou a coletânea “Nova História das Mulheres no Paraná”8 e, em 2021, Ana Carolina Eiras Coelho Soares e Murilo Borges Silva coordenaram a publicação de “História das Mulheres,
Relações de Gênero e Sexualidades em Goiás”9. Com certeza, outras obras foram publicadas e não tivemos acesso a elas. A continuidade das pesquisas neste campo fará surgir novas coletâneas
que tragam narrativas da História das Mulheres, como esta que estou
prefaciando e que tem como foco o Brasil Meridional.
Quando a história das mulheres passou a ganhar destaque
editorial, uma das coisas que se perguntou foi: qual a contribuição
deste tipo de historiografia para o conhecimento que temos de História. Saber que havia mulheres nas cidades, no campo, nas fábricas, nas prisões, nas notícias de jornal, nas guerras, iria afetar o que
se sabe sobre o passado? E mais, qual a contribuição das mulheres
para a mudança ou para a permanência das instituições? Afinal, as
mulheres contribuem para a transformação ou para a manutenção
das estruturas da sociedade?
Por isso, quero começar tentando responder estas perguntas: as mulheres são conservadoras? São inovadoras? Precisamos
primeiro perguntar de que mulheres estamos falando. Creio que
esta é uma das principais contribuições das pesquisas que pensam,
investigam, organizam fontes e focalizam a vida das mulheres.
Em vários momentos da história política de diferentes nações, as
mulheres foram consideradas conservadoras. Foi com o conservadorismo das mulheres que a Nova Zelândia contou para instituir o
voto delas em 1893. Com o crescimento da alfabetização entre a
7
MORGA, Antônio (org.). História das Mulheres de Santa Catarina. Florianópolis:
Letras Contemporâneas; Chapecó: Argos, 2001.
8
VÁZQUEZ, Georgiane Garabely Heil (org.). Nova História das Mulheres no Paraná.
Porto Alegre: Editora Akikopias, 2020.
9
SOARES, Ana Carolina Eiras Coelho; SILVA, Murilo Borges. História das
Mulheres, Relações de Gênero e Sexualidades em Goiás. Jundiaí/SP: Paco Editorial,
2021.
12
História das Mulheres no Brasil Meridional
população o número de votantes mestiços cresceu, e o medo deste
voto fez com que congressistas brancos vissem no voto das mulheres a manutenção das estruturas. Lembro que, neste país, como em
outros no final do século XIX, somente mulheres de classes médias
e da elite tinham acesso à educação e, portanto, eram alfabetizadas. Lembro, ainda, que quem reivindicava o voto para as mulheres eram as que faziam parte da elite, e compunham a “Liga da
Temperança”, que reivindicavam leis restritivas à venda de bebidas
alcoólicas. Elas diziam que as mulheres deveriam votar porque eram
as menos corrompidas pela bebida, e que um governo que contasse
com o voto das mulheres viveria uma restauração moral.
Foi também para barrar a força dos votos nos comunistas,
que haviam ganhado muito prestígio através da sua luta na resistência contra a invasão nazista na França, que alguns deputados
franceses votaram, em 1944, para instituir o voto das mulheres. De
acordo com estes deputados, as mulheres eram conservadoras, não
eram comunistas e seguiriam os conselhos dos padres, que, no confessionário e nas igrejas, aconselhariam o voto contra os candidatos do Partido Comunista Francês.
Muitos sindicalistas do século XIX e do século XX desconfiavam das mulheres operárias. Além de serem colocadas nas fábricas com salários menores, aceitavam condições difíceis de trabalho
que os operários organizados não queriam aceitar. Estas mulheres
eram, em sua maioria, solteiras, viúvas ou, quando casadas, vinham
de famílias com sérias dificuldades de sobrevivência: maridos dependentes de álcool, doentes, com deficiências, etc. O trabalho na
fábrica era para algumas um tempo que passariam ali, enquanto
esperavam o casamento e, para outras, uma condição desesperada
de sobrevivência que as fazia aceitar as condições mais penosas.
No casamento os filhos que eram chamados de bênçãos, tornavam-se numerosos e eram também difíceis de serem mantidos
vivos e saudáveis com salários baixos e com desemprego. Daí o
medo das greves, das manifestações e das revoltas. Eram elas que
enfrentavam o dia a dia de gravidezes que se sucediam, de alimentos que não eram suficientes, de crianças que choravam constantemente. As esposas eram as primeiras a questionar os maridos quando os sindicatos chamavam para alguma ação. Elas queriam esta-
13
PEDRO, J. M. • Prefácio
bilidade, segurança e certeza de que haveria alimentos suficientes
para hoje, amanhã e depois.
O casamento, numa sociedade que criava mulheres para obedecer ao pai, ao marido, ao irmão, enfim, aos homens, representava para elas reconhecimento social, mesmo nas famílias pobres.
Neste livro, um dos capítulos tem como fonte os registros de batismo; mostra que 72% das crianças livres batizadas eram nascidas de
mulheres casadas10. Isso demonstra que o casamento nos moldes
tridentinos era desejado pelas mulheres, independentemente de classe. Enfim, mulheres queriam casar-se. O casamento permitia estabilidade e reconhecimento social. É claro que nem todas as mulheres teriam esta possibilidade. As escravizadas raramente se casavam ou tinham no registro de batismo de seus filhos os nomes dos
pais.
O casamento dentro dos moldes da Igreja Católica, de qualquer maneira, não era alcançado por todas as mulheres, embora
pudesse ser algo desejado. Outras formas de união eram frequentes; o concubinato, mesmo sendo desqualificado, fazia parte da vida
de muitos casais. Havia vida para além da moral tridentina; esta é a
temática de um dos capítulos deste livro, mostrando os arranjos
familiares que passavam fora das regras da Igreja Católica.11 Não
foi somente no Rio Grande do Sul que mulheres viveram fora da
moral tridentina. Maria Odila Leite da Silva Dias, através dos dados de população de São Paulo, constatou que, entre 1804 e 1835,
em torno de 40 a 36% das casas eram habitadas por mulheres sós,
chefes de família12. Algumas podiam ser casadas mas com maridos
ausentes, outras eram solteiras e muitas destas viviam uniões consensuais consecutivas, portanto fora da moral tridentina.
Para as mulheres muito pobres, libertas ou escravizadas, os
espaços de sobrevivência dificilmente cobrariam as regras de casa-
10
Trata-se do capítulo “Mulheres e vida familiar na Porto Alegre oitocentista (18001872)”, escrito por Ana Silvia Volpi Scott e Dario Scott.
11
“Para além da moral tridentina”: trajetórias de mulheres na Porto Alegre do
século XVIII e XIX, escrito por Denize Terezinha Leal Freitas
12
DIAS, Maria Odila da Silva. Quotidiano e Poder em São Paulo no Século XIX. São
Paulo: Editora Brasiliense, 1995, p. 31.
14
História das Mulheres no Brasil Meridional
mentos registrados. Nas ruas, faziam o comércio de diferentes produtos, tocavam pequenas lavouras, ou até se tornavam amas de
expostos. Improvisar a sobrevivência fazia parte do dia a dia. Em
Porto Alegre elas se tornaram amas criadeiras, e, embora a remuneração fosse mínima e constantemente atrasasse, continuava sendo uma forma de ter algum dinheiro, como nos mostra um dos
capítulos deste livro.13 Note-se que concorriam com homens e, conforme os registros, pouquíssimas eram casadas.
São estas mesmas mulheres pobres que irão recorrer à assistência de saúde e buscar socorro no Hospital de Caridade de Santa
Maria; um dos capítulos do livro identificou suas principais doenças: tuberculose, sífilis, gripe e reumatismo14.
Voltando à questão de as mulheres serem consideradas conservadoras, foi a isso que referiu Augusto Pinochet para justificar a
derrubada do governo de Salvador Allende no Chile, em 1973.
Desde 1971 mulheres de camadas médias e das elites conservadoras batiam panelas contra o governo da União Popular. Para Pinochet era o povo que apelava para a intervenção do exército e rejeitava as reformas do presidente eleito15. O mesmo pode ser visto no
Brasil em 1964, quando a “Marcha da família com Deus pela Liberdade” encabeçada por mulheres conservadoras, foi considerada
apoio popular ao golpe militar.
Esta foi, também, a posição dos jornais Echo do Sul, Diário do
Rio Grande e Artista, entre 1889 e 1916, quando publicaram matérias sobre divórcio. Um dos capítulos deste livro aborda esse assunto16. A maioria das reportagens pressupunha que as mulheres
rechaçavam e temiam o divórcio, mesmo tendo publicado uma
13
“A geração de um mercado assistencial: protagonismos femininos na criação
dos expostos”, escrito por Jonathan Fachini da Silva.
14
“Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência e relações sociais”,
escrito por Daiane Silveira Rossi.
15
CAPDEVILA, Luc. Résistance civile et jeux de genre. Annales de Bretagne et des
Pays de l’Ouest [En ligne], 108-2 | 2001, mis en ligne le 20 juin 2003, consulté le
02 maio 2019. URL: <https://journals.openedition.org/abpo/1737>; DOI:
<https://doi.org/10.4000/abpo.1737>.
16
“Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação do divórcio absoluto
no Brasil (1889-1916)”, escrito por Adriana Kivanski de Senna.
15
PEDRO, J. M. • Prefácio
reportagem na qual mulheres do Rio de Janeiro defendiam o
divórcio. Entretanto, sabemos que, por exemplo, o divórcio foi
instituído no período inicial da Revolução Francesa como consequência da Constituição de 1791. A partir de então, a lei passou a
considerar o casamento como um contrato civil. O número de divórcios foi grande, sendo abolido em 1816. Entre 1792, data da
aprovação da lei, e 1803, foram registrados 30 mil divórcios na
França. Grande parte destes foram solicitados pelas mulheres. Os
registros focalizam Lyon e Rouen e apontam que “dois terços
dos pedidos feitos sem acordo mútuo foram encaminhados por
iniciativa das mulheres”17.
Para as mulheres nem sempre foi fácil viver a mudança. As
exigências culturais e familiares cobram posições que signifiquem
a manutenção da família. No capítulo deste livro que fala sobre as
Promotoras Legais Populares – PLPs, podemos ler sobre uma iniciativa inovadora que encontra dificuldades de execução em algumas famílias18. Instruídas em artefatos jurídicos capazes de enfrentar a violência contra as mulheres, informadas sobre leis e direitos,
as PLPs deveriam identificar, acolher, orientar e acompanhar as
mulheres em situação de violência. Algumas delas, entretanto, vivem esta violência dentro de sua própria casa e não se sentem confortáveis de dizer para as outras mulheres, na mesma situação, sobre o que devem fazer. Para várias delas, a oposição dos maridos
foi muito forte; algumas inclusive tiveram que se separar. Elas constataram que não é fácil ser feminista dentro de casa. Mulheres de
bairros populares convivem dentro de casa com a violência e relativizam muitas vezes o que vivem; isso não significa que sejam conservadoras, mas muitas não querem se identificar como feministas.
Como incorporar a mudança numa sociedade que, por tanto tempo, premiou mulheres bem comportadas, submissas, caladas, honestas, virgens? E, convém lembrar, de formas diferentes,
17
HUNT, Lynn. Revolução francesa e vida privada. In: PERROT, Michelle (org.).
História da Vida Privada 4. Da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009. p. 39.
18
“As lutas de mulheres de classes populares por direitos em Porto Alegre/RS: o
caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)”, escrito por Fabiane Simioni.
16
História das Mulheres no Brasil Meridional
esta expectativa de mulheres voltadas para a família e sem buscar
seus próprios desejos atravessa classes sociais. O capítulo deste livro sobre as viúvas com posses que buscam a tutela dos filhos menores19 mostra como somente a demonstração de virtudes, comprovadas por outros homens, garantiam que mulheres viúvas administrassem os bens e tivessem a tutela de seus próprios filhos. E,
ao conseguir esta tutela, estavam garantindo que não iriam mais se
casar, mesmo sendo muito jovens, e iriam manter-se longe de qualquer desconfiança em relação a sua honra. Como estas mulheres
poderiam querer inovar, transgredir, mudar seu destino? Olhos atentos vigiariam seu comportamento, suas falas, sua rara visibilidade.
É possível afirmar que, para mulheres das camadas populares, viver a transgressão das normas vigentes era menos complicado. Neste livro, alguns capítulos focalizam estas transgressões; as
mulheres que participavam das revoltas e das guerras é um exemplo.20 Muitas utilizavam as expectativas de gênero que as autoridades possuíam para passar despercebidas, tornando-se contato entre
grupos revolucionários. Afinal, ninguém esperava que uma mulher pudesse se tornar espiã, que pegasse em armas, que atuasse em
conspirações. Poderíamos dizer que elas usavam o gênero21. Ao
mesmo tempo as autoridades reconheciam a presença de mulheres
e de seus filhos, que acompanhavam soldados nas batalhas, algumas até entendiam a utilidade desta presença.
Estas não eram as únicas transgressões. Nas prisões as mulheres também estavam presentes, mesmo quando os registros não
se detinham muito sobre elas. É o que nos conta um dos capítulos22, apontando o desconforto da cela que aglomerava todas as
presas e a ausência da possibilidade de se exercitar e tomar sol,
como acontecia com os presos homens.
Desde meados do século XIX, a medicina, a justiça, os periódicos definiam que o grande objetivo da vida das mulheres era a
19
“Mais do que uma condição social, uma escolha: viúvas e a tutela de menores
na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)”, escrito por José Carlos da Silva Cardozo.
20
“Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares no extremo sul no
século XIX”, escrito por José Iran Ribeiro.
21
Sobre usos ou jogos de gênero ver CAPDEVILA, op. cit.
22
“As Prisioneiras de Clio”, escrito por Tiago da Silva Cesar.
17
PEDRO, J. M. • Prefácio
maternidade. Então, como transgredir o que se esperava das mulheres como mães? Nem todas, porém, seguiam este caminho. Neste
livro, um dos capítulos trata de duas mulheres julgadas por infanticídio23 e um outro fala de mulheres que eram parteiras e que provocavam aborto em outras mulheres, a seu pedido24. Mostra que aborto
e infanticídio eram práticas costumeiras25 entre as mulheres e que
foram sendo vigiadas e criminalizadas, tornando cada dia mais difícil, para elas, o controle do próprio corpo.
Pode-se então assegurar que não é somente de busca por estabilidade e de conservadorismo que se resume a História das Mulheres. Como vimos, a transgressão faz parte desta história, não
importando a classe ou a raça e etnia. Mulheres de origem alemã
atuaram nas fábricas como operárias e, também, fazendo trabalhos
a domicílio26 para ganhar algum recurso. Trabalhavam, assim, na
terra e nas produções industriais. Estendiam desta maneira a própria noção de trabalho doméstico, criavam triplas jornadas. E também inovavam. É isso que mostra o capítulo sobre empresárias de
origem italiana27. Seu conhecimento permitia adaptar maquinários e criar soluções inusitadas.
Transgressão e mudança vão trazer os movimentos de mulheres e feministas, especialmente aqueles que se organizaram a
partir da segunda metade dos anos setenta. Um dos capítulos deste
livro os focaliza28. Acompanhando o que acontecia em outros lu23
“História social da escravidão sob a perspectiva interseccional: mulheres
escravizadas e as experiências de maternidade (Rio Grande do Sul, século XIX)”,
escrito por Bruna Letícia de Oliveira dos Santos e Marina Camilo Haack.
24
O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes no campo da saúde no
espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX), escrito por Maíra Ines
Vendrame.
25
Ver a este respeito PEDRO, Joana Maria (org.). Práticas Proibidas: Práticas
costumeiras de aborto e infanticídio no século XX. Florianópolis: Cidade Futura,
2003.
26
“Fragmentos de memórias: mulheres trabalhadoras na área de imigração alemã
(Vale dos Sinos, Rio Grande do Sul, final do século XIX e início do século XX)”,
escrito por Marlise Regina Meyrer e Daniel Luciano Gevehr.
27
“Mulheres na Zona de Colonização Italiana no Sul do Brasil”, escrito por Vania
B. M. Herédia.
28
“Mulheres e feminismos no sul do Brasil”, escrito por Ana Maria Colling e Natalia
Pietra Méndez.
18
História das Mulheres no Brasil Meridional
gares do Brasil, as mulheres se organizaram no MFPA – Movimento Feminino Pela Anistia e, também, em agrupamentos que se
autoidentificavam com o feminismo. Lutavam contra a ditadura
militar, mas também exigiam o fim do patriarcado, direito ao corpo, espaços na política, liberdade sexual e lutavam pelo fim da violência contra as mulheres.
Grande parte destes grupos eram formados por mulheres de
classe média intelectualizada, muitas eram estudantes universitárias. Suas reivindicações acompanhavam uma longa trajetória de
reivindicação por educação para mulheres. Dois capítulos neste livro falam da educação das mulheres: das meninas pobres29, e da
trajetória de professoras30.
A escrita da História das Mulheres, atualmente, incorporou
novas categorias de análise e riscou de sua narrativa questões que
estavam presentes nos textos mais antigos. Já não se considera que
“feminina” é sinônimo de mulher. O feminismo, e especialmente
hoje, as mulheres trans, questionam esta palavra. Afinal, o que é
“feminina”? Uma natureza? Quando foi inventada esta natureza?
Outra questão é o uso que se fazia da categoria “condição feminina”31, pensada no sentido de um certo destino para todas as mulheres, baseado no seu corpo, independente de qual classe, raça, etnia
e geração teriam. Hoje a escrita da História das Mulheres rejeita
esta categoria, pois sabe que tal “condição” é resultado de relações
de poder, que baseiam no corpo as possibilidades da vida das mulheres. Também a palavra “Mulher” tem sido rejeitada e trocada
por “Mulheres”. A pergunta é, sempre: de que mulher estamos falando? Por outro lado, a categoria gênero tem sido cada vez mais
incorporada na escrita da História das Mulheres. O que precisa-
29
“Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre”, escrito por Natália de
Lacerda Gil.
30
“Memórias do magistério: narrativas de professoras egressas da Escola ‘Estadual
de Sapiranga’, RS (1960-1970)”, escrito por José Edimar de Souza e Fabiano
Quadros Rückert.
31
Ver o verbete em VEIGA, Ana Maria Pedro. Condição Feminina. In: COLLING,
Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio. Dicionário Crítico de Gênero.
Dourados: Editora da UFGD, 2019. p. 130-133.
19
PEDRO, J. M. • Prefácio
mos fazer é uma narrativa histórica sobre as mulheres que leve em
conta as relações de gênero.
A categoria que, oriunda do movimento de mulheres negras,
tem sido cada vez mais incorporada, é a “interseccionalidade”.
Neste livro, um dos capítulos incorpora esta categoria de análise32.
Ficamos sabendo que as formas estéticas das fotos de mulheres,
publicadas nos jornais, eram atravessadas pela questão de classe33 e
que os trajes que são considerados tradicionais não têm base em
fontes históricas34, são inventadas.
O que as pessoas que publicam capítulos neste livro sobre a
História das Mulheres do Brasil Meridional mostram, é algo que
nem sempre é aceito: que as mulheres são seres humanos diversos.
Não são santas, nem bruxas, são solidárias, mas também são egoístas e capazes de crimes. Podem ser amorosas, mas também podem
odiar profundamente. Por vezes, são conservadoras e lutam contra
qualquer inovação, por vezes se aventuram e quebram todas as normas. Podem transgredir e, até, criar novos mundos. Mas podem
também, muitas vezes, impedir que a mudança se instale, colaborando com o que há de mais retrógrado e autoritário. Nunca são
iguais, como qualquer ser humano.
Joana Maria Pedro
Universidade Federal de Santa Catarina
32
“História social da escravidão sob a perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências de maternidade (Rio Grande do Sul, século XIX)”,
escrito por Bruna Letícia de Oliveira dos Santos e Marina Camilo Haack.
33
“Rostos e gestos exigem contemplação: representações de mulheres na Porto
Alegre da década de 1930 pelas fotografias da Revista do Globo”, escrito por
Cláudio de Sá Machado Jr.
34
“Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta no sul do Brasil”, escrito por
Nikelen Acosta Witter.
20
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mulheres e vida familiar na
Porto Alegre oitocentista
(1800-1872)*
Ana Silvia Volpi Scott
Dario Scott
Introdução
O eixo escolhido para discutir a vida familiar na Porto Alegre oitocentista coloca as mulheres no “centro da roda”. A discussão constrói-se e se articula na esteira de estudo sobre a freguesia
Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, localidade que
deu origem à capital do estado do Rio Grande do Sul.
A escolha implica um elevado grau de complexidade, uma
vez que trata de um núcleo urbano inserido em uma sociedade escravista, profundamente hierarquizada, desigual e com intenso processo de mestiçagem. Como no restante do Brasil daquela época,
predominavam valores patriarcais e misóginos, que se alicerçavam
nas Ordenações Filipinas (1603), código jurídico herdado de Portugal, e no aparato normativo da Igreja Católica pós-tridentina,
articulados através das Constituições Primeiras do Arcebispado
da Bahia (1707). Sob a égide do patriarcalismo, pressupunha-se
a submissão das mulheres, assim como dos filhos e de todos os
parentes e/ou dependentes ao poder do pater familias (LOTT, 2008;
SCOTT, 2017).
A literatura sobre o estudo das mulheres em perspectiva histórica no Brasil é vasta, e um marco importante desse percurso historiográfico foi a publicação da coletânea “História das Mulheres
* Os autores agradecem o auxílio financeiro recebido do CNPq, FAPERGS e
CAPES em distintas etapas desta pesquisa.
21
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
no Brasil” (1997). As contribuições reunidas discutiam qual era o
lugar das mulheres em nossa sociedade e traziam novas perspectivas sobre o tema, assinalando que a história das mulheres era relacional, incluindo a família, a criança, o trabalho, a sexualidade,
entre outras abordagens possíveis (DEL PRIORE, 2009, p. 7-9).
Ficava evidente que muitas imagens sobre as mulheres eram
idealizadas e que várias facetas do universo feminino não corroboravam os estereótipos consagrados pelo senso comum ou pela opinião letrada tradicional. Descobriam-se, assim, mulheres de carne
e osso, ganhando a vida, agindo como chefes de família, sós, sem
maridos ou companheiros (VAINFAS, 2009, p. 116).
Maria Beatriz Nizza da Silva foi pioneira nesse campo, e
seus estudos remontam à década de 1980 com o clássico “Sistema
de Casamento no Brasil Colonial” (SILVA,1984), seguido de vários aportes fundamentais nas décadas seguintes, entre eles “Donas e plebeias na Sociedade Colonial” (SILVA, 2002).1
Nas décadas seguintes, os estudos sobre as mulheres e as
famílias no Brasil continuaram a se multiplicar, recebendo também contribuição importante da Demografia Histórica (SCOTT,
2015; SCOTT, 2019).
A despeito desses avanços, continua a ser instigante a discussão sobre o lugar que as mulheres ocuparam na sociedade, ainda que a resposta comece pela negação e pela exclusão. Elas estavam excluídas de qualquer exercício de função política nas câmaras municipais, na administração eclesiástica, proibidas de ocupar cargos na administração colonial que lhe garantissem reconhecimento social, e os papéis sexuais na colônia reproduziam o
que se conhecia na metrópole. Isso, no entanto, não impediu que
tivessem outras maneiras de se inserir na sociedade, sobretudo as
mulheres de condição social subalterna, que, em múltiplos papéis, atuavam como roceiras em pequenas propriedades, no pequeno comércio de rua, na prostituição (FIGUEIREDO, 2009, p.
1
Entre outros vejam-se “Vida Privada e quotidiano no Brasil” (SILVA,1993), “História da Família no Brasil Colonial” (SILVA,1998). Entre os estudos mais recentes destacam-se “Vida familiar em Pernambuco Colonial” (SILVA, 2017a) e “Família e Herança no Brasil Colonial” (SILVA, 2017b).
22
História das Mulheres no Brasil Meridional
142). Tal situação permaneceu, virtualmente, inalterada ao longo
de todo o século XIX.
Nizza da Silva, analisando as mulheres de camadas sociais
mais privilegiadas, afirmava que, mesmo destituídas de poder político, as “donas” detinham poder econômico e não se furtavam a
usá-lo. Outro ponto relevante apontado é que a posição de maior
proeminência era obtida através de vínculos familiares ou através
do matrimônio (SILVA, 2002, p. 65s.).
Portanto, ricas e pobres, livres, forras ou escravizadas, as
mulheres de diferentes estatutos sociais e posição econômica fizeram-se presentes e participativas na vida em sociedade, ainda que
se vissem identificadas e enredadas no ideal de família monogâmica e indissolúvel, legitimado pelo sacramento do matrimônio. Conforme as normativas, ali era o seu espaço “natural”: elas deveriam
se casar, constituir família e procriar. Por essa razão o Estado, a
Igreja e a sociedade mantinham-se atentos a eventuais “quebras do
protocolo”, sobretudo quando geravam situações escandalosas
(TORRES LONDOÑO, 1999).
Por outro lado, os estudos têm mostrado que o modelo de
casamento e de família que se tentava impor não alcançava toda a
população. Apesar da pressão e da vigilância, arranjos familiares
baseados em uniões consensuais ou outros tipos de relacionamento faziam parte do cotidiano de homens e mulheres. Assinala-se
ainda que o matrimônio legitimado através dos ritos da igreja envolvia preferencialmente os indivíduos mais bem posicionados na
estrutura hierárquica da sociedade, em geral eram livres e “brancos” (ou tidos como tais).
Para os grupos menos favorecidos, incluindo os escravizados, a opção mais recorrente restringia-se ao que as Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia classificavam como “ilícita conversação de homem com mulher”, isto é, o adultério, o concubinato, a mancebia, os amasiamentos e quaisquer outras formas de convivência sexual e conjugal que não se consumassem através do matrimônio tridentino (DEL PRIORE, 1994).
A relevância desses tipos variados de relacionamento e de
união para a vida familiar das mulheres manteve-se também no
23
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
período imperial, e sua mais clara manifestação aconteceu através
dos elevados percentuais de nascimentos de crianças naturais, prole que resultava de uma relação em que os pais dos batizandos não
eram casados perante a Igreja.
Além da vida familiar que se estruturava fora do âmbito do
casamento formalizado, havia a possibilidade de matrimônios serem rompidos através de processos de divórcio e nulidade de casamentos2 e, desde a década de 1980, o tema tem sido analisado.3
Discutir as mulheres e a vida familiar na Porto Alegre oitocentista é uma contribuição para essa temática, trazendo à tona a
diversidade de experiências e vivências familiares naquele importante núcleo urbano do Brasil Meridional a partir da exploração da
série de assentos paroquiais entre 1800 e 1872.4
As mulheres e mães que são nosso “alvo” são aquelas que
tiveram uma vida familiar fora dos padrões. O foco são os comportamentos “minoritários”, estando voltado para as mulheres livres/
libertas que geraram filhos naturais e para as mulheres escravizadas que tiveram prole legítima. São facetas da vida familiar que nos
incitam a refletir sobre as diferentes experiências vivenciadas pelas
mulheres porto-alegrenses.
2
Ao longo do período colonial e imperial, os casos de divórcio e anulação de
matrimônio eram julgados pelo Tribunal Eclesiástico, com diferenças que devem
ser apontadas. Enquanto a anulação punha fim à união e permitia a realização
de novas núpcias, os processos de divórcio impediam novo casamento.
3
Entre os estudos pioneiros sobre a vida familiar e divórcio destacam-se as contribuições de Eni de Mesquita Samara, publicadas nos anos 1980. Mais recentemente, outros estudos seguiram nessa seara, como a análise das ações de divórcio
e nulidade de matrimônio no Bispado de Mariana no Brasil oitocentista (Amaral, 2012). Vale sublinhar que as mulheres porto-alegrenses também recorreram
ao Tribunal Eclesiástico para solicitar anulação de casamento ou requerer o divórcio (Azambuja, 2006).
4
O NACAOB é um programa desenvolvido para auxiliar os pesquisadores na coleta e organização dos dados levantados em registros paroquiais. Para informações sobre o programa, veja-se: SCOTT, Dario; SCOTT, Ana Silvia Volpi. Cruzamento Nominativo de Fontes: desafios, problemas e algumas reflexões para a utilização dos registros paroquiais (2006; 2009).
24
História das Mulheres no Brasil Meridional
População porto-alegrense: homens, mulheres,
livres, forros e escravizados
Porto Alegre teve papel central como entreposto comercial e
centro administrativo. Seu porto constituía um vértice importante
na distribuição e circulação de pessoas, de bens e mercadorias, assim como elo com o interior do continente, como literatura variada
tem assinalado.5
A cidade teve origem na freguesia Nossa Senhora Madre de
Deus de Porto Alegre, desmembrada da freguesia Nossa Senhora
da Conceição de Viamão em 1772. Durante a maior parte do período aqui analisado, a vila (1809), e mais tarde a cidade (1822),
compunha-se dessa única freguesia, que, posteriormente, foi subdividida em mais duas. Exploraremos apenas os assentos relativos
à Matriz de Nossa Senhora da Madre de Deus entre os anos de
1800 e 1872.6
Na cidade de Porto Alegre, como no território que constituiu o Brasil, o acesso à vida familiar organizada em torno do
casamento legitimado pela Igreja era profundamente desigual.
A maior diferença estava entre a população livre e a escravizada. A maior parte dos habitantes livres formava suas famílias a
partir do matrimônio, e parcela minoritária da população vivenciava distintas formas de conjugalidade e de arranjos familiares,
gerando prole ilegítima. Entre os escravizados(as), no entanto, a
vida familiar da maioria se organizava em uniões livres, e a minoria que se casava tinha a possibilidade de gerar filhos legítimos.7
5
Vejam-se entre outros: SAINT-HILAIRE, 2002; ISABELLE, 1983; FREITAS,
2017; SILVA, 2019; SOUZA; MULLER, 2007.
6
O Decreto Regencial s.n. 24 de outubro de 1832 determinava a subdivisão da
Madre de Deus de Porto Alegre em outras duas freguesias. Contudo, o efetivo
registro dos assentos paroquiais específicos delas ocorreu posteriormente: Igreja
de Nossa Senhora do Rosário em meados da década de 1840 e Igreja de Nossa
Senhora das Dores somente no final da década de1850. A Madre de Deus passou
a ser denominada “Catedral” a partir dos meados do século XIX.
7
As Ordenações Filipinas nos Títulos XCII-XCIII, p. 940-6, Títulos XXXVIIXXXVIII, p. 814-934 e Título XCIX determinavam que os filhos legítimos
que resultavam de casamento legal entre os pais e os filhos ilegítimos subdividiam-se em cinco categorias: naturais, espúrios, sacrílegos, adulterinos e in-
25
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Essa avessa experiência de vida familiar das mulheres em
Porto Alegre pode ter um ganho substantivo a partir da análise do
contexto populacional em que elas construíram sua vivência entre
1800 e 1872.
O primeiro elemento importante é a constatação de que as
pessoas livres compunham a maioria da população em todo o
período estudado. Em média, a população dividia-se em 70% de
livres (forros incluídos), enquanto os escravizados somavam 30%.
Registramos, no entanto, o constante decréscimo do segmento dos
cativos: em 1802, os escravizados compunham 40% da população
e, em 1872, o recenseamento do Império informava que os escravizados em Porto Alegre somavam pouco mais de 16% (SCOTT,
2020). Mudança significativa, indicando que a população que nasceu, se casou e morreu na Madre de Deus, crescentemente se constituiu por pessoas livres.8
Essa variação alerta-nos para a possibilidade de outras mutações; por isso optamos por subdividir o período em dois momentos distintos, 1800-1834 e 1835-1872, considerando que Porto Alegre atravessou ciclos de grande instabilidade. O marco divisor é a
Guerra dos Farrapos, quando a cidade permaneceu sitiada durante
alguns anos (1836-1840).
O cálculo da razão de sexos, que indica o número de homens para cada 100 mulheres, revelou que predominou uma sobrepopulação masculina para o conjunto dos habitantes. Contudo, para
a população livre, esse perfil inverteu-se nas décadas subsequentes
à Guerra dos Farrapos9, passando a apresentar ligeira supremacia
das mulheres, situação que terá nova inflexão apenas no ano de
1872 (SCOTT, 2020).
cestuosos. Nosso foco a partir das fontes paroquiais está na categoria “legítimo” e “natural” (criança gerada por pessoas solteiras e sem impedimento para
realização de posterior casamento; LOPES, 1998).
8
A população de libertos em todos os anos analisados foi considerada no conjunto
de livres. Por fim, o próprio recenseamento de 1872 não indicava separadamente
os libertos.
9
Especificamente sobre esse conflito analisamos a “demografia da guerra” através do estudo da mortalidade diferencial. O texto, aceito na “História, Ciências,
Saúde – Manguinhos”, será publicado em breve.
26
História das Mulheres no Brasil Meridional
Entre a população escravizada a esperada supremacia dos
homens sobre as mulheres manteve-se por quase todo o período,
embora a razão de sexos apresentasse contínua queda: em 1802,
era de 192 homens para cada cem mulheres, enquanto no censo de
1872 registrou-se uma inversão com uma sobrepopulação feminina na razão de 75 homens para cada cem mulheres (SCOTT, 2020).
Ou seja, as mulheres que viveram em Porto Alegre, independentemente da condição jurídica, quase sempre estiveram em
desvantagem numérica, fato que certamente impactou a vida familiar, que se organizou em torno de variados arranjos familiares
(FREITAS, 2016; FREITAS, 2017; SCOTT, 2017).
A sublinhar que, se as mulheres livres e libertas tinham acesso limitado ao casamento formal, entre as escravizadas as chances
de união legítima eram ínfimas. Além disso, entre os escravizados
e escravizadas o acesso à conjugalidade e à família “tridentina”
estava condicionado a outros fatores que jogavam papel decisivo
para a vivência familiar, como a vontade do senhor e o próprio
tamanho das escravarias em que viviam.
Os assentos de casamento registrados na igreja Madre de
Deus somam 4.783 matrimônios entre 1800-1872 (2.480 entre 18001834; 2.303 entre 1835-1872). No conjunto, destacam-se as uniões
entre nubentes livres, que constituíam a maioria da população. Conforme o tempo passava, a hegemonia dos casamentos que uniam
nubentes livres torna-se quase absoluta: eram quase 86% até 1834 e
passaram de 94% até 1872.
Tabela 1 – Casamentos por Condição Jurídica 1800-1834
Noivos
Noivas
Livres
%
Livres
2.126
Forras
31
Escravas
Total
Forros
%
Escravos
85,7
7
0,3
3
1,3
85
3,4
14
5
0,2
15
0,6
194
2.162
87,2
107
4,3
211
Total
%
0,1
2.138
86,2
0,6
128
5,2
7,8
214
8,6
8,5
2.480
100,0
%
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
27
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Tabela 2 – Casamentos por Condição Jurídica 1835-1872
Noivos
Noivas
Livres
Livres
%
Forros
%
2.178
94,6
11
0,5
Escravos
1
Total
%
2.190
95,1
%
0,0
Forras
6
0,3
54
2,3
6
0,3
66
2,9
Escravas
2
0,1
3
0,1
42
1,8
47
2,0
2.186
94,9
68
3,0
49
2,1
2.303
100,0
Total
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
Os matrimônios mantiveram um padrão de endogamia jurídica: livres casavam-se com livres, forros com forras e escravizados
com escravizadas. A opção pelos matrimônios entre “desiguais”
na Madre de Deus foi residual: em torno de 3,0% no primeiro
período, percentual que diminuiu ainda mais, caindo para 1,3% no
período subsequente. Essa tendência havia sido apontada em estudo anterior (SCOTT; SCOTT, 2015, p. 37-79).
As Tabelas 1 e 2 reúnem informações sobre as mulheres
livres, forras e escravizadas que aderiram ao modelo ideal defendido pela Igreja e pelo Estado. Essa faceta da vida familiar,
por outro lado, não contempla o restante das mulheres, que, por
motivos variados, não seguiram o comportamento “padrão” para
seu grupo.
O grupo dessas mulheres livres que tiveram filhos naturais,
assim como das escravizadas que tiveram filhos legítimos torna-se
visível através do registro de batismos, que talvez seja a fonte serial
mais eloquente e decisiva para o estudo dos diferentes arranjos familiares que caracterizavam o Brasil colonial e imperial, porque a
condição de legitimidade nos batismos de crianças livres e escravizadas é um indicador para medir o acesso ao casamento formal.10
10
Outro indicador interessante é o celibato definitivo – percentual de pessoas que
faleceram solteiras com 50 anos ou mais –, pois remete à probabilidade de alcançar ou não o estado de “casado(a)”. Entre as mulheres livres, cerca de 20% entre
1800 e 1872 faleceram com 50 anos ou mais solteiras. Para as escravizadas, esse
indicador é bastante mais problemático, não só por conta do volume mais redu-
28
História das Mulheres no Brasil Meridional
O acesso limitado ao matrimônio tinha como resultado direto o
elevado percentual de crianças “naturais”.
Entre 1800 e 1872, registraram-se na Madre de Deus os batizados de 20.444 crianças livres e 10.028 batizados de cativos, e esse
último conjunto incluiu 2.104 escravizados adultos (maiores de dez
anos).11 Somam, no total, 30.472 assentos (cerca de 67% livres e
33% escravizados).12
Entre os batizados de crianças livres, 14.797 nasceram de
mulheres casadas, ou seja, quase três quatros eram crianças legítimas (72,4%), mostrando o predomínio das formas de união que se
davam ao abrigo das normas vigentes. As crianças naturais, nascidas de mulheres que não se casaram, somaram 4.423 (21,6%). Há
também o conjunto das crianças registradas como expostas, 786 no
total (3,8% dos batizados), e os 438 casos (2,1%) em que a condição de legitimidade não foi declarada.
As mulheres escravizadas vivenciavam a maternidade e a conjugalidade a partir de outros arranjos, e os batizados de escravizados identificados como “naturais” somaram 7.278 (72,7%), comportamento oposto ao que encontramos para as mulheres livres e
sua prole. Ou seja, quase três quartos das crianças escravizadas nasciam de uniões livres.
As escravizadas de Porto Alegre trouxeram ao mundo, entre
1800 e 1872, apenas 633 filhos legítimos (6,3%), e sua vida familiar
zido da população escravizada, mas pelo fato da esperança de vida ao nascer
entre escravizados ser mais baixa, indicando que poucos chegariam aos 50 anos.
Soma-se a essas questões de caráter demográfico o fato do casamento dos cativos e cativas estar submetido a outras variáveis, condicionadas aos desígnios e
vontades dos senhores. Sobre a esperança de vida ao nascer para livres e cativos
na Madre de Deus, veja-se a tese de doutorado de Dario Scott (SCOTT, 2020).
11
A entrada significativa de cativos e cativas maiores de dez anos batizados na
Madre de Deus ocorreu a partir dos anos 1815-1819, quando saltou de 2,9%
entre 1810-1814 para 23,1% no quinquênio seguinte (SCOTT; SCOTT, 2015).
12
Ainda sobre os batizados de escravizados, vale lembrar que, a partir de 1871, a
Lei nº 2014, de 28 de setembro, conhecida como Lei do Ventre Livre ou Lei Rio
Branco, criava a categoria de “ingênuo”. Desde então, todos os filhos de escravas nascidos passaram a ser registrados em livro separado e específico para esses
assentos; na Catedral, foram registradas, entre setembro de 1871 e dezembro de
1872, 58 crianças ingênuas.
29
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
construía-se em torno de uniões consensuais. Se esses relacionamentos eram estáveis ou não, é uma questão a ser analisada.
Esse panorama em relação à condição de legitimidade das
crianças livres e escravizadas manteve-se inalterado nas sete décadas estudadas?
No caso do batismo de crianças livres, não houve mudança
significativa. O percentual – em torno de 72% – manteve-se estável: elas vinham ao mundo a partir de ventres de mulheres que
viviam a maternidade no casamento, e a vida familiar era conduzida de acordo com a normativa vigente, em que o sexo com vistas à
reprodução se exercia no leito conjugal.
Mudanças, no entanto, foram constatadas em relação ao
pequeno aumento das crianças naturais, elevando-se de 20,3% para
23,2%. Registrou-se ainda o aumento de batismos das crianças livres, em que não havia a informação sobre a condição de legitimidade, variando de 0,7% para 3,7%, além da expressiva queda de
batizados de crianças expostas, que despencou de 6,2% para 1,2%.
Tabela 3 – Condição de Legitimidade – Batizados de Livres
1800-1872
Período
Legítimo
Qde
%
Natural
Qde
%
Exposto
Qde
%
Não declarado
Qde
%
Total
1800-34
7.862 72,8
2.188 20,3
670
6,2
80
0,7
1835-72
6.935 71,9
2.235 23,2
116
1,2
358
3,7
9.644
14.797 72,4
4.423 21,6
786
3,8
438
2,1
20.444
Total
10.800
Fonte: AHCMPA – Livro 3 até o 21 de batizados da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
Ou seja, excluindo os casos em que não se identifica a condição de legitimidade, cerca de 1/5 das crianças livres batizadas e
suas mães tinham vida familiar que passava ao largo do matrimônio. Também fica a interrogação sobre a estabilidade desses relacionamentos, assim como a possibilidade dos pais e mães dessas
crianças conviverem sob o mesmo teto, informação que não temos
como aceder a partir das fontes aqui analisadas.
30
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 4 – Condição de Legitimidade – Batizados de Escravizados
1800-1872
Período
Legítimo
Natural
Não declarado
Total
Qde
%
Qde
%
Qde
%
1800-34
493
9,0
3923
71,7
1058
19,3
1835-72
140
3,1
3368
74,0
1046
23,0
4554
Total
633
6,3
7291
72,7
2104
21,0
10028
5474
Fonte: AHCMPA – Livro 3 até o 21 de batizados da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
As pouquíssimas chances de as mulheres escravizadas exercerem a maternidade e terem uma vida familiar através do casamento formal ficaram ainda mais escassas à medida que os anos
oitocentos avançaram. Se os cativos nascidos de união legítima
somavam 9,0% entre 1800-1834, esse percentual diminuiu para 3,0%
entre 1835-1872. Parte dessa queda deve-se ao aumento das crianças escravizadas naturais, como também ao aumento daquelas em
que o pároco não informou a condição de legitimidade.13
Em síntese, conforme a literatura tem apontado, concubinato e casamento eram as principais formas de organizar os arranjos
familiares durante os séculos XVIII e XIX. Não escapou aos estudiosos o fato de que ambos tinham funções e objetivos próprios
na sociedade. O casamento esteve atrelado a interesses de ordem
socioeconômica e/ou política (claramente havia uma associação
entre “matrimônio” e “patrimônio”) e visava sobretudo satisfazer o interesse coletivo da família, enquanto o concubinato deixava espaço aberto para a satisfação de interesses pessoais, de
cunho afetivo e sexual (BRÜGGER, 1997). Tudo indica que essas diferentes “funções” mantiveram-se ainda durante a segunda
metade do século XIX.
13
Vale assinalar ainda o decréscimo no número dos assentos de batizados de escravizados (queda de 920 assentos entre um período e outro), embora o número
absoluto de batizados de escravizados maiores de dez anos não tenha se alterado
significativamente: 1.706 registros dividem-se em 871 (16% do total de batizados
de escravizados) para o primeiro período e 835 (18,4%) para o segundo.
31
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
No entanto, há que se relativizar essa argumentação. A sociedade era profundamente desigual, a distribuição de patrimônio
não era uniforme, estando concentrado em alguns segmentos; por
isso mesmo nem todos os matrimônios uniam mulheres e homens
com cabedal ou distinção social.14 É necessário chamar a atenção
para o fato de que o casamento tridentino estava também muito
disseminado entre as camadas menos favorecidas da população livre; afinal, em Porto Alegre, cerca de 3/4 dos batizados eram resultado de união sacramentada.
Há outras informações que podem ser extraídas do registro
paroquial que nos iluminem sobre a vida familiar das mulheres livres, forras e escravizadas?
Queremos, a partir de agora, estabelecer uma comparação
entre as mulheres que geravam “bons filhos para a República”, conforme os tratados de moral definiam a prole legítima15, e aquelas
que deram luz a filhos naturais.
“Casar e comprar, cada um com seu igual”:
a opção pela endogamia
Dada a condição de indissolubilidade do matrimônio, exortava-se que a escolha do futuro cônjuge “fosse maduramente pensada”. Os provérbios e adágios que circulavam prenunciavam que, ao
fugir desse padrão, “a desigualdade no sangue, nas idades, na fazenda causaria contradição e a contradição traria a discórdia” (SILVA,
1984, p. 66). A escolha que não levasse em conta essa premissa, defendiam os moralistas, poderia levar a uma vida de infelicidade.
14
Em estudos futuros, seria importante cruzar a informação sobre o casamento formalizado com dados provenientes, por exemplo, de testamentos e inventários, para
identificar o percentual de casados que, ao falecer, deixaram patrimônio.
15
Entre os moralistas portugueses, destaca-se João de Barros com seu “Espelho de
Casados”, impresso pela primeira vez na cidade do Porto em 1540. A segunda
edição data de 1874. Ou seja, os “ensinamentos” ainda circulavam na sociedade
luso-brasileira no último quartel do século XIX. Entre as instruções e conselhos
destacava o autor: “Do matrimônio nascem os bons cidadãos, porque os bastardos às vezes não são tão fiéis, e em direito são havidos por pessoas indignas e
incapazes” (SILVA, 2010, XXIX).
32
História das Mulheres no Brasil Meridional
Em Porto Alegre, o casamento formal era realizado na igreja matriz (catedral) ou nos vários oratórios e igrejas da vila e, mais
tarde, cidade; era realizado com licença especial, mas assentado
nos livros da matriz. Numa sociedade escravista, como o Brasil até
finais do século XIX, o princípio básico era a igualdade jurídica.
Na Porto Alegre oitocentista, esse arranjo foi respeitado, e a grande maioria das bodas unia pessoas de igual condição nesse quesito
(Tabelas 1 e 2).
Outras variáveis, por sua vez, reforçam a escolha por casamentos endogâmicos, como o estado matrimonial e a condição de
legitimidade. Além do evidente predomínio do casamento entre
nubentes solteiros, que envolve o acesso ao primeiro casamento e
que nos intervalos analisados aumentou, passando de 75% para
83%, também merece atenção a análise das segundas núpcias ou
dos consórcios que unem noivos viúvos e/ou noivas viúvas.
Tabela 5 – Estado Matrimonial dos Nubentes (1800-1872)
Solteiro
%
Viúvo
%
N/D
%
Total
%
82,8
1800-34
Solteira
Viúva
N/D
1800-34 Total
1.866
75,2
186
7,5
2
0,1
2.054
181
7,3
52
2,1
6
0,2
239
9,6
6
0,2
3
0,1
178
7,2
187
7,5
2.053
82,8
241
9,7
186
7,5
2.480
100,0
90,5
1835-72
Solteira
1.918
83,3
165
7,2
1
0,0
2084
163
7,1
42
1,8
1
0,0
206
8,9
2
0,1
0,0
11
0,5
13
0,6
1835-72 Total
2.083
90,4
207
9,0
13
0,6
2.303
100,0
1800-72 Total
4.136
86,5
448
9,4
199
4,2
4.783
100,0
Viúva
N/D
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
A alternativa mais comum, quando o matrimônio unia nubentes em segundas núpcias, era entre viúvos e solteiras (7% das
uniões). Mais raramente, encontramos o casamento em que ambos
33
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
eram viúvos. Esses resultados não geram surpresa, já que outros
estudos têm apontado que os homens buscavam recompor a vida
matrimonial mais rapidamente após a viuvez.
Para o Rio Grande de São Pedro, na segunda metade do
século XVIII, Michelle Selister, ao estudar as mulheres viúvas, afirma que o estado de viuvez permitia que elas atuassem de forma
mais autônoma naquela sociedade, chefiando seu domicílio, alforriando escravos, comprando, vendendo e doando terras e bens. A
viuvez poderia ser considerada o “passaporte” para uma vida mais
livre, pois com a morte do marido a viúva conquistava posição de
maior autonomia, estando autorizada pela sociedade a realizar ações
consideradas masculinas, como a participação nos negócios e o
acesso ao pátrio poder sobre seus filhos (SELISTER, 2014), privilegiando-se, portanto, o estudo das mulheres de melhor condição
socioeconômica.16
Argumentamos que, para as demais mulheres, que poderiam viver em condições de maior vulnerabilidade, a recomposição da vida em casal representava diferentes estratégias de sobrevivência. Não podemos esquecer o fato de que parte daquelas mulheres já construía sua vida familiar com base em uniões não sacramentadas, repercutindo, assim, no baixo número de casamentos
de viúvas. Por isso, não só parte das mulheres que enviuvavam talvez não estivesse disposta a submeter-se novamente ao controle do
marido como, para muitas outras, o próprio acesso às primeiras
núpcias era limitado e, por conseguinte, minguava mais a possibilidade de encontrarmos o registro de núpcias sucessivas.
16
Há estudos interessantes sobre viuvez e viúvas, que remontam aos anos 1980
(BIDEAU, 1980; HUFTON, 1984), mostrando que o tema já despertava interesse dos historiadores. Estudos mais recentes analisam especificamente as mulheres que viviam sós no mundo ibero-americano (GARCÍA GONZÁLEZ; RODRIGUÉZ GARCÍA, 2015; GARCÍA GONZÁLEZ, 2020). Estudo sobre a
Madre de Deus de Porto Alegre no final do período colonial integra esse volume
coordenado por García González, publicado em 2020 (SCOTT et al., 2020).
34
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 6 – Condição de Legitimidade dos Nubentes
Noiva
Noivo
Legítimo
%
Natural % Exposto %
N/D*
%
Total
0
167
6,7
1.648
225
1800-34
Legítima
1.405
56,7
76
3,1
0
45
1,8
0
0
24
1
0
0
0
1
0
7
600
Natural
156
6,3
Exposta
6
0,2
181
7,3
17
0,7
0
0
402 16,2
1.748
70,5
138
5,6
0
0
594
24
2.480
N/D*
1800-34
1835-72
1.365
59,3
57
2,5
2
0,1
177
7,7
1.601
Natural
133
5,8
37
1,6
0
0
23
1
193
Exposta
15
0,7
2
0,1
1
0
1
0
19
200
8,7
12
0,5
1
0
277
12
490
Legítima
N/D*
1835-72
1.713
74,4
108
4,7
4
0,2
478 20,8
2.303
Total 1800-72
3.461
72,4
246
5,1
4
0,1 1.072 22,4
4.783
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
*Não declarado
Apesar do quesito legitimidade dos nubentes apresentar percentual significativo de não declarados, foi o atributo em que a endogamia teve menos força. Pouco menos de 60% dos casamentos
registrados indicaram o casamento em que ambos os nubentes eram
legítimos. A condição de ser filho(a) natural parece não implicar
um estigma naquela sociedade. Eram outras questões que dificultavam o acesso ao casamento formal para as mulheres e os homens
porto-alegrenses; entre eles podemos citar a intensa mobilidade da
população e o desequilíbrio na razão entre os sexos.
A questão da cor/etnia, apesar da importância capital para
uma sociedade escravista, é uma variável muito problemática de
ser analisada, pelo menos a partir dos assentos paroquiais, pois há
pouca informação sobre esse quesito. Há duas décadas, Hebe Mattos já apontava que, desde meados do século XIX, havia um silêncio sobre a cor dos indivíduos livres (MATTOS, 1998, p. 19).
35
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Os assentos de casamentos da população livre na Madre de
Deus de Porto Alegre, entre 1772 e 1835, já mostravam que cerca
de 90% não traziam declarada a cor/etnia (FREITAS, 2016, p. 154).
Para o período subsequente, 1835-1872, a supressão da informação chegou a 98,9%.
Argumentamos que, se havia menção à cor/etnia no casamento, invariavelmente estava vinculada a um atributo de desqualificação, envolvendo uniões entre pretos forros ou pardos forros,
escravizados(as) ou índios(as). Quando o pároco assinalava a cor/
etnia no registro, perpetuava-se a ligação com a vivência e/ou um
passado de escravidão.
Tabela 7 – Percentual Casamentos de Livres na Madre de Deus –
Cor/Etnia
Pretos
Pardos
Índios
Cabra
N/D
Total
0,2
2,4
1800-34
Pretas
2,0
0,1
0,0
0,0
Pardas
0,1
0,6
0,0
0,0
0,1
0,8
Índias
0,0
0,0
0,6
0,0
0,2
0,9
Cabra
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
N/D
0,0
0,1
0,0
0,0
95,8
96,0
1800-34 Total
2,1
0,9
0,7
0,0
96,3
100,0
Pretas
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
Pardas
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
Índias
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
N/D
0,0
0,0
0,0
0,0
99,9
99,9
1835-72 Total
0,0
0,0
0,0
0,0
99,9
100,0
1835-72
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
No entanto, invertendo a lógica da análise e separando os
casamentos em duas grandes categorias, uma que unia exclusivamente nubentes livres, presumivelmente reconhecidos(as) como
brancos(as), e outra que agregava os casamentos que envolviam as
36
História das Mulheres no Brasil Meridional
várias combinações entre livres, libertos e escravizados, os resultados reforçaram o gradativo silenciamento da cor/etnia quando mais
se avança para o final do século XIX.
Para os casamentos que uniam apenas pessoas livres, a menção da cor/etnia era silenciada: no primeiro período, foi mencionada apenas para 4% dos nubentes de ambos os sexos; nas décadas
seguintes, praticamente desapareceu. As Tabelas 7 e 8 informam
nas linhas a cor/etnia para as noivas e nas colunas a mesma informação para os noivos.
Porém, para aqueles segmentos populacionais que possuíam
vínculos com a escravidão (escravizados ou egressos do cativeiro),
a informação foi muito mais recorrente.
Tabela 8 – Percentual de Casamentos de Forros e Escravizados na
Madre de Deus – Cor/Etnia
Pretos
Pardos
Pretas
42,4
4,8
Pardas
5,1
Índias
0,3
Cabra
0,0
Índios
Cabra
N/D
Total
0,0
0,0
3,4
50,6
15,3
0,0
0,0
8,5
28,8
0,3
0,0
0,0
0,0
0,6
0,0
0,0
0,0
0,3
0,3
1800-34
N/D
2,3
2,3
0,0
0,3
15,0
19,8
1800-34 Total
50,0
22,6
0,0
0,3
27,1
100,0
1835-72
Pretas
16,8
0,8
0,0
0,0
1,6
19,2
Pardas
1,6
4,8
0,0
0,0
12,8
19,2
Índias
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
0,0
N/D
4,0
3,2
0,0
0,0
54,4
61,6
1835-72 Total
22,4
8,8
0,0
0,0
68,8
100,0
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
A cor/etnia, entre os não brancos, foi informada para 80%
das noivas e 73% dos noivos entre 1800 e 1834. No segundo período (1835-1872), apesar de queda significativa, temos ainda 38%
37
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
das noivas e 31% dos noivos para os quais a informação foi anotada pelo pároco.17
Os dados são evidentes. O acesso ao casamento formal era
franqueado com mais recorrência à população reconhecida naquela localidade como “socialmente branca”. A designação da
cor não branca era mais comumente indicada para as mulheres,
independentemente de sua condição jurídica. Em todos os casos,
a endogamia por cor/etnia foi mantida, mas a informação sobre
esse quesito foi desaparecendo ao longo do tempo.
De nosso ponto de vista, a opção pelos casamentos endogâmicos ficou demonstrada, mas o tema foi revisitado em estudo que
analisa Porto Alegre entre 1772 e 1822 (FREITAS, 2017). Contudo acreditamos que os critérios propostos para essa intepretação
merecem maior discussão.
Mulheres livres, conjugalidades e vida familiar
Embora seja fato que parcela significativa das mulheres e
homens livres relacionavam-se consensualmente, não é possível minimizar a importância do casamento tridentino. Afinal, a maioria
das crianças livres batizada na Madre de Deus era fruto de uma
união formalizada na Igreja. Aliás, Sheila Faria já apontava essa
realidade nos finais da década de 1990 (FARIA, 1998, p. 52-58).
A pergunta central que será o eixo dessa reflexão sobre a
conjugalidade e a vida familiar entre as mulheres livres diz respeito
à probabilidade de um relacionamento não formalizado se converter em matrimônio. Haveria essa possibilidade? A “fresta” que nos
permite observar essa “transformação” e para quem ela poderia se
concretizar está na informação sobre o reconhecimento e/ou a legitimação da prole natural.
A legitimação de filhos naturais era uma tradição ibérica e
foi um expediente utilizado por algumas famílias. Como consequência, os filhos legitimados saíam da situação de marginalidade, tendo, a partir de então, o direito de ter seu quinhão no patri17
Vale notar que nos assentos analisados os párocos não registravam explicitamente a cor “branca”.
38
História das Mulheres no Brasil Meridional
mônio dos progenitores, ainda que as Ordenações do Reino fizessem distinção entre nobres e plebeus. A legitimação poderia ser
feita através de carta de legitimação, testamento ou ainda pelo
casamento sucessivo dos genitores. No Brasil, a legitimação também se fazia através de escritura pública (LEWCOWICZ, 1987,
p. 58s.) e, em princípio, o recurso à legitimação seria usado pela
população livre.18
Além da legitimação pelo casamento, entre os assentos de
Porto Alegre encontramos outra situação interessante: o reconhecimento de paternidade através dos assentos de batismo. Eles trazem inúmeros casos de crianças sendo reconhecidas pelo pai. Há
casos em que pai e mãe são nomeados nos registros, mas também
há casos em que o pároco registrou apenas o nome do pai. Desconhecemos, para a população porto-alegrense, trabalhos que tenham
feito análise sistematizada do uso desses expedientes para alterar a
situação de prole nascida fora da vigência do matrimônio.
É essencial, entretanto, sublinhar que são duas situações bem
diferentes e que, sem dúvida, afetavam de forma distinta a vida
familiar das mulheres que geraram filhos naturais. Ainda que houvesse o “reconhecimento” de uma criança natural pelo genitor através do assento de batismo, o rebento continuaria a ter a condição
de filho(a) “natural”. Por outro lado, a criança natural, ao ser “legitimada” pelo subsequente casamento dos pais, passaria a gozar de
todas as prerrogativas garantidas por lei.
Os assentos que envolvem ambas as situações dão elementos para analisar algumas trajetórias de mulheres e as diferentes
experiências familiares que vivenciaram. Os registros transcritos
ilustram situações trazidas à tona pelos assentos paroquiais de Porto Alegre, como o batizado de Joaquim e o matrimônio de Antônio José de Oliveira Guimarães com Francisca Cândida de Souza.
O batizado de Joaquim, filho natural de Rita Maria da Conceição, solteira, foi registrado em 8 de abril de 1833 na igreja da
18
Para a legitimação era levada em conta a “qualidade do pai”, se esse era nobre
ou plebeu. Enquanto o filho legitimado de plebeu podia ser legitimado no testamento paterno, o filho de nobre só podia sê-lo através de carta de legitimação
(SILVA, 2017, p. 77s.).
39
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Madre de Deus e revela que a criança foi reconhecida pelo pai, João
da Silva Valença19:
Aos oito dias do mês de abril de mil oitocentos trinta e três
anos nesta Matriz de Nossa Senhora Madre de Deus batizou
solenemente o Reverendo Coadjutor Ludovico Ênio Homem
da Costa, e pôs os santos óleos a Joaquim, nascido a cinco de
fevereiro do mesmo ano, filho natural de Rita Maria da Conceição, natural desta cidade; pelo lado materno de Joaquim
Antunes e de Maria Barbosa, naturais de Portugal; e no ato do
batismo declarou João da Silva Valença, natural de Portugal, filho
legítimo de José da Silva e de Rosa de Jesus, naturais de Portugal, que reconhecia por seu filho este inocente Joaquim e queria que
por tal fosse reconhecido, sendo disso testemunha Antônio de Freitas Barreto Queiroz, que assinou a rogo do mesmo João da
Silva. Foram padrinhos José Francisco do Vale Guimarães e
Maria Bárbara. E para constar fiz este assento. Tomé Luiz de
Souza (Pároco Encomendado).
A legitimação de prole natural ficou registrada na ata de casamento de Antônio José de Oliveira Guimarães com Francisca
Cândida de Souza em cerimônia realizada em 30 de março de
1826:
Aos trinta dias do mês de março de mil oitocentos e vinte e
seis anos, pelas sete horas da noite, na Capela Pública da Ordem Terceira de Nossa Senhora das Dores desta cidade de
Porto Alegre, por ordem e despacho do Reverendíssimo Cônego Provisor e Vigário Geral desta província Antônio Vieira
da Soledade, perante mim se receberam em matrimônio com
palavras de presente em que expressaram seu mútuo consentimento Antônio José de Oliveira Guimarães, natural de Santa Maria do Souto, Termo de Guimarães, Arcebispado de
Braga, filho de Vicente de Oliveira e Maria Rosa Dias, com
Francisca Cândida de Souza, natural desta mesma freguesia,
filha legítima de Ignacio José de Souza e Tomásia Joaquina
de Ataíde. E neste ato, apresentaram os contraentes os filhos de ambos
havidos, declarando que os reconheciam por seus, legitimavam e queriam que legitimados fossem por este matrimônio subsequente, cujos
nomes e idades são: Ignacia Cândida, nascida em vinte e nove de
19
Grafia dos registros atualizada.
40
História das Mulheres no Brasil Meridional
fevereiro de mil oitocentos e vinte, João Vicente, nascido em vinte e
um de fevereiro de mil oitocentos e vinte e três e Cândida Ignacia,
nascida em quinze de setembro de mil oitocentos e vinte e cinco, para
cujo real e válido efeito assinaram comigo os mesmos contraentes e as
testemunhas que também o foram deste matrimônio, apresentação e declaração. Assinam o Padre Antônio Vieira da Soledade, os noivos (Antônio e Francisca), além de Custódio José
de Magalhães e João José de Oliveira Guimarães.
O interesse por esses casos de reconhecimento e de legitimação surgiu quando, analisando a frequência da ilegitimidade,
encontramos um alto percentual de batizados de crianças livres
naturais em que o pároco registrava no batismo o nome da mãe e
o nome do pai do recém-nascido. Poucos estudos referiram essa
situação, mas não houve uma análise mais detida, talvez porque
eles não tivessem peso estatístico relevante como encontramos
para Porto Alegre.20
A localidade mineira de São João Del Rei, estudada por
Silvia Brügger, é um exemplo disso. Entre os anos de 1736 e 1850,
dos 15.670 assentos de batismo de crianças naturais apenas 0,7%
indicavam, além do nome da mãe, o nome do pai das crianças.
Nos meados do século XVIII, os batismos com essas características somaram 4,8%, o maior índice registrado. Ao longo das décadas seguintes, os níveis quase sempre se mantiveram abaixo de
1% e, no final do período analisado (1841-1850), eram escassos
0,6% (BRÜGGER, 2007, p. 74).
A realidade de São João Del Rei contrasta vivamente com
aquela encontrada para a Porto Alegre oitocentista, onde, em meados do século XIX, os casos em que o nome do pai era registrado
ultrapassaram um terço dos assentos de crianças livres e naturais
(SCOTT; SCOTT, 2018).
20
Sheila Faria discute a questão do reconhecimento de filhos naturais, mas não
aprofunda efetivamente a questão (FARIA, 1998, p. 87s.; p. 304s.).
41
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Tabela 9 – Batizados de crianças naturais livres e informação dos
genitores
Período Só com a mãe Com o pai e mãe
1800-04
Qtde
%
119
93,7
Qtde
1
%
0,8
Só com o pai Sem pai nem mãe Total
Qtde
%
Qtde
%
4
3,1
3
2,4
127
1805-09
144
85,7
15
8,9
9
5,4
0
0,0
168
1810-14
229
90,5
11
4,3
13
5,1
0
0,0
253
1815-19
271
87,4
30
9,7
8
2,6
1
0,3
310
1820-24
300
82,2
20
5,5
44
12,1
1
0,3
365
1825-29
345
79,5
47
10,8
39
9,0
3
0,7
434
1830-34
387
72,9
69
13,0
72
13,6
3
0,6
531
1835-39
251
64,4
113
29,0
24
6,2
2
0,5
390
1840-44
269
51,3
207
39,5
48
9,2
0
0,0
524
1845-49
193
59,0
110
33,6
23
7,0
1
0,3
327
1850-54
154
56,4
101
37,0
17
6,2
1
0,4
273
1855-59
142
55,7
84
32,9
27
10,6
2
0,8
255
1860-64
157
83,1
28
14,8
4
2,1
0
0,0
189
1865-69
161
86,6
21
11,3
4
2,2
0
0,0
186
1870-72
83
91,2
4
4,4
3
3,3
1
1,1
91
3.205
72,5
861
19,5
339
7,7
18
0,4
4.423
Total
Fonte: AHCMPA – Livro 3 até o 21 de batizados da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
Outra localidade da província do Rio Grande do Sul, a Capela de Alegrete, entre 1821 e 1845 registrou, por sua vez, aumento
significativo desse tipo de assento, atingindo 16% entre 1836 e 1840
(FARINATTI, 2015). Ainda que o percentual seja expressivo, está
longe daquele registrado para Porto Alegre.
Os resultados levaram à hipótese de que, conjuntamente, a
instabilidade gerada pela Guerra dos Farrapos e a conjuntura específica da cidade de Porto Alegre (que permaneceu sitiada) tivessem
estimulado os casais a assumir publicamente, no ato do batizado, a
relação através da identificação do pai no assento. De fato, somando-se os assentos com o nome de ambos (pai e mãe) àqueles em que
temos apenas a informação sobre o nome do pai de uma criança natural, atinge-se perto de 49% entre 1840-1844.
42
História das Mulheres no Brasil Meridional
A vivência dessas mulheres e de seus filhos e filhas em algum momento foi impactada através do reconhecimento e/ou da
legitimação da prole natural? Mais do que isso, é possível verificar
quais eram as chances dessas mães solteiras e amancebadas acederem ao altar e gozarem de vida familiar ao abrigo do matrimônio
legítimo?
Antes de entrarmos no universo das crianças naturais livres
em que temos a informação sobre reconhecimento e/ou legitimação, é importante conhecer a situação das mulheres que geraram
filhos através de outras formas de relacionamento e de conjugalidades. Que atributos elas receberam dos párocos que registraram
os assentos de batismo de seus filhos e filhas, quando comparadas
às mães de crianças legítimas? Lembremos que, na maioria dos casos
analisados entre 1800 e 1872, os párocos assentavam apenas o nome
da mãe das crianças naturais. Essa era, em média, a situação de
cerca de ¾ dos assentos naquele período.
Como tem sido apontado, no caso da sociedade luso-brasileira, a atribuição da cor não estava obrigatoriamente ligada ao fenótipo, não tendo por isso relação exclusiva com a cor da pele. Em
muitas situações, a cor era atribuída de acordo com outras “qualidades” dos indivíduos, como a condição jurídica (livre, liberta ou
escrava). O tema gera muita discussão entre os estudiosos da sociedade luso-brasileira.
No caso da Madre de Deus de Porto Alegre, os párocos não
anotavam explicitamente a designação da cor “branca” nos assentos dos indivíduos livres. Por outro lado, atributos de cor/etnia considerados “desqualificadores” (como preto/ pardo/ índio/ mulato, cabra) foram registrados pelos párocos e, na maioria das vezes,
esses atributos vinham acoplados à condição jurídica, por exemplo
pardo(a) forro(a); preto(a) forro(a).
Ao examinarmos os assentos de batismo das crianças nascidas na Madre de Deus, encontramos indícios de que o pároco tinha a tendência de apontar esse atributo de cor/etnia em algumas
situações, como, por exemplo, nos assentos de mães de crianças
naturais.
Essa questão já havia sido apontada para o período entre
1772 e 1848 (SCOTT; SCOTT, 2018). Estendendo o estudo até
43
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
1872, confirmou-se a tendência encontrada. Quase a totalidade
das mulheres que viviam a maternidade no âmbito do casamento
sacramentado não tinha a cor mencionada, isto é, eram “socialmente” reconhecidas como “brancas”. Isso ocorreu em 94% dos
assentos de crianças legítimas no período entre 1800-1834; no segundo período, entre 1835 e 1872, ocorreu em praticamente todos os casos (99,6%). Só para uma minoria de mães de crianças
legítimas o pároco “se deu ao trabalho” de assentar uma referência sobre a cor.
As mães de crianças naturais, por sua vez, eram mais frequentemente “desqualificadas” aos olhos do pároco, o mediador
que nos permite “enxergar” a população que recebeu os sacramentos católicos: 44% delas receberam indicação de atributos de cor
“não branca” entre 1800 e 1834, enquanto no intervalo seguinte,
1835-1872, em 16% das mães de crianças naturais a informação
continuou a ser registrada.
Invertendo a perspectiva, podemos verificar também os atributos “positivos” de distinção social entre as mães que batizaram
crianças livres e crianças naturais. No caso das mulheres, o designativo “Dona” era praticamente o único atributo positivo, embora
algumas poucas mulheres tenham sido identificadas por títulos de
nobreza como “viscondessa”, “baronesa”.
Embora uma minoria de mães de crianças legítimas recebesse atributo de distinção como “dona” até 1834 (16%), no período
final, esse percentual elevou-se a pouco mais de 20%. Poucas eram
as mulheres, mesmo entre as casadas, que recebiam esse atributo
de distinção social. Reforçam-se aqui as hierarquias internas, bem
como o fato de que o matrimônio também estava bastante disseminado entre aquelas pessoas com menos “qualidade”.
Entre as mães de filhos naturais, por outro lado, só residualmente mencionou-se esse tipo de distinção. No primeiro período,
foram apenas três casos (0,1%) e, no segundo, dez casos (0,4%).21
21
Nos casos dos pais, variou entre 6 e 9% aqueles que se atribuíram títulos ou
patentes entre os pais de crianças legítimas e entre 1% e 2,3% para os pais de
crianças naturais.
44
História das Mulheres no Brasil Meridional
Constância Clara de Souza foi uma das poucas que, apesar
de ter uma vida familiar fora da “norma” e gerar filhos naturais,
recebeu esse atributo. Ela foi registrada como mãe em cinco batizados de crianças naturais nos anos de 1828, 1830, 1832, 1833 e 1834.
A regularidade na sucessão dos batismos ao longo de seis anos sugere uma relação estável. Apenas nos assentos relativos ao batizado de duas filhas (1832 e 1834), Constância foi designada como
“Dona”.22
Anos depois (em 1842), diferentemente da maioria das mulheres que geravam filhos naturais, Constância casou com Luiz Antônio da Silva, legitimando dois rebentos sobreviventes dos cinco
registrados.23 Provavelmente, ela manteve uma união consensual
estável com Luiz Antônio, embora ele nunca tenha sido identificado como pai nos assentos de batizado.
No período seguinte, Dona Felisberta Vitorina Pereira batizou, de uma só vez, três filhos naturais em 10 de junho de 1840,
embora as crianças tivessem nascido respectivamente em 1833, 1835
e 1838.24
Pode-se dizer que a vida familiar daquelas mulheres e mães
de filhos naturais estruturava-se a partir de relacionamentos consensuais, e muitas delas tiveram mais do que um filho(a) batizado
naquela condição.25 Não é possível, portanto, dizer que elas tivessem gerado um filho “por fragilidade da carne”.
De fato, estamos diante de formas alternativas de conjugabilidade e de vida familiar. Os diferentes arranjos familiares, produzidos a partir de relacionamentos não sacramentados na Igreja, eram
comuns e, algumas vezes, também incluíam mulheres com atributos de qualificação, como Constância e Felisberta, que mantiveram, ao que tudo indica, relacionamentos estáveis.
22
A outra foi Dona Maria Joaquina Silveira, que era viúva.
O exame dos assentos de óbito revelou que os outros filhos haviam falecido
pouco depois do batizado.
24
Nos outros sete casos, foram sete mães diferentes.
25
Ainda que entre as mulheres seja mais difícil a identificação, pois não só era
usual não ter o nome de família registrado, como também havia muitos homônimos, essas mães tinham dois, três, quatro ou mais filhos, como ocorreu com
Josefa Ribeiro da Silva, que teve pelo menos oito filhos naturais.
23
45
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Entre as várias situações identificadas nas fontes consultadas, focaremos nos casos em que os assentos de batizado de crianças naturais apontavam o nome do pai, dando indícios sobre os
comportamentos familiares “alternativos”, em que a comunidade
conhecia os “envolvidos” com aquelas mulheres, mães de sua prole natural.
Os assentos de batizado em que os nomes da mãe e do pai
foram registrados somam 861casos. Havia ainda 339 que registram
apenas o nome do pai. Somam 1.200 assentos de crianças naturais
em que o nome do pai consta do ato, 27% do conjunto de assentos
de filhos(as) naturais.
No entanto, as relações estabelecidas entre as mulheres e os
pais de seus filhos eram muito diferentes. Afinal, temos os registros
em que o nome do pai foi assentado pelo pároco no batismo, e há
outros casos em que o pai explicitamente reconheceu a criança como
filho(a). Em ambos os casos, entretanto, a condição de “filho natural” não se alterava. O reconhecimento explícito da paternidade foi
registrado em apenas 246 dos 1.200 assentos, ou seja, em 20,5%
dos casos. Eles diziam respeito a 185 diferentes pais, significando
que alguns reconheceram mais de um filho(a).
A grande maioria dos pais que reconheceu a paternidade da
criança no ato do batismo, 218 assentos em 246, ocorreu nas três
primeiras décadas do século XIX e apenas 28 no período final entre 1835 e 1872. Vale notar que, no primeiro período, dos 382 assentos em que o pároco identificou o nome dos pais de filhos naturais, os 218 que reconheceram a prole somavam 57,1%. No segundo período, por outro lado, dos 818 registros que tiveram os pais
nomeados, apenas 28 reconheceram explicitamente a criança
(3,7%). Tais números indicam mudanças importantes em relação à
ilegitimidade e às relações entre os envolvidos nesses arranjos familiares alternativos.
Poucos daqueles pais tinham atributos de qualificação social, como patentes militares. Foram os casos do Coronel Joaquim
José da Silva, do Capitão José Apolinário Pereira Moraes, do Sargento-Mor Marçal José Fonseca e do Alferes Máximo Gomes.
Entre esses, vale a pena retomar o caso do Capitão José Apolinário Pereira Moraes, natural do Bispado do Porto (SCOTT;
46
História das Mulheres no Brasil Meridional
SCOTT, 2018). A questão, não mencionada anteriormente, diz respeito ao reconhecimento dos filhos do Capitão José Apolinário, comerciante em Porto Alegre, que faleceu em 1827 aos 70 anos no
estado de solteiro. Ele manteve uma vida reprodutiva “movimentada”, registrando pelo menos 14 filhos entre 1805 e o ano de sua
morte, e reconheceu nada menos do que oito filhos(as) no ato do
batizado. Em seu inventário, foram arrolados 31 cativos, 23 homens e oito mulheres, patrimônio escravista respeitável para a localidade em que viveu.
Pelo menos entre 1805 e 1811, manteve uma união estável
com a jovem viúva Leandra Tomásia de Almeida, também conhecida como Leandra Tomásia Leal. José Apolinário teve cinco filhos (Apolinária,1805; José, 1806; Nereu, 1807; Enéas, 180926;
Enéas, 1810).
Com exceção de Nereu, nascido em 1807, nos demais,
Leandra foi dada como mãe e José Apolinário como pai. Nos batizados de Apolinária, José, Nereu, Enéas e Enéas, José Apolinário reconheceu as crianças como seus filhos. Pode-se conjecturar
que ele teve outro(s) relacionamentos, além do que mantinha com
a viúva Leandra, que faleceu em 16 de agosto de 1811 aos 28 anos
de idade.
Depois da morte de Leandra, José Apolinário continuou a
ter relacionamentos consensuais, porém jamais voltou a ser
mencionado o nome da(s) mãe(s) de seus filhos. Quando muito, o
pároco registrava que a mãe era “incógnita”. O curioso é que, dos
nove batizados em que o pároco o identificou como pai, José Apolinário reconheceu explicitamente Nereza em 1814; os gêmeos José
e Apolinário em 1818; Jasão em 1819; Apolo em 1821; Constância
em 1824. O mesmo não ocorreu com Josefina, batizada em 1823;
Elísia e Jasão, batizados em 1827.27 O cruzamento com os assentos
de casamento mostrou que três dos filhos naturais de José Apoli26
Em 10 de março de 1810, registrou-se que o pequeno Enéas havia falecido de
diarreia, com um ano e dois meses.
27
Esses dois filhos foram batizados no mesmo dia, mas nascidos de mães diferentes com um intervalo de menos de dez dias. Não se descarta a hipótese de que as
mães dos filhos não reconhecidos pudessem ser suas próprias escravas.
47
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
nário casaram-se na Madre de Deus. Todos eram filhos de Leandra
Tomásia de Almeida, cujo nome apareceu na ata dos casamentos.
Essa trajetória será aprofundada posteriormente.
Embora sem títulos ou patentes, a maioria esmagadora dos
pais era “socialmente branca”. Poucos foram os pardos e pretos
que reconheceram seus filhos, somando apenas dois casos e quatro
crianças: o pardo Antônio José Santos reconheceu dois filhos que
teve com Inácia Rosa de Jesus, e o preto Bento Francisco do Rosário também reconheceu dois filhos que teve com a preta Maria da
Conceição.
Também identificamos mulheres que tiveram mais de um
filho natural reconhecido pelo pai, como ocorreu com os três filhos
de Maria Antônia Ribas com João Silva Paranhos ou os dois filhos
de Balbina Josefa de Carvalho com Manuel José de Simas.
Contudo, o reconhecimento dos filhos pelos pais não foi “o
passo a mais” em direção ao casamento, que determinaria, aí sim,
a mudança na condição de filho(a) natural para prole legitimada
pelo matrimônio. O reconhecimento talvez pudesse mudar a vida
dos filhos(as), mas não parece ter alterado a vida das mulheres e
mães daquelas crianças.
O conjunto de 1.200 assentos em que o nome do pai foi registrado revela que isso não alterou substancialmente a situação
das mulheres que tiveram filhos naturais. Elas continuaram a ter
sua vida familiar à margem do ideal de família que se assentava no
casamento.
Que hipótese explica o fato de alguns homens optarem por
reconhecer os filhos(as) no ato do batismo? Brügger recorreu aos
comentários de Cândido Mendes à margem do texto da 14ª edição
das Ordenações Filipinas, publicadas em 1870, sugerindo que o
reconhecimento da paternidade dos filhos registrados como naturais “cobrava” ou estaria atrelado a um “comportamento monogâmico”: demandava a “fidelidade” das mulheres, embora o texto legal não fizesse referência explícita a isso (BRÜGGER, 2007, p. 138).
Numa sociedade patriarcal e misógina como a que estudamos, essa pode ser uma explicação plausível para os casos em que
o pai optou por reconhecer o fruto da relação mantida com a mãe.
É uma hipótese que, de todo modo, nos induz a pensar que a
48
História das Mulheres no Brasil Meridional
maioria dos relacionamentos não se dava em bases monogâmicas, o que é discutível, mas não temos uma resposta clara para
essa questão.
No entanto, o mais importante é que nem o fato do pai ser
identificado, tampouco o reconhecimento de um filho abria as portas do matrimônio reconhecido para as mulheres que viviam a maternidade a partir de relacionamentos livres e consensuais.
Contudo, algumas mulheres sim puderam transformar um
relacionamento consensual em matrimônio sacramentado, legitimando assim sua prole natural. A Tabela 10 organiza a informação relativa a todas as mulheres – solteiras, viúvas e com estado
matrimonial não declarado – que se casaram na Madre de Deus.
Nesse conjunto de 4.783 assentos, a última coluna indica o número de casamentos em que houve legitimação dos filhos havidos antes
do consórcio: 86 no total.
Embora correspondam a um pequeno percentual do total de
casamentos registrados, nota-se que o número de casamentos com
legitimação de filhos naturais dobrou na passagem do primeiro período, com 29 casos, para o segundo período em que observamos
57 legitimações.
Tabela 10 – Estado Matrimonial das Noivas livres, forras e escravizadas
Período
Solteiras
Qtde
%
2.054
89,7
1835-72
2.084
91
Total
4.138 180,7
1800-34
Viúvas
Qtde
%
239 10,3
206
Não Declarado
Qtde
%
187
10,3
Total
2.480
Legitimaram
Qtde
%
29
1,2
9
13
9
2.303
57
2,5
445 19,3
200
19,3
4.783
86
3,6
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
Curiosamente, essa tendência de aumento é inversa àquela
encontrada entre os batismos em que o pai reconhecia a criança,
que diminuíram sensivelmente a partir de 1835. A sublinhar que
mais da metade das legitimações através do subsequente casamen-
49
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
to, 31casos, foi registrada apenas durante os anos da Guerra dos
Farrapos.
Outro dado a considerar é que dos 861 casos em que o padre
assentou o nome da mãe e do pai nos assentos de crianças naturais (conforme a Tabela 9) somente uma minoria dos relacionamentos se transformou em matrimônio legitimado: foram 18 casais que haviam reconhecido filhos(as) no batismo e que se casaram em Porto Alegre.
A partir daí, é possível analisar para quais grupos de mães
de crianças naturais o relacionamento não sacramentado acabaria
levando ao altar, transformando a vida familiar daquelas mulheres
e daquelas crianças que viviam à margem do “modelo ideal”.
O casamento com legitimação foi opção das pessoas livres.
Quase a totalidade dos matrimônios de mulheres que se casaram
com seus parceiros e legitimaram a prole natural (86) as unia a pessoas livres e sem atributo de cor (82 e 83 casos, respectivamente).
Registramos somente quatro casos de matrimônios que legitimaram filhos(as) e que incluíram pessoas forras e/ou escravizadas, distribuídos como segue: um entre noivo forro e noiva livre,
dois que uniram nubentes forros e apenas um que uniu uma mulher forra, Rita Maria da Conceição, a Francisco Antônio, escravizado, talvez não por caso, do Padre Antônio Vieira da Soledade28.
Os atributos de distinção social, como o qualificativo
“dona” ou patentes e títulos para os homens, também foram registrados em poucos casos de casamento com legitimação. Foram seis noivas designadas como “donas”, além de cinco noivos
com patentes militares.
A legitimação registrada nos 86 assentos de casamento dá
outra informação vital, quando arrola os nomes e, eventualmente,
idade ou data de nascimento dos filhos(as), mostrando que, na
maioria dos casos, o casamento vinha oficializar uma união consensual estável que se mantinha durante vários anos. Esses matri-
28
Figura importante da política rio-grandense, que foi presidente da província do
Rio Grande do Sul de 2 de agosto a 17 de novembro de 1829, deputado geral e
senador do Império do Brasil de 1826 a 1836. No ato do matrimônio mencionado, ele era Vigário-Geral.
50
História das Mulheres no Brasil Meridional
mônios “legitimaram” 253 filhos(as), ou seja, em média quase três
filhos por casal.
Há casos, inclusive, em que os nubentes legitimam filhos(as)
casado(as) e até viúvos(as)! Como ocorreu com Bernardino Antônio de Barros (natural de Lisboa) e Dona Maria do Carmo (natural
da Espanha). Receberam-se em matrimônio no dia 13 de agosto de
1851 e, conforme se registra no assento, a cerimônia realizou-se
“nas casas de residência de Bernardino Antônio de Barros, nesta
cidade de Porto Alegre, pelas 8h da manhã”. Interessante é que,
além de ser realizado na casa dos contraentes diante do pároco
coadjutor Francisco de Paula Macedo, não foram mencionadas testemunhas. Tudo indica que teriam vivido em união estável ao longo de quase três décadas, legitimando cinco filhos:
[...] Declararam os contraentes que legitimavam por este subsequente matrimônio os filhos havidos de ambos, a saber, Tereza, casada com o Alferes Primo dos Santos Candal de Carvalho; Carlos Antônio de Barros, de vinte e seis anos de idade,
solteiro; Carolina, viúva de Antônio Joaquim da Silva; Cândida, solteira, com vinte e dois anos; Felipe, de dezessete anos,
também solteiro. Receberam bênçãos [...] O Vigário Thomé
Luiz de Souza.
O motivo para a realização das bodas com certeza está ligado ao precário estado de saúde de Dona Maria do Carmo, já que
ela faleceu pouco depois, em 20 de agosto, enterrada no cemitério
da Misericórdia. A iminência da morte explica também o fato de
o casamento ter se realizado na residência dos nubentes numa
cerimônia privada. É mais uma situação que nos faz refletir sobre
os diferentes motivos que levavam os casais a regularizar, ou não,
uniões estáveis que se prolongavam por anos a fio.
Além disso, reforçamos aqui a hipótese de que a conjuntura
de instabilidade gerada por guerras na província teria estimulado a
legitimação dos filhos naturais. Sua validade não só foi comprovada durante o período do conflito farroupilha, como também o mesmo comportamento foi registrado durante a Guerra Cisplatina: entre
os anos 1825 e 1828, foram 14 casais que legitimaram os seus filhos no momento do casamento, metade dos 29 casos registrados
entre 1800 e 1834.
51
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Luft, ao analisar o recrutamento militar para a Cisplatina,
afirma que houve grande impacto na província do Rio Grande de
São Pedro. Para Porto Alegre, principal cidade da província, Luft
mostra as constantes reclamações e a insatisfação da população
em relação ao esforço de guerra, bem como a resistência que se
dava através dos pedidos de isenção do serviço (LUFT, 2013, p.
131-132). Entre os isentos figuravam os homens casados, o que
poderia impelir a regularização de uma união estável e, paralelamente, a legitimação da prole natural.29
De todo modo, no contexto bélico e de instabilidade das
guerras da Cisplatina e dos Farrapos, sem dúvida, a vida familiar
de algumas mulheres porto-alegrenses se viu alterada. Pretende-se
aprofundar o estudo desses casos através do acompanhamento das
trajetórias dos casais e de suas famílias.
O estudo das mulheres livres e dos distintos arranjos familiares na Porto Alegre oitocentista revelou situações muito variadas, dependendo dos vários contextos vivenciados pela população;
por isso mesmo a análise da ilegitimidade e das uniões consensuais
mostrou enorme complexidade e variabilidade.
Apontar apenas as taxas de ilegitimidade deixa de ser a questão central. O caso das mulheres livres de Porto Alegre revela que
nosso olhar deve deslocar-se para a análise das trajetórias individuais e familiares, buscando desvendar e entender as opções e os
constrangimentos que levaram mulheres e homens a viver arranjos
tão distintos como os detectados através do cruzamento das fontes
paroquiais selecionadas.
Abordamos aqui uma série de questões, mas muitas outras
podem ser trazidas à tona. Entre elas o estudo das trajetórias das
mulheres porto-alegrenses que entraram com ações de nulidade e/
ou processos de divórcio no Tribunal Eclesiástico. Seria muito instigante fazer o cruzamento das informações nominativas relativas
aos processos identificados por Cristina S. Azambuja (2006) com a
29
No entanto, na conjuntura da guerra contra o Paraguai, essa tendência não se
confirmou e, entre 1864 e 1870, foram apenas três casos de legitimação através
do matrimônio.
52
História das Mulheres no Brasil Meridional
base de dados que temos sobre Porto Alegre a partir dos assentos
paroquiais, acompanhando a trajetória daquelas mulheres.
Ficam, portanto, esse e outros desafios para outras etapas de
nossa investigação ou para outros estudiosos da família porto-alegrense que queiram seguir essas pistas.
Mulheres escravizadas, conjugalidade e vida familiar
Ainda que as Constituições Primeiras do Arcebispado da
Bahia asseverassem no seu Livro I, Título LXXI, que conforme o
direito divino e humano, os escravos e escravas podem casar com outras
pessoas cativas ou livres e seus senhores lhe não podem impedir, a literatura vem demonstrando que, na prática, o acesso ao casamento entre
os escravizados e escravizadas estava longe de constituir a regra.
Pelo contrário, poucos eram aqueles que tinham possibilidade de
aceder ao matrimônio sacramentado pela Igreja, como deixam explícitos os elevados índices de ilegitimidade entre os batizados de
crianças cativas.
A Porto Alegre oitocentista não era uma exceção e, ao estudar os casamentos que uniam apenas nubentes escravizados entre
1772 e 1845, vimos que o número de consórcios não atingiu as três
centenas (SCOTT; SCOTT, 2016). Naquela oportunidade, vimos
que, entre os nubentes registrados em 294 casamentos, havia o predomínio de escravizados e escravizadas africanos, que conformavam mais de 90% entre aqueles de que conhecíamos a naturalidade
(majoritariamente identificados como “pretos”). As escolhas revelaram-se altamente endogâmicas (Angolas com Angolas, Benguelas com Benguelas, etc.).
Também é importante notar que quase a totalidade dos nubentes escravizados pertenciam ao mesmo proprietário, ou seja, os
matrimônios ocorriam dentro da mesma senzala (SCOTT; SCOTT,
2016, p. 11s.).
A tendência para as décadas seguintes, considerando o período até 1872, foi de maior restrição ao casamento legitimado entre
a população escravizada. O resultado direto dessa nupcialidade altamente restrita foram os altos índices de crianças escravizadas batizadas na condição de “naturais” e o reduzido número das legítimas, que declinou de 9% para 3%.
53
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
Diferentemente das crianças livres naturais, o nome do pai
dos pequenos(as) cativos(as) batizados nunca era mencionado. De
fato, encontramos a identificação do pai apenas no batismo de Eva,
cujo assento se reproduz:
Aos vinte e dois dias do mês de outubro de mil oitocentos e
quatro anos, nesta Matriz de Porto Alegre, batizou solenemente o Reverendo Coadjuctor Agostinho José de Sampaio a Eva,
crioula, nascida aos quinze dias do mesmo mês e ano, filha
natural de Garcia, crioulo, e de Constância, preta Mina, escravos de Francisco Leonardo Cardozo. Foram padrinhos Francisco Pereira Maciel e Esméria Maciel; para constar fiz esse
assento. Vigário José Ignacio dos Santos Pereira.
Nosso olhar vai dirigir-se para a minoria de escravizadas que
se casou e gerou filhos legítimos. É sobre a vida familiar dessas
mulheres que se casaram com homens também escravizados que
queremos refletir.
Entre 1800 e 1872, foram 234 os casamentos realizados exclusivamente entre nubentes escravizados (193 entre 1800 e 1834 e
41 entre 1835 e 1872), que geraram, como vimos, 633 crianças escravizadas legítimas (493 entre 1800 e 1834 e 140 entre 1835 e 1872),
uma média próxima de três filhos por casal (2,7).
A lente que permite estudar a vida familiar dessas escravizadas passa, necessariamente, pela identificação do grupo de proprietários que permitiu que alguns de seus cativos e cativas acedessem ao privilégio de casar.
No topo da lista estão o Coronel Bibiano José Carneiro da
Fontoura, que compareceu como proprietário em seis casamentos,
permitindo que 12 de seus escravizadas(os) se unissem diante do
altar, seguido do Capitão Antônio Ferreira Leitão com cinco casamentos ou dez escravizados(as) de suas posses casando-se. Seguem
mais quatro senhores que foram apontados como proprietários em
quatro casamentos e, finalmente, outros seis que foram identificados em três casamentos de escravizadas e escravizados.
O casamento de várias escravizadas e escravizados de um
mesmo proprietário leva-nos a crer que as escravarias não eram
pequenas, por isso mesmo aumentavam as chances de casamentos
e de uma vida familiar estável dentro da “senzala”. No entanto, a
54
História das Mulheres no Brasil Meridional
partir dos registros paroquiais, não temos condições de determinar
a fundamental informação sobre o tamanho das escravarias desses
senhores. Podemos, entretanto, usar alguns recursos para tentar uma
aproximação.
A primeira forma é conhecer o tamanho da escravaria através do cruzamento com outras fontes nominativas, como, por exemplo, os inventários. O Arquivo Público do Rio Grande do Sul publicou a série “Documentos da Escravidão no Rio Grande do Sul”
(2010), que inclui, na série de Inventários, o “escravo deixado como
herança”. Temos, portanto, identificados todos os inventários de
pessoas falecidas e que deixaram escravizados entre os bens.
Com todos os limites que conhecemos em relação ao uso dos
inventários que se referem ao momento subsequente à morte de uma
pessoa podemos, ainda assim, conhecer o total de escravizados possuídos quando da elaboração do inventário. Buscamos, então, os
nomes dos proprietários arrolados na Tabela 11, encontrando informação sobre a maioria deles. Dos 12, apenas para três deles não
localizamos dados sobre os inventários: Luís Correia Teixeira de
Bragança, Francisco Chagas Santos e Pedro Pires da Silveira.
O segundo artifício é através do uso dos próprios assentos
paroquiais para fazer uma aproximação ao montante de escravizadas e escravizados que possuíram numa determinada faixa temporal, verificando o número de vezes que esses mesmos senhores foram arrolados como proprietários nos assentos de batizados.30 Isso
pode dar-nos também elementos para pensar a dimensão de posse
cativa e de “políticas” de estímulo à família escravizada.
A Tabela 11 arrola os senhores de escravizados que registraram, no mínimo, três casamentos como proprietários dos nubentes. Muitos deles ostentavam títulos ou patentes militares e, convém notar, não identificamos nenhuma proprietária.
Considerando que são pessoas que habitam a cidade de Porto Alegre, as escravarias arroladas são muito grandes. O tamanho
30
Observe-se a metodologia proposta por Marcelo Matheus e Luís A. Farinatti,
que usaram registros de batismo e inventários post mortem de duas localidades
da fronteira sudoeste da província do Rio Grande do Sul (MATHEUS; FARINATTTI, 2016).
55
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
médio da escravaria dos nove proprietários era de 33 cativos. Contudo, desconsiderando os que tinham as escravarias mais modestas
no momento final da vida (José Silva Ribeiro Lima e Lino José
Silva), a média dos maiores proprietários subia para 41.
Com certeza, o fato de tratar-se de grandes escravarias facilitaria a “negociação” entre senhores e escravizadas(os) para que o
matrimônio ocorresse. E deveria haver, sim, um “entendimento”,
pois o desequilíbrio entre os sexos era bem acentuado (Tabela 11).
Além disso, em geral, a faixa temporal em que os casamentos se realizavam não era muito alargada (Tabela 11), ao indicar-se
o ano do primeiro e do último matrimônio ocorridos naquelas senzalas. Vale notar também que o estímulo ao casamento não parece
atrelado à proximidade dos derradeiros anos de vida do falecido.
Tabela 11 – Proprietários com mais casamentos entre escravizados
Atributo
Nome do Proprietário
Casamento de
escravizados
1º
Último
Coronel
Vicente Ferrer Silva
4
1820
1828
1836
56
15
71
Comendador
José Antônio Araújo Ribeiro
4
1835
1855
1857
46
6
52
Coronel
Bibiano José Carneiro Fontoura
6
1843
1850
1857
36
15
51
Capitão
Antônio Ferreira Leitão
5
1805
1810
1810
31
19
50
Capitão
José Bitencourt Cidade
Bento José Duarte
4
3
1808
1824
1823
1826
1825
1846
21
14
7
7
28
21
Sargento mor /
Capitão
André Alves Pereira Viana
4
1801
1805
1834
9
8
17
João Silva Ribeiro Lima
3
1806
1816
1873
6
3
9
Lino José Silva
3
1830
1833
1845
3
3
6
Tenente coronel/
Coronel/
Sargento mor/
Marechal
Francisco Chagas Santos
3
1800
1834
Doutor
Luís Correia Teixeira Bragança
3
1810
1821
Pedro Pires Silveira
3
1806
1811
Proprietários com 2 casamentos
40
1800
1869
Proprietários com 1 casamento
149
1800
1866
Total
234
Qtde
Número de escravizados
no Inventário
Ano Hom. Mul. Total
Fonte: AHCMPA – Livro 1 até o 9 de matrimônios da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
Infelizmente, aqui não há espaço para fazer uma análise mais
detalhada desses casamentos e do perfil das mulheres escravizadas
56
História das Mulheres no Brasil Meridional
que casaram em cada uma das “senzalas” dos escravistas que identificamos. Mas isso é viável na medida em que a documentação
disponibilizada pelo APERS sobre os cativos deixados em herança
indica o nome, a idade e o estado matrimonial (além da ocupação
e preço), o que nos permite cruzar com os dados nominativos dos
assentos paroquiais. A título de ilustração, a escravaria arrolada no
inventário do Capitão Antônio Ferreira Leitão traz as seguintes
informações:
Inventariado – Antônio Ferreira Leitão. Descrição: 50 escravos, 31 masculino, 19 feminino, Benedito, casado, 28 anos, 150$;
Maria Antônia, casada, 28 anos, 140$; José, casado, 29 anos,
Rebolo, 76$; Rosa, casada, 26 anos, 140$; Fortunato, 9 anos,
Crioulo, Rosa, 100$; Cândida, 6 anos, Crioula, Rosa, 76$800;
Genoveva, 4 meses, Crioula, Rosa, 25$600; Antônio, cabra, 23
anos, 150$; José, moleque, 19 anos, 160$; Jerônimo, 30 anos,
200$; José Bumba, 28 anos, 250$; Manoel, 30 anos, 160$;
Ambrósio, 24 anos, 200$; Vicente, 19 anos, 150$; João, 28 anos,
Crioulo, 150$; Luís, 32 anos, 32$; Mateus, casado, 29 anos,
160$; Luzia, casada, 24 anos, 140$; Simplícia, 6 anos, Luzia,
70$; Basília, 3 anos, Luzia, 60$; Martiniano, 2 anos, Luzia,
32$; Porfíria, 6 meses, Crioula, 32$; José Muam, 38 anos, 160$;
Serafim, 34 anos, 160$; Garcia, 30 anos, 160$; João Grande,
36 anos, 160$; Antônio do Rio, casado, 50 anos, 160$; Maria,
casada, cega, quebrada, 30$; Caetano, casado, 51 anos, 150$;
Rita, casada, 36 anos, 110$; Estefânia, 7 meses, Rita e Caetano, 32$; Gregório, 64 anos, 60$; José Palaté, 77 anos, 32$;
Manoel, casado, 51 anos, barbeiro, 90$; Maria Joaquina, casada, 39 anos, 140$ Sinforosa, 8 anos, Maria e Manoel, 85$;
Cornélia, 3 anos, Maria e Manoel, 60$; Ediviges, 2 anos, Maria e Manoel, 25$600; Úrsula, 6 meses, Maria e Manoel, 25$600;
Francisco, 27 anos, pedreiro, 250$; Vicente, 15 anos, aprendiz,
161$; Manoel, 68 anos, roceiro, 60$; Maximiano, 5 anos,
76$800; Miguel, 69 anos, 70$; Bento, 16 anos, 160$; João, Congo, doente, 64$; Francisco, pardo, 66 anos, 100$; Rosa, solteira, 16 anos, 150$; Clemência, solteira, 15 anos, 150$; Germana, solteira, 14 anos, 150$.
São preciosas as informações que revelaram que mais da
metade da escravaria vivia em companhia da família, pais casados
e seus filhos: Benedito, casado com Maria Antônia; José, casado
com Rosa, e os filhos Fortunato, Cândida, Genoveva; Mateus, ca-
57
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
sado com Luiza, e os filhos Simplícia, Luiza, Basília, Luzia, Martiniano, Luiza, Porfíria; Caetano, casado com Rita, e a filha Estefânia; Manuel, casado com Maria Joaquina, e os filhos Sinforosa,
Cornélia, Ediviges, Úrsula. Tudo indica a estabilidade da vida familiar como resultado das escolhas do capitão.
Podemos argumentar que, na senzala do Capitão Antônio
Ferreira Leitão, havia uma política de permitir o casamento, manter a estabilidade e a convivência da família cativa e, quem sabe,
estimular a reprodução dos cativos.31
A questão que se coloca é identificar e refletir sobre políticas
senhoriais específicas. Esse é um desafio que pretendemos enfrentar.
Por fim, temos os dados coletados nos assentos paroquiais
sobre o número de vezes que cada senhor foi identificado como
proprietário nos batizados.32 Na Tabela 12, chama-se a atenção para
o número de batizados de crianças escravizadas legítimas, em que se
destacam Luís Correia Teixeira Bragança (25 batizados entre 1807
e 1825), Vicente Ferrer da Silva Freire (21 batizados entre 1817 e
1835) e Antônio Ferreira Leitão (18 entre 1800 e 1811). A política
senhorial desses indivíduos aponta para a valorização da vida familiar entre seus cativos. Não só batizam muitos legítimos, como
também foram poucos os batizados de crianças escravizadas “naturais” em suas senzalas. Podemos defender ainda que havia um
estímulo à reprodução endógena, tema que tem sido discutido entre os especialistas na temática da escravidão.
Entre outros senhores, como André Álvares Pereira Viana,
Bibiano José Carneiro da Fontoura, apesar de permitir o casamento de escravizada(os) dentro de suas senzalas, foram poucos os registros de crianças escravizadas legítimas, predominando o padrão
de relações consensuais entre os escravizados(as), pois a maioria
dos batizados era de crianças naturais (quatro em 16 e seis em 27,
respectivamente).
31
Uma análise específica sobre a escravaria do Capitão Antônio Ferreira Leitão
foi apresentada em trabalho anterior, em que se discutia a ideia de políticas de
casamento e compadrio entre seus escravizados (SCOTT, 2017).
32
Excluímos o “campeão” José Antônio Araújo Ribeiro, porque há homônimo entre pai e filho e ainda não foi possível separar os assentos relativos a cada um deles.
58
História das Mulheres no Brasil Meridional
Talvez aqui estejamos diante de uma política específica que
“premiava” algumas poucas escravizadas e escravizados com a possibilidade do casamento, não havendo um efetivo estímulo à constituição da família escrava. Mas há que aprofundar a discussão à
luz de mais dados.
Tabela 12 – Batizados de escravizados por proprietário e condição
de legitimidade
Nome do Proprietário
Faixa temporal
Legitimidade
Legitimo Natural
N/D Total
1º
Último
José Antônio Araújo Ribeiro
1810
1854
6
27
46
Bibiano José Carneiro Fontoura
1824
1862
6
27
3
36
Luís Correia Teixeira Bragança
1807
1825
25
2
1
28
79
Vicente Ferrer da Silva Freire
1817
1835
21
4
25
André Álvares Pereira Viana
1802
1828
4
16
20
Antônio Ferreira Leitão
1802
1811
18
2
20
José Bitencourt Cidade
1809
1830
2
9
11
Pedro Pires Silveira Casado
1805
1815
7
2
9
Francisco Chagas Santos
1801
1842
7
1
8
Bento José Duarte
1822
1826
4
Lino José Silva
1817
1831
João Silva Ribeiro Lima
1803
1816
Total
100
2
1
7
1
5
6
3
1
4
96
57
253
Fonte: AHCMPA – Livro 3 até o 21 de batizados da freguesia da Madre de
Deus de Porto Alegre, organizados pelo NACAOB, tabulado com o NACAOB.
A discussão sobre a conjugalidade e a vida familiar das escravizadas, como se vê, obedece a outras variáveis, que se ligam a
seus respectivos proprietários. As margens de manobra e de agência das escravizadas em relação à sua vida em família submetemse, inicialmente, ao tamanho e à característica das escravarias em
que viviam, especialmente ao maior ou menor desequilíbrio entre
os sexos e a faixa etária de seus companheiros de senzala e potenciais “maridos”. De outra parte, e talvez mais importante, elas estavam submetidas aos desígnios de seus senhores. Cada um deles
determinava as “regras do jogo”, ainda que houvesse alguma mar-
59
SCOTT, A. S. V.; SCOTT, D. • Mulheres e vida familiar na Porto Alegre
oitocentista (1800-1872)
gem para negociação. Isso ficou demonstrado através das diferentes estratégias colocadas em prática em cada uma das senzalas que
pudemos analisar com mais detalhes.
Ainda que haja dificuldades para entender as lógicas que presidiam as escolhas senhoriais, o banco de dados organizado para a
Madre de Deus, a partir do NACAOB, oferece muitas possibilidades para o aprofundamento dessa e de outras temáticas; com certeza, daremos continuidade ao estudo da vida familiar das escravizadas e dos escravizados que nasceram, tiveram filhos (legítimos ou
naturais) e faleceram na Porto Alegre oitocentista.
Considerações finais
As mulheres e a vida familiar na Porto Alegre oitocentista
foram as temáticas eleitas para este capítulo. Nosso objetivo foi
dar uma contribuição à discussão sobre o lugar e o papel que elas
desempenharam, independentemente de sua posição social e sua
condição jurídica numa localidade urbana, caracterizada por sua
posição de importante entreposto comercial, centro administrativo e porto na província mais meridional do Império. Através das
fontes paroquiais procuramos dar visibilidade a essas mulheres,
trazendo à tona a diversidade de suas experiências e vivências
familiares.
Em primeiro lugar, mostramos que, apesar de todos os obstáculos, a maioria das mulheres livres vivenciou a família nos moldes “tridentinos”. Quase 75% das crianças livres vinham ao mundo no universo da família legitimada pelo casamento. A instituição
do matrimônio perpassava todo o espectro da população livre, não
estando limitada a mulheres e homens que ocupavam posições hierárquicas mais privilegiadas.
As mulheres escravizadas, por sua vez, tinham uma vida familiar que era o oposto das livres, pois a maioria de seus filhos
nascia a partir de uniões consensuais. Alguns poucos dos nascimentos traziam a condição de legítimos, somando pouco mais de
seis centenas no período analisado.
Diante desse cenário divergente, a opção foi apostar no estudo da vida familiar da “minoria”, isto é, o conjunto de mulheres
60
História das Mulheres no Brasil Meridional
livres que tinham filhos naturais e das mulheres escravizadas que
tinham filhos legítimos.
Realidades interessantes vieram à tona. Em relação às mulheres livres, encontramos percentual significativo de vivências marcadas pelo reconhecimento e/ou pela legitimação da prole natural.
Porto Alegre mostrou que sua população respondeu de forma específica a contextos de turbulência e conflitos bélicos, que impactaram as relações que eram mantidas entre algumas mulheres e homens que viviam uniões consensuais estáveis. Poucas, é bem verdade, conseguiram transpor a linha que separava as uniões livres
dos matrimônios. Ficaram evidentes as múltiplas formas de união
e vida familiar e a dificuldade de constituir a família legítima, ainda que seus companheiros e pais de seus filhos reconhecessem publicamente os frutos de seus relacionamentos.
Entre as escravizadas, muito poucas tiveram o privilégio de
casar na igreja. E esse privilégio ficou mais e mais distante quanto
mais transcorria o século XIX. O estudo de algumas das maiores
senzalas revelou ainda que o acesso à família para homens e mulheres escravizados obedecia a lógicas particulares, dependendo dos
seus senhores. Ainda que alguns poucos escolhessem estimular o
casamento sacramentado (dentro de suas próprias escravarias), a
maioria dos senhores não demonstrou interesse em casar seus escravos nem mesmo no contexto que sucedeu o fim do tráfico atlântico (1850). De fato, minguaram mais as oportunidades de mulheres escravizadas formarem uma família a partir do casamento, a
contar dos meados do século XIX.
Tudo somado, comprovam-se, mais uma vez, a diversidade
e a complexidade dos estudos relativos às mulheres e à vida familiar. Isso só aumenta o interesse das historiadoras e dos historiadores sobre seu estudo. Fica, portanto, lançado o desafio para que
outros trabalhos contribuam para enriquecer nosso conhecimento
sobre essas temáticas.
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66
História das Mulheres no Brasil Meridional
Para além da moral tridentina:
trajetórias de mulheres na Porto Alegre
dos séculos XVIII e XIX
Denize Terezinha Leal Freitas
Por muito tempo, a História da Humanidade foi escrita e
denominada como a História do Homem. Hoje, ainda buscamos
desconstruir essas categorias impositivas e transformar tanto a nossa
leitura de mundo como e sobretudo nossa escrita e fala sobre a
História. Portanto, é de suma importância que a nossa narrativa
tenha como perspectiva a atenção direcionada a uma história que
contemple as mulheres como sujeitos históricos. Recorrendo às
palavras de Michelle Perrot, podemos dizer que “escrever a história das mulheres é sair do silêncio em que elas estavam confinadas”
(PERROT, 2008, p. 16).
Mas também devemos ter consciência de que há uma pluralidade de trajetórias de vida e complexas condições sociais, culturais, econômicas e políticas que nos colocam diante de uma variedade de histórias de diferentes mulheres ao longo do tempo. Nosso
objetivo nesse sentido é direcionar nossa atenção para a trajetória
de mulheres que viveram nos arredores da Paróquia Madre de Deus
de Porto Alegre entre 1772 e 1822.
A ideia central deste capítulo é entrar no universo do protagonismo feminino, tendo como foco os seus relacionamentos fora da
esfera do casamento. Perguntamos-nos: quem eram essas mulheres?
Como elas conseguiam ter relações alternativas àquelas impostas pela
Igreja Católica? Existia diferença entre os padrões de comportamentos entre mulheres de diferentes esferas sociais? Essas são algumas
das questões que procuraremos abordar ao longo deste trabalho.
Para a realização desta investigação, valemo-nos de personagens históricos que anteriormente foram trabalhados detalhada-
67
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
mente na elaboração da tese de doutorado. Como aportes teóricos
utilizaremos as técnicas de coleta e análise de dados da Demografia Histórica (sobretudo com as fontes dos registros paroquiais –
batismos, casamentos e óbitos da Paróquia) e, concomitantemente, do cruzamento nominativo de demais fontes cartoriais e eclesiásticas (róis de confessados, processos de divórcios, documentos
das atas de vereança, devassas episcopais).
Uma Porto Alegre através das mulheres
A Freguesia da Madre de Deus de Porto Alegre é formada
por uma sociedade mista, plural e heterogênea, como temos tratado até aqui e demonstramos em pesquisas anteriores (FREITAS,
2011; 2017). Estava ligada, nos primórdios de sua fundação, aos
princípios da expansão portuguesa nos domínios do extremo sul
da América. As terras meridionais constituíam importante via de
acesso ao Rio da Prata, bem como para assegurar a posse desse
território a coroa deu início ao processo de ocupação. Antes mesmo de fundada a freguesia em 1772, a área foi um dos pontos onde
se fixaram casais açorianos destinados a ocupar as terras devolutas
cedidas pelo governo. Através da política do uti possidetis1 Portugal
centrou seus esforços no povoamento da região central do continente na segunda metade do século XVIII.
A comunidade organizara-se entre as margens do Lago do
Guaíba e o Alto da Rua da Praia, onde ficava a igreja. Recentemente (re)classificado como lago, o Guaíba era um importante elo
fluvial com as demais freguesias, como Rio Grande, principal porto de ligação com o Atlântico. Essa posição portuária e a ligação
com os principais afluentes que desembocam no Lago do Guaíba e
interligam também diversas e longínquas freguesias e vilas do inte1
A diplomacia portuguesa elevava o princípio do uti possidetis para a implementação de uma política de apropriação territorial baseada na ideia imanente de que
existe um direito natural à propriedade da terra e de que a terra pertence a quem
a valoriza através do cumprimento da obrigação natural do trabalho. No século
XVIII, o Tratado de Madri (o mais importante até então) reconheceu esse princípio, assegurando aos portugueses os territórios que haviam ocupado no Continente do Rio Grande a partir da década de 1730 (SANTO, 2006).
68
História das Mulheres no Brasil Meridional
rior privilegiavam a localidade como principal centro escoador de
mercadorias vindas do exterior e interior da América Portuguesa.
Além disso, os constantes conflitos com os castelhanos tornavam a
freguesia um ponto estratégico para o abastecimento de armas e
homens, bem como para seu deslocamento em regimentos para a
fronteira (REICHEL, 2006).
Por se tratar de um território no extremo sul da América
Portuguesa, carregava consigo as características de uma área
fronteiriça, sendo palco de diversos conflitos e disputas por territórios envolvendo as coroas ibéricas. Resultado desses conflitos
é que Porto Alegre com suas barreiras naturais passa a ser a sede
administrativa da Capitania do Rio Grande de São Pedro em
1773, abrigando a Câmara sulina, única em toda a extensão do
território, e seu aparato burocrático administrativo, como a Casa
Alfandegária, ainda a criação da Santa Casa e do Arsenal de
Guerra.
Nesse território, havia uma diversidade populacional acentuada, constituída de homens e mulheres originários de outras
áreas da América Portuguesa, negociantes e comerciantes vindos de outros continentes (ingleses, franceses, etc.). Bem como
uma ampla parcela da população era constituída por africanos
escravizados e uma forte presença da população indígena, a circulação de espanhóis e, não obstante, o fluxo intenso de reinóis
continentais e insulares que pontuam a localidade, estabelecendo-se ao longo de todo o final do século XVIII e início do século
XIX. Segundo levantamentos da época, a freguesia contava com
um contingente populacional de 1.512 habitantes apenas oito
anos depois de sua criação. De 1780 a 1798, esses números forão duplicados para 3.268. No início do século XIX (1810), já
havia alcançado cerca de 6.000 habitantes (SANTOS, 1984).
Aliás, deve-se enfatizar que não apenas essa freguesia, mas
o Continente do Rio Grande de São Pedro apresentou um crescimento acelerado. Em 1780, a população total do continente
fora estimada em 18 mil pessoas, e que no decorrer de dezoito
anos (em 1798), havia se verificado um aumento populacional
de 18% com uma taxa anual de crescimento da ordem de 3,2%.
Para ter uma ideia, São Paulo, Bahia, Pernambuco e Alagoas
69
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
nesse período cresceram a uma taxa máxima de crescimento de
apenas 2,3%. Na virada do século, entre 1798-1814, o ritmo de
crescimento foi ainda maior: de 111% na população total (OSÓRIO, 2008).
No entanto, o que o cruzamento das fontes nos indica é que
diferentes camadas da sociedade interagiam e contraíam relações
sociais e afetivas, nas quais há presença de cativos, agregados, livres, forros, expostos, estrangeiros, etc., que coabitam e compartilham as mesmas angústias, doenças, problemas, jornadas de trabalho e demais demandas do dia a dia, exigentes das condições propícias de uma localidade em gestação. A violência e a desigualdade
social faziam parte dessa sociedade, mas isso não impedia a coexistência de grupos distintos e, porque não, o relacionamento carnal
e/ou amoroso entre gentes desiguais.
A dominação masculina deve ter predominado nas relações
entre desiguais, por exemplo entre senhores e suas escravas e/ou
agregadas. De acordo com Maria Nader (2011), a violência e a imposição de relações sexuais por parte dos homens eram justificadas
ao longo da História através das relações de poder envolvendo setores hierarquicamente sociais e econômicos díspares. Assim, vistas como “desumanas ou semi-humanas, as mulheres foram consideradas bestiais, diabólicas ou divinas, mas sempre seres inferiores
plausíveis de controle e de segregação na esfera familiar e doméstica” (NADER, 2011, p. 249). Com raras exceções e devido a estratégias e artimanhas, algumas mulheres tomaram a frente dentro do
comando de seus relacionamentos e seus lares, porém o peso da
ideologia patriarcal e das relações de hierarquia trazidas pela colonização deixaram várias mulheres nativas, africanas, crioulas e demais pobres livres ou cativas numa situação de vulnerabilidade à
violência masculina (NADER, 2011).
A distinção das práticas de alianças dentro ou fora da esfera
sagrada do casamento também era variável de acordo com as localidades e especificidades geográficas de cada área da América Portuguesa. Áreas urbanizadas eram distintas daquelas campesinas, e
isso não está apenas relacionado à prática das atividades econômicas e culturais, mas sobretudo ao modo de conceber os relacionamentos familiares (FARIA, 1998).
70
História das Mulheres no Brasil Meridional
No caso de Porto Alegre, mesmo havendo um núcleo urbano que se consolidou ao longo do período analisado, havia um entorno rural que demarcava um espaço de complementaridade entre as duas porções do território (GOMES, 2012, p. 71-72). Analisando o rol de 1782, Gomes revela que há uma diferença sutil entre
os domicílios, segundo sua posição, intramuros ou extramuros, e
procura fazer uma distribuição da população: a maioria da população, 61% dos moradores, residia dentro dos muros e 39% fora, e ali
se concentravam os lavradores, denotando que as unidades de produção agropecuária se encontravam na área extramuros (GOMES,
2012, p. 76).
No espaço rural, temos mulheres que, ao lado de seus pais,
filhos, esposos, irmãos e africanos escravizados, ajudaram na labuta constante da vida campesina. Elas dividiram suas atividades
domésticas e na plantação e colheita, bem como no cuidado com
as criações de animais e no cuidado com os arvoredos. Os róis de
confessados indicam-nos pela diversidade dos domicílios que as
mulheres acumulavam inúmeras tarefas, que iam desde os cuidados da casa e a criação dos filhos até o auxílio perene no campo.
Já no espaço portuário, as mulheres valeram-se desse espaço
urbano para a venda e a prestação de serviços às embarcações recém abarcadas. Não encontramos mulheres na lista de arrolamento das embarcações de comércio e cabotagem dispostas nos róis de
confessados. Porém, temos ciência de que, ao longo do século XIX,
muitas mulheres, sobretudo de origem germânica, tinham canoas
que transitavam levando pessoas de Porto Alegre a São Leopoldo e
demais localidades portuárias adjacentes.
Em outras palavras, no âmbito rural, o casamento era um
veículo legal de garantir a sobrevivência e o patrimônio familiar.
Porém, essas considerações não anulam o fato de que pelas dificuldades e/ou pela inexpressividade dos casamentos para muitos grupos étnicos o concubinato tenha significado outra forma de união
análoga ao casamento em termos de projeto familiar e estabilidade
do relacionamento entre os envolvidos.
Para entrar no universo da legitimidade na Madre de Deus
de Porto Alegre, pretendemos identificar sob que condições essas
crianças foram geradas. Portanto, buscamos identificar a quantida-
71
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
de de mães solteiras, pais solteiros ou ambos quando eram registrados nas atas de batismo. A Tabela 1, a seguir, já nos indica os dados
quantitativos da população de crianças batizadas de acordo com a
legitimidade. Os dados indicam um aumento populacional acentuado nas primeiras décadas do século XIX, que vai ao encontro
de um fluxo populacional ascendente e, concomitantemente, de
sua fixação e estabilização.
Tabela 1 – Batismos de livres conforme a legitimidade (1772-1822)
Anos
1772-1780
Total de
Batismos de
Batismos de
Batismos de
batismos crianças legítimas crianças naturais crianças expostas
404
N.A
%
N.A
%
N.A
%
342
84,6
52
12,9
10
2,5
1781-1790
807
690
85,5
88
10,9
29
3,6
1791-1800
1.359
1.101
81,1
204
15,1
54
3,8
1801-1810
2.010
1.538
76,5
339
16,9
133
6,6
1811-1822
3.551
2.539
71,5
755
21,3
257
7,2
Total
8.131
6.210
76,4
1.438
17,7
483
5,9
Fonte: Dados NACAOB, Madre de Deus de Porto Alegre, 2016.
Esses dados indicam também que, paralelamente à reprodução legítima, temos um quadro de crianças naturais e expostas
que evidencia a presença de outras formas de união. Esses casais
livres tiveram envolvimento suficiente para reproduzir novas gerações fora do seio matrimonial. Provavelmente, somando aqueles que mesmo se envolvendo na localidade migraram para outras regiões devido à alta mobilidade geográfica à parcela da população escrava, os índices sofreram um aumento considerável.
Porém, ganha destaque a quantidade de batizados de crianças naturais e expostas que cresceram ao longo do tempo.2
A quantidade de filhos naturais na localidade, como veremos a seguir, confirma um quadro encontrado em outras fregue-
2
Resultados semelhantes já foram alertados por trabalhos anteriores de Jonathan
Silva e Ana Scott (cf. SILVA, 2014; SCOTT, 2008).
72
História das Mulheres no Brasil Meridional
sias e vilas da América Portuguesa. O número de casamentos frente
ao número de batizados de filhos naturais é desproporcional, indicativo primordial de que a inserção das alianças sagradas estava
longe de se tornar unânime na efetivação das famílias.
Além disso, temos que levar em consideração que um dos
fatores indispensáveis na promoção de casamentos era a formação de alianças entre pessoas de status equivalente, posição social
e econômica, mesmas condições e origens étnicas e religiosas,
entre outras características. Esses pressupostos foram ressaltados no pioneiro estudo de Maria Nizza da Silva (1984). Segundo
a autora, no casamento, a igualdade social era um dos pontos
mais observados nas relações. Na prática, o que observaremos
são várias combinações de casamentos mistos, associações sacramentadas dentro das possibilidades de igualdade possíveis nesse
quadro populacional totalmente plural e miscigenado.
No caso de Porto Alegre, os percentuais de ilegitimidade,
conforme os batismos de livres, são maiores do que em outras
capitais, como Curitiba, e com pouca diferença de Natal, como
podemos observar no quadro abaixo. Também cabe destacar que,
apesar de índices menores do que a Sé de São Paulo, se equipara
a algumas freguesias rurais como Ubatuba e mesmo mais urbanizadas como Candelária no Rio de janeiro.
73
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
Quadro 1 – Percentuais de batismos de ilegítimos (livres) em diversas freguesias do Brasil Colonial e Imperial
Capitania
Localidade
São Paulo
Sé
Sorocaba
Ubatuba
Rio de Janeiro
Minas Gerais
Período
Ilegitimidade (%)
1745-1845
1737-1810
1800-1830
23,2
14,5
16,4
Candelária
1718-1723
13,5
Jacarepaguá
1820-1834
31,1
São Cristóvão
1858-1867
33,9
São João del Rei
1736-1850
22,9
N.S. Pilar de Ouro Preto
1740-1809
37,7
Catas Altas
1807-1850
35,1
Sabará
1776-1782
48,0
Bahia
Salvador
1770-1810
31,1
Rio G. do Norte
N.S. Apresentação de Natal
1753-1795
19,8
Paraná
N.S. da Luz de Curitiba
1751-1800
13,6
Mato Grosso
Bom Jesus de Cuiabá
1853-1890
43,5
Fonte: Bacellar (2001); Peraro (2001); Marcílio (1998); Paula (2013); Cavazzani (2005); Brügger (2007).
No espaço urbano, de grande transitoriedade populacional,
de uma economia mais dinâmica, a dificuldade de contratação de
vínculos em longo prazo pode ter sido um dos fatores desencadeadores de relacionamentos mais furtivos e sazonais, o que explica os
elevados percentuais de ilegitimidade nas freguesias mineiras, e ainda em Mato Grosso também observamos esses índices elevados na
segunda metade do século XIX frente ao território fronteiriço e
conflituoso desse contexto.
Nem todo mundo se casava, nem todo mundo casava
os filhos e, muitas vezes, quem não era casado
casava os filhos: estudos de casos
O casamento não era a única alternativa para obter relacionamento tanto para os homens como para as mulheres. Pelo contrário, numa localidade com intensa mobilidade geográfica, com
uma região portuária em emergência e uma região em processo de
74
História das Mulheres no Brasil Meridional
ocupação – na qual pontuavam sazonalmente disputas limítrofes
entre as coroas ibéricas –, as relações informais eram recorrentes
no caso de Porto Alegre. Portanto, o matrimônio, mesmo sendo a
via oficial e sacramental imposta pela Igreja Católica, esteve longe
de tornar-se um modelo ideal, de modo geral para a população que
se estabeleceu na Madre de Deus de Porto Alegre nesse período.
As mulheres que viveram nos inúmeros fogos dispersos ao
redor da igreja e nas áreas rurais afastadas também tinham vidas
diversas e trajetórias que extrapolam o modelo imposto pelo modelo patriarcal. Ele existia e se fazia impor, tal como a difusão do
casamento, porém não representava a totalidade das uniões, tampouco dos modelos familiares. Em outras palavras, essas mulheres que viveram em Porto Alegre eram chefes de fogos, empregadas pobres, africanas livres e/ou escravizadas, que eram mães solos, vizinhas e parentes que dividiam as amarguras da vida e as
despesas das moradias. Havia aquelas que sobreviviam de seus
trabalhos no universo urbano: quitandeiras, engomadeiras, amas
de leite, etc.
Havia as viúvas ou celibatárias que viviam em suas propriedades e dependiam de seus escravos(as) de ganho para manter suas
parcas economias, bem como as inúmeras mulheres indígenas guaranis, que ficam invisibilizadas com as demais brancas ou mulatas
pobres no mar de nomes cristãos dos documentos. A chegada das
mulheres oriundas do processo de migração interna e externa (1824
– chegada de imigrantes de origem germânica e o constante abastecimento de africanas que vinham do tráfico negreiro), que traziam
práticas, culturas, costumes, religiosidades e modos de vida distintos daqueles impostos pela colonização lusitana católica. Enfim,
são várias as vivências de mulheres que extrapolam até mesmo essas descritas aqui.
A pobreza, o abandono, a necessidade de sobrevivência e a
viuvez precoce de muitas mulheres tornavam-nas aptas a assumir
suas próprias vidas e procurar alternativas como meio de garantir
sua subsistência. Entretanto, muitas vezes, as atividades realizadas por essas mulheres eram contrárias à moral imposta pela Igreja
Católica. Isto é, muitas delas, aproveitando-se da transitoriedade
de homens (sobretudo marinheiros), aliciavam suas africanas es-
75
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
cravizadas e/ou alugavam suas propriedades para fins de alcoviteirice.
Não obstante, em casos de concubinato, Rafael Galvão (2006,
p. 57) salienta que “a honra da família parece ter sido negociada
em troca do sustento fornecido pelo concubino”. Mais uma vez, o
cotidiano, as necessidades imediatas colocam em xeque o projeto
moralizador católico. E seja perante ou camuflado aos olhos da
Igreja Católica, as mulheres procuravam alternativas viáveis para
sobreviver e relacionar-se mesmo que para tanto tivessem que refutar o modelo impostos pelos senhores do poder oficial.
A partir do cruzamento nominativo de alguns registros de
batismos com os de casamentos, podemos verificar que as outras
formas de união poderiam, com o tempo, tornar-se uniões sacramentadas. A promoção de elos familiares, na realidade, deve ter sido
um fator que impulsionou o matrimônio, seja pela pressão da Igreja
Católica ou por livre escolha dos cônjuges em legitimar seus filhos.
Florência Domitila Dias é um caso exemplar. No Rol de 1781,
aparecem dois fogos: no primeiro, consta uma filha de chefes de
fogos, uma com 19 anos; no segundo, temos uma filha de 16 anos.
Ambos os fogos apresentam homônimos. Quando observamos os
batizados, ela coloca os santos óleos em 04 de setembro de 1781 no
filho natural.3 Destaca-se o fato de ela aparecer no ano seguinte,
em 18 de maio de 1782, contraindo casamento com Teodoro José da
Silva Braga às 11 horas. O noivo era natural da Freguesia Nossa
Senhora dos Anjos, cidade de Lisboa, e filho legítimo de Antônio
José da Silva e Ana Joaquina. A noiva era natural de Viamão e filha
legítima de Antônio Dias Manso e Ana Isabel. Tiveram como testemunhas Belchior Cardoso Osório e Tomás Luís Osório.4
Noutros casos, conseguimos encontrar mulheres que não
casaram, mas levaram suas filhas ou filhos para o altar. Isso evidencia nossa tese de que, tal como no casamento, havia inúmeros
legítimos, ilegítimos e expostos casando entre si (casamentos mis-
3
4
AHCMPA, Rol de Confessados, 1781.
AHCMPA, Livro I de Casamentos de livres de Porto Alegre, fls.32v.
76
História das Mulheres no Brasil Meridional
tos)5; também gerações posteriores de filhos naturais poderiam ascender ao matrimônio. O sagrado e o profano aos olhos da Igreja
Católica cruzavam indelevelmente as vivências de seus paroquianos ao longo do tempo.
O caso de Maria Justa também chama a atenção: ela batiza
filhos naturais em 1782, 1786, 1793 e 17966. Infelizmente, não conseguimos identificá-la em nenhum Rol de Confessados (acreditamos que pertencesse a alguma parte corroída do assento), porém,
cruzando os dados com os livros de casamento, encontramo-la levando uma filha ao altar. Em 04 de dezembro de 1802, às 17 horas,
celebram o matrimônio José Gomes e Alexandrina Maria. Esse era
natural de Rio Grande e filho legítimo de Félix Fomes e Ana Mônica.
A noiva, nascida na Paróquia Madre de Deus de Porto Alegre, era
filha natural de Maria Justa7.
Nas margens desse registro matrimonial encontramos um
parecer do pároco, o qual explicita que a noiva veio a falecer em 22
de dezembro de 1802 após 18 dias de seu casamento com a doença
de bexigas (varíola). No óbito, ainda consta que ela era casada, de
20 anos, moradora da “outra banda do rio”, foi enterrada na Matriz. Resultado: um viúvo, uma mãe triste pela morte da filha e a
Igreja Católica realizada por ter conseguido levar o sacramento do
matrimônio a uma filha natural.8
Sobre mulheres indígenas
De acordo com Maria Resende (2003), até o tratamento conjugal era distinto nos relacionamentos entre as indígenas e os colonos. Muitas denúncias tinham como principal objetivo demonstrar
5
Aos 28/06/1826, foi realizado um casamento misto, isto é, entre um noivo legítimo com uma noiva “filha de pais incógnitos”. O casamento de João Pereira da
Silva, natural de Laguna e filho legítimo de Alexandre Joze da Silva e Maria
Bernarda de Jesus, com a noiva Rufina Marques de Assumpção, filha de “pais
incógnitos”, exposta em caza de Manuel Rodrigues de Faria, natural e batizada
nesta Matriz. AHCMPA, Livro III de casamentos de livres de Porto Alegre, fl. 139f.
Vale salientar que encontramos casamentos mistos entre indivíduos de ordem
jurídica, religiosa, social e étnica distintas.
6
AHCMPA, Livro I de batismos de livres de Porto Alegre, fls..37v.; 120f.; 176v.; 191v.;
7
AHCMPA, Livro III de casamento de livres de Porto Alegre, 164v.
8
AHCMPA, Livro III de casamento de livres de Porto Alegre, 164v.
77
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
seu escárnio ao fato de os colonos tratarem suas concubinas como
esposas. Essa “inversão da ordem, ou seja, concubinas assumirem
o lugar de esposa” (RESENDE, 2003, p. 55), gerava um descompasso social e um desvirtuamento dos papéis e posições sociais,
visto que tais mulheres eram tratadas como casadas e, além disso,
eram muito estimadas por seus consortes.
Muitas mulheres indígenas devem ter sido alvo de violência,
abandono e maus-tratos, sobretudo no momento em que o controle da Igreja e do Estado português entrou em ação. A satisfação
dos interesses coloniais deve ter feito com que muitos colonizadores subjugassem essas mulheres e as tornassem objeto de seus desejos sexuais, sobretudo através de suas condições de administradas
e/ou agregadas dentro dos fogos. Mary Karasch (2001) alega que
era corriqueiro na Comarca do Norte, Goiás, “as índias cativas e as
mulheres de cor serem partilhadas pelo chefe de família e pelos
seus camaradas” (KARASCH, 2001, p. 93). Outro estudo nesse
eixo, de Elisa Garcia (2007), mostra que, no caso do Diretório de
Índios no extremo sul, uma das preocupações eram os maus-tratos
com as mulheres indígenas nessas uniões mistas. Nas palavras da
autora, o Diretório também se preocupava com o tratamento que
só cônjuges brancos concederiam a seus consortes indígenas. A relação deveria ser fiscalizada pelos diretores e, caso fossem percebidos ‘maus-tratos’ dos brancos devido à ‘qualidade de índios’ da
pessoa com a qual estavam casados, esses estavam sujeitos a ser
punidos secretamente (GARCIA, 2007, p. 89).
Vale salientar que, mesmo em condições subalternas, os indígenas deixavam suas marcas culturais, que acabavam mesclando-se com a dos colonizadores. Para Estela Noli, as mulheres indígenas que atuavam em serviços domésticos no seio familiar tinham
grande participação na preservação e perpetuação dos costumes e
práticas culturais indígenas.
Ella las que, a la vez, conservaron El mayor poder de transmissón de la cultura indígena: en la cocina de las casas urbanas o
de las estâncias, mientras cuidaban a lós niños y en desmedro
de las exigências de sus amos, transmitían palavras, gustos, olores, perfumes, cantos, hábitos, modismos, miedos, posiciones
corporales, gestos (NOLI, 2009, p. 51).
78
História das Mulheres no Brasil Meridional
Na América Portuguesa, por sua vez, as leis pombalinas tiveram um importante papel na ascensão do protagonismo social
das populações indígenas. Muitas alterações legais sobre a população indígena foram feitas levando a uma maior inserção desses grupos na sociedade. Esses índios cristãos e súditos deveriam ter
maior interação e acesso ao universo europeu.9 A miscigenação foi
o primeiro atributo idealizado por Pombal, e isso realmente impactou na prática e promoção de casamentos, mesmo entre desiguais.
As alianças matrimoniais instituídas pelos índios sempre foram um elemento muito importante em sua organização societária. Embora as regras matrimoniais pudessem variar bastante nas diferentes sociedades indígenas, entre os índios o casamento raramente era assunto exclusivo dos próprios nubentes, envolvendo também os interesses de suas famílias e, em
um patamar mais elevado, dos grupos sociais dos noivos [...].
Por meio dos casamentos construíam-se novas solidariedades
e alianças entre famílias, linhagens, parentelas e aldeias ou fortaleciam-se e consolidavam-se laços tradicionais de colaboração. Além disso, o principal meio de incorporação dos europeus nas sociedades indígenas foi o matrimônio (MOREIRA,
2015, p. 15).
Vânia Moreira (2015) aponta que a capacidade de intervenção e atuação dos indígenas foi bastante eficaz em alguns momentos para garantir sua sobrevivência e a de sua prole. Na Vila de
Nova Almeida, na área correspondente ao Espírito Santo Colonial, os indígenas barganhavam as terras com os portugueses através de alianças matrimoniais. Portanto, só poderiam entrar e ad9
Considerando a incapacidade demográfica de Portugal em povoar o seu amplo
Império, o ministro Marquês do Pombal propunha a atração dos índios das missões para o território português, a fim de transformá-los em vassalos do Rei Fidelíssimo. Esta atração deveria ser desenvolvida através do oferecimento aos índios
de condições melhores daquelas que eles usufruíam nas missões jesuíticas espanholas. Estas medidas foram sistematizadas no Diretório dos Índios, legislação
que previa a extinção de todas as diferenças existentes entre os índios e os demais
vassalos. Na tese referida de Eliza Garcia, a autora busca desvendar as estratégias políticas utilizadas tanto pelos colonizadores portugueses como pelos espanhóis na expansão de seus domínios territoriais e tendo como aliados os grupos
nativos locais – Guarani, Minuanos, Charruas – no sul da América Portuguesa
durante a segunda metade do século XVIII (GARCIA, 2007, p. 15).
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FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
quirir acesso a seus territórios aqueles que se submetessem à ligação de parentesco via matrimônio com as mulheres da aldeia.
Assim, entre o lícito e o ilícito, as tribos conseguiam perpetuar seus costumes e garantir a sobrevivência de suas comunidades. As populações indígenas também adquiriram meios de jogar
com os lusitanos e, portanto, também impor condições e modos de
viver ao colonizador.
Vamos encontrar na Paróquia Madre de Deus de Porto Alegre a população guarani, em sua maioria vinda das Missões, batizando seus filhos, contraindo matrimônio e mesmo falecendo na
localidade.10 Vale salientar que, quanto aos casamentos, até o ano
de 1835 encontramos algumas filhas de caciques contraindo núpcias com capitães e tenentes. Porém a sua grande maioria era constituída por alianças “entre iguais”, que tinham como testemunhas
de casamento pessoas de suas teias de parentesco e/ou eram seus
iguais perante posição social.
Contudo, necessariamente nem sempre o matrimônio servia como eixo formalizador das uniões e tampouco da formação
de famílias para essas populações. A trajetória de Anna Maria de
Jesus mostra que ela já nasceu de relações fora do casamento. A
filha adulterina sob os auspícios da Igreja era fruto de uma prática
indígena, isto é, a poligamia.
10
As tentativas de demarcação do Tratado de Madri significaram, tanto para os
índios que foram para as terras portuguesas como para os que permaneceram
nos seus povos, um momento de inflexão. Os índios que deixaram as missões
em direção a Rio Pardo ficaram ali estabelecidos provisoriamente. Posteriormente, uma grande parte dos missioneiros estabelecidos em Rio Pardo foi transferida para os arredores dos campos de Viamão, onde foi fundada a aldeia de
Nossa Senhora dos Anjos. Além dessas duas aldeias, também foi estabelecido
um outro aldeamento na Guarda Velha de Viamão, atual município de Santo
Antônio da Patrulha, cuja existência foi bastante efêmera, sendo os seus moradores depois agregados à aldeia dos Anjos. A aldeia dos Anjos passou por várias
fases durante a sua existência. Primeiramente, os índios encontravam-se simplesmente “arranchados” nos arredores de Viamão. Num segundo momento,
para eles foram concedidas terras situadas na região do rio Gravataí, formando-se ali uma aldeia. Posteriormente, essa aldeia foi transformada numa vila.
Ou seja, os índios não encontraram uma situação dada quando chegaram em
Viamão, mas participaram de todo um processo durante o qual foi construído
um lugar para alocá-los (GARCIA, 2007, p. 70).
80
História das Mulheres no Brasil Meridional
Guillermo Wilde (2009), ao reconstruir a história dos guaranis nas reduções em torno do Rio da Prata entre os séculos XVII e
XIX, mencionou que a prática da poligamia nunca desapareceu e
ainda era sinônimo de poder, prestígio e estabelecimento de alianças indígenas dentro e fora das reduções.
Parece aceptable que prácticas como la poligamia contiarron
siendo para los indígenas una via altamente eficaz de aquisición de poder, tanto dentro como fuera de la reducción. Fuera
de los pueblos, la poligamia pertmitía crear nuevas redes de
alianzas que actuaban como catalizador de la movilidade de
gente entre los mismo pueblos y con respcto a los diversos espacios de campaña, donde habitaba población no reducida. A
nivel interno, la poligamia presentaba a los que no eran miembros da elite indígena, la oportunidade de escapar al estricto
control del régimen del cacicazgo, buscando alianzas no reglamentadas dentro y fuera de los pueblos (WILDE, 2009, p. 136).
Em algumas tribos espalhadas pelo território luso-americano encontramos comportamentos poligâmicos distintos. As regras
envolvendo a escolha dos parceiros sexuais variavam de acordo com
o significado que o parceiro adquiria dentro de uma esfera coletiva.
Assim, para a tradição apinajé, as mulheres da tribo “deveriam trocar favores sexuais por presentes de homens de diferentes comunidades” (KARASCH, 2009, p. 93). A recusa dessas mulheres indígenas ao cumprimento dessa tradição poderia gerar punições severas por parte da tribo.
Esse processo de inserção social tornou a população indígena invisibilizada devido à aquisição de nomes cristãos e à ausência
de sobrenomes indígenas. Além disso, a denominação de “nação
guarani”11 ou natural das “Missões” dificulta sumariamente a iden11
Vânia Moreira esclarece que o termo “nação” refere-se a uma atribuição do
interlocutor colonizador que quer se referir ao local de origem geográfica onde
existe um elo de pertencimento imediato daquele indígena. Em outras palavras:
“Os índios aldeados ou ‘vilados’ frequentemente provinham de diferentes povos
e grupos étnicos, de modo que se tornou comum identificar-se pelos nomes das
aldeias, vilas, lugares ou freguesias onde moravam”. Trata-se de uma importante evidência do processo de apagamento da memória e do passado não cristão,
também observado nos registros de batismos e casamentos das populações africanas escravizadas. De acordo com a mesma autora, a atribuição de cor, como a
81
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
tificação étnica e o cruzamento nominativo. Isso fica evidente devido à nossa dificuldade em obter clareza na identificação de Anna
Maria de Jesus nos Róis de Confessados.
No Rol de 1793 aparece um fogo de uma única componente
denominada Anna Maria de Jesus. Ela cumpriu com a desobriga
pascoal nesse ano; nos demais não conseguimos encontrá-la.12 Chama-nos a atenção essa chefe de fogo sem escravos ou demais parentes na composição familiar o fato de ela ser filha adulterina,
conforme encontramos em seu testamento.
Mais do que filha de uma relação adulterina, ela é guarani.
Tais informações foram retiradas do testamento de Anna Maria de
Jesus, que foi realizado em 21 de julho de 1796 em Porto Alegre em
casa própria, estando enferma, de cama, por moléstia. A história
dela começa com a declaração de sua mãe, Catharina da Sylva, que
disse viver com ela até o seu falecimento. Sua mãe “era cazada
com Manuel Caetano dos Povos Guaranys, o qual hé falecido”.
Ambos eram guaranis, Anna Maria contraiu matrimonio com Miguel Antonio, natural do Paraguay, de quem teve uma filha que faleceu ao nascer.13
A testamenteira afirma que é “filha adultera de Catharina
da Sylva, guaranys, que está em minha companhia”, a qual não
conseguimos localizar nos Róis. Ao que parece, a estabilidade do
relacionamento dentro das bênçãos do casamento não fez parte da
vida de Anna desde o seu nascimento. Mesmo declarando ter casado em face a Igreja com Miguel Antonio de nassao Espanhol, natural da
cidade de Paraguay de cujo matrimonio tive huma só filha a qual faleceo ao
nascer, sua vida matrimonial não durou muito.14
Ao organizar seus bens, ela alega que não possui informação alguma de seu marido há mais de 20 anos. Além disso, diz
denominação de “pardos” para descendentes indígenas, será um problema para
a classificação e ordem hierárquica dos indivíduos perante o Estado português,
porém necessariamente não interferia na identidade e sentimento de pertencimento dos indígenas (MOREIRA, 2015, p. 14).
12
AHCMPA, Rol de Confessados, 1803.
13
AHCMPA, Livros de registro de testamentos (Câmara Eclesiástica). Ref. T1-8v.
14
AHCMPA, Livros de registro de testamentos (Câmara Eclesiástica). Ref. T1-8v.
82
História das Mulheres no Brasil Meridional
que ele fugiu para os domínios da Espanha.15 Jose Moreno (2004,
p. 45), na América Espanhola, diz que os “modelos familiares ou
de unidades domésticas” têm “la movilidad geográfica incorporada a ellos”. Em outras palavras, as unidades familiares serão moldadas, ampliadas e/ou rompidas de acordo com as necessidades
imediatas de sobrevivência e de interesses daqueles que constantemente se movem pelo território americano (MORENO, 2004).
Porém, nem sempre a mudança fazia parte dos planos de
todos os membros de um grupo familiar. Nesse caso, Anna diz
não ter “noticia alguma delle nem sabe vivo ou morto” e reitera
que o que conquistou em termos de patrimônio “foi ganho por
minha agonia”16. Há indicativos de que os custos do sustento de
seu lar foram predominantemente gerenciados pelas economias
adquiridas por essa chefe de fogo.
Numa análise de outros espaços, percebemos que a estabilidade não era uma característica marcante na vida de muitos guaranis. De acordo com Luis Farinatti e Max Ribeiro (2016), a mobilidade dos guaranis fazia parte de uma realidade encontrada
pelos portugueses. A fixação populacional foi uma aposta que
procurava legitimar e organizar as possessões lusas. Segundo os
autores:
A proposta de “aldear” os missioneiros era uma tentativa de
evitar sua evasão. Como já foi dito, naquele período de grande instabilidade, grupos de guaranis-missioneiros migravam
para diferentes regiões dentro do antigo espaço dos 30 povos
e para fora dele (FARINATTI; RIBEIRO, 2016, p. 258).
Juntamente com a intensa mobilidade geográfica, a miscigenação não apenas com os europeus, mas sobretudo com os africanos escravizados e demais nativos americanos, provocou intensos intercâmbios culturais. Essa característica deve ter se intensificado com a propagação do cristianismo sobre esses grupos populacionais. Tanto que a História das Religiosidades vai tratar do
catolicismo do século XVIII como “popular”, isto é, fruto da adap-
15
16
AHCMPA, Livros de registro de testamentos (Câmara Eclesiástica). Ref. T1-8v.
AHCMPA, Livros de registro de testamentos (Câmara Eclesiástica). Ref. T1-8v.
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FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
tação e mescla de crenças africanas e indígenas com o catolicismo
português.17
Sobre mulheres africanas escravizadas, forras e/ou livres
Essa população marginalizada social e economicamente pelos colonizadores, composta por pardos(as), forros(as), negros(as),
escravos(as) e indígenas, poderia ter condições jurídicas distintas
com as leis pombalinas. Porém, na prática social, dividiam as formas de viver, amar, reproduzir e sobreviver na Paróquia Madre de
Deus de Porto Alegre.
Assim trouxemos outro caso para tratar dessa parcela da população. Trata-se da preta forra Florência Maria, que viveu grande
parte de sua vida na freguesia vizinha de Viamão, mas, ao completar seu ciclo de vida, encontramos seu testamento na Paróquia
Madre de Deus de Porto Alegre. Sua trajetória de vida foi escolhida devido às suas práticas de relacionamento fora do casamento.
Mesmo tendo contraído núpcias sacramentadas com o preto forro
João Vieira Cardoso, nesse matrimônio não foi gerado nenhum filho,
entretanto, Florência Maria declara ter uma filha Joanna, fruto de
outras formas de união18.
Além disso, conforme aponta Alessandra Silveira, é importante deter-nos nos forros, pois esses, uma vez “desclassificados
pelo próprio escravismo”, tinham mais chances de reproduzir relações concubinárias (SILVEIRA, 2005, p. 26). A burocracia e a
marginalização social são apontadas como consequências dessas
alianças, porém destacamos que nessa paróquia ao sul da América
Portuguesa encontramos um quadro mais complexo.
Joanna é casada legitimamente com José Pantaleão, “Paraguai
de nação”, e continua a habitar em Viamão, batizou naquela freguesia um filho chamado José no dia 7 de julho de 1806. É interessante mencionar que os padrinhos da criança foram Vicente, escra17
Referimo-nos aqui ao estudo pioneiro de Caio Boschi (1986), no qual o autor
argumenta que uma das explicações plausíveis para a difusão do concubinato
por parte dos cristãos leigos está no catolicismo popular, que adaptava as regras
tridentinas aos costumes nativos.
18
AHRS, Livro de Registro de Testamentos, 1817/1818, Fundo Justiça, Maço J-031.
84
História das Mulheres no Brasil Meridional
vo de Manuel Inácio de Faria, e Joaquina, preta forra, ou seja, Joanna,
apesar de ser forra, ainda tinha relações verticais com escravos.19
Como filha ilegítima de Florência Maria, Joanna foi sua herdeira e
testamenteira. Nas palavras de sua mãe:
Declaro que deixo a minha filha por herdeira e testamenteira
de todos os bens que pertencerem a minha parte a Joanna
mulher de Jose Pantaleão. Declaro que os bens que possuo em
meu cazal he hum pedaço de campo que terá em quadro cento
e cincoenta braças pouco mais ou menos. Declaro que deixo
mais a ditta minha filha huma caixa e mais toda a ropa do meu
uzo tanto preta como branca que me he pertencente e huma
tela que está a tecer em caza de João Antonio de Araujo que a
metade da dita tela será vendida para se mandar dizer missas
pela minha alma20.
O testamento data de 21 de março de 1818. Nesse momento, Florência Maria estava enferma, de cama, na casa de Domingos
Carvalho, preto forro. Nas palavras do aprovador do testamento, estava “doente na cama enferma, porem em seu juizo perfeito digo
juizo e entendimento pelo bom acerto com que me respondeu as
varias perguntas que lhe fiz”21. A lucidez de Florência Maria é evidente, pois ainda antes de encerrar seu testamento faz uma última
declaração: “Também declaro que será meu herdeiro outro meu
filho de nome Francisco também natural e por esta ser minha última vontade dou por acabado este meu Testamento...”22.
Francisco é meio-irmão de Joanna, fruto de outra união de
Florência Maria. Apesar de Joanna ser a testamenteira e estar mais
presente no documento, Florência Maria não deixou de mencionar
seu segundo filho, procurando dar-lhe amparo. Temos que destacar o papel desempenhado pelas mulheres africanas no seio familiar e social. Para algumas tribos africanas, as decisões e as relações
19
AHCMPA, Livro IV de batizados de Viamão, fl .205v.
AHRS, Livro de Registro de Testamentos, 1817/1818, Fundo Justiça, Maço J-031,
fl. 68.
21
AHRS, Livro de Registro de Testamentos, 1817/1818, Fundo Justiça, Maço J-031,
fl. 69.
22
AHRS, Livro de Registro de Testamentos, 1817/1818, Fundo Justiça, Maço J-031,
fl. 68.
20
85
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
de poder dentro do grupo eram matriarcais, e as escolhas e a organização famíliar eram matrilineares.23 Portanto, a poligamia era uma
prática recorrente, sobretudo entre as ashanti, em que a mãe tem a
posse em suas mãos das decisões e dos direitos familiares (RAMOS, 1979, p. 186).
Na Paróquia Madre de Deus, encontramos forros, sobretudo forras chefes de fogos com filhos, mas sem casamento. Também
encontramos casais de forros e forras com escravos e sem filhos ou
famílias de forros e forras casados, que, com o passar do tempo,
ficaram invisibilizados no Rol de Confessados, pois perderam a
identificação de cor e da condição jurídica, ou interpretamos isso
como uma ascensão social (LARA, 2012).
Acreditamos que a escolha por relações alternativas ao matrimônio pela população forra esteja atrelada às condições de sobrevivência; portanto, casar ou amancebar serão consórcios familiares direcionados às melhores opções de manter a família economicamente. A pobreza e os costumes culturais africanos serão
condicionantes fundamentais para direcionar essas populações dentro ou fora do mercado matrimonial (MORENO, 2011, p. 56).
No caso de Florência Maria, a possibilidade de encontrarmos
o testamento realizado na Paróquia Madre de Deus nos permitiu
investigar seu ciclo de vida e mostrar empiricamente o quanto as
diferentes formas de união estão atreladas também ao casamento e
não necessariamente opostas a ele.
As formas de união alternativas ao casamento (oficializado
pela Igreja e pelo Estado) de Florência Maria são evidenciadas ao
fim de sua vida. É no testamento que percebemos a preocupação
com seus filhos naturais, e é exatamente nesse momento que en23
James Sweet (2007, p. 53) enfatiza a importância do sexo para algumas tribos
africanas. Era um marco de passagem para a vida adulta; por isso existia um
ritual de transição. Em Angola, por exemplo, “as jovens eram mantidas numa
casa especialmente construída para a ocasião. Após alguns dias de aprendizagem, as raparigas saíam da casa como mulheres ‘crescidas’, preparadas para
dormir com homens pela primeira vez. Segundo o Padre Girolamo Merolla, um
monge capuchino, as pessoas acreditavam que ‘se elas não fizessem isso, nunca
seriam capazes de procriar’”. Costumes díspares dos católicos que chocavam os
olhares europeus.
86
História das Mulheres no Brasil Meridional
contramos a conexão do casamento com as formas alternativas
de relacionamento. Isto é, para a população liberta não restavam
apenas relações concubinárias, mas o casamento se fazia presente
como uma opção.
O casamento e o concubinato poderiam ser alternados ao
longo do ciclo de vida dos indivíduos ou, até mesmo, fazer parte
das alianças simultaneamente. No caso de Florência Maria, ela teve
esses filhos naturais num momento anterior ao casamento sacramentado pela Igreja. Dessa forma, não podemos considerar a presença de filhos naturais ou a falta de castidade como um tabu para
o acesso ao casamento, mas sim como um discurso construtivo da
moral cristã que vai ganhar força no imaginário social em meados
do século XIX.
Para a grande parcela da população pobre, liberta e de cor, o
casamento está associado a circunstâncias de um momento da vida.
A possibilidade de ascensão social, agregação a um fogo, constituição de um pequeno negócio ou a necessidade de retirar um parceiro do cativeiro podem ter influenciado na opção pelo casamento.
Por outro lado, a burocracia para sacramentar a união, a incompatibilidade religiosa e cultural, pode ter sido um dos fatores importantes na escolha pelo não ao matrimônio católico (MACHADO,
2008).
A presença de filhos de parceiros diferentes ou a autonomia
de subsistência de muitos chefes de fogos também podem ter sido
fatores que influenciaram a opção pelo não casamento. A instabilidade das condições de sobrevivência poderia ser uma das circunstâncias na hora de casar, ou seja, a união sacramentada iria contribuir para ampliar ou manter as condições de vida familiar? Caso
afirmativo, mantinha-se a relação; caso contrário, valia a máxima
portuguesa: “Melhor sozinho do que mal acompanhado”24. Vale
salientar que tal raciocínio se atrelava às relações lícitas e ilícitas
para essa parcela da população.
24
Sobre a análise dos adágios e ditados portugueses do século XVII e XVIII (cf.
VENACIO, 2009).
87
FREITAS, D. T. L. • Para além da moral tridentina: trajetórias de mulheres na
Porto Alegre dos séculos XVIII e XIX
Considerações finais
De modo geral, podemos identificar através deste ensaio sobre parte dos ciclos de vida dessas mulheres que as condições de
sobrevivência foram ímpares para definir as relações consensuais e
seus desdobramentos. As circunstâncias do processo colonizador
tornaram suas escolhas limitadas e de acordo com as condições
sociais de que dispunham. Em outras palavras, durante esse processo formativo e de ocupação, em que vários grupos étnicos, distintos grupos sociais e o constante fluxo migratório (interno e externo), nem sempre era possível casar conforme as normativas tridentinas.
A própria organização e alcance dessas normativas na Madre de Deus de Porto Alegre exigiu tempo e, também pelo reflexo
da história dessas mulheres, exigiu adaptações das múltiplas realidades trazidas pelos colonizadores e diante das diferenças de modos de vida e relacionamento dos povos originários da localidade.
Não obstante, as vias de relacionamento ainda se tornavam mais
complexas pela presença das populações étnicas distintas presentes na comunidade vindas da África e escravizadas no Brasil.
Portanto, nosso objetivo era mostrar através deste ensaio o
quão complexo e miscigenado eram os encontros e relacionamentos. Pensá-los somente através da ótica da Igreja Católica Romana
é limitar nosso espectro de análise através da História Social. Porém, não podemos nos furtar de valer dos documentos e das fontes
produzidas pela instituição para mostrar que, mesmo diante das
imposições colonizadoras, reverberava uma multiplicidade de formas de viver e se relacionar que extrapolavam as normativas tridentinas.
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91
A geração de um mercado assistencial:
protagonismos femininos
na criação dos expostos
Jonathan Fachini da Silva
O fenômeno da exposição de crianças esteve presente desde
o início do processo de ocupação do território mais ao sul da América Portuguesa, denominado Rio Grande de São Pedro. Com a
ocupação e o processo de colonização do território, práticas sociais
como a exposição de crianças recém-nascidas fizeram-se presentes
e foram propagadas pelas comunidades locais. Esse fenômeno recorrente na Europa moderna, e mesmo em outros espaços latinoamericanos, resumia-se em linhas gerais a abdicar da criação de
um filho ou filha, enjeitando a criança na calada da noite, garantindo o anonimato na porta de uma igreja, convento ou morador
local. Em localidades de densa população e mais urbanizadas,
havia as rodas dos expostos1, aglutinadas às Misericórdias que garantiam a criação dessas crianças.
Não é o caso do território em questão no conflituoso espaço
sulino, espaço fronteiriço de tensas disputas territoriais entre as
coroas ibéricas; foram as câmaras municipais as responsáveis por
garantir a assistência a essas crianças até as primeiras décadas do
século XIX, financiando amas ou famílias dispostas a criar essas
1
O nome Roda – dado por extensão à casa dos expostos – provém do dispositivo
de madeira onde se depositava o bebê. De forma cilíndrica e com uma divisória
no meio, esse dispositivo era fixado no muro ou na janela da instituição. No
tabuleiro inferior da parte externa, o expositor colocava a criancinha que enjeitava, girava a Roda e puxava um cordão com uma sineta para avisar a vigilante –
ou rodeira – de que um bebê acabara de ser abandonado, retirando-se furtivamente do local, sem ser reconhecido (MARCÍLIO, 1998, p. 56).
92
História das Mulheres no Brasil Meridional
crianças, gerando um nicho de mercado muito vantajoso para as
comunidades locais, como veremos.
Com a transferência da câmara para Porto Alegre em 1773,
iniciou-se um mecanismo de assistência, conforme vinha acontecendo seguindo as diretrizes legislativas do Reino, como houve em
outras localidades do território luso-brasileiro. Após 1809, o território foi dividido em quatro vilas com câmaras ativas nessa assistência. É importante destacar que essa assistência aos expostos,
apesar de seus aspectos globais, segue algumas especificidades de
seu contexto; no caso, ela se dá concomitante ao processo de consolidação do território à medida que esse vai ganhando forma e
abrangência.
Alguns dados extraídos dos registros de batismos revelam-nos a dimensão desse fenômeno nesse território; por exemplo
em Porto Alegre, sede da capitania, entre 1772 e 1830 foram expostas 678 crianças; em Rio Pardo, localidade a oeste da província,
entre 1774 e 1830 foram expostas 475 crianças; e em Rio Grande,
localidade mais ao sul do território, entre 1771 e 1830 um total de
356 crianças.
Assim, nosso objetivo neste capítulo é perceber como essa
assistência gerou um mercado pecuniário e entender o quadro social dessa assistência a partir da análise da documentação disponível nas câmaras no Rio Grande de São Pedro de 1770 (quando
havia apenas uma câmara) até o ano de 1830, período que abrange
a criação e as décadas iniciais de funcionamento das demais câmaras. Dessa forma, nosso foco é perceber quem eram “os” ou “as”
criadeiras de expostos que exerciam essa tarefa em troca de salário.
Afinal, qual era sua condição econômica e seu estatuto social? Esses critérios poderiam influenciar para ingressar no mercado pecuniário? Nessa linha de pesquisa, buscamos investigar aqui as principais características das pessoas que detinham a criação dos expostos.
Além disso, buscamos desvendar principalmente o universo
dos sujeitos que matricularam expostos nas câmaras. Procuramos
saber também como esse papel é desempenhado ao possibilitar,
através de seus cuidados, a sobrevivência ou não dessas crianças
e por fazer parte de um complexo emaranhado de relações sociais,
93
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
que nos auxiliam na compreensão do fenômeno da exposição bem
como das relações sociais estabelecidas, que visavam à sobrevivência econômica do grupo familiar. Dessa forma, investigar quem
eram essas famílias, mulheres ou mesmo homens que criaram expostos, e quais as motivações para atuar nesse nicho de mercado é
um ponto essencial de nossa análise.
Entretanto, é importante ressaltar que nosso foco dará mais
ênfase ao papel das mulheres que atuaram como amas criadeiras,
termo que, por vezes, os próprios oficiais camarários usavam quando se referiam a elas. Não é por menos que Maria Luiza Marcílio
coloca o papel dessas mulheres como “o pilar da assistência aos
expostos” (MARCÍLIO, 1998, p. 65). A discussão higienista do
século XIX colocará em pauta um debate em relação a essas mulheres, ora classificadas como amas de leite ou, como a linguagem
médica costumava denominar, as amas mercenárias2 e as amas secas,
ou amas criadeiras, que acompanhavam a criança após o período
de amamentação.
No contexto de nossa análise, antes da inauguração das Rodas, nem toda mulher que matriculava uma criança na câmara poderia ser classificada como uma ama; também não se pode afirmar
que todas elas, mesmo as que criaram um exposto temporariamente, tenham tido a criação deles como uma atividade mercantil. Entretanto, como veremos neste capítulo, algumas famílias ou mulheres matricularam um número significativo de crianças. Nesses casos específicos, podemos presumir que levavam essa atividade com
mais rigor. Assim, entender o papel dessas famílias, principalmen-
2
O termo foi incorporado do discurso médico higienista no século XIX. Nas palavras de Maria Carneiro (2006, p. 44-45), servia para distinguir “do aleitamento
materno e do artificial, o termo, habitualmente usado para designar soldados
‘mercenários’ que trabalham por dinheiro e ‘sem amor à pátria’, sugere que se
tratava de um serviço ‘estrangeiro’, venal e interesseiro, ou realizado pelo dinheiro”. A autora ressalva nesse sentido que o termo importado da Europa assume
um tom depreciativo, pois essas amas mercenárias eram, em sua maioria, mulheres escravizadas; nesse caso, o pagamento pela atividade era do seu senhor. Além
disso, argumentavam que, “na condição de cativas, que por não receberem ‘soldos’, seriam capazes de aleitar as crianças abandonadas sem mobilizar emoções
ou desenvolver qualquer vínculo afetivo que envolvesse aquela prática”.
94
História das Mulheres no Brasil Meridional
te das mulheres, nesse mercado gerado pela assistência é o grande
ponto do presente capítulo. Cada setor da população teve, com
maior ou menor grau de intensidade, representatividade nesse mercado.
A geração de um mercado assistencial:
homens, mulheres, militares, donas e viúvas
A abrangência dessa assistência aos expostos oportunizava
que famílias pobres tivessem nela uma forma de manutenção de
seus lares. Para validar essa premissa, temos que entender o quanto
significavam os valores pagos como salários por essas câmaras, lembrando que “salário” era o termo descrito pelos documentos. Os
valores dos pagamentos são de grande importância em nossa análise, pois será possível percebermos os significados financeiros dos
pagamentos.
Para esse fim, somamos os montantes relativos à criação de
um exposto até os sete anos de idade, período em que tal atividade
era de responsabilidade das câmaras, como já mencionamos. Nessa soma entraram apenas os salários de criação, que eram destinados às amas. Excluímos os valores referentes ao vestuário e aos
custos com botica e produtos destinados à saúde das crianças em
casos de moléstias. De acordo com essas notas, em Porto Alegre,
uma ama que criava um exposto por sete anos angariava o montante de 192$000 réis; em Cachoeira, o montante era de 336$000 réis;
em Rio Grande, esse valor chegava a 403$000 réis; e em Rio Pardo,
conforme a variação dos salários pagos, o montante chegava de
403$200 réis para algumas e até 520$800 réis para outras amas de
criação. A enorme variação desses montantes, chegando a 300%
em relação a Porto Alegre, pode significar que havia um mercado
mais restrito de amas nessas localidades, além, é claro, de Porto
Alegre concentrar um número muito elevado de enjeitados assistidos.
Em uma sociedade de economia escravista, como a de nossa
análise, podemos ter uma base desses valores, contrastando com o
mercado de escravização de africanos. Na Bahia, por exemplo, o
preço em média de um escravizado do sexo masculino era de
95
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
150$000 réis em 1800, chegando a 175$000 réis em 1810 (MATTOSO, 1988, p. 95). Manolo Florentino (1997, p. 160) mostra que,
na rota de tráfico de Luanda para o Rio de Janeiro, os escravizados
eram comercializados por 119$000 réis em 1810, chegando ao valor de 152$000 réis em 1820.
A partir da análise dos inventários post mortem de Porto Alegre, um escravizado africano de “primeira linha” (sexo masculino,
entre 20 e 29 anos de idade) custava, entre 1812 e 1822, um valor
próximo a 178$000 réis (NOGUERÓL, 2002, p. 559).3 Assim, contrastamos os montantes com essa referência para ter uma dimensão financeira dos salários.
Quadro 1 – Salários de criação de expostos acumulados até os sete
anos em relação ao preço de escravizados (RS)
Câmara
Porto Alegre
Rio Grande
Cachoeira
Rio Pardo
Rio Pardo*
Montante por sete
anos de criação
192$000
403$000
336$000
403$200
520$800
Valor médio de
um escravizado
178$000
178$000
178$000
178$000
178$000
Média
1,1
2,2
1,9
2,3
2,9
*Conforme variação dos salários pagos.
Fonte: AHPAMV, Livros de Vereança, n. 1-12; AHRS, Autoridades Municipais,
Câmara de Rio Grande, Listas de despesas, cx. 69-135; AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos, Livro de Registro
de Expostos (LRE) n. 7, 1811-1873, fls. 2f-70f.; AHCS, Câmara Municipal, Secretaria, Serviço de Expediente, Matrícula dos Expostos, fls. 9f-12v.
Como pudemos perceber, criar um exposto – que sobrevivesse até os sete anos – renderia um montante que estaria próximo
dos valores de mercado de um, dois e até três escravizados com
3
Essa média foi calculada por Gabriel Berute, o qual faz uma discussão aprofundada sobre o mercado de escravos na região sulina (cf. BERUTE, Gabriel Santos,
2006, p. 88-124).
96
História das Mulheres no Brasil Meridional
vigor físico e com capacidade máxima de trabalho. Ainda para termos outros valores como possibilidades de comparação, recorremos aos valores das alforrias no Rio Grande de São Pedro. Na vila
de Porto Alegre, conforme os dados apresentados por Gabriel Aladrén (2009, p. 74), o preço médio de uma alforria foi de 111$272
réis em 1800-04; 108$459 em 1805-09; chegando a 163$142 em
1820-24 e 181$4976 em 1825-29.
Renato Venancio (1999, p. 61) menciona, em seu estudo comparativo das rodas de Salvador e Rio de Janeiro, que o valor mensal
recebido por uma ama correspondia a quatro ou cinco dias de trabalho de um pedreiro ou carpinteiro. Nesse sentido, o autor não
via como um “bom negócio” a criação de expostos devido ao baixo salário. Da mesma forma, alegava que não era de interesse dos
senhores usarem escravizadas para esse serviço devido à baixa remuneração.
Entretanto, num contexto muito diferente do metropolitano, como Rio de Janeiro e Salvador em fins do século XVIII, o Rio
Grande de São Pedro, de colonização tardia e devido à sua instabilidade causada pelos diversos conflitos bélicos, era uma saída para
mulheres de maridos ausentes e famílias de poucos recursos. Nesse
contexto, é inegável que esse mercado de amas de criação era um
empreendimento rentável, entretanto, dois pontos devem ser destacados: os atrasos nos pagamentos (endividamentos das câmaras)
e uma intensa fiscalização e controle das câmaras sobre essas amas.
A primeira pergunta a que procuramos responder era: quem recebia esses salários? Homens? Mulheres? Era um empreendimento
familiar, ou seja, envolvia casais?
Ao observarmos a primeira fase da administração da assistência no Rio Grande de São Pedro, percebemos que a câmara em
Porto Alegre realizou 511 pagamentos de salários aos criadores de
expostos, dos quais, em 484, identificamos o sexo de quem recebeu
esse salário. Numa primeira sondagem, constatamos que, desse total
de pagamentos, 216 (44,6%) foram recebidos por mulheres e 268
(55,4%) recebidos por homens. O predomínio de homens recebendo os salários de criação também pode ser identificado na segunda
fase da administração, de 1811 a 1828, conforme o Gráfico 1.
97
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
Gráfico 1 – Número de matrículas dos criadores de enjeitados por
sexo nas câmaras sulinas (1811-1828)
Fonte: AHPAMV, Livros de vereança, n. 1-12; AHRS, Autoridades Municipais,
Câmara de Rio Grande, Listas de despesas, cx. 69-135; AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos, Livro de Registro
de Expostos (LRE) n. 7, 1811-1873, fls. 2f-70f.; AHCS, Câmara Municipal, Secretaria, Serviço de Expediente, Matrícula dos Expostos, fls. 9f-12v.
Tanto no primeiro como no segundo período abordado, em
Porto Alegre os pagamentos realizados pela câmara foram predominantemente recebidos por homens. O mesmo ocorre em Rio Pardo; apenas em Cachoeira, e principalmente em Rio Grande, as
mulheres estão mais presentes na documentação. Devido à escassa
informação da fonte, é impreciso afirmar que todos esses homens
que receberam salários são cônjuges de amas criadeiras. Entretanto, um cruzamento apurado mostrou-nos uma realidade mais complexa; em alguns casos, sim, são os cônjuges das amas, como, por
exemplo, o enjeitado João, matriculado na câmara em Porto Alegre
em 02 de setembro de 1775. No ato dessa matrícula, o preto forro
Manuel Pereira alega que sua mulher Catarina de Souza estava criando e amamentando a criança. Exemplos como esse foram encontrados nas demais câmaras.4
4
AHPAMV, Termo de vereança, 02/09/1775.
98
História das Mulheres no Brasil Meridional
No entanto, como salientamos, não podemos cair no risco
de generalizações, pois os dados escondem realidades muito complexas. Alguns, por exemplo, possuíam algum atributo ou podemos definir como ocupação social, que eram registrados nas fontes, sendo que a principal eram as patentes militares. Analisando o
montante de homens que receberam salários das câmaras em Porto Alegre entre 1773 e 1810, chega-se ao percentual de 8,9%. No
Gráfico 2, correspondente ao período de 1811 a 1828, podemos
perceber a maior presença de militares (alferes, soldados, capitães
de milícias) no mercado assistencial em Rio Pardo (18,8%), seguidos de Porto Alegre (7%) e Cachoeira (5%). Em Rio Grande, não
encontramos referências a militares no circuito assistencial.
Gráfico 2 – Número (%) de matrículas dos militares criadores de
enjeitados nas câmaras sulinas (1811-1828)
Fonte: AHPAMV, Livros de vereança, n. 1-12; AHRS, Autoridades Municipais,
Câmara de Rio Grande, Listas de despesas, cx. 69-135; AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos, Livro de Registro
de Expostos (LRE) n. 7, 1811-1873, fls. 2f-70f.; AHCS, Câmara Municipal, Secretaria, Serviço de Expediente, Matrícula dos Expostos, fls. 9f-12v.
99
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
É importante salientar que, desde a construção da fortaleza de Rio Pardo em 1754, a presença de milicianos naquele espaço era uma constante, pois abrigava o Regimento de Dragões, que
incialmente era formado por 400 milicianos com suas famílias e
cativos. Com a posição de destaque na manutenção das fronteiras, essa presença permanece. Em 1817, um levantamento de milicianos realizado em toda a vila de Rio Pardo constatou um total
de 1.824 militares, o que equivalia a 16% da população da vila.
Esses números tenderam a crescer com a campanha na Cisplatina
(1825-1828) (LAYTANO, 1979; LUFT, 2018).
Em Porto Alegre, o estudo de Denize Freitas (2017, p. 64)
destacou a grande mobilidade de milícias que circulavam pela freguesia antes de ser redistribuídas pelo território. Cruzando os dados com os registros de batismos, foi possível identificar que muitos desses militares receberam as crianças em suas portas e optaram por sua criação, deixando a cargo de terceiros ou, em casos
extremos, à mercê de maus-tratos.
A viúva Dona Maurícia Clara de Oliveira, por exemplo, em requerimento dos salários de criação à câmara de Rio Pardo, relata
que, apesar de “suas poucas forças”, resgatou a pequena Joaquina,
exposta em casa do Sargento Mor Alexandre de Souza Pereira. A pequena “achava-se em casa do Soldado Dragão Pedro Joze Dornelles, reduzida a mais incomparável penúria, a recolheu para sua casa
[...] assistindo-lhe com todo o necessário”5.
Em outros casos, percebemos, além dos possuidores de patentes militares, clérigos e mesmo os próprios camaristas recebendo salários. Em Porto Alegre, por exemplo, o capitão e depois sargento-mor Francisco Pires Casado matriculou a enjeitada Esméria em
12 de junho de 1779, recebendo, até a criança completar os sete
anos, o valor de 134$800 réis6. Francisco Pires Casado atuou por três
vezes na administração pública como juiz e juiz de barrete em 1768,
1769 e 1773. O estudo de Adriano Comissoli (2006, p. 89) sobre a
5
AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Correspondência, Códice Geral CG
n. 2, 1813, fls. 7f-10f.
6
AHPAMV, Termo de vereança, 12/06/1779; 23/10/1779; 04/04/1781; 30/12/
1781; 07/07/1784; 15/09/1787.
100
História das Mulheres no Brasil Meridional
formação social da câmara sulina mostra que Francisco Pires Casado
possuía laços familiares de reciprocidade com comerciantes e camaristas, com os quais formava um bando muito atuante em Porto
Alegre e Viamão.
No caso da câmara da vila de Rio Pardo, essa enquanto objeto de estudo recebeu pouca atenção e tratamento pela historiografia, se comparada a outros espaços do Rio Grande de São Pedro. Um trabalho de fôlego é o de Ricardo Schmachtemberg (2012),
que está focado, principalmente, nas redes de poder estabelecidas
pelos juízes almotacés. O autor já demonstrava com a documentação produzida pela câmara o pagamento às famílias criadeiras de
expostos. E, assim como em Porto Alegre, homens bons atuantes na
administração pública acabaram recebendo expostos e o auxílio
camarário. São exemplos disso o do menino Thomas, exposto em
casa do tenente João Pedrozo de Albuquerque, que foi vereador, procurador e juiz almotacé, e Antônio, exposto na casa do capitão José da
Roza Fraga, que exerceu os cargos de juiz, vereador e juiz almotacé
(SCHMACHTEMBERG, 2012, p. 75).
No caso dessas famílias mais abastadas, é provável que contratassem uma ama para amamentar os expostos sob seus cuidados
ou usassem mesmo uma de suas escravizadas, terceirizando a assistência. Nesse sentido prático, o abandono de crianças assume
uma de suas características além do anonimato: o fato de as crianças estarem em constante circulação em diferentes lares. Estudos
realizados em comunidades agrícolas e de subsistência mostram
baixos índices de abandono, e as crianças tinham uma maior probabilidade de ser incorporadas às famílias como “filhos de criação” ou mesmo agregados serviçais (VENANCIO, 1997, p. 213234; BACELLAR, 2001, p. 231-234). No caso do território sulino,
sua instabilidade e dinâmica populacional, ocasionados pelos movimentos provocados por conflitos bélicos, tornam-se entraves para
mapear mais detidamente o paradeiro do exposto.
No que tange às mulheres que receberam os salários em Rio
Grande, foi possível confirmar que apenas 10% delas eram casadas, conforme indica a documentação. Além dessa constatação,
poucas informações nos apontam pistas sobre o perfil social dessas
mulheres; sabemos apenas que todas assinam os recibos “a rogo
101
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
por não saber ler”, ou seja, não são alfabetizadas, uma realidade
comum às mulheres naquele período. Maria Nizza da Silva mostra
que as mulheres, invariavelmente, eram educadas para o lar. Apenas em grandes centros urbanos, após a vinda da corte em 1808,
é que tiveram mais acesso às primeiras letras (SILVA, 1993, p.
13-30). Entretanto, cabe destacar que essas mulheres foram pessoalmente matricular e reivindicar os salários aos administradores
locais sem a solicitação de um representante ou procurador, como
visto em outros estudos.7
Apesar de sabermos que aproximadamente 10% eram casadas, também não podemos afirmar, como apontam diversos estudos, que as mulheres que atuavam como amas criadeiras de expostos eram em sua maioria solteiras, pobres e chefes de fogos. Isso exigiria outros cruzamentos para poder chegar a tal conclusão, principalmente com fontes eclesiásticas, como os róis de confessados, inexistentes para as demais localidades, além de Porto Alegre.8
De qualquer forma, o importante antes de explorarmos nossos dados sobre a realidade dessas mulheres é salientar a importância delas nesse mercado assistencial. O estudo de Maria Antónia Lopes, por exemplo, coloca as mulheres como “sustentáculo
da assistência aos expostos”; assim, entende o papel delas e das
suas famílias como “verdadeiros agentes assistenciais” (LOPES,
2013, p. 290). A autora analisou um universo de 4.670 amas externas, que buscavam expostos na Roda de Coimbra entre 1708 e
1839. Seus dados demonstram que nesse universo as amas eram
7
No caso de Mariana, em Minas Gerais, por exemplo, 10% das mulheres que
criaram expostos solicitaram essa incumbência a um procurador, geralmente alguém com posição de destaque na comunidade, possuidor de patentes militares
ou um clérigo para a matrícula na câmara (ARAÚJO, 2005, p. 65). Já em Vila
Rica, houve os “cessionários”, pessoas que cediam o direito de recebimento das
semestralidades a outros. Renato Franco entende que “provavelmente essa prática dizia respeito somente aos soldos e não à tutela das crianças, porque foi relativamente frequente a mudança de tutores sem a designação de cessionário” (FRANCO, 2014, p. 174).
8
Pelo conjunto de Róis de Confessados de 1779 a 1814, a média de fogos com
chefia feminina foi de 17,2%, sendo que, em alguns anos, como o de 1814, chegou a 26,4% (FREITAS, 2017, p. 160).
102
História das Mulheres no Brasil Meridional
mulheres “pobres ou pauperizáveis, camponesas na sua quase
totalidade”, que percorriam grandes distâncias para oferecer seus
serviços à Roda.
Ser ama de expostos era, em certas aldeias, uma espécie de
“indústria doméstica”, ou melhor, desempenhava uma função econômica semelhante à das indústrias rurais tão características do Antigo Regime e vitais para a sobrevivência das
famílias camponesas (LOPES, 2013, p. 303).
Além disso, estudos para a América Portuguesa mostram
que há uma diferença das famílias criadeiras para as amas vinculadas às instituições como as Rodas. Renato Venancio (2012), ao estudar a área urbana do Rio de Janeiro na segunda metade do século XVIII, mostrou que, apesar da ativação da Roda dos Expostos,
ainda havia um número significativo de expostos a cargo da câmara e enjeitados acolhidos por elas gratuitamente. A partir dos dados apresentados, o autor observou que os expostos deixados em
domicílios ou famílias criadeiras subsidiadas pela câmara tinham
mais chances de ser acolhidos pela família do que as deixadas sob a
responsabilidades das amas das Rodas, pois essas “quase sempre
evitavam estabelecer laços de parentesco com os expostos” (VENANCIO, 2012, p. 141).
Em Porto Alegre, onde temos um maior número de fontes
disponíveis, foi possível identificar expostos incorporados nos lares após os sete anos. É o caso do menino Justo. Os róis de confessados permitiram-nos visualizar a incorporação de alguns poucos
enjeitados nas famílias. Nos róis de confessados dos anos de 1779,
1780 e 1781, no fogo de Antonio dos Santos Maciel, casado com Francisca da Trindade9, no arrolamento de 1782, Justo estava com dez
anos, e o termo “exposto” foi substituído por “filho” e, assim, sucessivamente registrado nos róis posteriores.
Levando em consideração todo o cuidado pertinente que essa
fonte exige do pesquisador, a mudança do termo “exposto” para
“filho” pode significar a interpretação de quem fez o documento
9
AHCMPA Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Róis de Confessados e Comungados do ano de 1779,1780 e 1781.
103
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
ou a inserção do menino Justo à família.10 Cabe ressaltar que o fogo
era constituído, além do casal e do menino, de uma média de seis a
sete escravizados em cada ano de registro, ou seja, essa estabilidade pode ter permitido a incorporação da criança à família.11 Entretanto, esse caso é uma exceção que foge à regra, pois, como mencionamos anteriormente, a circulação de crianças é uma constante.
Feita essa ressalva, queremos destacar dois grupos de mulheres nas quais pudemos observar algum qualitativo: as que nas
fontes estavam designadas como Donas e as viúvas. Em Porto Alegre, na primeira fase da assistência (1773-1810), do grupo de mulheres que matricularam expostos na câmara 23,5% foram designadas como viúvas e 11,6% como Donas; ainda dessas, 7% tiveram
ambas as classificações: Dona viúva.
É importante mencionar que nem toda Dona era viúva, bem
como nem toda viúva possuía alguma distinção social. Trata-se de
uma qualidade a nominação de Dona, e uma condição, a de viúva.
A questão de juntarmos essas duas categorias em nossa análise
dá-se pela relação de ambas; por vezes, o próprio estado de viuvez
em algumas situações já acarretava a qualidade de Dona. Outro
ponto importante em relação às Donas é que, apesar de geralmente
estarem atreladas a uma parcela de mulheres que possuíam algum
atributo ou qualidade social, em estudo anterior pudemos observar
que, no caso de Porto Alegre, esse atributo de Dona está mais atrelado a uma hierarquia social costumeira do que à riqueza em recursos materiais de determinadas famílias.12 Apesar da problematiza10
AHCMPA Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre. Róis de Confessados e Comungados do ano de 1782.
11
Resultados semelhantes também foram apontados em nossa primeira pesquisa,
como o de Dona Ana Rangel Moraes de Azevedo, exposta na casa do porta-bandeira
e depois capitão Manuel Rangel de Moraes. Ana Rangel era tratada como Dona e
era letrada, pois assinou seu registro de casamento, e sua inserção no lar que a
acolheu é evidente, pois até o nome da família foi incorporado por ela (cf. SILVA, 2014, p. 188-195).
12
A ideia de “hierarquias sociais costumeiras” foi trazida por João Fragoso ao
tratar das relações sociais estabelecidas por “sujeitos portadores de orientações
valorativas próprias” no período da conquista no Rio de Janeiro entre grupos
africanos escravizados e grupos que compunham uma sociedade rural vindos
do Reino. Segundo Fragoso, “a materialidade dessas práticas adquiriu a forma
104
História das Mulheres no Brasil Meridional
ção, há determinada hierarquia, entretanto mulheres pardas, solteiras, forras foram classificadas como Donas, dependendo das circunstâncias (mobilidade social) ou mesmo da documentação consultada (FREITAS; SILVA, 2017).
Nas outras câmaras, também observamos essas mulheres
atuando no mercado assistencial. No Gráfico 3, destacamos as
duas categorias, “Donas” e “viúvas”, separadamente no grupo de
mulheres que matricularam expostos.
Gráfico 3 – Número (%) de mulheres Donas e viúvas que matricularam enjeitados nas câmaras sulinas (1811-1828)
Fonte: AHPAMV, Livros de vereança, n. 1-12; AHRS, Autoridades Municipais,
Câmara de Rio Grande, Listas de despesas, cx. 69-135; AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos, Livro de Registro
de Expostos (LRE) n. 7, 1811-1873, fls. 2f-70f.; AHCS, Câmara Municipal, Secretaria, Serviço de Expediente, Matrícula dos Expostos, fls. 9f-12v.
de relações de clientela e parentesco consanguíneo e fictício e, entre outros fenômenos, sob a tutela da monarquia, organizou a sociedade americana”. Nesse
sentido, o atributo Dona estava mais atrelado à reprodução de uma hierarquia
social costumeira que regulava as desigualdades, essas naturalizadas na sociedade, definindo as posições sociais dos sujeitos por especificamente se tratar de
mulheres oriundas de famílias com títulos de nobreza (FRAGOSO, 2010, p. 249).
105
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
No que se refere às Donas, nas matrículas de Rio Pardo houve maior representatividade (24,2%), seguido de Cachoeira (14,2%),
Porto Alegre (13,9%) e Rio Grande (2,4%). As viúvas foram mais
frequentes nas matrículas de Cachoeira (14,2%), Rio Pardo (6,9%),
Porto Alegre (4,6%) e, por fim, Rio Grande (2,4%). O estado de
viuvez, como pudemos perceber, fez com que mulheres acessassem o circuito assistencial; muitas que possuíam a qualidade de
Dona usufruíram de seu prestígio na comunidade para ter acesso
mais fácil a ele.
O caso de Dona Clemencia Maria de Jesus serve como um modelo para entender essas relações. Ela dá a entrada de duas matrículas na câmara de Porto Alegre, referentes aos expostos Manuel,
em 1800, e Jacinto, em 1801.13 Essas matrículas ocorreram justamente nos dois primeiros anos posteriores à perda de seu marido
por “hidropisia” em 07 de julho de 1799.14 Tratava-se do cirurgiãomor15 de Porto Alegre Manuel Marques de Sampaio16, o que gerou
13
AHPAMV, Termo de vereança, 30/07/1800; 05/08/1801.
AHCMPA, Freguesia Madre de Deus de Porto Alegre, Livro II de óbitos de livres, fl
21f-v. Segundo dicionários médicos da época, hidropisia: “Consiste em um derramamento seroso que se forma subitamente, ou pouco a pouco. Chama-se anasarca, edema, quando em um lugar determinado, hidropisia interna e enquistada, quando se acha derramado em uma das cavidades serosas, ou mesmo nas
mucosas, sendo fechadas, o que, porém, é raro. [...] Encontra-se uma disposição
decidida para as hidropisias nas crianças, principalmente as escrofulosas, e nos
velhos” (LANGAARD, 1872, p. 540). Segundo outro dicionário do período,
hidropisia era “acumulação de serosidade no saco membranoso que envolve os
pulmões: os médicos dão a esta moléstia o nome de hydrothorax” (CHERNOVIZ, 1890, p. 327).
15
O cargo de cirurgião-mor foi extinto em 17 de junho 1782 com o surgimento da
Junta do Protomedicato, que passou a exercer tais competências por meio de
seus delegados. Com a criação da Junta, centralizou-se em um único órgão atribuições que antes eram desempenhadas tanto pelo físico-mor como pelo cirurgião-mor. No entanto, com a vinda da corte portuguesa para o Brasil em 1808,
foram restabelecidos, através de mercês, os cargos de físico-mor e cirurgião-mor
dos Exércitos do Reino (ABREU, 2010, p. 120).
16
A família do cirurgião-mor também já foi objeto de estudos de Denize Freitas. A
autora destaca que “Manuel Marques de Sampaio era filho de fidalgos portugueses de Braga, nasceu precisamente na Freguesia de Santiago, na Vila de Extremos, no bispado de Évora. Migrou para o Brasil ainda jovem, contraiu núpcias
com Dona Clemência Maria de Jesus, na Freguesia de Nossa Senhora do Des-
14
106
História das Mulheres no Brasil Meridional
uma situação de vulnerabilidade na família, pois, apesar de terem
recebido expostos em sua porta anteriormente, foi apenas após a
morte do marido que a então viúva, Dona Clemencia Maria de Jesus,
solicita os auxílios à câmara.
Ainda para comprovar nossa hipótese, o primogênito da família, o pároco Duarte Marques de Sampaio, envia uma carta ao Conselho Ultramarino em 08 de outubro de 1801. Nesse documento,
ele, intercedendo por sua mãe junto à coroa, solicitou os pagamentos atrasados de trinta anos (1769-1799) em que seu pai atuara como
cirurgião-mor. Assim, suplicava pelos préstimos de seu pai, pelos
serviços prestados no Hospital Real e das Tropas do Rio Grande de
São Pedro e devido ao estado de viuvez de sua mãe, que necessitava desses ordenados atrasados.17
Situação semelhante é observada em Rio Pardo: Dona Dorotheia Victorina Caetana, conforme requerimento enviado à Câmara,
era viúva do cirurgião-mor de Dragões Antonio de Freitas Santos.18 O
referido cirurgião ocupava esse cargo desde, pelo menos, fins do
século XVIII, pois em 1794 enviou uma carta direcionada à rainha
D. Maria I solicitando o afastamento de suas atividades por um
ano para que pudesse retornar a Lisboa para resolver assuntos pessoais.19 Ainda em 13 de setembro de 1806, Antonio de Freitas Santos
enviou um requerimento ao Conselho Ultramarino requerendo
a outra via de sua patente, com a graduação concedida aos cirurgiões-mores das tropas de linha.20 Foi pouco tempo depois desse pedido enviado à corte que o então cirurgião das tropas veio a
terro, em Santa Catarina. Permaneceram durante seus primeiros anos de casados em Santa Catarina, migrando para o Rio Grande do Sul, onde passou a
viver em Viamão, depois se transferindo para a recém-formada freguesia Madre
de Deus de Porto Alegre” (FREITAS, 2016, p. 281).
17
AHU, Conselho Ultramarino. Ano 1802, Julho, 17, Lisboa. AHU_ACL_CU_019,
Cx. 6, D. 422. [Projeto Resgate CD-ROM].
18
AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série correspondências, Códice Geral CG n.
zero (0), 1811, 46f.
19
AHU, Conselho Ultramarino, AHU_ACL_019 Cx .3, D. 287. [Projeto Resgate
CD-ROM].
20
AHU, Conselho Ultramarino, AHU_ACL_019 Cx. 11 D. 664. [Projeto Resgate
CD-ROM].
107
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
falecer, pois, no requerimento de 1810, sua esposa, a referida Dona
Dorotheia Victorina Caetana, já viúva, conforme o documento, entrou com o pedido de matrícula de um exposto.
No caso de Dona Dorotheia Victorina Caetana, não nos restam
dúvidas de que ela fez da assistência aos expostos um empreendimento financeiro após seu estado de viuvez, pois de 1810 a 1833
assistiu 14 expostos, dos quais por pelo menos quatro pôde receber
os salários até completarem os sete anos; seis não sobreviveram até
essa idade, pois faleceram precocemente.21 Mas sua notoriedade na
assistência aos expostos é ainda mais evidente à medida que o próprio procurador da câmara de Rio Pardo lhe repassava os expostos,
como o caso da enjeitada Felicidade, exposta em 28 de fevereiro de
1829. Ela tinha sido exposta primeiramente “em porta de Antonio
Gonçalves dos Santos e [esse] por não ter meios de criar, o procurador passou para Dona Dorotheia Caetana”22.
Em um dos tantos requerimentos expedidos à câmara, em
específico um datado de novembro de 1813, Dona Dorotheia Victorina Caetana solicita com urgência os pagamentos de criação e vestuário do exposto Antônio, que estava devidamente matriculado,
pois estava em estado de “pobreza em sustentallo”23.
Maria Beatriz Nizza da Silva aponta, em relação à pobreza,
que havia uma diferença na classificação atribuída para os homens
e para as mulheres. Para os primeiros, a pobreza está relacionada
sempre a um fator pejorativo, isto é, como aleijado, vagabundo,
inválido, etc., indicando a sua incapacidade de sustentar ou manter a si mesmo e sua família. Para as mulheres abastadas, brancas
e/ou livres, o empobrecimento, segundo a autora, deve-se à incapacidade de obter um progenitor, marido ou demais familiares capacitados a promover seu sustento. De qualquer forma, a autora
afirma que o empobrecimento podia atingir as mulheres de qual-
21
AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos,
Livro de Registro de Expostos (LRE) n. 7, fls. 3v-78f.
22
AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Justiça, Subsérie Juizado de Órfãos,
Livro de Registro de Expostos (LRE) n. 7, fl. 70v.
23
AHMRP, Fundo Câmara Municipal, Série Correspondência, Códice Geral CG n.
1, 1813, fls. 6f-9f.
108
História das Mulheres no Brasil Meridional
quer estatuto jurídico e social, brancas, mulatas, pardas, livres e
forras.24
É importante salientar que a pobreza é constantemente referida nos requerimentos. Percebe-se um discurso acionado tanto para
justificar a criação dos enjeitados, referidos sempre como “infelizes” ou “pobres” expostos, como para solicitar os auxílios atrasados. Nesse sentido, mais do que a pobreza material ou a escassez
de recursos para a sobrevivência daqueles que estão criando, a pobreza aparece como uma justificativa para o requerente solicitar tal
auxílio. Trata-se da ideia de uma pobreza honesta, usada como
elemento dignificante para receber essa mercê da câmara.
Além da pobreza, uma situação de vulnerabilidade devido a
doenças também foi recorrente. A viúva Josefa Maria, em requerimento à câmara de Rio Grande, alega que está criando e educando
uma menina exposta, a qual lhe foi “confiada na qualidade de ama”;
a dita viúva “implora mandar indenizar de tal exercício visto que a
suplicante se acha impossibilitada por motivo de moléstia e falta de
meios que [a] privão de poder tractar da mesma exposta como aquela
decência que se hé permitida”25.
É preciso levar em consideração, no caso das viúvas, que as
circunstâncias poderiam ser adversas em casos em que as heranças
não eram perenes ou herdaram dívidas da família. A pesquisa de
Michelle Selister sobre as viúvas no Rio Grande de São Pedro já
mostrava como resultado desse empobrecimento de algumas mulheres essa condição:
[...] a ideia do empobrecimento da viúva também se embasa
no fato de que, em tese, com a morte do marido, para os casais
que possuíam bens, se procederia à partilha com os herdeiros,
o que, necessariamente, deixaria a viúva privada do patrimônio que possuía ou usufruía quando o marido estava vivo. Resultando, consequentemente, no rebaixamento do seu padrão
de vida (SELISTER, 2014, p. 71).
24
SILVA, Maria Beatriz Nizza da. Donas e plebeias na sociedade colonial. Lisboa:
Editorial Estampa, 2002, p. 93-94.
25
AHRS, Autoridades Municipais, Câmara de Rio Grande, requerimentos, cx. 131,
mç. 152A.
109
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
A autora mostra empiricamente que, apesar dessa “cultura
da pobreza” transposta em discurso nas fontes, muitas viúvas, no
Rio Grande de São Pedro, dispunham de uma autonomia financeira, sobretudo aquelas provenientes das camadas sociais mais abastadas. A autora ainda menciona que as viúvas faziam as mesmas
transações que os homens, “como a venda de terras, a instituição
de procuradores em diferentes localidades, a concessão de alforria
a escravos, além de serem nomeadas procuradoras de homens” (SELISTER, 2014, p. 72). Assim como constatamos em relação aos
expostos, elas utilizavam nos documentos o argumento da pobreza
como meio de articular os seus interesses, o que não impediria que
muitas dessas mulheres também soubessem articular suas satisfações pessoais no âmbito privado.26
Através das Listas de Habitantes, Nicole Damasceno (2011,
p. 119-125) mapeou e traçou um perfil dos lares que acolheram
expostos em Mariana, em Minas Gerais, no início do século XIX.
A autora percebeu que 85% desses domicílios possuíam escravos e
que 42% deles eram chefiados por mulheres. Além disso, em 70%
desses domicílios chefiados por mulheres viúvas não residiam mais
seus filhos ou filhas. Em uma sociedade onde inexistia qualquer
forma de previdência social, a criação de um exposto como filho
ou filha de criação, mesmo que seja como agregado(a) de confiança, podia auxiliá-la na velhice.27
No caso de Porto Alegre, como já mencionamos, há disponíveis apenas os róis de confessados, que permitem reconstituir os
domicílios da população. Entretanto, nessa documentação, eram
excluídos os menores de confissão, dificultando assim a possibilidade de mapear essas crianças. Entretanto, pelos batismos de Por26
Ao longo do oitocentos, com o surgimento da Roda dos expostos em 1838, as
expostas que recebiam dotes para se casar e que enviuvavam constantemente
retornavam à Misericórdia de Porto Alegre, solicitando auxílio e sustento, alegando estar vivendo em “estado de pobreza” (GERTZE, 1990, p. 238-239).
27
A trajetória da celibatária Ana Marques de Sampaio, tratada em estudo anterior,
é exemplar nesse sentido: teve sete expostos em sua porta entre 1818 e 1831;
desses, Duarte foi acolhido e criado, tornou-se testamenteiro de Ana Marques,
recebeu seu nome. Passou a se chamar Duarte Marques de Sampaio e também
herdeiro, recebendo parte de suas terras (cf. SILVA, 2014).
110
História das Mulheres no Brasil Meridional
to Alegre percebemos entre aquelas que receberam expostos em
suas portas cerca de 10% eram viúvas, ou seja, as viúvas tinham
certa preferência por aqueles(as) que optavam por enjeitar alguma criança.
Para essas viúvas, mesmo aquelas que possuíam uma qualidade reconhecida pela comunidade, já que algumas eram denominadas Donas, a pobreza material fez com que ingressassem nesse
mercado gerado pela assistência aos expostos. A criação desses enjeitados por parte dessas Donas poderia servir para a manutenção
de seus lares e também como recurso para a formação de mão de
obra barata nos afazeres de seus fogos. Ainda outra motivação para
essas Donas criarem essas crianças é o amparo na velhice, ou seja,
reduzi-las a serviçais domésticos, o que parece ser muito pertinente, bem como a manutenção de seu estatuto social. Nas palavras de Laura de Mello e Souza, “para homens e mulheres mais
bem situados na sociedade, a criação dessas crianças poderia ter o
objetivo de aumentar o número de agregados e apaniguados, visando antes conferir estima e status do que trazer vantagens pecuniárias” (SOUZA, 2006, p. 54).
Considerações finais
A assistência às crianças expostas na região mais meridional
do Brasil gerou um mercado pecuniário na última década do século XVIII e início do século XIX. Nesse mercado participaram ativamente famílias que tinham nesses salários pagos pelas câmaras o
sustento ou a complementação da renda do grupo familiar. No que
tange ao protagonismo das mulheres, focamos aqui o papel daquelas que na ausência de seus cônjuges ingressavam nesse mercado.
O fato de que muitas das mulheres que receberam para criar
expostos serem viúvas pode indicar uma tentativa de recompor uma
situação de estabilidade, colocada em xeque pela viuvez. Nesse caso,
viam-se na necessidade de acionar um discurso legitimador de receber os salários atrasados pelas câmaras: as situações de pobreza
em que se encontravam. Muitas dessas mulheres ainda se designavam como “Donas”, demonstrando certa qualidade e estatuto social. Assim, criar expostos em troca de salários poderia ser uma via
111
SILVA, J. F. da • A geração de um mercado assistencial: protagonismos
femininos na criação dos expostos
de mão dupla: servia na manutenção de certo estatuto social na
medida em que se pratica a caridade pública e renda extra, além
dessas crianças ingressarem como agregados serviçais no domicílio posteriormente.
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114
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mulheres e saúde no Brasil Meridional:
pobreza, assistência e relações sociais
Daiane Silveira Rossi
O presente texto objetiva percorrer algumas faces do universo das mulheres no Brasil Meridional através de suas atuações e
presenças em instituições de saúde. Sob a perspectiva da História
Social das Mulheres, serão investigadas tanto aquelas que foram
pacientes em um hospital do interior do Rio Grande do Sul, o Hospital de Caridade de Santa Maria (HCSM), como as que se envolveram efetivamente em práticas de assistência, principalmente à
pobreza.
Essa investigação filia-se aos esforços que nas últimas duas
décadas vêm sendo empreendidos no campo da historiografia para
estabelecer uma perspectiva que supere a invisibilidade historiográfica a que foram relegadas as mulheres até poucas décadas atrás.
Nesse sentido, esta pesquisa inscreve-se no campo de estudos da
História das Mulheres, especialmente inspirados a partir da provocação de Michelle Perrot (1995, p. 9) ao indagar sobre a justificativa utilizada para haver mais estudos sobre mulheres: “não se sabe
nada das mulheres”, seguido do argumento da falta de fontes. A
historiadora francesa instiga a “tornar visível o que estava escondido [...] de se questionar sobre as razões do silêncio que envolvia as
mulheres enquanto sujeitos da História” (PERROT, 1995, p. 20).
Visando romper esses silêncios, apresentaremos aqui duas
perspectivas nas quais as mulheres estão inseridas enquanto sujeitos que compõem o universo da assistência no Rio Grande do Sul
da Primeira República: o primeiro através do papel de assistidas,
seja pelo hospital ou por serviços públicos, e o segundo enquanto
assistentes, aquelas que prestaram socorros à pobreza. A análise
dessas duas categorias será feita a partir de marcadores sociais da
diferença, como sexo, cor, classe social e origem.
115
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
Mulheres assistidas
Em um estudo recente (ROSSI, 2019), dedicamo-nos a investigar como foi organizada a assistência à saúde e à pobreza no
interior do Rio Grande do Sul na primeira década do século XX.
Entre os objetivos mapeamos a pobreza, seja através da identificação de seu perfil sociodemográfico ou, ainda, através das estratégias utilizadas para sua sobrevivência por meio da busca de recursos em serviços públicos e privados. Nesse sentido, de maneira geral,
percebemos quem eram os pobres naquela região, em sua maioria
homens, solteiros, entre 20 e 40 anos, trabalhadores urbanos, militares e ferroviários, nascidos no Rio Grande do Sul. No que diz
respeito às estratégias adotadas, identificamos que a pobreza recorria tanto ao Hospital de Caridade de Santa Maria (HCSM) como à
Intendência Municipal – por meio de correspondências em que descreviam problemas pessoais ou da comunidade onde viviam, como
por exemplo pedidos de isenção de impostos – e também a outras
formas de socorro, como as associações beneficentes.
Este trabalho, como tinha por objetivo um mapeamento mais
geral, não se dedicou a observar mais atentamente a presença das
mulheres, no entanto, não deixou de analisar seu papel através da
prestação de assistência por meio de clubes filantrópicos organizados pela elite feminina de Santa Maria ou, ainda, de identificar as
mulheres que eram internadas no HCSM. Dito isso, este capítulo
visa aprofundar essas questões.
Em primeiro lugar, retornaremos ao banco de dados que
compõem as informações sobre a entrada de pacientes no HCSM
entre 1903 e 1913. Nesse período, contabilizamos 5.223 registros,
em que constam informações sobre a data de entrada no hospital,
nome, sexo, idade, cor, estado civil, nacionalidade, profissão, residência, diagnóstico, médico responsável, classificação, data de saída, condições em que saiu (curado, falecido, transferido, melhorando, fugiu ou a pedido), dias de hospitalização e observações. A
partir desses dados, identificamos 3.928 (72,2%) registros de homens, 1.288 (24,7%) registros de mulheres e em sete (0,1%) não
consta sexo. Através da classificação – designação dada pelo hospital para diferenciar os grupos que financiavam o atendimento pres-
116
História das Mulheres no Brasil Meridional
tado – notamos nove categorias distintas com seus respectivos registros: Pobres, 2.725 (52,2%), Brigada Militar/Militar, 1.117
(21,4%), VFRGS1, 710 (13,6%), Particular, 480 (9,2%), Colônia
Philippson, 56 (1,1%), Guarda Municipal, 32 (0,6%), Exército, 27
(0,5%), Charqueada, 7 (0,1%), Pinhal, 1 (0,0%), além dos ilegíveis
ou não consta, 68 (1,3%). O sexo e a classificação são as duas categorias principais que serão analisadas daqui por diante neste texto,
especialmente através da sua intersecção.
A partir do objetivo de percorrer o contexto em torno das
mulheres e da assistência no interior do Rio Grande do Sul, analisaremos os dados referentes apenas a esse grupo, extraído do banco de dados referido acima.
Tabela 1 – Cor das mulheres internadas no Hospital de Caridade
de Santa Maria (1903-1913)2
Cor
Branca
China
Indiática
Mista
Morena
Não consta/Ilegível
Parda
Preta
Total
N. de mulheres
672
1
46
40
15
15
292
207
1.288
Porcentagem
52,2
0,1
3,6
3,1
1,2
1,2
22,7
16,1
100,0
1
Nos primeiros anos, 1903 e 1904, essa classificação aparece como “Estrada de
Ferro”. Em 1905, aparece como “E. F. P. A. U” (Estrada de Ferro Porto Alegre
Uruguaiana) e, a partir de 1906 até 1913, “VFRGS” (Viação Férrea do Rio Grande do Sul). Isso se relaciona à concessão das estradas e aos convênios entre a
ferrovia e o governo federal. Optamos por padronizar essa classificação como
“VFRGS” por se tratar da denominação mais recorrente.
2
As tabelas 01 a 06 foram elaboradas pela autora a partir do Livro 01 de Registros
de Entrada de Pacientes do Hospital de Caridade de Santa Maria, correspondente aos anos de 1903 a 1913. Disponível no acervo documental do mesmo hospital
na cidade de Santa Maria/RS.
117
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
Tabela 2 – Origem das mulheres internadas no Hospital de Caridade de Santa Maria (1903-1913)
Origem
África
Alemanha
Arábia
Argentina
Áustria
Espanha
Estado Oriental
França
Holanda
Itália
Não consta
Outros estados
Paraguai
Polônia
Rio Grande do Sul
Rússia
Síria
Total
N. de mulheres
5
15
1
2
1
3
10
3
1
91
6
6
1
3
1.083
56
1
1.288
Porcentagem
0,4
1,2
0,1
0,2
0,1
0,2
0,8
0,2
0,1
7,1
0,5
0,5
0,1
0,2
84,1
4,3
0,1
100,0
Essas duas primeiras tabelas trazem elementos importantes
daquilo que estudos recentes chamam de “marcadores sociais da
diferença” (CRAPANZANO, 2002).
Em vez de pensarmos em raça, gênero, sexo, idade, cor e
classe como categorias normativas e monolíticas, cabe entendêlas, antes, como categorias empíricas e relacionais, que emergem de confrontações interpretativas, de diferentes modos de
operar e atualizar sistemas de classificação social (STARLING;
SCHWARCZ, 2005-2006, p. 230).
A relação estabelecida entre estes marcadores sociais deve ser
vista de maneira combinatória, abordando os conceitos de modo
relacional. Assim, ao observarmos a Tabela 01, percebemos que, ao
passo que temos 52,2% de mulheres brancas, excluídos os 1,2% de
118
História das Mulheres no Brasil Meridional
que não temos informações, há praticamente uma relação de 50/
50% entre brancas e não brancas, sendo essa segunda categoria composta por seis denominações diferentes: china, indiática, mista, morena, parda e preta. Não podemos afirmar com precisão se essas nomenclaturas eram dadas através de uma autodefinição ou se eram
definidas pela pessoa que preenchia o livro; essa informação não
consta na documentação do hospital. Pensando que o modo como
as mulheres eram vistas e classificadas passava também pela subjetividade do sujeito que estava preenchendo esses dados. Destaca-se,
além disso, que havia 207 mulheres identificadas pela cor preta. De
acordo com Hebe Mattos (2013), até a primeira metade do século XIX,
preto identificava, preferencialmente, os escravizados africanos.
Por outro lado, a relação da cor também está diretamente
relacionada com a diversidade da origem dessas mulheres, como
vimos na Tabela 02. Embora mais de 80% correspondam a mulheres nascidas no Rio Grande do Sul, isso não significa, necessariamente, que não sejam descendentes de escravizados. Afinal, estamos falando de um contexto de pós-abolição. De acordo com estudos que convergem com o mesmo marco espaçotemporal dessa pesquisa, como os de Franciele Rocha de Oliveira (2016; 2017) e de
Ênio Grigio (2016), no interior do estado havia uma forte presença
de egressos do cativeiro, gerações de famílias de ex-escravizados
que fixaram residência na região, organizando-se em irmandades e
clubes negros na região. Além disso, também percebemos na tabela a presença de africanas. Através da busca nominal dessas mulheres identificamos que todas tinham mais de 80 anos, foram classificadas como pobres, de cor preta, duas delas não possuíam sobrenome e outra era “Maria de Tal”; todos esses elementos convergem para concluir que se tratava de egressas da escravidão.
Outro ponto que merece destaque diz respeito à diversidade
de países que compõem as origens dessas mulheres. Além do Brasil
e da África3, nota-se a presença de outras 13 nações. Itália e Alemanha juntas somam quase 10% do total, indo ao encontro da histo3
A nacionalidade “África” está escrita dessa forma no Livro de Registros de Entradas de Pacientes, provavelmente se referindo ao continente de maneira genérica e não a um país em específico.
119
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
riografia que destaca a forte presença de imigrantes italianos e alemães na região central do Rio Grande do Sul, estabelecidos ao longo do século XIX (VENDRAME, 2016; 2007). Por outro lado, assunto inclusive pouco explorado pelos historiadores, nas demais
imigrações, afinal, dentro de uma pequena mostra da população
assistida pelo HCSM, percebemos a presença de árabes, argentinos, austríacos, espanhóis, holandeses, franceses, poloneses, russos, uruguaios, paraguaios e sírios.
A partir dos marcadores sociais da diferença, a análise demonstrou, ainda que brevemente, a diversidade presente entre as
mulheres assistidas, o que serve também de microcosmos para olhar
a sociedade do interior gaúcho no início do século XX. Na sequência, investigaremos outras características do perfil sociodemográfico dessa população, colaborando para compreender melhor o universo dessas pessoas.
Tabela 3 – Profissão das mulheres internadas no Hospital de Caridade de Santa Maria (1903-1913)
Profissão
Agricultor/Colono
Costureira
Cozinheira
Criada
Doméstica
Empregado da Estrada
Engomadeira
Guarda Municipal/Militar
Jornaleiro
Lavadeira
Mendigo/Indigente
Não consta/ilegível
Operário
Religioso
Vida Errante
Total
120
N. de mulheres
5
2
6
54
956
13
1
2
4
7
2
230
2
2
2
1.288
Porcentagem
0,4
0,2
0,5
4,2
74,2
1,0
0,1
0,2
0,3
0,5
0,2
17,8
0,2
0,2
0,2
100,0
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 4 – Estado civil das mulheres internadas no Hospital de
Caridade de Santa Maria (1903-1913)
Estado civil
Casado
Não consta
Solteiro
Viúvo
Total
N. de mulheres
369
13
818
88
1.288
Porcentagem
28,6
1,0
63,5
6,8
100,0
Na Tabela 03, somados os casos da profissão “doméstica”
com os “não consta/ilegíveis”, restam apenas 8% das mulheres identificadas com ofícios fora do ambiente “do lar”. Porém, essa pequena porcentagem demonstra uma representatividade relevante se olharmos para a diversidade das profissões: agricultoras, criadas, costureiras, cozinheiras, engomadeiras, jornaleiras, lavadeiras, operárias e
religiosas. Com exceção das religiosas, que eram irmãs franciscanas
contratadas pelo hospital para cuidar dos doentes e para tratar da
área administrativa (MORAES, 2019), as demais eram mulheres
pobres, que precisavam de um ofício remunerado para manter ou
auxiliar o sustento de suas famílias. As empregadas da estrada, Guardas Municipais e Militares provavelmente não correspondiam às profissões das mulheres, mas às dos seus maridos, ou seja, o hospital
classificava dessa forma porque era quem subsidiava o atendimento.
Sobre as domésticas, a profissão mais recorrente, embora
Gabriela Rotilli (2017, p. 31) aponte em seus estudos sobre esse
mesmo hospital que essa categoria pudesse englobar também as
“criadas, cozinheiras, lavadeiras, amas de leite, engomadeiras, costureiras, etc.”, acreditamos que, no caso do HCSM, elas estivessem
muito mais relacionadas à classificação que Ana Paula Vosne Martins (2015) define “como mulheres do lar”, porque essas outras profissões aparecem diferenciadas nos registros, estando as criadas,
inclusive, entre as mais recorrentes.4
4
A temática das mulheres, em especial das mulheres pobres, está sendo investigada na dissertação de mestrado em andamento de Gabriela Rotilli no Programa
de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Santa Maria.
121
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
As diferenças acentuam-se quando investigamos as mulheres a partir de suas classificações, ou seja, como já foi dito, através
da forma pela qual o hospital diferenciava cada um de seus assistidos a partir de quem financiava o atendimento.
Tabela 5 – Classificação das mulheres internadas no Hospital de
Caridade de Santa Maria (1903-1913)
Classificação
Colônia Philippson
Guarda Municipal/Militar
Não consta/ilegível
Particular
Pinhal
Pobre
VFRGS
Total
N. de mulheres
36
3
22
166
1
1.031
29
1.288
Porcentagem
2,8
0,3
1,7
12,9
0,1
80,0
2,3
100,0
As pobres eram aquelas cuja internação fora financiada pelo
Serviço de Assistência Pública, ou ainda, pela subvenção municipal (ROSSI, 2019, p. 166). A VFGRS era custeada pela ferrovia
através de uma espécie de convênio com o hospital (ROSSI, 2019,
p. 212-220). Pinhal, Guarda Municipal e Colônia Philippson eram
atendimentos custeados por grupos ou instituições que os representavam. Já os particulares eram aqueles que pagavam por sua
própria internação, sendo ainda divididos entre aqueles da I e II
classe, divisão essa que significava o tipo de leito em que seriam
alocados: privativo ou semiprivativo. Diante disso, analisando a
Tabela 5, percebemos a significativa presença de mulheres pobres,
correspondendo a 80%.
Quando observamos apenas esse grupo de mulheres, os marcadores sociais da diferença ficam ainda mais latentes, especialmente na questão da cor.
122
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 6 – Cor das mulheres pobres internadas no Hospital de
Caridade de Santa Maria (1903-1913)
Cor
Branca
China
Indiática
Mista
Morena
Não Consta/ilegível
Parda
Preta
Total
N. de mulheres pobres
460
1
41
34
14
10
268
203
1.031
Porcentagem
44,6
0,1
4,0
3,3
1,4
1,0
26,0
19,7
100,0
Na Tabela 6, podemos observar que, excluído o 1% de dados
de que não possuímos informações (não consta/ilegível), ainda
assim temos 54,4% de mulheres não brancas identificadas entre as
pobres. Comparando a Tabela 01, em que 52,2% das mulheres eram
brancas, temos então uma inversão e a representação de onde elas se
encontram na classificação do hospital. São mulheres que foram recolhidas pelo Serviço de Assistência Pública Municipal no caso de
acidentes nas ruas ou que recorriam ao HCSM alegando pobreza e
eram custeadas pela subvenção municipal, uma das principais financiadoras dos serviços prestados pela instituição.
Entre as mulheres pobres também percebemos uma variedade maior de origens. Enquanto aquelas classificadas como “particular”, por exemplo, aparecem apenas como do Rio Grande do Sul, da
Alemanha, Itália, Polônia e Rússia, as pobres incluem, além dessas
nacionalidades, todas as demais que aparecem na Tabela 2. Um caminho explicativo para isso pode ser o fato de que as origens das
“particulares” representam colônias de imigração minimamente estabelecidas na região, o que significaria uma rede de apoio e solidariedade estruturada em seu núcleo de família e vizinhança. Pontuamos isso pelo que compreendemos como pobreza, aquelas pessoas
que, além dos bens materiais, são desprovidas de redes de apoio (ROSSI, 2019). Assim, aquelas que possuem origens diversificadas e que
123
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
também dialogam com o fato de ser mulheres de lugares bem diversos no que diz respeito à residência, ou seja, não só nasceram em
outros países, como também residiam em dezenas de localidades
dentro ou fora do Rio Grande do Sul e do Brasil. A nacionalidade e
a residência, nesse sentido, apontam para pessoas que talvez pudessem estar distantes de suas redes nucleares, o que significaria falta de
apoio em um momento de necessidade, como a doença, e por isso
viram como alternativa recorrer ao hospital.
A seguir, trataremos especificamente dos diagnósticos identificados pelos médicos do HCSM, o que permite observar, além das
enfermidades, também as condições da vida dessas pessoas.
Tabela 7 – Diagnósticos das mulheres pobres no HCSM (1903-1913)5
Classificação das doenças
N. de diagnósticos Porcentagem
de mulheres
Doenças infectoparasitárias
254
35,03
Sistema respiratório
102
14,07
Sistema digestivo
67
9,24
Doenças reumáticas
50
6,90
Sistema geniturinário
42
5,79
Causas conhecidas (variadas)
41
5,66
Gravidez, parto e puerpério
35
4,83
Causas mal definidas
31
4,28
Sistema nervoso e sintomas
30
4,14
neuropsiquiátricos
Lesões, envenenamento e
24
3,31
outras causas externas
Sistema circulatório
17
2,34
Doenças sistêmicas
13
1,79
Mal-estar, fadiga
11
1,52
Primeira infância e
8
1,10
má formação congênita
Total
725
100
5
Tabela elaborada pela autora, também publicada em trabalho anterior (ROSSI,
2019, p. 197).
124
História das Mulheres no Brasil Meridional
Para a elaboração da Tabela 7, excluímos os 306 registros de
“não consta” ou “ilegíveis”; assim analisamos um grupo de 725
hospitalizações de mulheres. Entre as que constam no diagnóstico
ou que está legível, 35% foram identificadas com doenças infectoparasitárias. Em segundo lugar, estão as enfermidades do sistema
respiratório com 14%, e o terceiro grupo mais frequente foi o de
doenças do sistema digestivo com 9,2%.
A doença que mais resultou em mulheres internadas foi a
tuberculose, seguida por sífilis, gripe e reumatismo. No caso da tuberculose, se compararmos com os homens, temos números muito
semelhantes: 216 no total, 115 casos de mulheres, 99 de homens e
2 não consta. Já entre as demais principais enfermidades, as diferenças são maiores. Dos 189 casos de sífilis entre os pobres, apenas
59 eram mulheres; de gripe, apenas 45 dos 189 diagnósticos; e dos
98 casos de reumatismo, apenas 30 foram registrados para o sexo
feminino. Com relação à gripe, esses números podem indicar que
os homens estavam mais expostos à contaminação devido a seus
trabalhos mais relacionados à exposição ao clima, enquanto as
mulheres concentravam-se em ambientes mais fechados, ou como
domésticas, ou criadas, duas profissões principais. Já o reumatismo pode também relacionar-se com o trabalho ou ser um sintoma
inicial da sífilis.
O baixo número de internadas com sífilis, comparado aos
homens, pode relacionar-se com o fato de não encontrarmos nenhuma prostituta no hospital. Porém, é sabido que dificilmente uma
mulher com essa profissão iria declará-la, dada a carga moral por
trás dela e da doença. Ana Paula Vosne Martins (2015) aponta a
possibilidade da autodenominação “costureira” ser sinônimo de
prostituta. No Hospital de Caridade, temos apenas três casos, todos de pobres; duas foram diagnosticadas com sífilis e a outra não
consta. Embora sejam poucas, podem sim indicar a hipótese de
Martins. Outro indício sobre o atendimento de prostitutas encontramos no jornal “O Estado”.
Antes da inauguração do hospital, quantas mães, miseráveis
mulheres que arrastam a existência pela lama das ruas, não
viram seus inocentes filhinhos frutos do crime, mas, em todo
caso, seus filhos, devorados pela febre, roídos pela dor e sem
125
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
um médico que os visse, sem um vidro de remédio que lhes
minorasse os sofrimentos ou salvasse suas vidas?! Agora não,
a Caridade amparou-os. Todos os dias, de manhã, vemos uma
porção dessas mal-aventuradas mulheres sustentando em seus
braços crianças andrajosas e macilentas, paradas à porta do
hospital, esperando os humanitários médicos, que gratuitamente examinam os infelizes e gratuitamente os infelizes levam da
farmácia do hospital os remédios que lhes são receitados.6
Ao se referir às “miseráveis mulheres” que tiveram filhos “frutos do crime”, a reportagem parece referir-se às prostitutas ou às
mulheres que, em nome da honra, enjeitariam seus filhos nas ruas
da cidade. Essas “mal-aventuradas mulheres”, a partir da inauguração do hospital – a notícia faz referência a isso –, passaram a
recorrer ao ambulatório daquela instituição para ser examinadas
por médicos e buscar remédios. Mais uma vez, não temos o registro preciso das pessoas que eram atendidas naquele setor, porém,
lembrando do outro fragmento já citado dessa mesma reportagem,
que apresenta os infelizes que batiam às portas do hospital, com
relação a essas mulheres podemos indicar que não eram aceitas
através da hospitalização porque faziam parte daquele grupo que
vagueava pelas ruas, os desvalidos, e apenas recebiam socorros necessários à sobrevivência prestados no ambulatório.
Ainda sobre profissões mal definidas que podem indicar prostituição, temos o caso de duas mulheres registradas como “vida
errante”, como pode ser visto na Tabela 03. Com a idade de 17 e 15
anos, naturais da Itália, residentes em Santa Maria, foram diagnosticadas com gonorreia. Ambas entraram no mesmo dia 16 de julho
de 1911 e saíram também na mesma data, cinco dias depois, com
alta “melhorando”.
Com relação ao baixo número de diagnósticos relacionados
à “gravidez, parto e puerpério”, Priscila Almaleh (2015) – estudando as mulheres pobres em Porto Alegre na última década do século
XIX – e Gabriela Rotilli (2017) – analisando as mesmas mulheres
do Hospital de Caridade de Santa Maria entre 1903 e 1913 – con-
6
AHMSM. Jornal “O Estado”, nº 73, 13 de setembro de 1904.
126
História das Mulheres no Brasil Meridional
cordam que isso se dava pela preferência por parteiras ou outras
práticas, associada à falta de confiança na instituição hospitalar.
Reconhecemos essa como uma das possibilidades de analisar esses
casos, mas, além disso, precisamos considerar, mesmo que fossem
poucos, os registros daquelas mulheres que recorreram ao hospital.
A totalidade das 35 mulheres classificadas com esse diagnóstico
foram classificadas como pobres. Refletindo sobre o nosso argumento de que os pobres que recorriam ao hospital faziam-no porque não possuíam outros recursos (ROSSI, 2019), pensamos que,
no caso dessas mulheres, talvez estivessem tão desamparadas de
redes de apoio que nem condições de pagar ou chamar a parteira
possuíam e, por isso, acabaram recorrendo ao serviço médico.
Há ainda dois casos de mulheres registradas com “alienação
mental”: Josephina Marin, 44 anos, branca, casada, natural da Itália, internada por 12 dias, foi transferida7, e Maria Luiza Comin,
30 anos, branca, viúva, natural da Itália e residente em Silveira Martins. Ficou hospitalizada por 90 dias, sendo removida do hospital.8
Interessante que as duas mulheres foram transferidas, embora só em
um dos registros conste o nome do Hospício São Pedro; provavelmente ambas foram enviadas para lá, afinal, observando outras documentações sobre a assistência prestada a alienados, identificamos
acordos entre a intendência de Santa Maria e o Hospício São Pedro
em Porto Alegre para recebimento e pagamento por esses doentes.
Mulheres assistentes: o Clube de Senhoras
Na mesma perspectiva de estabelecer parcerias entre entidades públicas e privadas para o provimento da assistência à pobreza
no interior do Rio Grande do Sul, identificamos a presença de mulheres da elite santa-mariense. Elas se reuniam em clubes, associações e sociedades beneficentes, que, entre outras ações, intervinham
entre a ferrovia e a Intendência a fim de conseguir passagens gratuitas para doentes pobres irem a Porto Alegre e atuavam na linha
de frente da assistência à pobreza.
7
8
HCSM. Livro 01, p. 16. 25/9/1905.
HCSM. Livro 01, p. 39. 01/01/1908.
127
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
Em Santa Maria, um dos mais atuantes foi o Clube Beneficente de Senhoras, fundado em 19009, cuja diretoria era toda composta por mulheres da alta sociedade santa-mariense, entre elas
Carolina Vicente, Edelmira Appel, Deolinda Hoffmeister, Maria
Luiz Brenner, Lydia Villa, cujos maridos ocupavam os principais
cargos na política e representavam as famílias mais abastadas da
cidade. Em 1905, através de sua presidência, o Clube de Senhoras
solicitou à Intendência uma passagem de trem para uma mulher,
Maria Felisberta Gonçalves. Ela desejava mudar para outra cidade
e recorreu aos auxílios do clube por saber que lá eram dadas esmolas e outras ajudas aos pobres. O Clube escreve ao intendente justificando o pedido da passagem, informando que Maria Felisberta
“acha-se extremamente pobre, necessitando, por conseguinte, do
auxílio das pessoas caridosas”10.
Dois elementos podem ser destacados desse caso. O primeiro diz respeito à estratégia adotada pela pobreza; Maria Felisberta,
quando recorre às senhoras, sabia que lá seria atendida pelos serviços prestados e era de conhecimento público, visto que encontramos inúmeros anúncios daquele clube nos jornais de circulação
semanal na cidade. Não necessariamente a mulher que solicita a
passagem soube através do periódico, entretanto, isso nos leva a
pensar que essas informações circulavam e que as pessoas que se
viam necessitadas de algum tipo de assistência sabiam a quem recorrer. O outro ponto de destaque é a articulação que havia entre
sociedades civis, intendência e a ferrovia. Havia uma dinâmica constante desses três grupos, por exemplo na união de esforços para a
fundação do Hospital de Caridade de Santa Maria em 1903. E, nesse caso, mais uma vez em prol da assistência à pobreza atuaram juntos. Acontece o que José Roberto Lapa pontuou para o caso de Campinas, quando em um período em que o Estado ainda não possuía a
gestão da assistência social, as iniciativas de amparo às crianças ca9
Arquivo Histórico Municipal. Fundo Intendência Municipal. Caixa 5, tomo 26.
Clube Beneficente de Senhoras de Santa Maria. Convite para o 1º ano de aniversário do clube. 20 de novembro de 1901.
10
Arquivo Histórico Municipal. Fundo Intendência Municipal. Série: Correspondências. Caixa nº 8, tomo nº 48.
128
História das Mulheres no Brasil Meridional
rentes, velhos e doentes eram “empreendidas sobretudo pela iniciativa privada, liderada pela Igreja e complementada muitas vezes pelo
Estado, com amplo envolvimento da sociedade. [...] a assistência
social se integra com a filantropia” (LAPA, 2008, p. 48).
Além disso, outro elemento com grande influência nas ações
filantrópicas foram as mudanças socioeconômicas ocorridas no
Brasil pós-abolicionista, as quais provocaram a transformação na
pobreza característica do país e mudanças sobre quem recaía a responsabilidade de socorrê-la. Nesse período, as cidades receberam
um grande contingente populacional com o qual não sabiam lidar.
Essa migração provocou aglomerações urbanas, desemprego, crescimento descontrolado e a demanda por novos cuidados. O retrato
da pobreza urbana, até então composto por vadios ociosos, viúvas
e órfãos, passou a integrar negros forros, imigrantes e trabalhadores urbanos. Ao mudar o assistido e quem o socorria, modificaramse também as motivações da assistência e suas práticas, que passam a demandar ações filantrópicas e estatais em conjunto ou separadamente.
A atuação do Clube Beneficente de Senhoras era amplamente
divulgada nos jornais, como dissemos anteriormente. Era recorrente aparecerem informes de que em determinado dia seriam distribuídas esmolas aos pobres e que esses deveriam dirigir-se até a
sede do clube no centro da cidade ou à residência de uma das
sócias. Também eram divulgados chás e festas comemorativas para
arrecadar donativos que seriam distribuídos. Em uma das publicações no jornal O Estado, de 17 de junho de 1904, a secretária, que
assina o informe, explica os princípios e objetivos do clube, aproveitando para fazer um apelo às sócias para tornar suas ações mais
efetivas em prol da caridade.
Essa associação tem por fim recorrer aos necessitados. A Miséria muitas vezes tem vergonha em estender a mão à Caridade, por
isso devemos procurar os pobres. [...] Por isso a presidente desta Sociedade deseja e pede que as dignas consócias procurem
os pobres, isto é, as pessoas que não podem trabalhar por velhice ou
por doença, e que se acham, na estação invernosa, sem meios de subsistência. [...] tomem nota dos nomes e das condições em que
estiverem esses indigentes [...] a fim de poder tomar as necessárias providências. Este clube faz suas esmolas secretamente,
129
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
sem ostentações, e por isso todas as senhoras que tiverem o
nobre sentimento da Caridade devem aliar-se às nossas fileiras, mesmo porque a união faz a força. Para isso é necessário
que todas as consócias façam a maior propaganda possível,
fazendo principalmente convencer que o melhor meio de socorrer
os miseráveis é por intermédio de uma associação fundada para esse
fim, não só por outros motivos, como porque as esmolas são
distribuídas com justiça e imparcialidade (grifos nossos).11
O discurso apresentado elucida as ideias de um grupo de
mulheres que prestava assistência à pobreza no interior do Rio Grande do Sul. Todos os que prestam assistência definem seu público, e
no Clube de Senhoras não foi diferente. Há um apelo para que as
sócias procurem os pobres, entretanto, não é qualquer pobre; são
aqueles que “têm vergonha em estender a mão à Caridade” e que, por
isso, elas devem procurá-los. Definindo-os enquanto os verdadeiros pobres, sendo os que estão impossibilitados de trabalhar em
função de avançada idade ou doença ou ainda aqueles que pelo
rigor do inverno não encontram meios para sobreviver.
O merecimento à assistência estava relacionado à vergonha
da exposição e à falta de possibilidade de trabalho, igualmente no
caso de velhice e doença já definido também pela ferrovia e dessa
vez acrescido do fator climático. O inverno no sul do Brasil é bastante rigoroso, atingindo temperaturas negativas. Isso impede que,
nos meses em que o frio é mais intenso, junho e julho (exatamente
o período em que foi publicado o anúncio), as oportunidades de
trabalho sejam mais escassas, sobretudo no campo. Por exemplo, é
uma época em que não se planta e nem se colhe milho, um dos
alimentos de maior produção na região (como já vimos no primeiro item desse capítulo), diminuindo, por isso, os serviços de pessoas que trabalhavam por jornada nas lavouras. Essa falta de trabalho
no campo também poderia ocasionar uma migração temporária
para a cidade. Esses dois fatores contribuiriam para o aumento no
número de jornaleiros desempregados e, consequentemente, para
o crescimento da pobreza, mesmo que temporária, gerando uma
demanda por cuidados.
11
Arquivo Histórico de Santa Maria. Jornal “O Estado”, nº 57, de 17 de julho de
1904.
130
História das Mulheres no Brasil Meridional
Robert Castel (2015, p. 191) destacou que no meio rural havia “massas de miseráveis operários agrícolas”, definidos por ele
como os “domésticos agrícolas em tempo integral, sejam intermitentes ou sazonais”. Era o “trabalhador [que] deve então alugar-se
por tarefa e sofrer os acasos das estações, das colheitas, da boa vontade do proprietário que o emprega, quando o aluguel de sua pessoa é a condição de sua sobrevivência” (CASTEL, 2015, p. 191).
Ou seja, o exemplo dos trabalhadores oriundos de áreas rurais em
Santa Maria relaciona-se a esses “miseráveis operários agrícolas” a
que se refere Castel.
Um estudo sobre os populares em Santa Maria entre 1885 e
1915, de Daniela Vallandro de Carvalho, apontou que “muitas das
pessoas que se deslocavam do meio rural para a cidade transformavam-se em jornaleiros. [...] Essa profissão é muito presente em nossas fontes e de maneira muito significativa demonstra como atividades rurais e urbanas combinavam-se, sendo exercidas alternadamente” (CARVALHO, 2005, p. 73-74). O Clube de Senhoras deveria perceber essas carências e, por isso, acrescia a seu rol de pobres
merecedores os “sem meios de subsistência”, ocasionados pela “estação invernosa”, os quais acreditamos estarem se referindo aos
jornaleiros.
Entendendo a pobreza enquanto uma questão social, percebemos que a assistência prestada pela caridade pública através da
Intendência não foi uma ação isolada através da subvenção a doentes pobres. Pelo contrário, associava-se a caridade privada através da ferrovia, do Clube de Senhoras e do hospital. A atuação
conjunta entre iniciativas privadas e Estado coexistiram no início
da República. Principalmente no que diz respeito a resolver as questões sociais que emergiram a partir do crescimento das cidades, e
socorrer os pobres era uma delas. A assistência, prestada pela caridade pública (Intendência) e privada (Hospital, Clube de Senhoras, por exemplo), evitava que os pobres se tornassem miseráveis.
Esse era o sentido da caridade e da filantropia moderna, entendendo as mulheres através de seu perfil e de suas estratégias de sobrevivência, observando as respostas que eram dadas através da caridade pública e privada.
131
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
Considerações finais
Na dinâmica de olhar as mulheres sob a perspectiva das assistidas e das assistentes, percebemos dois universos distintos. O
primeiro diz respeito, principalmente, a mulheres pobres, que recorriam ao Hospital de Caridade de Santa Maria, as quais identificamos como brancas e não brancas, egressas ou não do cativeiro,
nacionais e imigrantes. Já o segundo grupo corresponde às mulheres da elite, esposas de homens que representam a elite política e
cultural da região central do estado.
A diferença entre as classes sociais das assistidas e assistentes por si só representa um marcador social da diferença extremamente forte, visto que parte de lugares completamente distintos,
em que as primeiras dependem da caridade pública ou privada e as
segundas a praticam. Ou seja, enquanto as assistentes possuem redes consolidadas de apoio e capital social ao nível de distribuir ajuda financeira e benesses, as assistidas buscavam amparar-se em suas
redes de solidariedade primárias, como suas famílias e vizinhança
e, na ausência delas ou no não cumprimento de suas necessidades,
acabavam buscando auxílio externo, seja no hospital, no socorro
da Intendência ou pedindo esmolas as assistentes.
De modo geral, poderíamos olhar para os dois grupos e dizer: mulheres, brancas e não brancas, residentes no interior do Rio
Grande do Sul, sendo uma parcela significativa de imigrantes. No
entanto, quando utilizamos os marcadores sociais da diferença e
os analisamos através de suas intersecções, notamos o quanto eles
são determinantes para demarcar as desigualdades presentes nas
sociedades. Destacamos, em especial, o fato de trabalharmos com
um período da pós-abolição em que as diferenças de cor acentuam
ainda mais as disparidades, como podemos perceber através da identificação da maioria de mulheres não brancas entre as pobres que
recorriam à assistência.
Nesse sentido, deixamos aqui a provocação e o desejo que as
próximas pesquisas não deixem de lado a demarcação de classe,
cor, gênero, origem enquanto determinantes para olharmos o passado de uma sociedade que ainda hoje possui heranças das desigualdades expressas pela escravidão e pelos privilégios brancos.
132
História das Mulheres no Brasil Meridional
Referências
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condição de vida feminina no século XIX (1889-1895) a partir da Casa de
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133
ROSSI, D. S. • Mulheres e saúde no Brasil Meridional: pobreza, assistência
e relações sociais
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Brasil (1903-1913). Tese (Doutorado em História), Fundação Oswaldo Cruz,
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134
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mais do que uma condição social,
uma escolha: viúvas e a tutela de
menores na cidade de Porto Alegre
(séc. XIX)
José Carlos da Silva Cardozo
No dia 11 de outubro de 1879, a viúva do Marechal de Campo José Luiz Menna Barreto, Rita de Cássia de Oliveira Mello
Menna Barreto, deu entrada no Juízo dos Órfãos de Porto Alegre
ao processo número 905, em que pedia a tutela de seus filhos legítimos Rachel Menna Barreto, João de Deus Menna Barreto e Bianca Menna Barreto (Rio Grande do Sul, Proc. n. 905 de 1879), a
primeira com seis, o segundo com cinco e o último com dois anos.
A viúva informava em sua petição inicial que, havia dois dias,
seu marido teria morrido e, em face disso, queria habilitar-se para o
cargo de tutora de seus respectivos filhos menores de idade. Para
desempenhar tal função, informava no processo de tutela que vivia
em conformidade com a moralidade esperada de uma mulher viúva, portando-se com todo o recato e honestidade perante a sociedade
porto-alegrense, que sempre vivera ao lado de seu finado marido e
junto de seus filhos, os quais, até aquele momento, sustentava com
alimento e vestuário e dava a necessária educação. Para finalizar seu
pedido de tutela, acrescentava que era pessoa idônea e com a capacidade precisa para reger os bens dos aludidos filhos, que abria mão do direito
Velleiano1 e, para confirmar seu comportamento perante a família e
a sociedade, indicava três membros do Exército como testemunhas:
Carlos Luis de Andrade Neves, com a patente de Capitão; Francis1
Nessa ação, o termo empregado foi Velleiano, mas a redação correta, pela legislação, é Valleano.
135
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
co de Paulo Alencastro, Alferes; e, por último, Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, que, assim como o primeiro, tinha a patente de Capitão.
Quem recebeu os autos foi o Escrivão de Órfãos Sebastião
Lino de Azambuja no dia 22, que já marcou para o dia seguinte, às
11 horas, na casa do doutor Juiz de Órfãos Substituto Dr. Epaminondas Brasileiro Ferreira, a averiguação das informações apresentadas. O escrivão informava ainda que havia citado o Curador Geral de Órfãos Doutor José Affonso Pereira para estar presente na
sessão com a finalidade de assistir e inquirir as testemunhas da viúva
Rita Menna Barreto.
No dia, hora e lugar agendados, estavam reunidos os interessados no processo juntamente com os oficiais do Juízo dos Órfãos de Porto Alegre.
Seguindo o ritual processual de inquérito do Juízo dos Órfãos, a primeira testemunha, o Capitão Carlos Luiz de Andrade
Neves, com 31 anos de idade, casado e morador da cidade de Porto
Alegre, pôs a mão direita sobre um dos livros dos Santos Evangelhos
– a Bíblia – e prometeu dizer a verdade sobre os fatos que a ele
fossem perguntados. Feito isso, tomou a palavra o Juiz de Órfãos
Substituto Doutor Epaminondas Brasileiro Ferreira, que leu a petição inicial feita pela suplicante; no final, perguntou se era verdade
o que se alegava.
A testemunha disse que conhecia Dona Rita de Cassia Menna Barreto, viúva, pois fora Ajudante de Ordens2 do finado marido
dela, frequentando sua casa diariamente, e que sabia que ela teria
vivido e continuava vivendo com todo o recato e honestidade e enquanto casada, sempre se conservou em companhia do finado marido, conservando em sua companhia seus três filhos, os quais alimenta, veste
e lhes dá a precisa educação. Para finalizar seu testemunho, acrescentou que a viúva Rita Menna Barreto tem a necessária capacidade para,
como tutora, administrar com zelo a pessoa e bens dos menores seus filhos
com aquele finado. O Juiz do caso não fez mais perguntas, e o depoi-
2
Também chamado Ajudante de Campo, era o assistente ou secretário pessoal de
uma pessoa de alta patente ou posição.
136
História das Mulheres no Brasil Meridional
mento foi encerrado com a leitura da transcrição do escrivão e a
assinatura da testemunha e do Juiz de Órfãos Substituto.
Terminado esse interrogatório, foi chamada a segunda testemunha arrolada no processo, Francisco de Paula Alencastro, que
era casado, morador na província, com 27 anos de idade e Alferes
do Exército.
Seguindo o ritual, o inquirido fez o juramento com a mão
direita sobre a Bíblia, comprometendo-se a dizer a verdade sobre o
que sabia em relação ao caso em tela. A seguir, o Juiz de Órfãos
tomou a palavra, leu a petição inicial de Rita Menna Barreto e perguntou à testemunha se o que constava era verdadeiro. Em retorno, Francisco Alencastro respondeu que ela era viúva do General
José Luiz Menna Barreto e que a tem no conceito de mulher honesta e
recatada, que ela sempre vivera na companhia do marido e dos filhos aos quais veste, alimenta e lhes dá a necessária educação; por fim,
compartilhava da opinião da testemunha anterior de que a viúva
de Menna Barreto está no caso de ser tutora dos menores seus filhos, acrescentando por ter a necessária idoneidade e capacidade para administrar
com zelo a pessoa e bens dos ditos menores seus filhos”. Nada mais lhe foi
perguntado; lido foi o testemunho e achando-se em conformidade
com o que disse, foi assinado por ele e pelo Juiz de Órfãos.
Foi chamada a terceira e última testemunha, Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, casado, com 37 anos de idade, morador em
Porto Alegre e, assim como a primeira testemunha, Capitão do
Exército.
Seguindo o ritual, esse jurou dizer a verdade sobre o que
soubesse e lhe fosse perguntado; tomando a palavra, o Juiz de Órfãos
Substituto Doutor Epaminondas Brasileiro Ferreira leu a petição
inicial e inquiriu a testemunha sobre o que sabia em relação ao
caso. Frederico Ribeiro disse que conhecia a viúva do finado General José Luiz Menna Barreto, a quem conhece de longa data e por isso
sabe que, como viúva daquele General, de cujo casal tem três filhos menores
em sua companhia, aos quais a justificante educa-os, vivem com toda e
honestidade e recato, que essa sempre viveu com seu finado esposo,
acrescentando em definitivo que Rita Menna Barreto tem bastante
discernimento e juízo para com vantagem administrar, como tutora, a pes-
137
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
soa e bens dos menores seus filhos. Não havendo mais perguntas, o testemunho foi lido e, estando de acordo com o que foi dito, foi assinado pela testemunha e pelo Juiz de Órfãos.
Ao terminar os autos de inquérito, o escrivão encaminhou-os
para conclusão do Juiz de Órfãos, que, no dia seguinte (24/10/
1879), pede vistas ao Curador Geral de Órfãos Dr. José Affonso
Pereira; esse, no mesmo dia em que havia recebido o processo de
tutela, respondera: Nada tenho a opor. Ainda nesse mesmo dia, os
autos foram recebidos pelo Juiz de Órfãos, que os encaminhou ao
Juiz de Comarca, o Juiz de Direito Dr. Salustiano Orlando de Araujo Costa, que prontamente decidiu que
Julgo justificado quanto da [não legível] a supl.te [suplicante] é pois
idônea para ser nomeada tutora dos seus filhos logo que – 1º renuncie
o beneficio do Velleiano por termo e com 3 testemunhas – 2º prestar
fiança sobre se tiver bens de raiz suficientes para garantir dos seus ditos
filhos.
No dia seguinte, os autos retornaram ao Juízo dos Órfãos e
às mãos do Juiz de Órfãos Substituto Dr. Epaminondas Brasileiro
Ferreira, que determinou: Cumpra-se; e seja notificada a supl.te para vir
a juízo fazer renuncia do beneficio do Velleiano e prestar fiança legal no
prazo de 48 horas.
Em obediência à determinação do Juízo dos Órfãos, dona
Rita Menna Barreto procedeu com a renúncia do referido benefício, que foi redigido no mesmo dia 25 na casa da residência do Juiz,
onde também se encontravam o Escrivão de Órfãos Sebastião Lino
de Azambuja e três testemunhas indicadas por ela: o Capitão do
Exército Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, seu cunhado, o Tenente Antonio Adolpho da Fontoura Menna Barreto e o advogado
Josino de Azevedo Souza.
Na presença de todos, Rita de Cássia Menna Barreto, para
poder ser tutora de seus filhos menores Rachel, João e Bianca, renunciou
ao benefício do Senatus Velleiano e de outros direitos e privilégios introduzidos em favor das mulheres, como determina a lei. Não havendo mais,
o termo de renúncia foi encerrado e assinado pelos presentes.
Para dar maior rapidez ao processo judicial e ficar em definitivo com a tutela de seus próprios filhos, no dia 27 do mesmo mês,
138
História das Mulheres no Brasil Meridional
foi anexado aos autos o seguinte documento por parte de Rita
Menna Barreto, no qual afirmava ser
[...] viúva do Marechal de Campo José Luiz Menna Barreto, que tendo sido julgado por sentença a justificação que fez proceder por este
Juízo a fim de habilitar-se tutora de seus filhos, acontece ter o Sr. Dr.
Juiz de Direito, julgado talvez que existam bens do casal, ordenado q.
a supl.te [suplicante] preste fiança, para poder exercer aquele encargo, mas não existindo bens alguns do casal e tendo habilitação requerida pela supl.te remeter por fim haver a pensão a que tem os seus ditos
filhos direito; vem por isso requerer a V.S. [Vossa Senhoria] pa. [para]
que se sirva mandar tomar p. [por] termo o juramento respectivo de
tutora independente de fiança ou hipoteca por não ter razão de ser
acolhido nestes termos e juntada esta aos autos.
No referido dia, o Juiz de Órfãos encarregado do caso pediu
vistas ao Curador Geral de Órfãos Dr. José Affonso Pereira, e esse,
no dia 29/10, expôs sua posição em relação ao último documento
incluso no processo:
À vista da terminante disposição da Ord. L. 4º tit. 102§3 não pode a
supl.te ser isenta de prestar fiança ordenada na sentença de fls.7. Além
disso não é procedente a razão que alega na petição de fls.9; porque, se
seus filhos nada atualmente possuem, podem ainda adquirir, como
talvez em breve suceda, se for concedida, e é de esperar, a pensão que
para eles se trata de requerer.
Os autos seguiram no mesmo dia para as mãos do Juiz de
Órfãos, que rapidamente deliberou que à vista do despacho de fls. 7 e
parecer do Dr. Curador Geral, não tem lugar o que requer a supl. à fls.9.
Dessa forma, não havendo mais o que poderia ser feito para
não confirmar a renúncia e a necessidade de ser fiadora ou de encontrar fiadores para poder ser tutora de seus próprios filhos, Rita
Menna Barreto compareceu novamente ao Juízo dos Órfãos de
Porto Alegre com o objetivo de realizar o Termo de Fiança, tendo
levado consigo seu cunhado e Tenente Antonio Adolpho da Fontoura Menna Barreto e José Maria de Sampaio Ribeiro3 para servir
de fiadores.
3
Era irmão de Frederico Sólon Sampaio Ribeiro, Capitão do Exército, e uma das
três testemunhas iniciais do processo.
139
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
No dia 31 de outubro, os três apresentaram-se ao Juiz de
Órfãos e ao Escrivão de Órfãos, que reconheceram que as testemunhas eram quem diziam ser, às quais davam fé. Feita essa primeira
averiguação, deu-se início à redação do Termo de Fiança, no qual
Rita de Cássia Menna Barreto afirmava perante as testemunhas que,
para poder administrar os bens, pessoas e legítimas de seus filhos, que existem do seu consórcio com seu finado marido, vinha pelo presente termo
ratificar, o termo de renúncia do Senattus Velleiano e pelo qual obriga-se
a sustentar e educar os referidos órfãos a suas custas, se o valor da legítima e rendimentos deles não fossem suficientes, e comprometia-se
a entregar o que sobrasse quando eles casassem ou se emancipassem e a entregar e pagar a soldada que, porventura, eles viessem a
ganhar. Obrigou-se ainda mais: logo que sejam conhecidas as legítimas
dos aludidos menores no respectivo inventário, a pagar o selo proporcional
respectivo do valor das mesmas legítimas. Para ratificar tudo o que alegava, ofertou à Justiça seus dois fiadores, que, diante do Juiz de
Órfãos Substituto Dr. Epaminondas Brasileiro Ferreira, responsabilizavam-se
[...] como fiadores da dita viúva, pelos bens dos mencionados menores,
na forma para os fins declarados pela dita viúva, e obrigam-se a sustentar e a educar os órfãos, não o fazendo a outorgante sua mãe, hipotecando em geral todos os bens e em particular cada um deles, para garantia da presente responsabilidade.
Não havendo mais nada, o Termo de Fiança foi lido e, como
se achava em conformidade, foi assinado pela suplicante, pelos dois
fiadores, pelo Juiz e pelo Escrivão de Órfãos. No mesmo dia, o
termo foi incluído no processo de tutela e esse entregue ao Juiz de
Órfãos para conclusão, o qual decidiu: Nomeio para tutora de seus
filhos de menor idade à supl.te. O Termo de Tutela e Compromisso foi
lavrado e assinado no dia 05 de novembro de 1879.
Ao findar o processo de tutela número 905 do ano de 1879,
poderiam ser elencadas inúmeras questões relacionadas ao finado
marido ou sobre o único filho homem dessa relação, que teve, assim como o pai, uma carreira militar exitosa; contudo, quando acabamos de ler o processo de tutela número 905 de 1879, não houve
outra questão que não fosse esta: Por que tanta dificuldade para a
própria mãe receber a tutela de seus próprios filhos? Pelos trâmites
140
História das Mulheres no Brasil Meridional
do processo e as decisões dos operadores do Direito (Juiz de Órfãos, Curador Geral de Órfãos e Juiz de Direito) percebemos que
não houve “facilidades” ou brevidade para ela, mesmo sendo viúva e membro de uma respeitada família.
Hoje, a mãe tem a prerrogativa da guarda de uma criança
quando da separação do casal ou óbito do marido; no século XIX,
essa não era a realidade, principalmente se verificarmos que a mãe
teria que fazer um depósito ou hipotecar algum bem (caso não conseguisse, deveria dispor de dois fiadores) para garantir a integridade no cuidado com o menor de idade, como no caso apresentado.
O presente texto procura, dentro dos 952 processos de tutela abertos na segunda metade do século XIX, analisar algumas situações
que exemplificam a realidade de outras tantas mulheres porto-alegrenses que escolheram se manter em estado de viuvez para lograr
sucesso na tutoria de seus próprios filhos ou netos.
Mais do que uma condição, uma escolha:
as viúvas e os órfãos
Não houve título mais oportuno do que Os excluídos (PERROT, 2006) para um dos primeiros livros da historiadora francesa
Michelle Perrot a circular no Brasil, publicado inicialmente em 1988.
Nele, está presente um capítulo, como o próprio subtítulo do livro
apresenta, dedicado às mulheres. Mas por quê? Ao longo dos tempos, a história foi contada por um viés que não levou em conta a
sua participação.
A emergência da história das mulheres como um campo de
estudo acompanhou as campanhas feministas para a melhoria
das condições profissionais e envolveu a expansão dos limites
da história. Mas esta não foi uma operação direta ou linear,
não foi simplesmente uma questão de adicionar algo que estava anteriormente faltando. Em vez disso, há uma incômoda
ambiguidade inerente ao projeto da história das mulheres, pois
ela é ao mesmo tempo um suplemento inócuo à história estabelecida e um descolamento radical dessa história (SCOTT,
2012, p. 77).
O campo de estudos da história das mulheres aparece melhor delineado nas décadas de 70 e 80 do século XX como resposta
141
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
dos historiadores (principalmente das historiadoras) às demandas
sociais que as mulheres estavam reivindicando em contexto internacional, mas não somente nesse.4
O Brasil, como bem recorda a advogada Iáris Ramalho Cortês (CORTÊS, 2012), já teve oito Constituições ou Cartas Magnas,
a primeira das quais outorgada no ano de 1824, dois anos após a
ruptura com Portugal, e a última com ampla participação da sociedade brasileira no ano de 1988. Para nossos fins, é interessante
reportar que, na Carta de 1824, a mulher foi completamente alijada do processo político, não podendo votar ou ser votada, exercer
cargo público, entre outros; na segunda, nos anos iniciais do período republicano, embora houvesse a prerrogativa de serem “todos
iguais”, a mulher foi novamente desqualificada para muitas funções e atividades da vida pública, sempre, em todas elas, estando
debaixo dos desígnios dos homens. As mulheres foram tendo, ao
longo do tempo, conquistas importantes, como o direito de votar e
ser votadas, as prerrogativas para o desquite e anulação do casamento, aposentadoria, etc., até chegar à constituição “cidadã” de
1988, em vigor até nossos dias, em que há prerrogativas de igualdade total entre os sexos, sendo ainda construídos os instrumentos
legais para a aplicabilidade das leis concernentes aos direitos das
mulheres.
Dentro desse sucinto percurso constitucional, podemos verificar que as mulheres, não só para os historiadores/as, mas também para o Estado e a sociedade brasileira de forma geral, foram
relegadas a um papel social secundário, sendo muitas vezes caracterizadas como incapazes perante as leis (termo associado às crianças, “loucos” e indígenas) e, dessa forma, tendo que ter um responsável – geralmente do sexo masculino (pai/marido) – sobre si.
Assim, quais teriam sido os pressupostos para que tal definição se perpetuasse ao longo dos tempos?
É significativo perceber que a moralidade – e boa parte dos
códigos legais em âmbitos cível, militar ou religioso – esteve assen4
A historiografia sobre as mulheres já é abundante para um percurso, recomendamos ver: GRAHAM, 1992; PERROT, 2007; RAGO, 1985; ISMÉRIO, 1995;
ESTEVES, 1989; CAULFIELD, 2000; WADI, 2009 e CARDOZO, 2013.
142
História das Mulheres no Brasil Meridional
tada numa concepção judaico-cristã de ser e estar na sociedade, e,
nessa percepção, o papel desempenhado pela mulher está definido
a priori desde os tempos da gênese da humanidade, solidificando-se
no período medieval, quando houve a definição clara de uma hierarquização da sociedade, em que cada indivíduo, desde o nascimento, estava fadado a posicionar-se socialmente, o que tornaria quase remota a possibilidade de ascensão dentro dessa hierarquia.
A idealização e difusão dessa moralidade e hierarquização
social foi sobretudo tarefa da Igreja Católica Apostólica Romana,
que sustentaria a sua legitimação por todas as suas áreas de influência, inclusive sobre os Estados modernos.
No livro intitulado Imbecillitas (HESPANHA, 2010), António Manuel Hespanha apresenta as relações do Direito com os indivíduos “inferiores” da sociedade do Antigo Regime5 (menores,
loucos, pródigos, falidos, viúvas gastadeiras, mulheres, esposas,
viúvas, rústicos, selvagens, bárbaros, pobres e miseráveis), tendo
como foco o acesso desses ao direito dentro da sociedade; o autor
percebeu como as designações sociais são importantes elementos
para o controle e a manutenção da hierarquia social.
A ordem imposta pelo Estado – que tem posição privilegiada perante os indivíduos – é uma forma de ver o mundo e
posicionar-se nele.
[...] pelas posições relativas que as criaturas ocupam na ordem
da Criação, de que fazem parte. [...] Insistir nesse carácter universal da ordem e nesta ideia de que tudo pode ter direitos
sobre tudo, de que tudo pode estar obrigado a tudo, parece
uma peça importante da compreensão mais profunda da maneira medieval e moderna de ver e avaliar o mundo e de se
comportar nele (HESPANHA, 2010, p. 61-62).
Para nossos fins imediatos, é significativo perceber a caracterização das mulheres, pois o autor reporta-se ao texto bíblico da
criação e queda da raça humana, assim como a Aristóteles, para
revelar que, desde então, há a descrição da inferioridade da mulher,
“sendo elas”:
5
As Ordenações Filipinas, base legal do Direito aplicado no Juízo dos Órfãos,
foram redigidas no Antigo Regime luso.
143
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
[...] ‘menos dignas’, ‘frágeis e passivas’, carecendo de capacidade suficiente para regerem por si só, se aproximando, nesse
ponto, das crianças; ‘lascivas, astutas e más’, ressaltando a perversidade das mulheres, onde a luxúria chamava a curiosidade
– que perdera a mulher do Éden – e a astúcia (HESPANHA,
2010, p. 114).
Assim, as mulheres eram consideradas “menos dignas” ou
mais inaptas que os homens para exercer funções que não condiziam com as aspirações de sua “natureza inferior”, concepção advinda da origem bíblica da criação de que a mulher teria vindo da
costela de Adão (e não como esse feito à “imagem e semelhança”
do próprio Deus), além de ter “entregado” a raça humana à “devassidão” do pecado ao comer o fruto proibido. Sendo assim, a
mulher estava, desde sua criação, em condição “naturalmente” inferior à do homem e, depois, pelo próprio Deus, foi colocada como
subordinada à vontade do homem quando Deus a sentenciou após
ter pecado: “E à mulher disse [Deus]: Multiplicarei sobremodo os
sofrimentos da tua gravidez; em meio de dores, darás à luz filhos; o
teu desejo será para o teu marido, e ele te governará” (BÍBLIA,
Gênesis 3,16).
As mulheres ainda seriam “frágeis e passivas”, uma vez que
eram “incautas” ou, grosso modo, ignorantes por ser facilmente
enganadas (Eva foi por um animal). Como as crianças, que são
tolas, não conhecendo as potencialidades do perigo, as mulheres
deveriam ter um responsável que ajudasse a “protegê-las” dos perigos de um mundo pecador e repleto de “tentações”, que poderiam
seduzir para o mal, assim como um pai protegeria seu filho.
Todavia, ao mesmo tempo em que eram caracterizadas como
“frágeis e passivas”, as mulheres eram vistas como “lascivas, astutas e más” ou, como Sandra Pesavento afirmou em relação às mulheres porto-alegrense do final do século XIX e início do século
XX, elas eram percebidas como
[...] basicamente perigosas. Elas são uma alteridade inquietante, a
marcar, pela sua natureza mutável, um risco permanente para a
sociedade da qual deveriam ser o esteio. A ameaça reside, basicamente, no seu poder de ação, sedução, autodeterminação, o
que mostrava que, não sendo postas sob controle, as mulheres
144
História das Mulheres no Brasil Meridional
ameaçavam toda a ordem social (PESAVENTO, 2008, p. 12,
destaques no original).
Para evitar que as mulheres fossem “lascivas” (praticantes
da luxúria) ou “astutas e más” (feiticeiras e bruxas), segundo António Hespanha (2010, p. 115), a solução encontrada foi “uma constante vigilância sobre os seus costumes e um rigoroso confinamento ao mundo doméstico”; dessa forma, poderiam ser percebidas
como sendo uma pessoa “honesta”.
Como podemos acompanhar, trata-se de uma ideia que circunscreve os papéis sexuais de forma social, uma concepção de gênero6 que perpassa o imaginário social ao longo dos tempos, advinda, como mencionado anteriormente, da Igreja Católica. Sendo assim, faz-se oportuno percebermos as mulheres nas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia (1853), livro em que são expressas as
normativas eclesiásticas católicas, as quais entrariam em vigor no
Brasil a partir de 1707. Nesse compêndio, a preocupação está relacionada com a honestidade e com o comportamento recatado das
mulheres na sociedade e, principalmente, perante Deus. Um exemplo é a atenção que a normativa dá à importância da confissão das
mulheres, pois, no título XLIII, art. 174, está presente que:
Ordenamos, e mandamos, que em todas as Igrejas e Paróquias
de nosso Arcebispado, em que há Curas de almas, haja numero de (1) Confessionário em lugares públicos, [...] nos quais se
ouçam as Confissões de quaisquer penitentes, especialmente de
mulheres, as quais nunca ouvirão de Confissão no Côro (2) Sacristia, Capelas, Tribunas, ou Batistério, nem outro lugar secreto da Igreja. E quando for grande o concurso da gente para
se confessarem, os homens se confessarão onde puderem, ficando
reservados os (3) confessionários para as Confissões das mulheres
(1853, p. 73-74, destaques nossos).
Dessa forma, existe uma violência simbólica sobre as mulheres, na qual há um poder que impõe significações – e as impõe como
6
O gênero como categoria de análise é utilizado na História para identificar a
articulação entre as relações sociais, culturais e de poder não restritas apenas aos
determinismos biológicos dos indivíduos. Sobre esse tema recomenda-se ver:
DIAS, 1992; SCOTT, 1995; SOIHET, PEDRO, 2007; PEDRO, 2005; SOIHET,
1997 e TILLY, 1994.
145
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
legítimas –, não dando a perceber as relações de força que estão balizando o comportamento de homens e mulheres, ou seja, há um arbitrário cultural que é imposto como natural (BOURDIEU; PASSERON, 2013). O cerceamento de direitos e a vigilância sobre as obrigações e deveres das mulheres eram uma forma de os homens mantê-las sob seu controle, fazendo-as temerárias dos desígnios deles.
Exemplo bastante pontual, mas de inigualável significado, é
o que consta nas Ordenações Filipinas (1870) em relação ao adultério, no qual havia dois pesos para a ação de homens e mulheres no
ato: sendo à mulher imposta uma dura pena e ao homem – dependendo de sua posição social – nada!
Do que matou sua mulher, por achar em adultério. Achando o
homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá
matar assi [sic] a ela, como o adúltero, salvo se o marido for
peão, e o adúltero fidalgo, ou nosso desembargador, ou pessoa
de maior qualidade. Porém, quando matasse alguma das sobreditas pessoas, achando-a com sua mulher em adultério, não
morrerá por isso, mas será degradado para África com pregão
na audiência pelo tempo, que aos julgadores bem parecer, segundo a pessoa, que matar, não passando de três anos. 1. E
não somente poderá o marido matar sua mulher e o adúltero,
que achar com ela em adultério, mas ainda os pode licitamente
matar, sendo certo que lhe cometeram adultério; e entendendo
assi [sic] provar, e provando depois o adultério por prova lícita
e bastante conforme a Direito, será livre sem pena alguma, salvo nos casos sobreditos, onde serão punidos segundo acima
dito é (1870, liv. 5º, tit. 38).
Tal atitude justificava-se para os homens, Igreja e Estado pelo
controle do ventre, pois, uma vez não existindo exame biológico
que comprovasse a paternidade, se deveria ter todo o cuidado sobre possíveis “deslizes” que poderiam se agravar num filho não
legítimo. Contudo, como assinala Suely Almeida,
não podemos negar as normas apresentadas através das Ordenações laicas e Constituições eclesiásticas, porém não devemos
crer ingenuamente que todo o comportamento feminino seguiu a norma, ou que, pelo contrário, abandonou-a por completo, mas que mulheres e homens estão enredados na malha
do poder e não escapam a ele [...] (ALMEIDA, 2005, p. 59,
destaques no original).
146
História das Mulheres no Brasil Meridional
Atentos à ponderação acima, é significativo perceber que as
mulheres tinham comportamentos desejáveis, balizados pela legislação e moralidade vigentes: aquelas que não os possuíssem/seguissem eram obrigadas a incorporar a seu modo de agir.
A família, segundo António Hespanha (1993), era entendida como algo natural, algo auto-organizado, em que cada integrante
possuía seu papel a desempenhar, levando-se em conta que o governo dessa estava assentado nas mãos do pater familias. Ele era o
responsável pela esposa e filhos, os quais deveriam obediência a
ele. Nessa relação, “a subalternização da esposa tinha uma lógica
totalitária no ambiente doméstico [que] começava logo nos aspectos mais íntimos das relações entre os cônjuges” (HESPANHA,
1993, p. 963), subalternização que continuava, na maioria das vezes, mesmo após a morte do marido.7 Talvez o único poder que as
mulheres detinham em suas mãos estava na criação e educação
(até certa idade) de seus filhos.
Mesmo assim, maior liberdade conseguiam aquelas mulheres dos grupos dirigentes que enviuvassem, pois poderiam, por meio
dos recursos legados pelo finado marido, adquirir bens, que possibilitariam sua independência econômica, sustento próprio e dos
filhos ou mesmo o aumento das chances de um novo casamento
(mais vantajoso). Assim,
[...] a viuvez pode ser considerada como um passaporte para
uma vida mais livre em que ao casar, a mulher sairia da condição de solteira, condição essa não desejada a não ser se seguisse a vida religiosa, e ao mesmo tempo, com a morte do marido
7
O estudo de Loraine Giron para Caxias do Sul/RS entre os anos de 1875 e 1924
revela algo extremamente interessante sobre essa situação. As mulheres, nessa
localidade de pequena propriedade, realizavam a maior parte dos afazeres da
casa e da lavoura, sendo alçadas a uma condição subalterna na casa e na divisão
dos bens. Contudo, seria de se imaginar que, quando enviuvassem e se tornassem
donas da propriedade, assumiriam postura diferente perante a família e a comunidade – tornando-se o pater familias, mas não é isso que o estudo nos revela. Ele
demonstra que, mesmo assumindo a postura de líder da casa, as proprietárias
acabavam reproduzindo a dominação que as mulheres tinham perante os homens nas relações com seus filhos, genros, filhas e noras, garantindo, assim, a
manutenção da submissão das mulheres e da família tradicional. Recomendamos ver Giron (2008).
147
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
conquistava a posição de cabeça de casal, na qual estava autorizada pela sociedade a realizar ações consideradas masculinas como a participação nos negócios e até mesmo a possibilidade de exercer o pátrio poder sobre seus filhos [...] (SELISTER, 2014, p. 124).
Entretanto, foram poucas as mulheres que conseguiram transpor o imaginário social que atribuía funções definidas para elas,
como apresentado na citação acima. A mulher, de forma geral, não
era “vista” com “bons olhos” pela legislação orfanológica, uma
vez que, mesmo sendo mãe, poderia conduzir um menor de idade
para caminhos moralmente incorretos por dois motivos principais:
primeiro, se não tinha renda advinda do marido ou de uma herança, teria que trabalhar no espaço público – a rua, que, segundo o
imaginário da época, era reduto do mal e das imoralidades da
sociedade; segundo, sendo viúva, poderia recasar e inserir o menor
numa nova estrutura social, em que o padrasto – ou a própria mãe
– poderia maltratar o filho do relacionamento anterior. As mulheres “independentes” não eram vistas com “bons olhos” pela sociedade, principalmente pelos grupos dirigentes. Uma mulher, solteira ou viúva, era motivo de atenção por parte de todos à espreita de
um “deslize”, como conseguir um emprego que pudesse acarretar
sua constante circulação pela via pública. Assim, compreendemos
como Claudia Fonseca, que mesmo estudando as mulheres portoalegrenses nos anos iniciais do século XX, apresenta reflexões também aplicáveis ao nosso período de estudo:
Em tese, a lei não reconhecia o direito de a mulher, mesmo em
estado de abandono, viver com o novo companheiro. A mancebia era condenada, e a mulher amancebada, considerada ‘sem
moral’. Esse argumento foi repetidamente usado por homens
que queriam retirar seus filhos de uma ex-companheira. Admira-se, hoje, como esses fofoqueiros do senso comum mantinham a ficção da normalidade, como conseguiam acreditar e
convencer os outros de que cada nova transgressão à moral
familiar apresentada à justiça era um desvio pontual, uma exceção à regra. Como podiam ignorar que toda uma classe de
domésticas ‘vivia na rua’ sem necessariamente ser ‘sem moral’[...] Que era possível a mulher separar-se e ‘casar’ de novo
sem ser meretriz (FONSECA, 2008, p. 526).
148
História das Mulheres no Brasil Meridional
As mulheres porto-alegrenses que desejavam manter de forma legal seus filhos junto a si sempre estiveram em linha tênue
perante a Justiça, fato advindo da normativa legal das Ordenações
Filipinas, em que as mulheres deveriam comprovar sua condição de
“honestidade” e as mães e avós, viúvas ou separadas, que pleiteassem a guarda de um filho ou neto não poderiam recasar-se (1870,
liv. 4º, tit. 102 §4).
O Juízo dos Órfãos era muito reticente quanto a entregar a
tutela de um menor de idade para uma mulher, mesmo essa sendo
a própria mãe dele. Conjugando a totalidade dos autos de tutela
abertos na segunda metade do século XIX na cidade de Porto Alegre – na quantidade de 952 processos –, esses nos dão o fundamento que sustenta essa afirmação, uma vez que dos 975 tutores chancelados pela Justiça apenas 5% desses são do sexo feminino (44
mulheres).
Gráfico 1: Sexo dos tutores
Autoria: Elaboração própria.
Sendo assim, quais eram as condições para uma mulher viúva receber ou perder a guarda de uma criança, ser considerada apta
ou inapta para exercer a tutela de um menor de idade?
149
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
O processo da menor Idalina (RIO GRANDE DO SUL,
Proc. n. 902 de 1866), de nove anos de idade, é um dos 34 processos em que exclusivamente viúvas receberam a tutela de um menor de idade.
Nesse processo, sua mãe Florisbella Pereira Soares, viúva de
Antônio Pereira Soares, pede a tutela de sua filha legítima e, para
conseguir tal intento, a mãe, assim como na história de Rita Menna Barreto vista no início deste artigo, foi ao Juízo dos Órfãos com
os encaminhamentos necessários para ter êxito na sua intenção de
tutelar a própria filha. Para tanto, anexou um atestado para comprovar que morava no 1º Distrito de Porto Alegre na vizinhança do
Juiz de Paz A. Candido de Campos e do Cônego da Paróquia de
Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre, Pe. Vicente Ferreira da Costa Pinheiro, e indicou três homens como testemunhas de
seu imaculado comportamento social. Alguns dias após, o Juiz de
Órfãos Dr. Augusto Cesar de Padua Fleurÿ mandou que fosse lavrado o Termo de Renúncia do direito de Valleano e, nesse documento, aparece como fiador de Florisbella o senhor João Frederico
Eichler. Dessa forma, em menos de quatro dias após a abertura do
processo de tutela, foi deferido o pedido a favor da mãe.
Tal caso é semelhante ao do menino Henrique Reuter (RIO
GRANDE DO SUL, Proc. n. 118 de 1889), menor de 14 anos, em
que sua mãe, a viúva Eugenia Reuter, seguiu os mesmos trâmites
que haviam sido percorridos pelas mães descritas em casos anteriores e indicou seu próprio pai e avô do menino, João Carlos Dreher,
capitalista, para ser o fiador e principal pagador de sua filha D. Eugenia
Reuter.
Contudo, mesmo tendo feito os encaminhamentos necessários para o “sucesso” da ação de tutela, o processo arrastou-se por
mais de quatro meses até o deferimento de seu pedido no Juízo dos
Órfãos de Porto Alegre, período muito superior aos 30 dias determinados por lei (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870, liv. 4º, tit.
102 § 7) e seguido à risca na maioria dos processos de tutela abertos
no mesmo período na cidade de Porto Alegre – 79% desses foram
decididos em até sete dias. Se ampliarmos até o período limite imposto pela lei, verificamos que 96% dos casos foram resolvidos em
até trinta dias.
150
História das Mulheres no Brasil Meridional
Gráfico 2: Tempo de duração8
Autoria: Elaboração própria.
A mulher, mesmo tendo a condição de mãe legítima dos filhos, estava sempre com uma “Espada de Dâmocles”9 sobre sua cabeça: por qualquer ato considerado “desviante” do esperado, poderia receber uma medida repressiva, como a separação dos filhos.
Mesmo que a legislação fosse clara em atribuir algum direito
às mulheres, elas basicamente eram consideradas um risco para a
sociedade e para o patrimônio familiar: caso não houvesse a ação
de um homem, elas estariam, segundo a visão da época, “mendigando o pão”. Essa situação-limite é expressa nas Ordenações Filipinas. Segundo tais determinações, as mulheres estariam proibidas de ser fiadoras utilizando seus próprios bens – ou os de sua
família –, medida que era justificada pela possibilidade de essas virem a dilapidar todos os bens de família por falta de discernimento.
8
Foram contabilizados 41 processos a mais nos dados que compõem o gráfico,
uma vez que a ação retornou para o Juízo dos Órfãos em outro momento, envolvendo o mesmo menor de idade, constituindo um novo período para arbítrio do
Juiz de Órfãos.
9
Figura da mitologia grega, sobre cuja cabeça pendia uma espada, presa unicamente por um fio de rabo de cavalo. Representa aquele que, por qualquer motivo,
poderia perder um cargo, poder ou influência de forma repentina.
151
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
Do beneficio do Senatus consulto Valleano introduzido em favor das mulheres que ficam por fiadoras de outrem. Por Direito é ordenado, havendo respeito à fraqueza do entender das
mulheres, que não pudessem fiar, nem obrigar-se por outra
pessoa alguma, e em caso que o fizessem, fossem relevadas de
tal obrigação por um remédio chamado em Direito Valleano;
o qual foi especialmente introduzido em seu favor, por não serem danificadas obrigando-se pelos feitos alheios, que a elas
não pertencessem (1870, liv. 4º, tit. 61).
Mas nem só de pleitos exitosos viveriam as viúvas no Juízo
dos Órfãos. Muitas acabavam perdendo a guarda de seus filhos –
até de forma sumária. Analisaremos duas ações que tramitaram no
Juízo dos Órfãos de Porto Alegre, na mesma vara, num intervalo
de oito meses, que representam episódios-limite, mas que exemplificam a condição complexa às quais muitas mulheres estavam submetidas pela lei.
O primeiro processo, que na ordem cronológica é o último
dos dois casos, foi aberto no dia 15 de outubro de 1897 na 2ª Vara
de Órfãos por Luiz Pedro Deckmann contra sua cunhada. Luiz
Deckmann era alfaiate e morador na rua Voluntários da Pátria,
n. 473, e informou à Justiça que seu irmão Frederico Gaspar Deckmann havia falecido e deixado seus cinco filhos legítimos (Amália, Emilia, Augusto, Frederico e Maria, respectivamente com 14,
11, 8, 5 e 17 anos de idade – Rio Grande do Sul, Proc. n. 247 de
1897) com sua cunhada, a viúva do casal, dona Helena Deckmann. Até aquele momento, não havia nada de estranho, pois
com o falecimento do pai a mãe acabava por receber a responsabilidade social dos filhos, salvo se esses tivessem bens a receber
do finado pai, fato que motivaria a abertura de um processo de
tutela para empoderar um terceiro a defender os interesses dos
menores num inventário ou administrar os bens desses, mas esse
não era o caso.
O que motivava o cunhado a abrir um processo de tutela
contra sua cunhada devia-se a ela viver amasiada com um homem, o
que acarretava maus exemplos para os menores e, não bastasse isso,
ela ainda os maltrata e espanca, tratando-os em completo estado de nudez,
negando-lhes a educação necessária. Assim, em poucas linhas, o cunhado atacava a viúva com valores apreciados pelos grupos elitis-
152
História das Mulheres no Brasil Meridional
tas da sociedade, como a união por meio do casamento, a educação e a moral.10
Para demonstrar como seu interesse residia apenas na qualidade de vida das crianças, Luiz Pedro comprometia-se em ser o
tutor dos menores na qualidade de tio e entregá-los à sua mãe, avó
das crianças, que residia em São Leopoldo, para assim poder educálas como é necessário.
Para confirmar suas alegações, Luiz Pedro Deckmann indicava cinco testemunhas (todos homens11): 1º Emilio Leite de Sá; 2º
Luiz Ferreira Junior; 3º Adolpho Henrique Gundlach; 4º Candido
Propicio Sampaio Ribeiro e 5º Francisco Hoenes. Essas testemunhas
poderiam afiançar a verdade dos seguintes itens de seu pedido:
1º Que D. Helena Deckmann é viúva de Frederico Deckmann, irmão
do supl.te. 2º que desse casal ficaram quatro filhos menores – Amalia
de 14 anos, Emilia de 11, Augusto de 8, Frederico de 5, e mais a menor
Maria de 17 anos filha do primeiro matrimonio de D. Helena Deckmann, digo matrimonio de Frederico Deckmann e Dona Maria Gunther. 3º Que D. Helena Deckmann vive há oito meses mais ou menos
amasiada com José Vieira da Silva. 4º Que em virtude deste ajuntamento ilícito os filhos de D. Helena são diariamente maltratados e
espancados pelo amante de sua mãe, e são por este mal cuidados a
10
Um auto judicial estudado por Paulo Moreira é exemplar nesse sentido, no qual
era acusado do estupro da menor Mercedes Marques de Oliveira (14 anos) o
negociante Pedro Alcântara Ribeiro (23 anos, solteiro), e ele dizia que o processo tinha como finalidade “extorquir-lhe por meio de um casamento desigual”. O
advogado argumentou por escrito que: “[...] em verdade, quem era essa menor?
As próprias testemunhas do processo e do inquérito dizem que ela é filha de
uma mulher a qual vive amancebada com um homem, e em estado de mancebia
vive também uma irmã mais velha com o indivíduo José Dias da Rosa, que
figura no processo e no inquérito como a principal e única testemunha positiva.
Ora, tendo essa menor diante dos seus olhos, desde a tenra idade, o exemplo do
concubinato de sua mãe e irmã mais velha, é crível que desde a idade púbere, na
aproximação dos fluxos menstruais, muitas vezes acompanhados, na opinião de
‘CHERNOVITZ’, de tendências para o coito ou concepção, procurasse imitar o
exemplo que tinha sempre diante dos seus olhos e dentro da própria casa”. Isso
é uma presunção contra a honestidade da menor e quando ela a houvesse perdido (APERS – processo 1476, maço 57). Sobre a análise do caso, recomendamos
ver Moreira (2009).
11
Diferentemente de outros tipos de processos judiciais, como autos crimes, nos
autos de tutela as mulheres poderiam aparecer como “testemunhas” e não apenas como “informantes”.
153
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
ponto de andarem em quase completo estado de nudez e de todo descurada a sua educação. 5º Que os referidos menores recebem na Casa
materna maus exemplos que bastante compromete a sua educação. 6º
Que Helena Deckmann tem rendimentos pelos bens deixado pelo seu
marido a quantia de duzentos mil reis mensais provenientes do aluguel
da casa sita a rua Vinte e Quatro de Maio e mais a quantia de cem
mil reis trimestrais pelos juros de cinco contos em mão de Theobaldo
Fridrichs.12
No mesmo dia, o Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves,
Juiz de Órfãos do caso, mandou o Escrivão Ruben Abbott marcar
dia e hora para serem ouvidas as testemunhas na sala das audiências. Em obediência à ordem, foi marcado o dia 20 de outubro, às
11 horas da manhã. Nesse dia, estavam presentes quatro das cinco
testemunhas.
A primeira testemunha a ser ouvida foi Adolpho Henrique
Gundlach, casado, com 53 anos de idade, negociante. Aos costumes, jurou dizer a verdade sobre o que sabia e lhe fosse perguntado
sobre o caso. Quanto inquirido pelo Juiz de Órfãos sobre os itens
alegados pelo suplicante Luiz Pedro Deckmann, disse, em ordem
de leitura, que:
[...] ao 1º: – Respondeu ser verdade o que aí se alega. Ao seguinte: –
Que desse casal ficar, digo, que também é verdade o que aí se diz. Ao
terceiro: – Que sabe ser verdade que Dona Helena Deckmann se acha
amasiada com um indivíduo cujo nome ele depoente ignora, porém
que sabe também que esse indivíduo é um homem de cor parda por
assim haver contado Francisco Hoenes e Dona Henriqueta Hennemann,
irmãos de Dona Helena Deckmann. Ao quarto: – Respondeu que não
poderia afirmar positivamente se é verdade ou não o que aí se alega;
entretanto julga crível o alegado porque Dona Helena a quem o depoente conhece bem de perto é muito capaz de assim proceder. Ao quinto
– Respondeu: – Ser verdadeiro o que aí se diz. – Ao sexto – Respondeu:
que quanto aos alugueis referidos o depoente nada sabe, mas que por
outro lado sabe que Theobaldo Friedrich possui em seu poder quantia
de cinco contos de reis, pertencentes à Dona Helena, proveniente de
uma hypoteca dos quais paga juros de cem mil reis trimestrais, que são
recebidos pela própria Dona Helena.
12
Destaques nossos.
154
História das Mulheres no Brasil Meridional
Não havendo mais perguntas, o termo foi lido e assinado
pelo Juiz, testemunha e Escrivão; assim, o Juiz deu por encerrado
o depoimento e chamou a segunda testemunha: Emílio Leite de Sá.
Emílio Sá era solteiro, com 30 anos de idade e também de
profissão negociante. Aos costumes, fez o juramento de que diria a
verdade sobre o que sabia e lhe fosse perguntado sobre a petição
inicial de Luiz Deckmann, que foi lida pelo Juiz e, em ordem, respondida pela testemunha.
Ao 1º – Disse ser verdade o que aí se alega. Ao 2º – Respondeu que do
mesmo modo é verdadeiro o que se diz. Ao 3º – Respondeu que sabe
achar-se Dona Helena Deckmann há oito meses mais ou menos amasiada com um indivíduo de cor parda, cocheiro de bondes da Companhia Porto-Alegrense, cujo nome aliás ignora o respondente. Ao 4º –
Respondeu que é verdade que o amante de dona Helena maltrata os
filhos d’esta, espancando-os e que estas crianças andam de fato mal
trajadas o que revela evidentemente com que são tratados pela própria
mãe. Ao 5º – Respondeu – que é de todo verdade o que se alega n’este
item. Ao 6º Respondeu – que é verdade que Dona Helena recebe duzentos mil réis mensais de aluguel da casa referida, mas que ignora o
que se diz sobre os juros a que alude o justificante.
Nada mais disse nem lhe foi perguntado. Lido e assinado, o
Juiz ordenou a entrada da terceira testemunha: Francisco Hoenes.
Francisco era casado, com 32 anos de idade, também de profissão negociante e irmão de Helena Deckmann. Fez o juramento e
respondeu que todo o alegado nos itens presentes na petição inicial
eram verdadeiros, acrescentado que ela vive há oito meses mais ou
menos amasiada com um indivíduo de cor parda e de nome José Vieira,
que vive à custa dela, que Vieira maltrata as crianças tanto assim que
uma das crianças queixou-se a ele depoente, que é seu tio, dos maus-tratos
que lhe infligia esse individuo e mais é efetivamente certo andassem essas
crianças em quase estado de nudez devido ao pouco caso com que são
tratados por sua mãe e que recebe o aluguel de uma casa no valor de
duzentos mil réis e juros de cinco contos de Theobaldo Friedrich,
valores que pertencem por herança paterna aos seus filhos órfãos.
Como nada mais disse nem lhe foi perguntado, o Juiz de
Órfãos mandou que fosse lido e assinado o termo pelo depoente.
155
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
A 4ª testemunha era Candido Propicio Sampaio Ribeiro,
viúvo, com 38 anos de idade e de profissão guarda-livros. Esse confirmou o que se alegava na petição inicial, assim como o fez a 5ª e
última testemunha, que foi ouvida no dia 22 de outubro, Luiz Ferreira Júnior, também viúvo, com 36 anos de idade e de profissão
negociante.
No mesmo dia em que ouvira a última testemunha indicada
por Luiz Pedro Deckmann, o Juiz de Órfãos Antônio Marinho
Loureiro Chaves pediu Vistas ao Curador Geral de Órfãos Dr. Andrade de Neves Netto, que se pronunciou no dia 26 afirmando:
O principio é que se dê tutor aos filhos de quem, por seus hábitos imorais não pode cuidar convenientemente da educação da prole, Carvalho e Araripe, Primeiras linhas orphanologias, § 120. A lei é severa,
porém não despossuiu: ninguém pode ser condenado sem defender-se.
E a destituição do pátrio poder importa numa condenação para aquele
que sofre. Num simples processo de remoção de tutela, processo sumaríssimo, a demissão não pode ter lugar sem audiência do tutor como
nos ensina Op. Cit. § 144. E a tutela é uma reunião de parcelas do
pátrio poder, direito que continue poderoso ela da ordem na família.
Depois, segundo penso com fundamento em todos os tratadistas, deve
ser repelida a proposta do suplicante de fls.2 para tutor dos menores
porque, não podem ser tutores, entre outros, aqueles que voluntariamente se oferecem.
–
Tendo em vista, porém, os interesses dos órfãos cuja guarda compete à
Curadoria Geral, requeiro seja nomeado um ou mais depositantes para
os filhos da suplicada até que se decida a ação de destituição do pátrio
poder que pretendo, como Curador, nomear à mesma suplicada.
No dia 28 outubro, os autos retornam ao Juiz de Órfãos;
esse expede sua decisão, no dia 12 de novembro.
Em vista do parecer do Dr. Curador Geral de Órfãos e atento às razões
de ordem jurídica aí alegadas, indefiro a petição de fls.2 e mando que
os menores Amalia, Emilia, Augusto e Frederico, filhos de d. Helena
Deckmann e órfãos pelo falecimento de seu pai Frederico Deckmann,
bem como a menor Maria, órfã de seus pais Frederico Deckmann e d.
Maria Gunther, sejam depositados provisoriamente em casa de d. Henriqueta Hennemann, tia dos mesmos menores, até que seja decidida a
ação de destituição de pátrio poder, que será promovida pelo Curador
Geral de Órfãos, conforme sua promoção n’estes autos. Intimados os
interessados e selados estes autos, pague suplicante os custos.
156
História das Mulheres no Brasil Meridional
Depois disso, os autos foram remetidos ao Contador do
Juízo Abílio Alves Pereira. O valor do processo ficou em 155$880.
Depois disso, não há mais informações sobre o processo ou o encaminhamento que os menores teriam. O certo é que as crianças ficaram com a tia e que Luiz Pedro Deckmann, o autor da ação, pagou
a custa.
Para poder analisar melhor as participações (ou ausências)
nesse processo de tutela, é necessário acompanhar outro que transcorreu no mesmo ano.
Vamos acompanhar a ação de tutela que teve como centro a
recém-nascida Bertolina Xavier dos Santos (RIO GRANDE DO
SUL, Proc. n. 235 de 1897). No dia 10 de fevereiro de 1897, Francisco de Paula M. dos Santos deu entrada no Juízo dos Órfãos de
Porto Alegre ao pedido de tutela da menor Bertolina, de 1 mês e 19
dias de vida, com a alegação de que existe nesta cidade uma parda de
nome Leonor Xavier dos Santos que tem em seu poder uma filha, não
apresentando se ele (autor) possuía algum tipo de relação com a
mãe ou com o pai da criança, para, logo em seguida, atingir a honra da mãe da menina ao acrescentar que ele poderia provar que
Leonor Xavier dos Santos é uma mulher de costumes fáceis tendo aos 14
anos de idade abandonado a casa de seus padrinhos com quem vivia, para
prostituir-se amasiando-se com um preto13 14, que essa “há seis anos, tem
dado seu corpo a vícios indevidos e que, em decorrência desse péssimo
comportamento, não tem como prover a sua subsistência, pois anda de
casa em casa agasalhada por misericórdia de um ou e de outro.
Feito isso, o peticionário, em nome dos vastos sentimentos de
justiça do Juiz de Órfãos, pediu para ser tutor da recém-nascida Bertolina. Para ratificar o que alegava, indicou três testemunhas do
sexo masculino: Albano da Rocha Faria, João Gonçalves de Castro, Francisco Pinto.
13
A cor é uma “característica” que aparece nos processos de tutela de forma operacional para os litigantes como “estratégia” de qualificação/desqualificação
das pessoas envolvidas, mesmo que, após a segunda metade do século XIX, a
tendência fosse a “invisibilidade da cor” nos processos judiciais. Assim, o emprego da cor não era algo fortuito ou um dado aleatório sem significado nos
processos. Sobre o tema recomendamos ver Mattos (2003).
14
Destaques nossos.
157
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
Dessa forma, foi marcado o dia 12 de fevereiro para serem
ouvidas as testemunhas. João Gonçalves de Castro foi o primeiro a
ser inquirido. Ele era português, solteiro, com 37 anos de idade e
empregado público. Quando o Juiz de Órfãos Dr. Antônio Marinho Loureiro Chaves lhe perguntou sobre o que sabia a respeito do
caso, disse que é verdade o alegado a folhas duas, e que ele, depoente, pode
afirmar de ciência própria, nada mais dizendo ou lhe sendo perguntado.
A segunda testemunha era Albino da Costa Faria, casado,
com 32 anos de idade e também empregado público; quando o
Juiz lhe perguntou sobre o que sabia a respeito do caso, respondeu
que é inteiramente verdade o alegado na petição de folhas duas, porquanto
conhece de há muito tempo Leonor Xavier dos Santos. Nada mais disse
ou lhe foi perguntado.
A terceira e última testemunha foi Francisco Pinto, que era
branco, solteiro, com 29 anos de idade e de profissão pintor, que
também, de forma sucinta, ratificou que era completamente verdade o
que consta na petição de folhas duas, e que ele, depoente, o pode afirmar de
ciência própria.
Terminados os autos de depoimentos, esses foram encaminhados ao Juiz de Órfãos, que, dois dias após a abertura do processo, decidia que: Em vista dos depoimentos de fls. julgo provadas as alegações de fls., pelo que nomeio tutor da menor Bertolina, filha de Leonor
Xavier dos Santos, o cidadão Bartolomeu Fernandes da Silva Ennes. Lavre-se o competente termo de compromisso. Intime-se as partes.
É, no mínimo, conveniente aventar o porquê de tal ação, uma
vez que a criança possuía apenas um mês de vida: será que o autor
da ação não era o pai biológico da criança ou mesmo um parente
da mãe ou do pai dela? Não há indícios que colaborem para elucidarmos a questão.
Considerações finais
Terminados os dois últimos processos, em que pese o fato de
terem sido iniciados por homens contra as próprias mães dos menores, podemos constatar quão frágil era a condição que a mulher
tinha perante a Justiça no final do século XIX, quando essas
158
História das Mulheres no Brasil Meridional
pleiteavam o reconhecimento legal sobre a guarda de seus filhos,
pois, nos casos apresentados, embora ambas fossem mães, tiveram
a guarda de seus filhos retirada de si sem a necessária investigação,
uma vez que somente uma das partes interessadas foi ouvida.
O segundo processo torna-se ainda mais emblemático devido ao fato de o Juiz de Órfãos – que era o mesmo nos dois casos –
não ter acionado o Curador Geral de Órfãos – condição obrigatória para a validade da ação pela legislação orfanológica –, que, no
primeiro processo, interveio solicitando ao Juiz que os menores
fossem depositados num lugar provisório até o final do processo de
tutela, pois haveria a necessidade de maiores informações sobre a
conduta da viúva, fato que não foi considerado no segundo caso,
uma vez que foi lavrado o Termo de Tutela no final do processo e
entregue a criança ao suplicante.
Sem dúvida, esses dois últimos processos de tutela são extremamente simbólicos para circunscrever a situação de muitas mulheres no período, pois os processos correram à revelia das acusadas, que, em nenhum momento, foram intimadas a comparecer em
juízo ou prestar qualquer esclarecimento, sem mencionar que todas as testemunhas eram do sexo masculino (mais um fato legitimador da condição dependente que as mulheres tinham no período), que baseavam seus depoimentos em valores morais.
Comparando os dois últimos casos apresentados com a história do início deste artigo, podemos tirar duas conclusões sobre as
mulheres que tinham interesse em permanecer com seus filhos após
a morte do marido: a viuvez fazia parte de um cálculo (racional ou
não) para ficar com o filho e, se a viúva resolvesse pleitear a tutela
dele, deveria ter ou representar possuir as características de uma
mulher “honrada”. É significativa a constatação de que das 44 mulheres que lograram “sucesso” no pleito de uma tutela 34 mulheres
– mais de 77% – estavam na condição de viuvez.
A permanência de uma mulher em estado de viuvez – mais
do que caracterizar a falta de oportunidade ou o potencial “alto
valor” dela no “mercado matrimonial” porto-alegrense – pode revelar igualmente o potencial interesse da mãe viúva em manter consigo seus próprios filhos, uma vez que a mulher que recasasse perderia a guarda deles, assim como aquelas que vivessem amasiadas
159
CARDOZO, J. C. da S. • Mais do que uma condição social, uma escolha:
viúvas e a tutela de menores na cidade de Porto Alegre (séc. XIX)
ou moralmente descritas assim. Muitas mulheres acabaram tomando a decisão de permanecer na condição de viuvez, sem se relacionar com outro homem até a maioridade dos filhos, como uma forma de conservar sua prole junto a si. Caso contrário, mães e até
avós perderiam o direito à tutela dos filhos ou netos quando deixassem de viver “honestamente” ou quando casassem pela segunda vez e, mesmo que enviuvassem novamente, não poderiam reaver as crianças (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1870, liv. 4º, tit. 102
§ 3). Excetuando a mães e avós, nenhuma outra mulher poderia
pleitear ser tutora de um menor de idade.
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Porto Alegre, 1889. Localização: APERS.
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Porto Alegre, 1897. Localização: APERS.
RIO GRANDE DO SUL. Juízo Districtal da Vara de Orphãos de Porto
Alegre. 2ª Vara. Justificação. Proc. n. 235 de 1897. [manuscrito]. Caixa
004.6786. Porto Alegre, 1897. Localização: APERS.
162
História das Mulheres no Brasil Meridional
Muitas e diversas Anitas:
mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
José Iran Ribeiro
Durante boa parte do século XIX, a província do Rio Grande de São Pedro presenciou diversas situações de mobilizações
militares para diversas guerras. As várias invasões da chamada Banda Oriental ou Cisplatina ou Uruguai, a Guerra dos Farrapos, a
Guerra contra o Paraguai, etc. continuaram a sanha de forças em
combate na região desde o período colonial, se não antes. Os exércitos, seus líderes, os enfrentamentos, os motivos, as decorrências,
as batalhas, os resultados, a participação de extratos sociais diversos, enfim, muitos aspectos das guerras já foram interpretados de
diferentes formas em inúmeras análises.
Entretanto, apesar dos significativos avanços na produção
historiográfica sobre mulheres, gênero, entre outros temas correlatos1, pouco ou nada se refletiu sobre a participação feminina no
cotidiano dos exércitos. Exceção destacável é a produção a respeito da presença de mulheres na Guerra contra o Paraguai, em razão,
especialmente, da existência de muitos relatos de participantes da
mobilização, o que propiciou a realização de várias análises sobre
a participação feminina naquele cenário.2 Em parte, a lacuna relativa às mulheres deve-se à hegemonia da participação masculina
nos serviços das armas, mas também ao caráter tradicionalmente
sexista da historiografia.
1
Agradeço a leitura, as observações e as sugestões ao texto das professoras Cádia
Carolina Morosetti Ferreira e Beatriz Teixeira Weber.
2
Ana Maria Colling analisou a historiografia sobre as mulheres na Guerra contra
o Paraguai (COLLING, 2014).
163
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
Há trabalhos que refletiram a respeito da condição feminina
num contexto de guerra. Por exemplo, Lélia Coelho Lopes estudou mulheres que assumiram responsabilidades na administração
de propriedades e de negócios; sozinhas tiveram de assumir todas
as formas de cuidados das famílias e dos interesses, enquanto maridos, pais, irmãos eram mobilizados para os exércitos durante longos e incertos períodos de serviço. Nas palavras da autora:
Inferimos que, no Rio Grande de São Pedro, a ausência constante dos homens da casa, em virtude da guerra, propiciava às
mulheres – pobres ou ricas; brancas, mestiças, indígenas ou
negras; casadas ou viúvas; concubinas ou solteiras e com filhos – maior autonomia de ação, administrando sozinhas seus
lares e negócios. A disposição dos rio-grandenses às armas também não era absoluta. Muitas famílias tentavam liberar seus
membros da obrigação de sentar praça. Por razões afetivas ou
puramente econômicas, pais de família negociavam a liberação de seus filhos do serviço militar; mães, esposas e companheiras reivindicavam a presença ou encobriam as deserções
de seus filhos e parceiros; homens desertavam ou tentavam se
eximir da obrigatoriedade dos serviços evocando suas obrigações familiares; outros, sem nenhuma posse ou escravos, serviam em lugar dos patrões ou senhores, forçados por sua condição servil ou impelidos por laços de lealdade e clientelismo.
Deste modo, a família no Rio Grande do Sul se distinguia da
de outras regiões, em virtude, dentre outras razões, do ambiente belicoso que não permitiria a acomodação absoluta aos papéis sociais e exigia atitudes dos membros das famílias para
preservar o bem-estar do grupo (LOPES, 2014, p. 111).
A importância de análises como essa reside na afirmação
das mulheres como agentes fundamentais para a manutenção das
condições de existência nos contextos de destruição, morte, violências, enfim, em cenários marcados pelos horrores da guerra.
Portanto desempenhando responsabilidades deliberadas, árduas,
arriscadas, que garantiam a sobrevivência dos grupos familiares.
Autores referenciais da historiografia argentina também evidenciaram a importância das mulheres na manutenção das propriedades durante os períodos das guerras revolucionárias (HALPERIN DONGHI, 2005; SCHMIT, 2004).
164
História das Mulheres no Brasil Meridional
Entretanto, também carecemos de reflexões que tratem das
mulheres no dia a dia dos exércitos, dos militares, dos combates, se
acreditarmos na possibilidade de encontrá-las nesses espaços tradicionalmente compreendidos como exclusivamente masculinos.
Adélia Miglievich-Ribeiro afirma:
Apenas porque não se rompeu com o padrão eurocêntrico-iluminista de explicação do mundo é que ainda se repete que as
armas e as guerras participam somente da história dos homens
e, excepcionalmente, da vida das mulheres. Contudo, a violência não é atributo masculino nem feminino e sim do gênero
humano e do modo de organização de suas sociedades. Por
isso, não há que provocar tanta estranheza a participação direta de mulheres em guerras, revoltas e guerrilhas, muitas vezes,
pegando em armas (RIBEIRO, 2018, p. 2).
Não obstante, é verdadeira a escassez de referências às mulheres nas fontes específicas. Geralmente são referidas participando dos esforços bélicos dedicadas aos serviços de apoio aos exércitos, como o tratamento de feridos, a preparação dos alimentos, o
cuidado das famílias nos deslocamentos, entre outros afazeres.
Portanto, sabemos que estavam lá, que participavam ativamente, e
há evidências, ainda que não tão claras, às vezes enviesadas, que
nos permitem evidenciá-las em lugares, trabalhos, ocupações pouco esperadas.
Nesse sentido, Cristina Scheib Wolff argumenta:
A participação direta de mulheres em lutas violentas é geralmente esquecida, dificilmente reconhecida. Entretanto, apesar
disso, de alguma maneira, as mulheres sempre estiveram envolvidas em guerras, revoltas e guerrilhas. E muitas vezes pegaram em armas (WOLFF, 2012, p. 206).
Entretanto, não é tarefa fácil encontrar essas personagens na
documentação. Algo que já foi destacado pela historiografia sobre
a temática (SAMARA, 2003), referindo-se às evidências produzidas até o século XIX, especialmente as que dizem respeito às personagens menos notórias. Ainda que se saiba que estavam presentes, em geral mulheres são apenas mencionadas, aludidas ou descritas na documentação de origem militar ou que trate de questões
militares como “mulher” ou “mulheres”. Quase nunca são nomea-
165
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
das. Nas vezes em que isso acontece, ocorre porque são autoras de
documentos em que solicitam a dispensa de filhos ou maridos, pedem auxílios para a sobrevivência em razão da distância de seus
familiares em serviço, requerem pensões por viuvez. Algumas vezes, não são nem autoras dos próprios pedidos por não ser capazes
de ler e escrever ou por confiar mais no poder de influência e/ou
sensibilização de homens.
Não obstante, analisando a participação feminina na Revolução Francesa, Dominique Godineau afirma:
Não basta dizer que as mulheres participaram ou não nelas.
Não basta também pôr em evidência o peso do fator masculino-feminino. Há também que questionar a História para tentar
deduzir a articulação entre a relação dos sexos e o acontecimento: como se dá a primeira a sua configuração ao segundo,
e como, ao mesmo tempo, pode o segundo fazer evoluir a primeira? (GODINEAU, 1994, p. 21).
Nesse sentido, este trabalho irá analisar alguns desses relatos, buscando desvendar a presença de mulheres nos esforços de
guerra, nas mobilizações, nas articulações políticas, nas ações em
campo, nos acampamentos, nas frentes de combate, etc., a partir
da documentação de origem militar ou produzida sobre a realidade histórica do Rio Grande do Sul na primeira metade dos anos
1800. Busca-se refletir sobre a participação feminina na guerra entre republicanos rio-grandenses e defensores da autoridade do Império do Brasil, evidenciando como as mulheres influíram na guerra a partir de sua especificidade de mulheres e quais eram os significados possíveis de uma existência feminina num contexto bélico.
Nos limites do texto, a reflexão dividir-se-á em duas partes.
Inicialmente, tratarei dos papéis, dos lugares, das condições normalmente reconhecidas como femininas, sendo mães, esposas, cuidadoras, prostitutas. Posteriormente, busco evidenciar outras condições menos valorizadas ou pouco distinguidas: mulheres raptadas, amásias, agentes políticas, combatentes, etc. As primeiras normalmente eram nomeadas, tratadas como donas ou senhoritas; as
demais, diferentemente, eram chamadas apenas de mulheres, de
chinas, entre outras formas. Além da condição feminina, também
influía nisso o lugar social dessas mulheres, suas cores de pele, suas
166
História das Mulheres no Brasil Meridional
condições maritais, seus posicionamentos políticos, entre outros
critérios. Situações existentes na complexidade da sociedade do
século XIX.
O título deste texto menciona o nome de Anita Garibaldi. A
razão disso é porque essa personagem histórica, além de notória,
representa tanto as mulheres que desempenhavam funções previstas à condição feminina no século XIX como as que romperam
com esses parâmetros.3 Resumidamente, Ana Maria de Jesus Ribeiro era casada e vivia em Laguna, na província de Santa Catarina, quando os revoltosos rio-grandenses a invadiram. Então conheceu Giuseppe Garibaldi e decidiu abandonar o casamento para
viver com o revolucionário italiano. A seu lado, participou ativamente das ações militares e de agitação política no Brasil e, posteriormente, na Itália, onde faleceu em 1849.
Condições feministas previstas porque viveu em matrimônio, desempenhava as funções domésticas da esposa de um sapateiro, aparentemente sem maiores envolvimentos com outras questões além do mundo de seu lar e da família. Entretanto, rompeu
parâmetros ao decidir abandonar essa vida para acompanhar um
carbonário italiano, dedicado à instauração de outras formas de
organização social, inclusive com a utilização da agitação, da violência e da guerra por razões políticas.
Considerando o exemplo da trajetória de vida de Anita, a
análise será dividida por esses dois perfis, que podem parecer antagônicos, talvez contraditórios, mas representam algumas das possibilidades de ser mulher naqueles tempos tão incertos e belicosos.
Não poucas mulheres agiram de uma forma e outra em concomitância.
3
Há várias outras personagens femininas que tiveram atuações marcantes em cenários envolvendo guerras, mobilizações de exércitos, revoluções, revoltas. Cito
algumas: Maria Quitéria de Jesus Medeiros na Guerra da Independência do Brasil na Bahia; Jovita Alves Feitosa na Guerra do Paraguai; Maria Rosa e Francisca
Roberta, “Chica Pelega”, na Guerra do Contestado em Santa Catarina; Olmira
Leal de Oliveira, “Cabo Toco”, na Revolução de 1923 no Rio Grande do Sul.
Muitas outras mulheres poderiam integrar essa lista. Alguns casos podem ser
consultados em Wolff (2012).
167
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
Certas Anitas
O Império do Brasil mobilizou efetivos militares de todos os
recantos para lutar contra os farroupilhas. Eram tempos em
que um militar podia permanecer por anos destacado em serviço muito longe de onde viera. Algumas famílias ou mulheres
permaneciam onde residiam, contavam com o recebimento de
parte do soldo dos maridos4, com o apoio do restante da família ou com seus próprios ganhos. Entretanto, muitas mulheres
acompanhavam seus maridos nos deslocamentos durante o
tempo de serviço, especialmente as famílias que não contavam
com outra forma de subsistência além do soldo e das rações de
alimentos fornecidos pelo exército (RIBEIRO, 2013).
O documento abaixo relata uma dessas situações:
Tendo feito embarcar para a província do Maranhão [...] parte
do batalhão 6º de caçadores do exército [...] forçado me vi,
bem a meu pesar, a negar licença a muitos oficiais, soldados e
mais praças, que me pediram para poderem levar consigo suas
mulheres, em consequência de não haver autorização para as
despesas de transporte e comedorias de embarque, que com
elas se tinham de fazer, [...] sob pena de as deixarem aqui expostas, e entregues inteiramente a míngua [...]. (O presidente
da província) mandou embarcar no dito vapor as mulheres dos
três oficiais que eram casados [...]. É porque o governo de S.
M. O Imperador, interessado como é, na conservação das famílias, mormente dos oficiais, e soldados do exército brasileiro, não pode jamais consentir, que fiquem, como necessariamente hão de ficar, expostas à miséria e quiçá à prostituição,
as famílias dos militares, quando seus chefes por ordem superior tenham de partir de uns para outros pontos do Império em
defesa do serviço do Estado; por isso que estes, minimamente
pobres como se sabe, não é possível que deixem aquelas, os
meios, e pessoas, que como a devida ciência possam curar de
sua subsistência e bem estar, nos lugares onde de pronto tem
de partir5.
4
Um exemplo de pedido para o pagamento de abono de parte do soldo pode ser
consultado na solicitação de um alferes, que transferiu o recebimento do valor de
sua mãe, que vivia na Bahia, para a esposa que vivia na corte, enquanto ele
estava em Santa Catarina. Arquivo do Exército, Códice 74, Palácio do Rio de
Janeiro, 11/10/1841, José Clemente Pereira.
5
Arquivo Nacional (AN), Série Guerra, IG170, Quartel General de Pernambuco,
11/11/1847, tenente-coronel Manoel Ignácio de Carvalho Mendonça.
168
História das Mulheres no Brasil Meridional
O documento transcrito informa-nos sobre a situação de exposição à miséria a que podiam estar sujeitas as famílias de militares no século XIX. O conteúdo é dramático ao destacar a possibilidade das esposas dos oficiais terem que se prostituir, caso não pudessem acompanhar seus maridos e ficassem sem poder contar com
nenhuma fonte de sustento. Mesmo sendo esposas de oficiais, portanto, que recebiam soldos maiores que os soldados, a subsistência
dessas mulheres dependia em boa medida de poder contar com os
auxílios que o exército fornecia.
Entretanto, acompanhar os maridos nesses deslocamentos
não garantia, de fato, a manutenção daqueles auxílios, como se
pode ler abaixo:
Tendo ordenado ao comissário do exército [...], mandando suspender as meias rações às mulheres e filhos dos oficiais expedicionários, ou pertencentes a corpos expedicionários, [...] exigindo-lhe uma conta das meias rações que hão ser suspensas,
apresentou-me [...] que as cento e cinquenta e uma rações diárias às mulheres e filhos dos oficiais a 140 réis cada uma [...]
por dia, e as cento e três dos soldados, a 100 réis[...]. Os soldados dos corpos expedicionários, que deixaram suas mulheres,
quando marcharam para o campo, foram confiados neste único
recurso, e é preciso continuar-lhe ou mandá-las seguir para os
mesmos corpos, aonde seus maridos lhes proporcionem a subsistência, [...] não me parece conveniente que as mulheres dos
soldados expedicionários sejam abandonadas à mendicidade, não
é com 100 réis diários que elas se alimentaram, e vestem, as que
podem trabalhar em lavagem de roupa, costuras, e engomados
suprem com o seu trabalho que lhes falta, mas esta cidade não
pode sempre oferecer este recurso a todas6.
Ração, ou ração de etapa, era uma determinada quantidade
de alimentos – ou o valor correspondente em dinheiro – fornecidos
aos militares diariamente. Na situação transcrita, as famílias dos
militares foram supridas de acordo com o que recebiam conforme
o posto do militar, havendo diferença entre o pago aos familiares
de soldados e de oficiais.
6
AN, Série Guerra, IG1502, Porto Alegre, 23/4/1842, presidente da província do
Rio Grande do Sul, Saturnino de Sousa e Oliveira.
169
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
No caso, havia um número menor de famílias de soldados
que de oficiais, muito embora unidades militares tenham um número maior de soldados. Isso pode ser explicado porque os militares de postos inferiores precisavam ser autorizados a casar pelos
superiores.7 Além disso, os custos, os trâmites burocráticos, entre
outros condicionantes, não estimulavam que os mais pobres estabelecessem uniões legítimas (PERARO, 2001; NADALIN, 2003).
Afora isso, pais em melhores condições financeiras podiam não
consentir o casamento de filhas com pretendentes pobres ou que
“não tinha[m] suficientes meios para a[s] tratar[em]”8. Tais questões ajudam a compreender por que havia um número menor de
famílias de soldados em relação às famílias de oficiais.
Conforme se pode ler na transcrição acima, as mulheres dos
militares podiam ficar nas cidades enquanto seus maridos partiam
em alguma missão ou os acompanhavam nas movimentações de
guerra. No caso, permaneceram em Porto Alegre e estavam recebendo um auxílio para sua manutenção, que poderia deixar de ser
pago. Não obstante, era um valor pequeno, insuficiente para a comida e as vestimentas das famílias. Razão pela qual muitas eram
obrigadas a garantir o próprio sustento e de seus filhos realizando
trabalhos diversos para suprir todas as necessidades quando havia
possibilidade de trabalho.
É importante lembrar que muitas outras mulheres viviam
dos empregos de lavadeira, de costureira e outros serviços domésti7
Um exemplo dessas solicitações pode ser consultado no pedido realizado pelo
alferes Inocêncio José Cavalcante d’Albuquerque para casar-se com dona Leonidia Leopoldina da Silva. Os pretendentes são descritos assim: “uma jovem bem
educada, e de excelentes qualidades, de boa família honesta e decente, filha de
um empregado da Alfândega do Rio Grande, aparentado com as principais famílias deste lugar. Enquanto o suplicante já teve ocasiões de declarar seu mérito,
quer como militar, quer como cidadão; e, portanto, por esses motivos rogo a
V.Ex.ª haja por bem conceder o pedido de licença a este meu novo afilhado”.
Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS), Fundo Autoridades Militares,
Retiro, 25/7/1845, Vicente P. de O. Villas Boas.
8
Foi essa a resposta de um pai a um pretendente da filha. Não obstante, o casamento ocorreu depois que o noivo declarou ao padre que o desejo da pretendente
era no mesmo sentido e “que a sua honra lhe impunha o rigoroso dever de se
casar com aquela moça”. AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 145, Porto
Alegre, 10/10/1846, coronel Manoel Marques de Sousa.
170
História das Mulheres no Brasil Meridional
cos nas localidades (CASTRO, 1993). Conforme Sílvia Maria Favero Arend, a maioria das possibilidades de ocupação profissional
das mulheres no século XIX em Porto Alegre relacionava-se ao
serviço doméstico ou tarefas afins, como lavar roupas, engomar,
fazer doces ou cozinhar (AREND, 2001). Não foi por outra razão
que um soldado e sua mulher foram agredidos ao tentar lavar roupa numa cacimba por uma mulata, que “se opôs, dizendo que a
cacimba não era da Nação”, ao que se somou uma escrava que
“também ali estava lavando”. Situação que resultou em feridos e
num processo-crime.9
Como sugere a transcrição sobre o fornecimento das rações
de etapa para as famílias dos militares, esposas e filhos, estando
juntas aos maridos, poderiam contar com a alimentação fornecida
aos corpos. Mas acompanhar as movimentações expunha as famílias às canseiras das marchas, à inconstância dos deslocamentos,
além dos riscos dos combates, etc. Não obstante, famílias inteiras
viviam nos acampamentos militares. Em certa ocasião, um soldado corneteiro solicitou meia ração de etapa para uma sobrinha que
criava. Conforme o relato, “o suplicante é casado e marchou para
essa província [...] trazendo em sua companhia sua mulher e uma
filha de seu irmão, [...] homem desmoralizado que desertou deixando abandonada sua filha”; se não bastasse, na ocasião “veio
juntar-se ao suplicante sua cunhada com mais um filho”10.
Muitos filhos de militares criados acompanhando seus pais
nas missões do exército cresceram e viraram homens e soldados,
passaram a maior parte da vida vivendo em quartéis e acampamentos militares (RIBEIRO, 2012). Possivelmente, muitas meninas dessas famílias tornaram-se mulheres, estabeleceram uniões com
integrantes do exército e mantiveram-se vivendo da mesma forma
como seus pais viveram.
Pelos relatos pode-se dimensionar que viver como esposa de
um militar não era tarefa fácil, especialmente num contexto de guer9
Arquivo Público do Rio Grande do Sul (APRS), Fundo Processos Crime (Porto
Alegre), Pata 6, Maço 1, 1839.
10
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 123, acampamento nas trincheiras de
Rio Grande, 17/7/1836, tenente-coronel Henrique Marques de Oliveira Lisboa.
171
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
ra. Os oficiais podiam oferecer uma melhor condição às suas esposas, mas isso não impedia que também tivessem que procurar formas de subsistência onde estivessem acompanhando seus maridos.
Talvez por essas dificuldades, não é incomum encontrar
registros de maridos que não viam suas esposas há anos. Certo
cabo casado em Santa Catarina, apesar de afirmar estar “vivendo
em boa liga com sua mulher”, não a via há mais de quatro anos
“por não ter meios para conduzi-la” até onde estava.11 E, se havia
riscos em acompanhar as tropas, também havia consequências
nas famílias não o fazendo. Em certa ocasião, um comandante
mencionou que manter os militares tanto tempo em serviço, longe de suas famílias, estimulava a deserção na tropa. Argumentava
que dar licença aos homens permitiria “largarem esta imensa bagagem que trazem, mulheres, que devem ser proibidas”12. Considerando que o pedido era para a obtenção de uma licença para o
retorno ao convívio das famílias, as “mulheres” que deveriam ser
largadas muito provavelmente eram as chamadas “chinas”, que
serão tratadas logo adiante.
Outras Anitas
Em um de seus livros, num capítulo intitulado “O mito da
mulher submissa e do marido dominador”, Eni Mesquita de Samara afirmou:
As variações nos padrões de comportamento de mulheres provenientes dos diferentes níveis sociais indicam que muitas delas trouxeram situações de conflito para o casamento, provocadas por rebeldia e mesmo insatisfação. [...] Colocações que
sugerem novas imagens da mulher na família e na sociedade,
como uma participação mais ativa, embora seu papel ainda
fosse limitado, face à manutenção dos privilégios masculinos
(SAMARA, 1998, p. 57-58).
Pode-se compreender o entendimento da historiadora no
sentido de frustrar expectativas de que as mulheres não tivessem
11
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 135, Porto Alegre, 2/8/1840, comandante do 8º batalhão de artilharia a pé Henrique Marques de Oliveira Lisboa.
12
AN, Série Guerra, IG1297, Campo do Meio, 2/12/1840, coronel comandante
da brigada cruz-altense Antonio de Mello e Albuquerque.
172
História das Mulheres no Brasil Meridional
vontades ou iniciativas além dos papéis de esposa e de mãe que
lhes eram tradicionalmente atribuídos, ou esperados, pelo senso
comum. Como vimos anteriormente, mesmo aquelas mulheres que
podiam depender dos maridos para garantir a subsistência não se
submetiam simplesmente à condição de vítimas dependentes das
ações masculinas, mesmo das autoridades. Tal destaque é importante para que as situações que vamos tratar adiante não sejam
compreendidas como excepcionais, inéditas, raras, etc. A preocupação nesse sentido tem sido reiteradamente afirmada pelas diversas situações e personagens apresentadas pela historiografia que
pode ser chamada de história da mulher, da família, estudo de gênero, estudos femininos, etc.13
Como qualquer agente social, as mulheres tinham a possibilidade de circular e agir conforme o âmbito da condição de riqueza, da cor de pele, da origem ou vínculo familiar, etc. Por exemplo,
as mulheres da elite acessavam espaços mais influentes de mando,
dispunham de mais tempo livre, eram mais instruídas. Mulheres
pobres também podiam influir politicamente, mas seus círculos de
contato eram mais imediatos, precisavam ocupar-se com a subsistência, cuidar dos filhos, talvez tivessem mais liberdade de movimentação. Entre essas e aquelas, algumas envolviam-se sistematicamente na política, outras auxiliavam seus companheiros, havia
as que ocupavam espaços esperadamente masculinos e agiam de
forma mais ou menos semelhante aos homens, não poucas tensionavam a moralidade da época, muitas apenas buscavam sobreviver
em meio às violências da guerra.
Dona Maria do Carmo França, ou Maria França, foi uma
dessas mulheres. Há alguns registros a seu respeito. Era viúva e
vivia com pelo menos um filho numa casa de sua propriedade em
Porto Alegre. Em janeiro de 1837, Maria denunciou o roubo de
algumas joias e valores praticado por um pardo escravo.14 Portanto, era uma mulher chefe de família, com posses e bens, que vivia
13
Sínteses sobre a produção sobre a história das mulheres no Brasil podem ser
consultadas nas seguintes coletâneas organizadas por Del Priore (1997) e Pinsky
e Pedro (2012).
14
APERS, Processos-crime, Número 580, Maço 21, Porto Alegre, 18/1/1837.
173
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
na capital da província, conforme seu cunhado, dos jornais obtidos
com o trabalho de escravos.
Algum tempo depois, em maio de 1837, dessa vez por uma
acusação do juiz de direito da cidade, foi instaurado um processo-crime e foram colhidos depoimentos de vários homens presos à
noite por uma patrulha na casa de Maria: dois eram espanhóis, um
nascido em Buenos Aires. A maioria dos detidos negou envolvimento, um esperava favores íntimos de Maria, outros argumentaram participar das reuniões para obter dinheiro; e também houve
relatos de que Maria, contrária à legalidade imperial, havia convidado os mesmos para participar de uma reação armada contra as
autoridades do Império.
Entre os depoentes, um alferes guarda nacional informou
que, em abril, Maria França o havia convidado para uma “revolução contra o governo” e exigia dele a entrega do arsenal em troca
de oito contos de réis. Segundo o depoente, a ação ocorreria em
março de 1838, tendo participado de reuniões na casa de França
com mais sete ou oito homens para tratar do plano, que envolveria
um brigadeiro do exército e a compra de um navio patacho de guerra
e mobilizaria mais de vinte outros homens. Assim como na Europa revolucionária, mulheres preferiam usar suas casas – espaço entre o público e o privado – para realizar articulações (GODINEAU,
1994). Em outro depoimento, asseverou que uma viúva, de nome
Buena, o havia instruído a contatar Maria França. Dá a entender
que eram cúmplices no plano de mobilizar apoiadores.15
No final de 1837, o presidente da província foi informado de
que haviam sido presos cinco homens acusados de “aliciar ou seduzir soldados para desertar ou passarem-se para os rebeldes” e
avisar “aos rebeldes de quanto aqui se passa, mantendo com eles
correspondências”. Entre esses estava Vicente José da Silva França, “filho da Maria França”, e um cidadão americano chamado
Fernando.16 Provavelmente, Maria França estava presa ou havia
sido expulsa da cidade nesses dias. O comandante da guarnição de
15
16
APERS, Processos-crime, Número 573, Maço 2, Porto Alegre, 12/5/1837.
AHRS, Fundo Autoridades Militares, M 129, Porto Alegre, 25/12/1837, Sebastião Barreto Pereira Pinto.
174
História das Mulheres no Brasil Meridional
Porto Alegre determinou que três mulheres, dona Rita Joaquina de
Jesus Pereira, dona Luisa Soares e dona Maria Joaquim da Conceição, fossem proibidas de falar com aqueles prisioneiros por medida de segurança.17
Conforme outra autoridade, mulheres deveriam ser proibidas de ingressar nas prisões porque se aproveitavam de não poder
ser revistadas para levar correspondências e armas para os aprisionados.18 Dias depois, todos os suspeitos de sublevação ainda estavam detidos, mas foram transferidos da cadeia para um navio devido ao receio das autoridades que seduzissem “os soldados que para
ali [a cadeia] vão de guarda”19.
Ainda em dezembro de 1837, tendo sido aprisionado em
outra situação, Domingos Joaquim de Azevedo, interrogado sobre
informações do acampamento republicano onde estivera, contou
que “Maria França e outra mulher foram dizer ao acampamento
que tudo estava aqui [Porto Alegre] dentro a morrer de fome, e que
esta ia com uma banda de oficial a cinta, asseverando [...] que a
referida banda era de um oficial daqui que estava para passar-se
com a gente”, exército republicano.20 Parece que, para a polícia e
os chefes militares, as ações de Maria França e das várias outras
mulheres representavam um grande perigo para a manutenção do
controle de Porto Alegre pelo Império.
A capital da província sofreu alguns sítios por tropas republicanas. Desde maio de 1837 até fevereiro de 1838 ocorreu o segundo sítio. A maior parte de sua população apoiava o Império,
mas havia simpatizantes dos farrapos na cidade. Algumas de suas
mulheres burlavam as trincheiras para encontrá-los nos acampamentos dos sítios, e as autoridades policiais e judiciárias desvendaram alguns planos de espionagem e denúncias de possíveis revoltas
17
AHRS, Fundo Autoridades Militares, M 127, Porto Alegre, Porto Alegre, 17/8/
1837, brigadeiro Francisco Xavier da Cunha.
18
AHRS, Fundo Autoridades Militares, M 130, Porto Alegre, 24/1/1838, capitão
encarregado das prisões do 8º batalhão João de Santa Ana Leitão.
19
APERS, Polícia, Pasta 62, Porto Alegre, 9/1/1838, juiz municipal Domingos
José de Azevedo Brito.
20
AHRS, Fundo Autoridades Militares, M 130, Porto Alegre, 29/12/1837, capitão Sousa.
175
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
dentro da cidade (FRANCO, 2000). Assim como o contrário, os
defensores do Império também utilizavam essa mobilidade. Francisca Inácia de Carvalho saiu de Porto Alegre “mandada observar
o movimento dos rebeldes” além das defesas da cidade.21
Um chefe de polícia argumentou que certa Carlota Joaquina
de Vasconcelos e outras mulheres recebiam licença para sair, mas
voltavam trazendo “correspondências e mais alguma cousa que podem trazer e levar”. Logo depois foi determinado que “essas mulheres que se retiram da cidade, que lhes fica proibido a entrada [...]
enquanto estiver sitiada, e que se apesar disso regressarem serão
recolhidas à prisão e aí conservadas até se levantar o sítio”22. Havia
denúncias de que dona Maria Joaquina da Conceição, esposa de
um major preso, levava escondido no seio um exemplar do jornal
“revolucionário intitulado ‘A Estrela do Sul’”23. As autoridades
policiais reconheciam e temiam a capacidade de atuação política
dessas mulheres. Não deixemos de perceber a recorrência das denúncias de que essas mulheres não agiam sozinhas, mas na companhia de outras mulheres, mais do que com outros homens.
Ainda no contexto dos sítios, um homem de sobrenome
Menezes – reconhecido “anarquista”, tendo sido preso várias vezes por denúncias de apoiar os rebeldes e descrito como “um dos
maiores criminosos da província” – contou com apoio de seu cunhado, negociante abastado, para sair da prisão e tratar de uma
enfermidade em sua casa.24 No final do último cerco republicano,
ocorrido entre junho de 1838 e dezembro de 1840, Maria Francisca de Menezes e suas filhas Leontina Maria de Menezes, Joaquina
Maria de Menezes, Manoela Maria de Menezes e Ana Maria de
21
Anais do AHRS. Porto Alegre: AHRS, 1989, volume 6, Quartel do comando da
guarnição de Porto Alegre, 3/5/1839, Visconde de Castro.
22
AHRS, Fundo Polícia, Maço 62, Porto Alegre, respectivamente, 10 e 13/9/1838,
chefe de polícia Manoel José de Freitas Santos Travassos.
23
Anais do AHRS. Porto Alegre: AHRS, 1989, volume 10, Quartel do 8º batalhão
em Porto Alegre, 16/8/1837, capitão encarregado do prisioneiro João de Santana Leitão.
24
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maços 130 e 131, Porto Alegre, respectivamente, 15/2/1838, João Batista da Silva Pereira, e, Cachoeira, 18/2/1838,
Sebastião Barreto Pereira Pinto.
176
História das Mulheres no Brasil Meridional
Menezes receberam ordens do presidente da província para se “despejar” de Porto Alegre em no máximo oito dias.25 Talvez não houvesse provas de crimes contra essas mulheres, senão seriam presas,
mas sua permanência na cidade representava algum risco.
Não há evidência de que o homem de sobrenome Menezes
fosse parente de Maria Francisca e suas filhas. Na ordem, o motivo
para as mulheres serem despejadas não é mencionado. Tampouco
há outras referências sobre elas. Entretanto, a ordem de expulsão,
somada ao fato de terem o mesmo sobrenome de um dos mais reconhecidos “anarquistas” da província, num contexto próximo na
mesma cidade, e o fato de, apesar de ser reconhecido como agente
político, contar com apoio familiar, permitem inferir que todas essas
pessoas faziam parte de uma família. Mais do que isso, que a família Menezes estava envolvida em conspirações contra as autoridades legalistas, e as mulheres expulsas podem ter sido reconhecidas
pelas autoridades como agentes importantes nessas articulações.
Se assim for, sabendo o acontecido com Maria França e as
mulheres da família Menezes, temos ao menos duas situações em
que mulheres tiveram importante atuação organizando conspirações políticas e mobilizando homens para reações armadas em favor dos rebeldes republicanos durante os sítios que realizaram em
Porto Alegre. Mas também citamos casos de mulheres agindo sem
necessariamente estar articuladas a grupos conspirados. Assim
outras mulheres procederam, como dona Alexandrina Botihá em
Laguna, cujo marido perfilou-se aos rebeldes26; dona Felisberta, comerciante em Rio Pardo, favorável aos imperiais27; dona Antonia,
moradora em Piratini, que se comprometeu a mandar notícias “que
fosse d’interesse à causa da legalidade pelo seu capataz”28; ou Rosa,
25
AHRS, Fundo Polícia, Maço 63, Porto Alegre, 30/1/1940, chefe de polícia
Manoel Paranhos da Silva Velozo.
26
Anais do AHRS. Porto Alegre: EST, 2005, volume 14, Coleção Varela-6469,
campo do Embaú, 13/9/1939, Joaquim Teixeira Nunes.
27
Anais do AHRS. Porto Alegre: EST, 2005, volume 20, Coleção Varela-8165,
Rio Pardo, 5/12/1839.
28
Anais do AHRS. Porto Alegre: EST, 2005, volume 20, Coleção Varela-8181,
Canudos, 4/2/1839, Antonio Corrêa Seára.
177
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
que era responsabilizada por comissões e correspondências entre
os comandantes republicanos.29
Essas mulheres participaram da disputa entre os lados em
guerra e, ainda que não tenham empunhado espadas ou pistolas
nos enfrentamentos dos exércitos, agiram decisivamente para a
vitória de um dos lados em disputa, utilizando as armas de que
dispunham e que poderiam ser mais exitosas – a conspiração, o
aliciamento de homens mais ou menos comprometidos com os
ideais que aquelas defendiam, animando-os com notícias verdadeiras ou nem tanto, oferecendo-lhes retornos financeiros ou mesmo sugerindo intimidades possíveis.
Parece que essas mulheres agiam assim por apoiar as causas, defender os diferentes ideais, ter preferências, enfim. Clara
Maria da Silva Cunha foi uma das três pessoas que assinou a
proclamação à Assembleia Geral constituinte republicana em
1843.30 Entretanto, havia as que eram obrigadas a agir politicamente de alguma forma, aparentemente sem motivações políticas ou escolhas ideológicas. A esposa de um guarda nacional foi
obrigada a levar um comunicado do presidente da república riograndense em troca da possibilidade de seu marido aprisionado
pelos farrapos ser trocado por prisioneiros rebeldes. Como dizia
o documento, “só lhe dará a liberdade para troca de outros tantos [...] das prisões do Império”31. A esposa não é nomeada, mas
deve ter ficado feliz com a troca realizada. Tempos depois, seu
marido solicitou licença para levar a família de Rio Grande a
Porto Alegre.32
29
Anais do AHRS. Porto Alegre: AHRS, 1989, volume 10, Pontas de Inhanduí,
21/9/1837, Jacinto Guedes.
30
Anais do AHRS. Porto Alegre: AHRS, 1980, volume 4, Alegrete, 1843, capitão
Antônio Gracez de Morais, Manuel Vieira da Cunha, Clara Maria da Silva Cunha.
31
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 134, São José do Norte, 21/7/1840,
coronel comandante das armas, Antonio Soares de Sousa; e, Estreito, 19/7/
1840, Bento Gonçalves da Silva.
32
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 137, Porto Alegre, 8/3/1841, Coronel comandante Thomás José da Silva.
178
História das Mulheres no Brasil Meridional
Além de coagidas, as mulheres também eram raptadas ou
violentadas por militares.33 Mas também podiam cometer desordens ou crimes, inclusive ser violentas. Em 1838, o comandante
militar da cidade de Rio Grande escreveu que o brigadeiro de uma
divisão do exército imperial “remete para esta cidade [Porto Alegre] uma mulher chamada Theresa, a mesma que já em outro tempo para aqui remeteu por ser origem de desordens no acampamento, agora pelo mesmo motivo a torna a enviar”34. Infelizmente, o
documento não informa quais desordens foram cometidas pela
mulher. Em 1838, foi denunciado que bandos de mulheres cometiam roubos e estragos fora das trincheiras de Porto Alegre. No processo-crime foi interrogado um indivíduo que participava das ações,
mas os nomes das mulheres não foram registrados.35
Presenças femininas em lugares como acampamentos, quartéis ou prisões podiam ser toleradas, desde que não representassem
problemas para a rotina dos serviços ou certa preservação da moralidade. Veja-se o caso do amigo do comandante da prisão, um certo
capitão republicano que tinha regalias enquanto cumpria sentença
na Presiganga, sendo “chamado para jogar com o comandante e
para gozar ali prazeres libidinosos com mulheres que ali foram”,
até que se desentenderam.36
Era para essas e todas aquelas mulheres que se direcionava o
esforço da elite em difundir determinados valores da burguesia europeia sobre modelos esperados de conduta no século XIX. Atra33
Consultar alguns exemplos de relatos de raptos e violações de mulheres por homens envolvidos na guerra em AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 130,
Viamão, 23/3/1838, Antonio Patam de Sá; Maço 134, Caçapava 6/2/1845,
Coronel José dos Santos Pereira; Arquivo Histórico do Exército, Códice 74, Rio
de Janeiro, 29/10/1844, Jeronimo Francisco Coelho. Sobre violências entre casais consultar BARBOSA (2015).
34
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 130, Rio Grande 4/10/1838, coronel Francisco de Castro Matutino Tota.
35
APERS, Processos-crime, Maço 64, Porto Alegre, 4/7/1838, chefe de polícia
interino Manuel José de Freitas Travassos.
36
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 125, Rio Pardo, 31/1/1837, capitão comandante da polícia Alexandre Bueno de Camargo e Borba; Fundo Polícia, Maço 62, Porto Alegre, 21/4/1838, denunciante Alexandre Bueno de Camargo e Borba.
179
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
vés do discurso e da prática médica, da atuação do judiciário, do
discurso higienista veiculado pela imprensa, pretendia-se consolidar o valor e a importância do sexo apenas no casamento, a monogamia e a heterossexualidade (AREND, 2001). As ações nesse sentido eram direcionadas aos pobres, especialmente às mulheres pobres, mas de forma ainda mais objetiva às mulheres não brancas. A
cor da pele dessas mulheres servia como instrumento para definição a priori do caráter e de comportamento.
No Rio Grande do Sul, as mulheres pobres que não eram
brancas ou negras eram comumente chamadas de “chinas”. Nas
primeiras versões historiográficas rio-grandenses, essas mulheres
eram descritas como “acompanhantes de soldados em suas incursões itinerantes pelas fronteiras, [habituadas] a andar na garupa de
cavalo do peão, vivendo de forma itinerante e, principalmente, de
aceitar vários parceiros sexuais”37 (GUTFREIND, 2006, p. 252),
reproduzindo preconceitos vigentes na sociedade. Geralmente essas mulheres eram descendentes dos povos originais do continente: os indígenas38.
Contra uma das mulheres descritas dessa forma, a “china
Maria Izabel”, foi instaurado um júri pela acusação de roubos, dos
quais também eram acusados cinco homens. Assim como também
se procedeu contra a “china Ana Maria do Espírito Santo” por
crimes não informados. Na casa onde vivia a “china Venância Maria
da Conceição” foram procurados e não encontrados objetos de um
37
A partir de sua perspectiva europeia, na década de 1820, o francês August de
Saint-Hilaire registrou: “Quase todos os milicianos acantonados nesta parte da
fronteira do sul estão assim amasiados a índias. A facilidade com que estas mulheres se prostituem, sua docilidade, sua ignorância mesmo são outros tantos
atrativos para esses homens rudes que não visam a outra coisa além do instrumento de prazer” (SAINT-HILAIRE, 1997, p. 248).
38
Para o antropólogo Rubem George Oliven, “a historiografia tradicional do estado subestima a importância do índio na formação da identidade gaúcha. Assim,
Moysés Velhinho, um consagrado historiador na sua época, escrevendo na década de cinquenta sobre a formação do Rio Grande do Sul, faz uma distinção
entre o gaúcho platino e o rio-grandense. Ao passo que aquele teria sido marcado pela miscigenação dos espanhóis com as índias, que gerou o mestiço, um tipo
revoltado que teria dado origem ao caudilho; no Brasil, nada disso teria ocorrido” (OLIVEN, 2010, p. 21).
180
História das Mulheres no Brasil Meridional
homem assassinado.39 Enfim, apenas nos processos policiais “as
chinas” eram identificadas, nomeadas, descritas dessa forma.
Quando são referidas no restante da documentação, a alusão é sempre no plural, “chinas”, como quando se refere a algumas
dezenas de emigrados que cruzou a fronteira fugindo da Guerra
Grande no Uruguai (1839-1851), além de militares, “este comboio
é composto de chinas”. Em outro documento, o mesmo remetente
informa que o grupo era formado por mais de seiscentas pessoas,
incluindo “cento e tantos homens de armas”, e ainda que “este
comboio é de chinas sem carretas”40. Pesquisas genéticas têm evidenciado a forte presença dos descendentes dessas mulheres de origem indígena na população atual do Rio Grande do Sul, especialmente nas regiões fronteiriças do estado (OLIVEN, 2010).
Não é incomum encontrar referências à presença das chinas
acompanhando exércitos em ação. Um oficial imperial, descrevendo uma vitória sobre forças farroupilhas, menciona que aprisionara “mais de sessenta cavalos, sendo destes dezesseis encilhados,
três carretas carregadas, uma de erva-mate, e duas de fazendas furtadas em Taquari e Triunfo, tendo repartido a maior parte entre si e
as chinas que traziam em sua companhia” (ABREU, 1921, p. 174).
Essa transcrição dá a entender que as chinas viviam dos butins ou
das conquistas resultantes dos enfrentamentos entre os grupos militares.
Ainda que não chamadas de chinas, a presença de mulheres
sempre foi constante junto aos exércitos. Analisando a batalha de
“O domingo de Bouvines”, em 1214, entre o rei o francês e a coalizão germânica, o autor descreve como “aqueles bandos de mulheres de condições diversas que, como se sabe, seguiam nessa época
todos os exércitos” (DUBY, 1993, p. 29). Maria Teresa Garitano
39
APERS, Polícia, Pasta 63, Porto Alegre, 30/6/1841, juiz de direito interino e
chefe de polícia desta cidade, João de Azevedo Barboza; Pasta 163, Porto Alegre, 15/3/1848, chefe de polícia interino Manoel José de Freitas Travassos Filho; Pasta 64, Porto Alegre, 1/4/1843, chefe de polícia Manoel Paranhos dos
Santos Vellozo.
40
AHRS, Fundo Autoridades Militares, Maço 144, respectivamente, campo na
estância do tenente José Rodrigues, 4/4/1845, acampamento no Corral de Arroios, 22/3/1845, tenente-coronel Manoel Pereira Vargas.
181
RIBEIRO, J. I. • Muitas e diversas Anitas: mulheres nas campanhas militares
no extremo sul no século XIX
Dourado, ressaltando a usual falsa miragem do que seriam as guerras, os exércitos, descreve tais mulheres mais detalhadamente:
Quando se fala em guerras dos séculos passados, imaginam-se
sempre homens marchando a pé ou a cavalo, em situação de
combate. Esquecendo que as mulheres, muitas vezes com filhos, acompanhavam seus maridos soldados, e, como não havia abastecimento regular das tropas, muitas trabalhavam, alimentando, socorrendo, plantando, lutando ou mesmo comercializando gêneros de primeira necessidade. Viviam ocupadas
demais em manter todo aquele aparato de guerra. De fato, a
atuação feminina, sempre na retaguarda, não aparece como
elemento que teve sua importância nas batalhas. Mas as mulheres lá estavam, e pouco se sabe sobre elas (2005, p. 23).
Além dos trabalhos tradicionalmente atribuídos ao feminino,
há alguns poucos relatos de que mulheres, ou chinas, pegavam em
armas ao lado dos combatentes homens. Num informe ao Secretário dos Negócios da Guerra do Império, o comandante-geral do Exército descreve uma força republicana da seguinte forma: “compõe a
referida coluna que os supraditos rebeldes em número de trezentos e
cinquenta homens e quarenta chinas vestidas de homens” (MINISTÉRIO DA GUERRA, 1950, p. 79). Portanto, as chinas podiam
não apenas acompanhar os militares esperando os resultados dos
restos dos enfrentamentos. Também eram capazes de combater, inclusive travestindo-se de homens à semelhança dos soldados, talvez
para não ser percebidas como mulheres e, assim, desvalorizadas como
combatentes. Um raro registro da valentia destas mulheres.
Enfim, as formas de participação das mulheres num contexto de guerra podiam ser diversas, tão distintas quanto podiam ser
as mulheres, suas condições, suas formas de envolvimento ao contexto. Algumas agiam como mulheres, usando a condição feminina, valendo-se dela para burlar a vigilância masculina, usando o
descrédito a seus interesses, às suas capacidades. Assim como havia aquelas que assumiam todo o ônus de cuidar dos filhos e de si
mesmas, inclusive acompanhando os maridos, os amantes para
suprir a eles o que não recebiam dos gestores das máquinas de guerra. Muitas buscavam apenas sobreviver da maneira possível, estabeleciam uniões mais ou menos transitórias, efêmeras, duradoras
ou cometiam crimes. Ainda que a condição das mulheres tenha
182
História das Mulheres no Brasil Meridional
sido, assim como, infelizmente, continua sendo, a mais sujeita a
abusos e violências simplesmente por ser mulheres.
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184
História das Mulheres no Brasil Meridional
As prisioneiras de Clio
Tiago da Silva Cesar
Introdução
Certamente cansados das arbitrariedades do carcereiro Manoel Joaquim de Freitas e de seu filho, o sota-carcereiro Aníbal,
alguns presos da Cadeia Civil de Porto Alegre1 organizaram-se, em
agosto de 1861, para documentar várias ações ilegais cometidas
pelos mencionados funcionários. O plano consistiu em juntar cartas de teor denunciatório, incluindo requerimentos e declarações
de empréstimos de dinheiro realizados por alguns reclusos ao citado Aníbal, ainda não saldados, com o intuito de fazer chegar às
mãos do Chefe de Polícia. Não obstante, temendo possíveis revistas surpresas, delações ou a própria interceptação desses documentos que comprovariam as “bandalheiras” cometidas, houve o cuidado de enviá-los pouco a pouco ao dono de uma casa de pasto
vizinha, chamado Francisco Antonio, que, por sua vez, se encarregaria de reuni-los e despachá-los à autoridade competente.2
Entre os nomes arrolados nesses papéis não consta nenhuma menção a mulheres presas, mas, tal como em inúmeras outras
fontes que servem aos historiadores das instituições punitivas, o fato
delas não aparecerem nominalmente, espremidas entre um contingente essencialmente masculino, não significa que elas não tenham
estado lá, participando de alguma maneira, nem que fosse torcendo
para que a estratégia articulada e executada por aqueles encarcerados em pleno inverno de 1861 alcançasse os fins esperados.
De fato, passando quase despercebido entre as cartas, requerimentos e declarações, um simples bilhete adjuntado à referida
1
Sobre a instituição, durante o século XIX, veja-se especialmente Moreira (2009;
2008, p. 57-88), Silva (1997), Szczepaniak (2004), e Cesar (2015a).
2
Para a análise do caso na íntegra, veja-se Cesar (2016, p. 189-198).
185
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
documentação dá fé ao que acabamos de afirmar. Dirigido ao Sr.
Francisco Antonio, o mencionado dono da casa de pasto situada
em frente ao estabelecimento, uma presa de nome Luciana Pinto
da Fontoura aproveitava o canal de comunicação para pedir-lhe o
que segue:
Snr. Francisco Anto. Se tiver algua comida pronta faça favor
mandar-me um prato de dois, pois estava esperançada em receber dinheiro em meados deste mez e como não recebi athé
hoje parece-me q. não recebo se não para o fim do mez, e faça
o favor de mandar ver se aranja um prato simples q. he para a
chiquinha q. está duente e pesso-lhe q. me desculpe o encomodo, e logo talvez va la. Sou sua obriga.3
Pela forma e lugar onde encontramos o bilhete de Luciana,
não restam dúvidas de que ela e talvez outras presas também estivessem ao tanto das articulações que tinham como objetivo colocar os principais responsáveis pela ordem e vigilância interna da prisão em maus lençóis. Mas, além disso, o bilhete também revela estratégias próprias de (sobre)vivência construídas pelas encarceradas.
Insistimos, portanto, em dizer que, embora tivessem constituído ao longo do tempo um coletivo incomparavelmente menor
em relação à população carcerária masculina, muitas mulheres conheceram não somente a Cadeia Civil e futura Casa de Correção
de Porto Alegre, mas outros muitos cárceres do Rio Grande do
Sul4, travando contato e experimentando toda classe de ambientes
3
4
AHRS, Fundo Requerimento, Polícia, Maço 98.
É importante esclarecer que, se bem que não existiram prisões próprias para
mulheres no Rio Grande do Sul, nem no restante do país, ao menos até o final da
República Velha, isso não significa dizer que convivessem em celas conjuntas
com o coletivo masculino. Às presas, independentemente da condição jurídica,
se destinavam celas/xadrezes ou alas separadas na imensa maioria dos estabelecimentos prisionais existentes. O Código Criminal do Império de 1830, em seu
art. 45, rezava que, não podendo ser condenadas à pena de galés, mas que assim
merecessem pelo crime cometido, as mulheres deveriam cumprir em troca o
mesmo tempo de privação de liberdade “em lugar, e com serviço análogo ao seu
sexo”. Assim, embora não tenham sido levantados prédios exclusivos para as
encarceradas, desde o início do processo de implementação do sistema prisional
brasileiro se teve o reparo legal de respeitar a separaçãos dos sexos. Por certo, na
imensa maioria dos projetos de cárceres de nova planta ou mesmo em construções adaptadas para essa função, percebe-se o cuidado de reservar celas específi-
186
História das Mulheres no Brasil Meridional
sórdidos e viciados com as mazelas e rotinas próprias desses tipos
de instituições. Nesse sentido, recorrer a comida vinda de fora em
troca de dinheiro ou outros favores, além de evidenciar os esforços
empreendidos cotidianamente pela vida, revela uma pequena fagulha da constituição de microrredes de solidariedade que costumavam ultrapassar os muros da prisão.
A partir da ideia de que uma venda fiada depende em boa
medida do grau de confiança na pessoa depositária do crédito, já
que, logicamente, espera-se o pagamento ou a compensação futura, podemos supor que Luciana e Francisco já haviam estabelecido, há algum tempo, vínculos ou tratos que avalizavam o pedido.
De igual forma, compreendemos o gesto dos presos, encarregando-lhe uma importante missão, a prova de que as grades e as ruas
comunicavam-se muito mais do que pode parecer.
A Cadeia Civil de Porto Alegre, embora tivesse nascido enquanto fruto da reforma penitenciária do século XIX, na prática pouco
ou nada se diferenciou em termos “correcionais” das demais congêneres da província e da maior parte do Império. Inaugurada em 1855,
ensaiou apenas durante alguns meses o cumprimento da pena de
prisão com trabalho em oficinas implementadas no recinto.5
cas para homens e mulheres. Como já demonstramos em outro lugar, a reforma
penitenciária oitocentista, ao menos no Rio Grande do Sul, não ficou restrita à
capital e à sua prisão. Ao contrário do que se possa pensar, muitos dos pequenos
cárceres construídos ao longo da segunda metade do século XIX foram fruto do
mesmo reformismo penal em voga. Embora apresentassem uma arquitetura e
dimensões incomparáveis ao do estabelecimento porto-alegrense, isso não deve
ser entendido como expressão de uma política refratária, pois, conforme se observa nos detalhes de suas concepções, ambos os modelos foram resultado da
mesma matriz correcional que caracterizou a referida reforma penitenciária oitocentista (CESAR, 2015a, p. 78-86). E se ainda restassem dúvidas, bastaria observar as suas plantas baixas e quem as idealizou ou, como no caso da futura Casa
de Correção, as disposições do seu primeiro regulamento (27-02-1857), instrumento de normatização da vida e regime penal, promulgado pelo governo provincial, para se certificar das disposições acerca do estabelecimento de celas separadas
para as mulheres. O que, logicamente, não quer dizer que fosse o suficiente para
evitar contatos físicos entre ambos os sexos, sobretudo quando encarcerados e carcereiros selavam tratos ou fechavam os olhos em detrimento da lei.
5
Conforme a ideologia correcional então vigente, o trabalho era um dos principais
ingredientes do coquetel disciplinar, que, supostamente, transformaria delinquentes em indivíduos morigerados. A partir de pesquisas anteriores, entendemos o
187
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Apesar de uma experiência falida, vale lembrar que o regulamento provisório que regia o funcionamento e regime das oficinas
(1855) estabelecia ofícios para ambos os sexos.6 Só que o “serviço
análogo a seu sexo”7 traduziu-se em implementar, ao lado das oficinas de alfaiates, sapateiros, correeiros, carpinteiros, tamanqueiros, trançadores, tanoeiros e marceneiros, a de costureiras, onde
todavia chegaram a ser empregadas cinco reclusas (BELLO, 1855,
p. 38). Mas como se disse, tudo continuaria sendo como antes com
o fechamento das referidas oficinas pelo barão de Muritiba, o qual
alegou não existir então um contingente expressivo de presos condenados “a trabalhos” que, em vez de custos, dessem lucros à instituição inacabada (CESAR, 2015a, p. 130).8
No final do século, a reestruturação do sistema prisional pelo
Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) com a montagem das
oficinas de trabalho no recinto penal da Casa de Correção entre
fracasso da introdução do trabalho penal no recinto penitenciário porto-alegrense, em 1855, devido a três fatores ou causas, as quais devem ser pensadas concomitantemente e não em ordem de importância, a saber: a) a existência de uma
tradição penal utilitarista; b) a inexistência de um processo de efetiva industrialização e muito menos no Rio Grande do Sul; e c) a opinião e defesa compartilhada por boa parte das autoridades imperiais de que as oficinas deviam ser lucrativas. Esse último ponto, em concreto, explicaria o desinteresse de políticos e governantes para o que Foucault chamou de “forma econômica vazia” (2012, p.
230). Outro exemplo, para o extremo norte do país, em Monteiro (2021, p. 320).
6
O artigo 45 do Código Criminal do Império estipulava em seu § 1º que a pena de
galés nunca seria imposta “às mulheres, as quaes, quando tiverem commettido
crimes para que esteja estabelecida esta pena, serão condemnadas pelo mesmo
tempo a prisão em lugar e com serviço analogo ao seu sexo” (CODIGO CRIMINAL DO IMPERIO DO BRASIL, 1857, p. 23).
7
Para um estudo comparado sobre as prisões femininas da Inglaterra, França e
Estados Unidos no século XIX e que aborda essa e outras questões acerca do
encarceramento de mulheres, veja-se Zedner (1998, p. 295-324).
8
Enquanto no estabelecimento porto-alegrense ambos os sexos se viram privados
do trabalho por uma canetada do presidente da província, na Casa de Prisão com
Trabalho, estudada por Trindade, isso ocorreu apenas para as mulheres: “No
século XIX, as sentenciadas da Bahia viveram uma situação ainda pior [...]. As
presas baianas foram excluídas do projeto de reabilitação prometido pela CPCT.
Elas foram obrigadas a cumprir suas penas na Cadeia da Correção, que não tinha
estrutura para interná-las dentro dos padrões modernos de prisão. Ali dividiam
as celas com outras mulheres, contrariando princípios básicos estipulados desde
a Constituição de 1824” (2018, p. 26).
188
História das Mulheres no Brasil Meridional
1896 e 1897, além de se retomar a velha ideia de “serviço análogo a
seu sexo”, as exigências do modelo de regime penitenciário estabelecido pelos castilhistas implicou uma brutal reconfiguração do espaço e uma limitação de movimentos do elemento feminino no
estabelecimento sem precedentes.
Iniciemos pelo primeiro ponto. Ao assumir a administração
do correcional porto-alegrense em 1913, o Tenente-Coronel Frederico Ortiz9 resolveu aproveitar melhor a força de trabalho das presidiárias, transformando-as em “operárias” na oficina de alfaiataria.
Explicou que, sendo “o número de alfaiates [...] insignificante” e
desejando “remediar semelhante mal”, após receber autorização, contratou Josepha Martins, “hábil costureira, para mestra das mulheres”. Essa transformação, não obstante, supôs o abandono do serviço de “empalhação de cadeiras”, até então desempenhado pelas reclusas. Lograva-se, assim, conforme o referido funcionário, a aplicação daquelas “infelizes” em “trabalhos apropriados a seu sexo”.
Mas, ao contrário do que possa parecer, essa não foi efetivamente a razão principal.10 Pelo visto, o que realmente interessava a
9
O Tenente-Coronel Frederico Ortiz foi o sexto Administrador da Casa de Correção de Porto Alegre após a implementação das oficinas. Sua nomeação saiu em
4 de fevereiro de 1913, mas ele só assumiu o cargo no dia 7 do mesmo mês,
sucedendo o também Tenente-Coronel Francisco Antonio de Oliveira Moraes,
“que pedira exoneração”. Antes de assumir o penal e permanecer à sua frente
até julho de 1920, Ortiz ocupou a cadeira de Sub-Chefe de Polícia da 6ª região
policial e era um reconhecido correligionário do Partido Republicano Rio-Grandense (ALVES, 1913, p. 508; 1915, p. 67; A FEDERAÇÃO, 07/02/1913, p. 3).
10
Por outra parte, convém esclarecer que a associação de determinadas labores ao
sexo feminino não ficou restrita aos modelos penais da belle époque brasileira.
Conforme observou Artur (2016, p. 117), na proposta do primeiro Presídio de
Mulheres de São Paulo, manteve-se a preferência pelo estabelecimento de oficinas de costura, lavanderia e engomagem de roupas, podendo-se estender os serviços além do penal a particulares e repartições estaduais. Entendia-se que tais
atividades estavam essencialmente ligadas ao âmbito doméstico, espaço para
onde as mulheres deveriam regressar, uma vez cumpridas suas condenas, empregando-se dignamente. “A mulher fora do lar e das atividades domésticas seria
uma ameaça ao próprio projeto de Estado moderno. Assim, pois, sua regeneração está [...] vinculada ao espaço de onde nunca deveria ter saído. [...] a punição
adequada por seu abandono do espaço doméstico é justamente seu retorno a
ele”. Da mesma autora, veja-se também Artur (2017). Sobre o surgimento dos
presídios femininos no Brasil, veja-se Angotti (2018).
189
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Ortiz era poder dispor de um maior contingente de braços para
atender as demandas de trabalho que pudessem surgir de suas cartas enviadas às intendências do Estado, às quais oferecia o fornecimento de fardamento para as guardas municipais (ALVES, 1913,
p. 523-524). Antes disso, outra informação ajudará a entender melhor a lógica do administrador. Conforme a própria imprensa castilhista, as 15 presas que havia em 31 de maio de 1910 dedicavamse à “confecção de costuras e empalhamento de cadeiras” (A FEDERAÇÃO, 01/11/1910, p. 1), ou seja, mais do que ocupar as
mulheres em trabalhos específicos, desejava-se canalizar sua mão
de obra de dois para um único ofício, de longe o mais lucrativo
para o Estado.
Ao longo do período em tela (1855-1930), o número de presidiárias foi sempre baixo em comparação com o movimento carcerário masculino, o que certamente devia constituir um motivo a
mais e, a nosso ver, determinante para que se procurasse potencializar o suor das poucas reclusas. A partir dos dados compilados
por Silva (1997, p. 220), observa-se um percentual de presas que
oscilou entre 3 e 8% da população penal até o início da década de
1860. Em números concretos, de 5 a 9 mulheres por ano. Na falta de
maiores informações estatísticas, fica difícil afirmar com segurança,
mas tudo indica que esses percentuais continuaram estáveis até o
final do XIX. Em 1888, por exemplo, apesar de se ter contabilizado
30 mulheres de 392 presos, o montante correspondia a 8% do total.
E no relatório do médico-legista Sebastião Leão, de 1897, registrou-se 6 de 220, portanto 3%: 1 dona de botequim, 1 ex-escrava, 1
proprietária e 3 “prostitutas de soldado” (MOREIRA, 2009, p. 176).
E se avançarmos no tempo, repararemos que o percentual
tampouco atingiu cifras elevadas até o final da República Velha,
nunca ultrapassando os 3% do fluxo penitenciário anual.11 Em 1918
11
Os dados analisados por Pedroso (2002, p. 105) relativos ao fluxo penitenciário
feminino brasileiro no início dos anos 1920 também revela um percentual não
superior a 3%, o que significa que o movimento de presidiárias da Casa de Correção de Porto Alegre estava dentro da média nacional. Tudo indica que esse
quadro tenha se estendido até a década de 1940. Angela Artur, por exemplo,
demonstra não ter sido precisamente a demanda de encarceradas condenadas o
motivo decisivo para que as autoridades estaduais concordassem em criar o Pre-
190
História das Mulheres no Brasil Meridional
(13 de 589 – 2%); 1919 (11 de 611 – 2%); 1920 (10 de 634 – 2%);
1922 (16 de 657 – 2%); 1923 (14 de 607 – 2%); 1924 (12 de 575 –
2%); 1925 (14 de 558 – 3%); 1926 (12 de 565 – 2%); 1928 (10 de 568
– 2%); 1929 (13 de 494 – 3%); 1930 (14 de 571 – 2%).12
Mas, apesar desses números pouco expressivos, muitas presidiárias envolveram-se dedicadamente em longas jornadas de trabalho. Os relatórios dos administradores falavam da possibilidade
de expandir o ritmo produtivo e, claro, os lucros com a compra de
novas máquinas de costura. Mesmo assim, o apagamento dessas
prisioneiras é perceptível em todas as partes e, inclusive, na própria
documentação oficial. É muito sintomático que de um total de 31
fotografias existentes de 191313 das oficinas, celas, cozinha, enfermarias e outros departamentos e recintos da Casa de Correção de
Porto Alegre nenhuma tenha retratado o local ou as atividades de
trabalho das presas junto às suas velhas máquinas de costura ou,
ainda, a cela onde conviviam forçosamente todas as encarceradas
existentes no estabelecimento. No conjunto de imagens que certamente compôs em seu dia um álbum de caráter propagandístico
somente se retrataram espaços e ofícios exercidos ou ocupados por
homens.
Ainda sobre os cômputos, não entraremos em considerações
acerca dos fatores que explicariam esse reduzido número de prisioneiras no Rio Grande do Sul, mas há de se concordar com estudos
clássicos de que as respostas antes se relacionariam a aspectos de
uma política sociocultural de controle e dominação do que a supostos dados biológicos ou psicológicos femininos (FAUSTO, 2014,
p. 47). Perrot, por exemplo, em um texto sobre a delinquência e o
sídio de Mulheres de São Paulo via decreto-lei de 11 de agosto de 1941, nem
mesmo o do Distrito Federal. Veja-se especialmente o capítulo 3.2 “Uma multidão de meia-dúzia: discussão sobre a demanda” (2016, p. 88-99).
12
MEDEIROS, 1919, p. 10; 1920, p. 35; 1921, p. 20; 1922, p. 12; 1923, p. 20; 1924,
p. 10; 1925, p. 21; 1926, p. 8; 1927, p. 28; VARGAS, 1928, p. 39; 1929, p. 34;
1930, p. 81; A FEDERAÇÃO: 08/09/1931, p. 5.
13
Esse conjunto de fotografias pertence ao Museu Júlio de Castilhos. Apesar de já
termos utilizado algumas delas em artigos sobre as oficinas e o trabalho penal na
Casa de Correção de Porto Alegre, atualmente estamos elaborando um texto em
que essas chapas/imagens ocupam o lugar central de nossas perguntas e discussões.
191
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
sistema penitenciário na França oitocentista, apresentado pela primeira vez em 1973, questionou se as estatísticas criminais refletem
realmente apenas a virilização do delito e a privatização das mulheres
ou se o seu
esvanecimento nesse teatro será o índice de uma submissão, de
uma moralização ampliada da mulher? Ou uma certa forma
de afastá-la para os bastidores? Essa indulgência, no fundo,
não será suspeita? Recusar à mulher sua estatura criminal não
será ainda uma maneira de negá-la? (2006, p. 256-257).
Não há como desconsiderar que se jogou muito com a representação da mulher quando autora de crimes, especialmente quando cometidos contra as pessoas. Vigiada no âmbito familiar e além
dele, compreendida num discurso e exercício de poder que a prendia a funções domésticas, custava caro reconhecer e aceitar sua
autonomia em atos diametralmente opostos à idealização do papel
de anjo do lar.
El discurso de la domesticidad legitimó de forma incuestionable
la división de roles de género y de los espacios de actuación, lo
que se efectuó, precisamente, a partir de la adjudicación de
características determinadas a hombres y mujeres. La exclusión
femenina del ámbito público se argumentó a partir de supuestas
aptitudes naturales para la vida doméstica, tales como la
afectividad, el sentimentalismo, la abnegación y la carencia
de atributos “masculinos” como la racionalidad, la
inteligencia, la capacidad de juicio o la competitividad
(NASH, 2005, p. 46).
Não é à toa que as interpretações de seus crimes costumavam oscilar entre a atribuição de suas ações a um suposto estado de
loucura/irracionalidade ou movido por perversões de caráter que
as transformavam em autênticos monstros. Percebe-se que, se, por
um lado, se tentava negar, diminuir ou atenuar sua autonomia na
comissão de delitos, por outro, buscava-se apresentá-las, uma vez
processadas e condenadas, como exceções, nunca a regra, como se
se tratasse apenas de ovelhas desgarradas, não do rebanho inteiro,
tal como a própria estatística penitenciária poderia comprovar.
Mas tanto em um como em outro caso, para que funcionassem os enquadramentos, lançava-se mão de um processo de desu-
192
História das Mulheres no Brasil Meridional
manização. Vale lembrar aqui as representações da mulher enquanto
bruxas e demônios, detentoras de poderes sobre os homens, que,
seduzidos e levados por sua astúcia, acabavam cometendo crimes,
revigorando assim o velho “mito da eterna Eva”, da mulher enquanto “gênio maligno do homem” (PERROT, 2006, p. 258).14
Moreira também refletiu sobre a atenção dispensada às mulheres pelas autoridades gaúchas ao longo da segunda metade do
século XIX. Segundo o historiador, “vistas pela sensibilidade do
período como as mais propensas a atitudes impensadas, irracionais, as mulheres usufruíram uma certa impunidade, não sendo na
maioria dos casos responsabilizadas judicialmente pelos seus atos”.
E coloca-nos o excelente exemplo do que ocorreu após a Revolta
dos Muckers em 1870. Como se constatou, passado o conflito, todas as mulheres capturadas foram liberadas “sem sofrer processos
judiciários por serem consideradas ‘a priori inocentes’” (MOREIRA, 2009, p. 179).15
Assim, as estatísticas acima arroladas devem ser tomadas,
em boa medida, como resultado desses discursos que se traduziam
em práticas sociais bastante concretas e compartilhadas entre a sociedade e as instituições estatais, dentre as quais chamamos a atenção para os aparelhos policiais, judiciários e prisionais.
Mas, apesar do exposto, como viemos ressaltando, muitas
acabaram cumprindo penas de privação de liberdade, e isso basta
14
O mito da mulher corruptora fez escola e possui uma longa e documentada
duração. Apenas como exemplo, vale ressaltar que uma das preocupações do
principal idealizador do primeiro presídio feminino de São Paulo no início dos
anos 1940 era precisamente em relação à influência que as reclusas desse estabelecimento poderiam exercer sobre os presos. Quando se aventou a possibilidade
de construí-lo nos mesmos terrenos da penitenciária do Estado, chegou-se a argumentar que, mesmo que separados por equipamentos e edificações próprias,
tal cercania influiria nos pensamentos dos encarcerados, levando-os a ações indisciplinares que prejudicariam sua reforma e moralização (ARTUR, 2016, p.
100-108). Em observação de Beattie sobre as opiniões de José Gabriel de Lemos
Britto, eminente penitenciarista que sucederia Cândido Mendes na presidência
do Conselho Penitenciário do Distrito Federal, para ele a “própria presença de
membros do sexo oposto em prisões redesperta paixões que, de outra forma,
poderiam permanecer adormecidas” (2009, p. 232).
15
A informação sobre as mulheres muckers é da obra de Amado (1978, p. 264), mas
o comentário no sentido aqui exposto é do próprio autor.
193
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
para que tenhamos atenção em relação aos cômputos no sentido
de por eles torná-las mais visíveis e não permitir que continuem a
empurrá-las para os bastidores da História. É bom lembrar que, ao
contrário do que se dava com a população carcerária masculina,
não era o quantitativo que traduzia a representatividade feminina
no recinto penal, mas sim a própria presença de seus corpos num
ambiente considerado essencialmente masculino e opressor.
Suas silhuetas, portanto, embora causassem espanto e desconcerto em alguns internamente, como quaisquer outros sentenciados reparavam ao seu redor e faziam certamente uma leitura de
suas vidas, e por mais que não se quisesse admitir, experimentavam o cárcere de maneira muito mais dura. Então lembramos, por
exemplo, quando as presas foram confinadas no alto do edifício,
negando-lhes a circulação pelos páteos, corredores, tomada de sol
e aplicação em exercícios físicos ao ar livre, trabalho em oficinas
que não a de costuras, a frequência às aulas, etc., para que a total
separação de sexos fosse devidamente cumprida e se pudesse, às
suas custas, promover o sistema penal rio-grandense como um
modelo de regime penitenciário digno de se implementar em todo
o Brasil (CESAR, 2021c).
De resto, testemunharam e compartilharam a sordidez, o abandono e a pobreza, tendo que se recriar para (sobre)viver no e ao encerro, lutando certamente contra maus-tratos, abusos, fome, frio, calor
e com um sem-fim de incomodidades e restrições típicas das prisões.
A petição de graça de Ludovina
Em meio à sua rápida passagem pela capital da província
em 1865, motivado pelo conflito paraguaio, D. Pedro II ainda tirou
tempo para visitar o estabelecimento penitenciário porto-alegrense. Certamente o imperador não pegou as autoridades carcerárias
desprevenidas nem deve ter ido desacompanhado de outras figuras
ilustres da terra, motivo pelo qual desconfiamos de que a notícia
tenha circulado entre a população reclusa antes mesmo que a comitiva arribasse no penal no dia 25 de julho.
Nada sabemos sobre as impressões do monarca acerca do
que vira naquele dia, mas sua presença não passou em brancas
194
História das Mulheres no Brasil Meridional
nuvens para os reclusos. Estimulados por Sua Majestade e/ou incentivados por terceiros, nove condenados elevaram petições de
graça ao imperador (CESAR, 2021a), sendo um deles a presa Ludovina, analfabeta, escrava de José Joaquim Machado, sentenciada à pena de prisão perpétua com trabalho pelo crime de infanticídio pelo júri de Porto Alegre em outubro de 1854.16 D. Pedro chegou a conversar com alguns presos durante a visita17, e gostaríamos
de imaginar que Ludovina, além de vê-lo, também tenha tido oportunidade de dirigir-se diretamente ao monarca.
Mas que importância tem isso? Muita, começando pelo fato
de serem raras as petições assinadas por mulheres presas (ainda
que a rogo), não importando o destinatário. Mas, além disso, ela
possui um valor intrínseco enquanto testemunho da instrumentalização de um canal constitucional, nesse caso de uma escravizada
condenada, que alçava voz ao mesmíssimo imperador, conferindo
uma experiência, como há de se convir, diferente da que Ludovina
e outras muitas encarceradas estariam habituadas. Por esse motivo
faremos um pequeno parêntese.
Tanto a petição de graça, dirigida ao poder moderador, como
as petições normais enviadas ao executivo ou legislativo constituíam
importantes instrumentos legais, respaldados pela Constituição de
1824. Quanto à primeira, contida no art. 101, § 8º18,
garantia ao monarca a atribuição de comutar ou perdoar as
penas impostas pelo Judiciário aos habitantes do Brasil. Tanto
Dom Pedro I como seu filho Dom Pedro II exerceram essa
atribuição, geralmente comutando a pena de réus condenados
à morte na de galés ou prisão perpétua com trabalho. Chegaram também a exercer o direito de perdoar as penas de condenados, especialmente de homens livres (PIROLA, 2016, p. 131).
Já a segunda, segundo o § 30 do artigo 179, estipulava que
“todo cidadão poderá apresentar por escrito ao poder legislativo e
ao executivo reclamações, queixas ou petições e até expor qualquer
16
AHRS, Fundo Requerimento, Polícia, Maço 124.
Veja-se o requerimento do preso Thomaz Francisco Flores, 26 de julho de 1865.
AHRS, Fundo Requerimento, Polícia, Maço 124.
18
Constituição Política do Império do Brasil, 1978, p. 495.
17
195
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
infração da Constituição, requerendo perante a competente autoridade a efetiva responsabilidade dos infratores”19.
Para os presos pobres, que desejavam fazer uma petição de
graça ao imperador, a instrumentalização do canal peticionário facultado pelo artigo 179 era condição sine qua non para se lograr
reunir, por exemplo, os documentos exigidos pelo decreto n. 2.566,
de 28 de março de 1860. O referido decreto estabelecia o modo
pelo qual os pedidos de perdão deveriam ser apresentados ao Poder
Moderador, nos casos em que a pena imposta não fosse a morte.
Em seu artigo segundo, precisamente, discriminavam-se todos os documentos que deviam acompanhar obrigatoriamente a
petição de graça:
1.º Certidão da queixa, denuncia, ou ordem por que se houver
instaurado o processo;
2.º Certidão do corpo de delicto, quando houver;
3.º Certidão do depoimento das testemunhas da accusação e
da defeza;
4.º Certidão das sentenças;
5.º E de todos os mais documentos que ao peticionario, e aos
respectivos juizes pareção convenientes.20
E o artigo terceiro garantia aos peticionários que “por sua
pobreza, não possão ajuntar ás petições os documentos mencionados no artigo segundo”, que ele pudesse ser feito através dos presidentes das províncias e do diretor-geral da Secretaria de Estado dos
Negócios da Justiça ex officio. Mas tal solicitação, como fica subentendido, somente se daria caso os interessados assim o fizessem
por meio da escrita peticionária.
Feito esse parêntese, devemos esclarecer que não sabemos se
Ludovina e os demais sentenciados que requereram o perdão ainda naquele mês contaram com uma relaxação em relação à exigência dos documentos acima arrolados, mas as observações sobre a
conduta dos réus, assim como a prestação de outras informações
sobre a circunstância do crime, local de condenação, pena imposta, confirmação da sentença ou, ainda, o início do encarceramen19
20
Constituição Política do Império do Brasil, 1978, p. 507.
Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1860, t. XXIII, parte II, 1860, p. 143.
196
História das Mulheres no Brasil Meridional
to, registrado nas mesmas petições pelo Palácio de Governo, atendiam as disposições do art. 4, § 1 ao 4, do decreto n. 1.458, de 14 de
outubro de 1854, que “regula o modo por que devem ser presentes
ao Poder Moderador as petições de graça, e os relatorios dos Juizes
nos casos de pena capital, e determina como se devem julgar conformes as amnistias, perdões, ou commutaçoes de pena”21.
Apesar do esforço realizado, Ludovina não fora agraciada
com o perdão real, em parte devido a uma postura pouco benevolente de se conceder o perdão total a réus escravos, em parte motivado por uma mudança na “política de perdões”, que tampouco a
beneficiaria em 1865 (PIROLA, 2016, p. 134-137).22 Mas aqui o
que importa destacar, além de seu já referido esforço para se fazer
com uma petição de graça, é a aprendizagem cívico-política resultante do exercício peticionário.
O caso, ademais, é uma das exceções em que um escravizado, leia-se não cidadão, podia lançar mão de um dos principais
instrumentos constitucionais: a petição. É verdade que em nossas
pesquisas não se voltou a encontrar vestígios dessa prática assinada por mulheres, mas não acreditamos que, embora rarefeitas no
ambiente penitenciário, outras reclusas não tenham antes ou depois instrumentalizado o recurso, se não para pedir a liberdade,
como Ludovina, ao menos para requerer outras atenções.
Condenada à prisão perpétua com trabalho, a não ser que
tenha angariado o perdão real em outra tentativa, dificilmente lograra sair viva da cadeia. Mas, curiosamente, com seu gesto permitiu que topássemos com ela através de um documento que, embora
redigido por um terceiro, não foi à sua revelia. O seu corpo, nesse
caso, não foi atravessado pelos raios do poder de cima para baixo,
o que costumeiramente acontecia quando se tratava de gente pobre
e infame. Aqui é a própria Ludovina que se faz representar, narra
um infortúnio e pede mercê. É ela que se utiliza ao menos por um
21
22
Collecção das Leis do Imperio do Brasil de 1854, t. XVII, parte II, 1854, p. 332.
Mulher, escrava, analfabeta, sem testemunhas que avalizassem sua versão, Ludovina não possuía absolutamente nada que pudesse usar favoravelmente em
seu favor, e o pior de tudo pesava sobre ela o fato de a terem condenado por um
crime (que ela negava) duplamente condenado pela sociedade (CESAR, 2021a).
197
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
instante dos “raios do poder” em seu favor (FOUCAULT, 2014, p.
127 e 131), obrigando as autoridades a escutá-la e responder à sua
representação.
O microcosmo carcerário
O instrumento normativo que oficialmente regeu a Cadeia
Civil de Porto Alegre durante todo o período imperial foi o regulamento de 27 de fevereiro de 1857. Segundo o referido instrumento,
entre 10 de abril e 30 de setembro, as portas exteriores eram abertas
às seis horas da manhã e fechadas às oito da noite; e desde 1º de
outubro até 31 de março, período certamente considerado mais
cálido, o ritual de abertura e fechamento começava uma hora mais
cedo pela manhã e estendia-se por mais uma à noite, “tocando-se
nesta ocasião o sino por espaço de cinco minutos”. Após esse toque de recolher, conforme o referido regulamento, “reinará o mais
profundo silêncio nas prisões”23.
Segundo a sugestão de historiadores veteranos, para compreender minimamente qualquer instituição prisional, bastaria começar por uma simples leitura a contrapelo desse tipo de normativa, pois certamente há mais chances de assim se saber o que de fato
se passava em seu interior do que realmente se fazia cumprir.
Tal como na sociedade livre, no microcosmo carcerário se
reproduziam, em boa medida, as velhas estratificações com suas
representações das hierarquizações sociais. Basta dizer que, embora muitos fossem condenados pelos mesmos delitos, nem por isso
recebiam o mesmo tratamento; nem mesmo entre os próprios companheiros de infortúnio o crime igualava. Não à toa o dinheiro, se
não permitia eludir as grades, facilitava a sobrevivência e negociações de relaxamentos e concessões à revelia das leis e regulamentos
na prisão. Atente-se igualmente para a existência de alcaguetas e
presos de confiança dos carcereiros, que ordinariamente costumavam ser beneficiários de uma vista grossa ou mesmo de atenções
diferenciadas, etc.
23
Art. 4 e 5 do Regulamento de 1857 (SEMINÁRIO DE PESQUISAS DO AHRS,
1., 2001. Porto Alegre. Anais [...] 2001, s/p.).
198
História das Mulheres no Brasil Meridional
As presas encontradas nas fontes judiciárias pelo historiador
Paulo Moreira dão fé ao que acabamos de dizer, pois existia uma
verdadeira economia de favores que perpassava todos os níveis do
cotidiano penitenciário porto-alegrense. Num universo desses, essencialmente masculino e longe do cumprimento das leis/regulamento com isonomia, não é de estranhar, em absoluto, que fossem, por exemplo, desejadas e reclamadas sexualmente. O que chama a atenção é a forma como normalmente tais práticas acabavam
aparecendo nos documentos oficiais.
Conforme o depoimento de dois ex-comandantes da guarda
da cadeia,
o carcereiro permitia aos oficiais que ocupassem esses cargos e
que cumprissem suas exigências, pernoitarem na Sala Livre
“para a consumação da mais requintada depravação” com a
presa Matildes, a qual circulava livremente pelo edifício gozando de “regalias extraordinárias” (MOREIRA, 2009, p. 141).
Com tantas denúncias pesando sobre suas costas, o referido
carcereiro reagiu entregando em sua defesa uma condecoração
militar, um ofício do Chefe de Polícia, outro da Secretaria de Polícia, avalizando que, em sete visitas realizadas ao estabelecimento,
nada constava que desabonasse sua gestão. E como se fosse pouco,
recorreu à ciência, anexando ainda um atestado do Dr. Manoel Pereira (médico da cadeia), declarando que a presa Matildes sofria
das faculdades intelectuais, possuindo “monomania amorosa, persuadindo-se que certos e determinados indivíduos eram apaixonados por ela” (apud MOREIRA, 2009, p. 142).
Ora, os ex-comandantes da guarda confirmaram o uso da
Sala Livre para encontros sexuais com a presa Matildes como uma
espécie de retribuição do carcereiro àqueles oficiais que “cumprissem suas exigências”. Mas era quando essas parcerias se rompiam
ou quando prisioneiros não contemplados nesses circuitos de trocas, favorecimentos e apoio mútuo viam simplesmente a oportunidade de acertar as contas; tais práticas costumavam ser jogadas no ventilador da justiça para ferrar com as autoridades penitenciárias.
Graças à pesquisa com fontes judiciais, Moreira logrou evidenciar vários casos paradigmáticos. Em 1876, por exemplo, os
199
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
carcereiros Tavares (pai e filho) viraram réus por conta da gravidez
de duas presas de nomes Serafina Gonçalves (dessa província, 21
anos, solteira, criada de servir, condenada a 4 anos e meio de prisão) e Maria Venância (dessa província, 28 anos, solteira, costureira, pena de prisão perpétua). A situação dos referidos funcionários
era ainda pior por não terem notificado o sucesso às autoridades
competentes. Segundo o depoimento do preso Joaquim de Almeida, Maria teria se relacionado com o pintor Manoel da Motta, quando esse havia prestado serviços na cadeia, e Serafina com o preso
Gregório de Almeida Neves, quando ambas iam lavar roupa.
A história é rocambolesca, pois o desertor Joaquim Lopes
da Costa, por sua vez, acrescentou que vira o preso Martinho levar
Maria “‘para fazer com ela putarias na solitária’, contando com a
indiferença do carcereiro”. Todavia, conforme a declaração de outro sentenciado chamado Messias Antônio de Moura, não somente ele como “todos os que se acham na cadeia” sabiam desses acontecimentos e inclusive de outros casos similares, quando a criança
só foi retirada da mãe ao término dos dois anos de vida (apud MOREIRA, 2009, p. 146).
Segundo o relatório do Presidente Francisco de Faria Lemos24, de 1878, a Cadeia Civil de Porto Alegre dispunha de 27
celas e outros dois compartimentos destinados aos castigos, uma
“sala de expediente”, duas “salas” e três “quartos” para os chamados “presos privilegiados”, situadas no pavimento superior, onde
também se encontravam instaladas uma enfermaria25, uma sala
24
Faria Lemos, então Conselheiro, faleceu aos 75 anos no Rio de Janeiro, vitimado por uma “syncope cardiaca consecutiva à influenza”, na manhã do dia 7 de
novembro de 1904 em sua residencia à rua Francisco Xavier, nº 81. Pernambucano, exerceu diversos cargos durante o governo imperial e republicano. Foi
Chefe de Polícia na Corte durante o gabinete Rio Branco, juiz de órfãos e membro do Tribunal da Relação, do qual foi presidente, assim como na Corte de
Apelação, no regime republicano. Dessa última saiu para integrar o Supremo
Tribunal Federal, onde se aposentou. Também foi presidente de quatro províncias: Pernambuco, Ceará, Rio Grande do Sul e Minas Gerais (GAZETA DE
NOTÍCIAS, 08/11/1904, p. 2; O PAIZ, 08/11/1904, p. 1).
25
Dirigia a enfermaria naquele momento o facultativo Manoel Martins dos Santos Penna por nomeação de 18/08/1876 (ARARIPE, 1877, p. 13). Muitos anos
depois, como 1º cirurgião reformado do corpo de saúde do Exército, fora no-
200
História das Mulheres no Brasil Meridional
“convenientemente mobiliada para escola dos presos”26 e dois “quartos ao rez do chão”, destinados para a moradia do carcereiro e do
ajudante.
Ainda conforme o documento, o estabelecimento havia alcançado em 1877 a marca de 325 reclusos, dos quais 267 eram livres e 58 escravos, apresentando a seguinte distribuição por sexo:
92% de homens (299) e de 8% mulheres (26)27, o que significava
que o edifício estava abrigando uma heterogênea população carcerária que superava o dobro de sua capacidade, motivo pelo qual o
escandalizado presidente utilizara por duas vezes a palavra “aglomeração” para descrever o estado caótico da prisão.
Cada xadrez encerrava uma média de 12 presos28, porém,
como nem todos possuíam as mesmas dimensões (alguns não cabiam mais de 4 indivíduos), dava-se a situação de se ter que distribuir os presos em outros compartimentos “mais espaçosos”, chegando a receber o duplo ou o triplo da referida média, ou seja,
entre 24 e 36 presidiários.
Diante desse grave problema, que ia muito além da superlotação, Faria Lemos parece ter se preocupado com as presidiárias.
Justificando serem “raros os presos que podem allegar immunidameado por portaria de 08/10/1889 para “servir na Escola Militar” (A FEDERAÇÃO, 21/10/1889, p. 2). Penna faleceu em Porto Alegre na madrugada do
dia 14 de fevereiro de 1905 como cirugião-mor da brigada. O “registro mortuário” afere que ele era capitão reformado do corpo de saúde (19/07/1876) e major honorário e que recebera o passador “u. 1 e a medalha commemorativa da
guerra do Paraguay, correspondendo a um anno de campanha”. A essas condecorações somavam-se, ainda conforme as informações do registro, “as medalhas
concedidas pelos governos do Uruguay e Republica Argentina”, também comemorativas da Guerra do Paraguai. Era a essa altura o decano do corpo médico
de Porto Alegre (A FEDERAÇÃO, 14/02/1905, p. 2).
26
Apesar de caracterizá-la de “humanitaria idéa e util instituição”, a escola não
estava operante por não se dispor de “credito para pagamento do professor”.
27
Sobre as penas e/ou situação jurídica, constavam: 21 alienados, 19 detidos, 10
respondendo a processos, 32 pronunciados, 2 para açoites, 110 cumprindo prisão simples, 32 prisão com trabalho temporário, 19 prisão perpétua com trabalho, 19 galés temporárias, 50 galés perpétuas e 11 sentenciados à pena de morte.
28
Conforme ainda asseverou, “essa proporção poucas vezes diminuiu no anno
findo [1877]; o augmento foi sempre a sua tendencia característica” (LEMOS,
1878, p. 15).
201
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
des”, mostrava-se favorável à ideia de se “aproveitar alguns dos compartimentos” que “quasi sempre se achão desoccupados” para transformá-los em “prisão de mulheres”, havendo apenas de ser “feitas
as obras necessarias ao seu isolamento e incommunicabilidade”,
concluindo que “deste modo se obteria dupla vantagem: a proporção dos presos do outro sexo nos xadrezes diminuiria, e cessaria o
inconveniente, que já em 1876 produzio escandalosos fructos, de
viverem approximados os presos de um e outro sexo”29.
Como se pode ver, não se lograva evitar na cadeia nova a
perpetuação de uma das máximas do cronista Coruja, que dizia,
referindo-se à velha, que as presas, após nove meses de entrada naquele estabelecimento, “tinham o seu bom sucesso” (1983, p. 127).
Os favoritismos, conforme Moreira, davam lugar a essas e
outras permisividades com presos, vigilantes ou ainda com terceiros, mas o mais importante a salientar é que essas práticas eram
vistas e tratadas com normalidade, inclusive pelas autoridades carcerárias, pois, apesar de tudo, como contestaram os carcereiros acima arrolados em sua defesa, tratavam-se ao fim e ao cabo de “mulheres perdidas”:
Nada de estranho ou de extraordinário tem semelhante fato,
desde que se considere que as mulheres presas na cadeia civil
freqüentemente deixam os xadrezes e passam muitas horas do
dia ocupadas em lavar roupa na praia nos fundos do edifício, e
que é nessa mesma praia que vão fazer os despejos os presos
incumbidos da faxina da cadeia. Enquanto esses serviços se
fazem fora do edifício e sob as vistas da centinela parada ao
portão que dá para a referida praia, o Carcereiro e seu Ajudante, ocupados nos contínuos e multiplicados trabalhos internos
da cadeia e atendendo ao crescido número de 200 a 300 presos, não podem evitar a comunicação e contato daqueles homens e mulheres, desde que a negligência e ou conivência das
centinelas encarregadas de vigiá-los lhes facilitem tais atos.
É constante e notoriamente sabido que em todos os tempos se
29
Não obstante, em que pese a diagnosticada necessidade, nada fora realizado
para minimizar os problemas assinalados. Faria Lemos alegou simplesmente
que “si outras forão as circumstancias da provincia, e não me houvera imposto
o mais severo programma de economia, talvez já estivesse realisada a alludida
transferencia”.
202
História das Mulheres no Brasil Meridional
têm dado casos de prenhês de presas na cadeia civil desta cidade, sem que, verificado o fato, se haja pretendido incultar por
ele o Carcereiro e seu Ajudante, tão reconhecido tem sido que
o regime desse estabelecimento seguido impossibilita a precisa
vigilância para que semelhantes ocorrências se tornem impossíveis [...] Foram chamadas para depor míseros galés, alguns
dos quais relapsos e incorrigíveis inimigos manifestos dos respondentes por efeito das correções que tiveram de infligir-lhes.
Poderia acontecer que, em ocasião de distribuírem as lavadeiras pelos xadrezes a roupa lavada, ou de arrecadarem a roupa
suja, tivessem furtivamente encontros com alguns dos presos,
ocupados no serviço interno da cadeia que andam pelos corredores. Mas quando assim fosse, como responsabilizar-se os
respondentes, se atarefados em tais ocasiões em outros lugares da vasta prisão, não lhes era possível ter sempre debaixo
de vista essas mulheres perdidas? (Apud MOREIRA, 2009,
p. 147-148).
Aparte da descredibilização dos depoentes enquanto estratégia de defesa recorrentemente utilizada por carcereiros denunciados por encarcerados30 e da desmoralização das prisioneiras envolvidas, repare-se nas diversas atividades laborais que elas e outras
certamente exerciam na prisão. Apanhar as roupas nos xadrezes,
transportá-las e lavá-las na praia dos fundos do estabelecimento,
estendê-las para secar e, por último, a recolha e a entrega aos respectivos donos em suas celas certamente demandariam muitas horas de trabalho e esforço físico. Isso, obviamente, não impedia que
algumas delas também se dedicassem, além da lavagem de roupa e
costura, à prostituição, “eficaz meio de adquirir algum dinheiro e
obter favores”. Vale lembrar, igualmente, que as presas eram por
então responsabilizadas de confeccionar suas próprias roupas a
partir do tecido fornecido pelos cofres públicos (MOREIRA, 2009,
p. 147 e 151).
Devido à inexistência de trabalhos mais aprofundados sobre
o microcosmo do maior e mais importante estabelecimento penitenciário rio-grandense durante a República Velha, pouco ainda se
sabe acerca do cotidiano das presidiárias e de suas relações com os
30
Vejam-se outros casos em Cesar (2015b, p. 388-391).
203
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
companheiros de infortúnio, guardas, funcionários, padres, etc. Os
relatórios dos administradores da Casa de Correção são por demais sucintos, para não dizer silenciosos em relação a elas. Já sabemos que configuravam um coletivo pouco expressivo numericamente se comparado à população prisional masculina, mas o fato é que
se percebe uma intenção talvez nem sempre consciente de apagamento e negação dessas mulheres. Por outra parte, vale lembrar
que lhes foi negada a oportunidade de serem empregadas nas principais atividades laborais que deram lucro e fama às oficinas da
instituição (CESAR, 2021c).
E este é o segundo ponto referido ainda na introdução. A
relativa liberdade da qual até então haviam gozado as reclusas do
estabelecimento porto-alegrense, a se crer na documentação consultada, viu-se drasticamente reduzida não somente para atender o
regime penal ensaiado, mas também para a produção de uma nova
imagem que se distanciasse daquela associada à permissividade e
promiscuidade dos tempos imperiais. Há de se recordar que o próprio Júlio de Castilhos chegou a compor uma comissão que caracterizou o referido estabelecimento como uma “inquisitorial prisão”
(PESAVENTO, 2009, p. 37). A Federação, órgão do PRR, dirigido
por Castilhos entre 1884 e 1889, não deixava de publicar informes
e matérias extremamente críticas em relação às suas condições estruturais, higiênicas e humanas, de forma que projetar uma imagem de ordem e cumprimento do regime correcional após a ascensão do regime republicano passou a ser uma questão de honra e
garantia para a venda do modelo penitenciário rio-grandense para
todo o Brasil (CESAR, 2021b).
204
História das Mulheres no Brasil Meridional
Imagem 1: Fachada da Casa de Correção de Porto Alegre (1898)
Fonte: SEMINÁRIO DE PESQUISAS DO AHRS, 1., 2001. Porto Alegre.
Anais [...] 2001, s/p.
Com a emergência dos castilhistas passou a ser importante
sublinhar nos relatórios que “entre homens e mulheres ha absoluta
separação” e que as presas ocupavam o “torreão da frente, dividido
em duas prisões, estando na primeira a secção de costuras” (tudo
indica que o referido torreão era, como se observa através da imagem n. 1, a parte mais elevada construída no nível do telhado, guarnecida pelas armas do Estado do Rio Grande do Sul). Nesse mesmo relatório de 1913, Frederico Ortiz aproveitou para “lembrar”
ao Chefe de Polícia a “necessidade de construir uma soleira do
lado do primeiro torreão, onde se acham as mulheres, para o arejamento destas, pois, dado o regimem da casa, essas infelizes só sahem
do respectivo xadrez quando teem visitas, o que é raro aliás” (ALVES, 1913, p. 511).
Quinze anos depois, durante a administração de Plauto de
Azevedo, a situação não apresentava mudanças. Segundo esse funcionário, “quer simplesmente detidas quer condenadas”, as mulheres eram recolhidas numa “sala especial no alto do edificio”,
205
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
onde também “trabalhavam em costuras, sendo, de longe em longe, de lá retiradas, para assistirem aos officios religiosos”, de forma
que, concluía Plauto: “As penas são, para ellas, muito mais sensiveis e rigorosas do que para os homens, pois vivem perennemente
encerradas entre as paredes da sala que habitam” (ARANHA, 1928,
p. 165).
Aglomeração, precariedade e enfermidades
Em 1885, trinta anos após sua inauguração, a Cadeia Civil
de Porto Alegre apresentava marcas indeléveis de deterioro e precariedade, que, somadas ao vertiginoso aumento da população carcerária, dotavam-lhe um aspecto bastante dantesco. Uma comissão de notáveis integrada por Achylles Porto Alegre, Júlio de Castilhos, Felicíssimo de Azevedo, João Câncio Gomes e Ramiro Barcellos, que a visitara naquele ano, além de caracterizá-la como uma
“inquisitorial prisão”, expressou preocupação pelos presos, denunciando principalmente a situação vivida pelas reclusas:
Todos os compartimentos são ocupados pelo quádruplo de
pessoas que podem neles habitar; assim é que, em um xadrez que tem dois metros e meio de largura sobre cinco de
comprido, contamos quatorze mulheres. Expliquemo-nos
melhor. Neste antro, que serve de recolhimento, contou a
comissão quatorze embrulhos de esteiras encostados às paredes, os quais, abertos à noite sobre o assoalho em ruínas,
formam com os andrajos que eles contêm, outras tantas camas. No centro destas suas turmas de camas fica o espaço
de metro e meio de largura, onde se acomodam as infelizes
moradoras, com o tubo das matérias fecais e uma grande
bacia, onde estavam lavando roupa; para completar este
quadro notou a comissão os sinais estampados nas negras
paredes, da água que por elas corre, vindo do andar superior, que a recebe do telhado, que se acha em pouco melhor
estado do que o assoalho da casa. Poderá se fazer idéia desta inquisitorial prisão, considerando-se o desespero desta
miserável gente, amalgamada como objetos em uma caixa,
recebendo sobre si durante a noite água da chuva sem ter
por onde desviar-se. Tal é o estado da Cadeia Civil da capital da Província do Rio Grande (Apud PESAVENTO, 2009,
p. 37).
206
História das Mulheres no Brasil Meridional
Os problemas narrados eram graves, começando pela cela
que sequer protegia as suas ocupantes da água da chuva, passando
pela conhecida aglomeração e terminava com o desrespeito às diferentes classes de presas que certamente haveria entre as quatorze
mulheres ali encontradas, convivendo forçosamente. Perceba-se aí,
novamente, o conhecido descompasso entre a teoria e a prática da
letra impressa, pois desde o Regulamento de 1857 se previam determinadas separações. O xadrez n. 13, por exemplo, destinava-se
às presas de “correção”, e o de n. 7, às “sentenciadas”31, mas, apesar disso, acabou prevalecendo desde o período imperial até o final
da República Velha a prática de encarceramento de todas as prisioneiras existentes em uma única cela.
Mas quem dera se isso fosse o único grave problema enfrentado pelas encarceradas. As fontes também mostram carências em
relação à atenção médico-sanitária, alimentação e vestuário dispensados àquelas que dependiam do auxílio do Estado. Por regulamento, aos presos eram fornecidos 1 blusa, 2 calças de riscado32, 2
camisas de algodãozinho e 1 cobertor de lã para uso fixado em seis
meses, menos o cobertor que se esticava até os dois anos, enquanto
que às presas lhes eram entregues 2 vestidos, 2 camisas de algodãozinho e 1 chale, com igual tempo de duração, exceto essa última
peça estipulada em nove meses.33
Pode-se convir que a escassa quantidade de roupa por si só já
limitaria maiores cuidados com o asseio, e nem há o que falar do
aspecto maltrapilho que deveriam adquirir à medida que as peças
se desgastavam e envelheciam com o uso. Mas isso ainda não era o
pior. Dos relatórios de presidentes da província às comunicações
internas trocadas entre o carcereiro e o Chefe de Polícia, são vários
os testemunhos de atrasos na entrega das roupas, incluídos os co-
31
Art. 35 do Regulamento de 1857 (SEMINÁRIO DE PESQUISAS DO AHRS,
1., 2001. Porto Alegre. Anais [...] 2001, s/p.).
32
Riscado: “Tecido de algodão ou de lã, com riscos de cores diferentes”
(BRUNSWICK, s/d, p. 1028).
33
AHRS, L578, Collecção dos actos, regulamentos, e instrucções expedidas pela presidencia da província de S. Pedro do Rio Grande do Sul em 1857. Porto Alegre: Typ. do
Correio do Sul, 1858. Tomo 13º, Parte 2ª, p. 14.
207
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
bertores. O próprio presidente Francisco de Faria Lemos reconhecera, em seu citado relatório de 1878, o descompasso na entrega
das vestimentas, embora, nessa ocasião, afirmasse não ter gerado
graves consequências devido ao pouco tempo transcorrido desde o
último provimento: “Ainda não foi fornecido vestuario correspondente aos primeiro e segundo semestres do ultimo anno [1877], o
que não acarreta sensível inconveniente, visto como só em principio de Junho do mesmo anno distribuio-se o vestuario do segundo
semestre de 1876” (LEMOS, 1878, p. 16).
As causas aludidas pelo dignatário incluíam a “demora dos
pedidos”, o “processo lento das propostas”, a “feitura da roupa,
muito numerosa e pouco dividida, além de outras” não especificadas. Não é, portanto, de estranhar que, por volta de 1884, um
conjunto de sentenciados chegasse a solicitar a autorização para
produzir as roupas destinadas aos presos pobres (MOREIRA,
2009, p. 151).34
Em princípios de março de 1885, o contrato vigente para o
fornecimento de “fasendas” para a roupa dos presos pobres, realizado com a Diretoria Geral da Fazenda Provincial, estava nas mãos
de Joaquim Gonsalves Chaves & Filhos, Manoel Py e Bastian &
Meyer. No entanto, a praxe de se dispor de vários fornecedores
34
Como se sabe, por então, as vestimentas vinham há tempos sendo fornecidas
por comerciantes da capital através de contratos, razão pela qual nem a possibilidade real de barateamento dos custos nem o alegado efeito moral sobre a conduta dos presos foram suficientes para convencer as autoridades a conceder ao
solicitado. Há, ainda, outra questão que não pode passar batida, de haverem
sido atendidos, os reclusos teriam podido controlar melhor a qualidade das prendas, bem como a quantidade dos estoques, funções que, diga-se de passagem,
faziam parte das atribuições do Carcereiro. Esses funcionários tinham, ademais,
a função/prerrogativa de atestar a insolvência dos presos para a confecção das
listas de reclusos alimentados pelo Estado. No Regulamento da Cadeia Civil de
Porto Alegre, de 7 de fevereiro de 1857, na seção IV, art. 22, sobre a tabela das
rações, distribuição e modo de fornecê-las, se lê: “No princípio de cada mês
formará o carcereiro, e entregará ao encarregado do fornecimento, uma lista de
todos os presos, na qual serão diariamente adicionados ou eliminados os nomes
dos que entrarem ou saírem da cadeia. Por esta lista se fará a distribuição do
almoço, jantar e ceia dos presos, sendo cada um chamado por seu nome” (SEMINÁRIO DE PESQUISAS DO AHRS, 1., 2001. Porto Alegre. Anais [...]
2001, s/p.).
208
História das Mulheres no Brasil Meridional
parecia atrapalhar em alguns momentos a contabilidade. O carcereiro Francisco Antonio dos Santos Roza, por exemplo, escrevendo em julho desse mesmo ano ao Chefe de Polícia, disse que das
fazendas recebidas “deu segundo o calculo da tabela, 614 blusas,
307 calças e 307 camisas, numero esse que não corresponde com o
numero de peças do ultimo pedido”35.
Mas o observado não parava por aí, segundo Roza, “alem
dessa modificação ainda notta-se a falta de fasendas para roupa
das mulheres presas, chales e cobertores para o numero total de
presos, tornando-se sencivil a falta deste ultimo artigo, conforme
presenciou V. Excia hontem quando visitou este estabelecimento”.
Ora, era pleno inverno num prédio banhado pelos ares gélidos do
Guaíba, sem onde esquentar o corpo, pelo que não é difícil imaginar as consequências físicas que a referida falta acarretaria.
Vários meses depois, em comunicação ao Chefe de Polícia
de 17 de agosto de 1885, o presidente da Província José Julio de
Albuquerque Barros finalmente esclareceu que os tecidos contratados deviam atender 307 presos e que, em caso de não serem
suficientes, bastaria pedir as peças extras necessárias. Mas isso ainda não explica o ofício-denúncia enviado pelo carcereiro, que se
referia a um “pedido” atualizado de conhecimento da Diretoria
Geral da Fazenda. Roza, ao que parece, resistia em assumir uma
culpa que, pelo visto, não era sua, mas Barros sentenciou que foi
por “não existir alli o pedido ultimo, a que se refere o carcereiro”,
que não foram compreendidos no “edital” os “cobertores e chales,
nem a demais roupa para mulheres”36.
Essas quedas de braço entre autoridades situadas nos extremos da cadeia burocrática e hierárquica do executivo provincial
podem até parecer banais, mas as consequências de suas desatenções poderiam ser fatais para aqueles que dependiam da atenção
estatal.
Mais adiante, inserimos uma tabela de doenças e enfermidades compiladas a partir de uma amostra de 71 registros de presas
35
36
AHRS, Fundo Correspondência dos Governantes, Maço 119.
AHRS, Fundo Correspondência dos Governantes, Maço 119.
209
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
atendidas nas enfermarias do Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre (HSCM) entre 1850 e 1888, extraídos dos livros de “porta” daquele pio estabelecimento.37 Mas antes de analisar a incidência das moléstias apresentadas pelas prisioneiras, parece-nos mais produtivo destrinchar, primeiramente, os dados sociológicos que as mesmas fontes oferecem, pois, além da doença
causante do ingresso, informava-se também a idade, estado civil,
ocupação, naturalidade, filiação e cor.
Esse percurso nos parece mais acertado para evitar atribuir
ou associar mecanicamente as referidas enfermidades como se fossem todas elas decorrência das mazelas do cárcere. Isso não significa negar que as péssimas condições prisionais debilitavam de diversas formas os corpos privados de liberdade, mas sim considerar
também a vida pregressa, já que não seria menos acertado pensar
que vários problemas poderiam vir de longe e agravar-se durante o
encarceramento ou, simplesmente, vir à tona. Por último, a análise
desses dados todos, cruzados com outras fontes, podem ajudar-nos
a fazer um ideia mais aproximada ou inclusive uma imagem robô
dessas prisioneiras de Clio.
Explicitada essa questão, a primeira consideração a fazer é
sobre as origens sociais dessas mulheres. Ao que tudo indica, estamos diante de uma pequena fração de pessoas oriundas dos estratos mais humildes da sociedade sul-rio-grandense da segunda metade do século XIX. Para começar, 25,35% (18) eram escravizadas38 e, embora a maioria fosse livre, 74,65% (53), podemos desconfiar, a partir das informações eventualmente adicionadas, que
entre essas últimas algumas eram egressas do cativeiro.
37
A distribuição por anos é a seguinte: 1850 (1), 1853 (2), 1856 (1), 1861 (2), 1870
(4), 1873 (3), 1883 (14), 1885 (10), 1886 (31), 1888 (3).
38
A condição de escravizada vinha atestada logo após o nome da padecente, conforme os exemplos a seguir: “Eva, escr.a de D. Perpetua” (ACHC-SCM/POA,
MGE, liv. nº 1, 02/10/1843-31/12/1855, reg. 12, fl. 135), ou, “Leocadia, de
M.el Vr.a de Brito” (ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 3, 01/01/1866-31/12/
1872, reg. 506, fl. 104), “M.a, escr.a da menor Olivia” (ACHC-SCM/POA, MGE,
liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 784, fls. 19-20), ou, simplesmente, “Maria Francisca, escr.a” (ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 1, 02/10/1843-31/12/
1855, reg. 184, fl. 140).
210
História das Mulheres no Brasil Meridional
São os casos de Vicencia, “ex-escrava” de José Antonio de
Souza Castro, 42 anos, solteira, sem profissão, preta, filha de Camillo e Sebastiana, do Rio Grande do Norte39, e da preta Mafalda,
“liberta”, 18 anos, do Rio Grande do Sul, solteira, filha de Adão.40
Mas também acreditamos que a Bibiana ingressada em duas ocasiões, a primeira em junho e a segunda em outubro de 188641, era a
mesma Bibiana, “ex-escrava” (LUCENA, 1887, p. A109-110), presumida autora do assassinato de Catarina da Silva Dutra no 1º distrito do termo de São Francisco de Paula de Cima da Serra nas
imediações do lugar chamado “Canella” (A FEDERAÇÃO, 22/
08/1885, p. 1).
Das 71 prisioneiras, seis deram entrada como “presas particulares” (8,45%), sendo todas elas escravizadas.42 Em meados do
século XIX, muitos proprietários(as) usavam a cadeia para punir
seus escravos, motivo pelo qual desconfiamos de que o cuidado em
referenciar seus senhores ocorria principalmente pela posterior necessidade de saldar a conta. Um caso autoexplicativo é o da escrava Maria Francisca, de 53 anos, da “Costa”, pais incógnitos, casada, tratada por uma “impinge” entre 22 de março e 10 de abril de
1853. Maria fora registrada como presa de “correção e particular”.43
Por outra parte, lembre-se de que também era bastante comum o
recolhimento de escravos à prisão por diversos motivos, desde pe-
39
Diagnosticada com eclampsia, ingressou no dia 21 e veio a óbito em 29 de agosto de 1883. ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg.
648, fl. 16.
40
Ingressada com constipação entre 17 e 22 de agosto de 1886. ACHC-SCM/
POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 745, fl. 104.
41
Entre 10 e 13 de junho de 1886, Bibiana, 16 anos, do Rio Grande do Sul, sem
profissão, filha de João, esteve baixada em função de uma gastralgia (ACHCSCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 528, fl. 99). E de 9 a
10 de outubro do mesmo ano por uma bronquite (ACHC-SCM/POA, MGE,
liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 894, fl. 108). No primeiro registro consta
como “parda”, no segundo “preta”, mesma cor atribuída na reportagem periodística publicada em A Federação (22/08/1885, p. 1).
42
Sobre as marcas da escravidão nos “pretos corpos”, veja-se Moreira (2009b, p.
118-132; 2009c, p. 139-160), Karasch (2000), Eugênio (2016) e a coletânea organizada por Pimenta e Gomes (2016).
43
ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 1, 02/10/1843-31/12/1855, reg. 184, fl. 140.
211
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
quenas desordens, contravenções às regras da escravidão até graves
delitos.44
E entre as “presas civis” (90,14%) seis foram registradas como
“presas pobres” (8,45%), o que significava um autêntico atestado
de pobreza conferido pelo Estado. Uma pessoa qualificada “preso
pobre” tinha legalmente direito às atenções estatais para comer,
vestir, tratar-se de enfermidades, além de isenção nas solicitações
de documentos e tramitações burocrático-judiciárias, por exemplo
para pedir uma petição de graça (CESAR, 2021a).
O ítem cor, que já apareceu nos registros citados, também
fala muito daquela sociedade e de onde provinha a carne presidiária feminina nos oitocentos sul-rio-grandenses. Em sua imensa maioria, tratavam-se de mulheres não brancas. Entre pretas (49,30% –
35), fulas (2,82% – 2), pardas (18,31% – 13), indiáticas (5,63% – 4)
e chinas45 (4,23% – 3), perfaziam 80,29% da amostra ou, em números redondos, 57 reclusas. Em apenas quatro registros não se fez
constar essa informação (5,63%), e as brancas contabilizaram somente 14,08% (10). Mas inclusive entre essas últimas tudo leva a
crer que se tratava de mulheres das camadas populares, longe de
uma posição elevada e/ou com poder aquisitivo.
Um bom exemplo é o caso da índia Rosalina Fernandes
Lima, 31 anos, solteira, do Rio Grande do Sul, filha de João, in44
Entre os vários motivos de aprisionamento de escravizadas na cadeia de Rio
Grande entre 1864 e 1875 destacam-se: estar de batuque, desordem, embriaguez
e desordem, correção, ausentar-se da casa do senhor, andar fora de horas, fuga,
ajuntamento e andar fora de horas (MOLET, 2011, p. 7-8). Não muito diferente,
portanto, do que Holloway (2009, p. 260-261) já havia compilado sobre a entrada de escravas no Calabouço do Rio de Janeiro entre 1857 e 1858 por ordem
judicial: ser castigada, fugida, fora de horas, desordem, insultos e embriaguez. A
partir dos livros de ocorrências da Casa de Detenção do Rio de Janeiro entre
1886 e 1889, Mello (2001, p. 39) também encontrou um quadro de “motivos” de
aprisionamento de mulheres em geral muito similar: desordem, imoralidade e
vagabundagem, embriaguez, prostituição, lesões corporais e furto.
45
Conforme Pesavento (2008, p. 14), o “vocábulo china, usado na zona da campanha para designar a mulher pública, não tem a mesma presença no contexto
urbano, ou seja, não é correntemente utilizada como sinônimo de meretriz, sendo mais empregada para designar a mulher de cor morena acentuada, de aparência indiática”, sentido esse utilizado pela Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre em seus registros.
212
História das Mulheres no Brasil Meridional
gressada entre os dias 5 e 8 de outubro de 1886, acometida de constipação.46 Sabemos que, em 24 de dezembro desse mesmo ano, celebrou-se o tribunal do júri para julgar os réus Gabriel Collatino,
Fermino e Rosalina, acusados de crime de furto à viúva do Coronel Manoel Martins da Silva (A FEDERAÇÃO, 24/12/1886, p.
1). Basta dizer que, anos depois, o citado Collatino já era tido como
um “célebre gatuno” (A FEDERAÇÃO, 14/02/1894, p. 2).
Quem pelo visto também fora condenada por delito cometido juntamente com outros comparsas masculinos foi a presa Zulmira Monteiro, parda, 21 anos, solteira, sem profissão, do Estado
Oriental, filha de Florencio Monteiro.47 Apesar de condenada a
cumprir 12 anos de prisão com trabalho (A FEDERAÇÃO, 02/
10/1886, p. 2), sua excarceração parece ter chegado bastante antes,
uma vez que o alvará de soltura fora expedido em 5 de maio de
1893 (A FEDERAÇÃO, 05/05/1893, p. 2).
Outro indício importante acerca do berço dessas prisioneiras
é sua filiação. Embora no registro da maioria delas se mencionasse
ao menos o nome de um dos progenitores (84,51% – 60), em cinco
se fez constar “pais incógnitos” e em outros seis um “ignora-se”
ou, simplesmente, um espaço em branco, totalizando 15,49% (11)
da amostra. A maioria dessas mulheres eram solteiras (81,69% –
58)48, entre os 21 e 40 anos (57,75% – 41)49, nativas do Rio Grande
do Sul (84,51% – 60). Vale destacar, não obstante, que das onze
nascidas fora da província mais da metade é estrangeira: cinco do
46
ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 883, fl. 108.
Segundo Chernoviz (1890, p. 675), entende-se por constipação “um incommodo cujos symptomas são: calefrios, cansaço doloroso geral, fadiga em todos os
membros, um sentimento de contusão em todos os musculos, lentidão dos movimentos, apathia, dôr de cabeça, insomnia ou um somno agitado, fastio, seccura
da pelle, ourinas mui carregadas e pulso frequente”.
47
Entre 26 e 30 de novembro de 1886, ela esteve ingressada acometida de gastralgia e, entre 2 e 6 de dezembro desse mesmo ano, com constipação. ACHCSCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 1031, fl. 111.
48
Em relação ao estado civil das demais, temos: casadas (11,27% – 8), viúvas (4,22%
– 3) e as que se ignoravam (2,82% – 2).
49
A faixa etária dos 41-68 (a idade mais avançada) não ficou menos representada
(26,76% – 19), mas vale esclarecer que entre elas a maioria das presidiárias
situava-se entre os 41 e 60 anos (16 no total), e apenas três superavam os 61.
213
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Estado Oriental e uma da “Costa”, portanto africana, perfazendo
8,45%. E entre as brasileiras de outra cepa constam: Santa Catarina, Rio de Janeiro, Pernambuco, Rio Grande do Norte e Ceará
(7,04%). Também salta aos olhos a existência de onze reclusas com
idades entre 13 e 20 anos, compondo 15,49% da amostra.50
Finalmente, podemos dizer que a mulher que alimentou o
sistema penitenciário nos oitocentos sul-rio-grandenses era negra
ou não branca, solteira, no auge de suas forças vitais, com um pé
no cativeiro ou dele egressa, em síntese, das camadas populares da
sociedade gaúcha. Mulheres que, apesar do silenciamento de suas
profissões ou atividades laborais, estavam completamente submersas no mundo do trabalho em seus mais diversos âmbitos.51 Sintomaticamente, das 71 prisioneiras, o único registro em que se mencionou a profissão foi o de Maria, escrava de Margarida de Sá,
presa particular, contanto 68 anos em 1872 (a de maior idade das
pretas solteiras da amostra), filha de Bernardina, lavadeira. Maria
ingressou no HSCM por uma diarreia no dia 10 de novembro de
1872 e não consta sua saída.52
Uma vez apresentados os dados sociológicos, estamos em
melhores condições para analisar as enfermidades e suas possíveis
causas. Para começar, observa-se que as doenças e moléstias relati-
50
Sobre as doenças, dolências e perfis da população infantojuvenil da Casa de
Correção de Porto Alegre entre 1850 e 1888, veja-se Cesar (2020, p. 387-414).
51
Os trabalhos de Molet (2011a, p. 15) ajudam-nos novamente a lançar mais luzes
sobre essas mulheres que acabavam nos xadrezes sul-rio-grandenses. Conforme
levantamento realizado sobre a ocupação das presas da cadeia do Rio Grande
(1864-1875), entre livres e escravizadas sobressaem as de: costureira, mucama,
cozinheira, engomadeira, lavadeira, meretriz, quitandeira, roceira e doméstica.
Veja-se também sua dissertação (2011b). A partir dos livros de ocorrências da
Casa de Detenção do Rio de Janeiro entre 1888 e 1925, Nogueira (2020, p. 4647) também encontrou um conjunto de 126 mulheres migrantes do Vale do Paraíba, que haviam sido absorvidas na Corte/Distrito Federal. A imensa maioria
(90,47%) informou ter ocupação, a saber: costureira, cozinheira, doméstica, lavadeira, engomadeira, copeira, etc. A partir dos mesmos livros de ocorrências
da Casa de Detenção do Rio de Janeiro entre 1886 e 1889, Mello (2001, p. 41)
encontrou, como era de esperar, um quadro muito similar: lavadeira, cozinheira, engomadeira, costureira, doméstica, quitandeira, comerciante.
52
ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 3, 01/01/1866-31/12/1872, reg. 650, fl. 177.
214
História das Mulheres no Brasil Meridional
vas aos sistemas digestivo e respiratório perfaziam juntas quase a
metade da amostra, isto é, 47,88%, ou 34 registros, seguindo a tendência observada em outro estudo para todo o contingente populacional de ambos os sexos, referente aos anos de 1856, 1861 e 1862
(CESAR, 2015c, p. 837).
Iniciando pelas primeiras, o catálogo é extenso: gastrite (3),
gastrite crônica, gastralgia (2), embaraço gástrico, catarro gástrico
(2), dispepsia, diarreia (5), todas elas associadas a problemas estomacais, mas também assolavam as enteralgias (2), associadas a disfunções intestinais. Vale lembrar que os próprios médicos e autoridades relacionavam a causa de muitos desses acometimentos ao
consumo de água do Guaíba, pouco cuidado higiênico e a péssima
qualidade dos alimentos (LEÃO, 1861, p. 15). Mas também os presos denunciavam o fornecimento de alimentos em péssimas condições de conservação (CESAR, 2015a, p. 162).
É difícil medir a letalidade dessas dolências, mas há registros de óbitos, como o de Anna Maria da Conceição, 50 anos, solteira, do Rio Grande do Sul, sem profissão, filha de Antonio Ferreira Alves, falecida em 3 de junho de 1856, após ter sido ingressada em 21 de maio, devido a uma gastrite crônica. Também o da
parda Josephina Roque da Silva em consequência de uma diarreia.
Ela contava então 36 anos, solteira, do Rio Grande do Sul, sem
profissão, filha de Antonio Roque da Silva. Havia baixado em 16
de setembro de 1886 no HSCM, de onde não saiu mais com vida
no dia 30 do mesmo mês. Sua morte ganhou uma pequena nota no
A Federação, onde se fez constar ser ela “alienada” (A FEDERAÇÃO, 30/09/1886, p. 1).
215
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Tabela 1: Doenças e dolências sofridas pelas presas em percentagens (1850-1886)
Enfermidades
Total
%
Infectocontagiosas
7
9,86
Sistema digestivo
17
23,94
Sistema respiratório
17
23,94
Contusões e feridas
3
4,23
10
14,09
6
8,45
Outras moléstias
11
15,49
Total
71
100
Dores diversas
Histerismo-nervosismo-alienação
Fonte: ACHC-SCM/POA, Matrícula Geral dos Enfermos, 1850-1886.
Pelo que nos consta, não foi até 1915 que se generalizou o
uso de água filtrada no estabelecimento penal porto-alegrense, mas
não era somente isso; outras melhorias também estavam longe de
ser realizadas, tal como podemos observar através do relatório do
médico Luiz Osorio Nogueira Flores, de 15 de janeiro de 1927:
Completando algumas informações, registraremos que a Casa
de Correcção de Porto Alegre passou, neste ultimo decennio,
pelos melhoramentos seguintes: em o anno de 1909, foi inaugurado o serviço de exgottos, em 1912 a installação de alguns filtros para uso da agua de bebida, em 1913 o augmento do numero destes filtros, em 1915 á generalisação de agua filtrada para
todo o estabelecimento correcional (ALVES, 1927, p. 325)53.
Quanto às dolências do sistema respiratório, registraram-se:
catarro, catarro pulmonar, hemoptise, bronquites (12), paralisia
53
Nesse mesmo relatório, o facultativo não deixou de registrar a resistência por
parte de alguns presos que, apesar das recomendações, continuavam consumindo água não filtrada: “Em o empenho constante que fazemos em salvaguardar a
saúde dos reclusos, não deixamos de observar a existencia de alguns presos mais
ignorantes e analphabetos, que, a despeito de toda a vigilancia e dos reiterados
conselhos hygienicos sobre os perigos do uso da agua não filtrada, elles bebem”
(ALVES, 1927, p. 325).
216
História das Mulheres no Brasil Meridional
pulmonar/atonia pulmonar (2). Ora, como já vimos antes, o frio,
o escasso agasalho e a aglomeração formavam condições ideais
para o acometimento e o desenvolvimento dessas enfermidades.
Há inclusive relatos das próprias autoridades carcerárias sobre
o fato de que os presos preferiam dormir à noite com ao menos
uma janela aberta em pleno inverno devido à superlotação nos
xadrezes (ALVES, 1915, p. 52). Isso que o Minuano e as frias
madrugadas eram muito conhecidas dos habitantes do Rio Grande do Sul e, particularmente, dos inquilinos do estabelecimento
penal porto-alegrense.54
Esses acometimentos mostraram-se mais letais do que os demais, pois 40 dias após diagnosticada com paralisia pulmonar, a parda Joanna Isabel de Jesus55 veio a óbito. O “catarro” da preta Josepha56 também deve ter se agravado rapidamente, pois faleceu dezesseis dias após seu ingresso no HSCM em 14 de junho de 1886.
Não menos representativa, em termos de variedade, foram
as doenças infectocontagiosas (9,86%), que levaram sete presas a
buscar atenções médicas: varioloide, bexigas discretas57, sarampão,
impinge, hepatite (2) e tuberculose. Segundo Chernoviz, as “causas das bexigas não são conhecidas; só se sabe que esta molestia se
communica não só pelo contacto, pela simples approximação, mas
até pela habitação nos mesmos logares” (1890, p. 325), o que valia
para a maioria das demais listadas.
54
Em datas posteriores, ao descrever a enfermaria da Casa de Correção, se disse:
“A Enfermaria está collocada na melhor porção do presidio, fazendo frente para
o rio. Entretanto, como no inverno esta parte é muito castigada pelos ventos,
mormente pelo MINUANO, seria de grande conveniencia a pratica do aquecimento central em algumas salas” (ALVES, 1928, p. 217).
55
Baixou em 20 de junho e faleceu em 30 de julho de 1883 com 23 anos, solteira,
do Ceará, filha de Liberato José Carvalho, sem profissão. ACHC-SCM/POA,
MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 496, fl. 13.
56
Baixou em 14 de junho de 1886 e faleceu no dia 30 do mesmo mês aos 58 anos.
Era natural do Rio Grande do Sul, filha de Joanna, sem profissão, solteira. ACHCSCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 538, fl. 99.
57
Bexigas ou varíola era a mesma coisa, mas, segundo Chernoviz (1890, p. 325),
havia duas espécies: “benignas ou discretas” e “graves ou confluentes”. “Nas
primeiras, as pústulas são mais ou menos numerosas, mas isoladas umas das
outras”, daí o nome.
217
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Vários tipos de dores também levaram às enfermarias do
HSCM (14,09% – 10): cefalalgia (dor de cabeça), nevralgia58 (3),
odontalgia (dor de dentes), dismenorreia59 (2), eclampsia60, aborto
e reumatismo61. Em outra parte deste trabalho, discorremos sobre
as práticas sexuais ocorridas dentro do recinto penitenciário e como
as autoridades do estabelecimento costumavam usar isso como
moeda de troca ou simplesmente fazer vista grossa quando convinha. Recorde-se que a presa acometida de eclampsia foi a já referida Vicencia, “ex-escrava” de José Antonio de Souza Castro, falecida em 29 de agosto de 1883. É certo que não podemos afirmar que
sua gravidez ocorreu dentro da prisão, mas os precedentes deixam
muito o que pensar. Outro caso no mínimo suspeito foi o da preta
Claudina, escrava de Luiz Paulino de Moraes, presa particular, 20
anos, solteira, filiação ignorada, do Rio Grande do Sul, ingressada
devido a um aborto que a reteve no hospital do dia 13 ao 27 de
outubro de 1883.62 Talvez a decorrência desse aborto a tenha levado novamente a baixar em dezembro (do dia 8 ao 25) daquele mesmo ano, acometida de dismenorreia.63
Outro pequeno conjunto de moléstias foi responsável por
15,49% (11) dos ingresssos: adenite, linfatismo, atonia (fraqueza),
constipação e febre intermitente. Como em outros casos, a febre
em si não configura uma doença, mas poderia ser um sintoma de
58
“Nome de certo numero de molestias, cujo principal symptoma é uma dôr viva,
continua ou intermitente, que segue o trajecto de um nervo e suas ramificações,
sem vermelhidão, calor ou inchação” (CHERNOVIZ, 1890, p. 486).
59
“Producção difficil dos mentruos, menstruação difícil” (CHERNOVIZ, 1890, p.
890).
60
Também conhecidas como convulsões de parturientes. Conforme Chernoviz
(1890, p. 696): “Mostram-se raramente antes do sexto mez da gravidez, as mais
das vezes no oitavo e nono; podem sobrevir também após o parto, mesmo sete e
oito dias depois, mas quasi sempre se observam durante o trabalho da parturição, ou immediatamente antes d’elle”.
61
“Molestia cujo principal caracter consiste numa dôr nas articulações (juntas) ou
nos musculos, pelo que se divide em rheumatismo articular e rheumatismo muscular” (CHERNOVIZ, 1890, p. 892).
62
ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 833, fl. 21.
63
ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 5, 01/01/1883-30/06/1888, reg. 1028, fl. 26.
Nesse registro, ela consta com 30 anos.
218
História das Mulheres no Brasil Meridional
outra enfermidade qualquer não devidamente diagnosticada. Assim como as diarreias anteriormente mencionadas, as febres certamente deviam ser muito mais recorrentes do que as estatísticas deixam supor.
Por último, resta mencionar as seis reclusas ingressadas por
histerismo, nervosismo ou alienação (8,45% – 6). Segundo Chernoviz, as causas da histeria “são mui numerosas e mui variáveis
sem contar as da hereditariedade. Citaremos a anemia, os excessos
de toda a sorte, os trabalhos intellectuaes excessivos, as perturbações das funcções menstruaes, as moléstias da matriz, etc.”. Ainda
conforme suas informações, eram “mui variadas as manifestações
da histeria”, assim como as “causas que a provocam”:
Dividem-se ellas em convulsivas ou não convulsivas. As manifestações convulsivas são constituidas pelo ataque hysterico que
em seu pleno desenvolvimento apresenta, como já demonstraram os doutores Charcot e Paulo Richer, quatro períodos: 1º
periodo epileptoide; 2.º periodo de grandes movimentos; 3.º
periodo das attitudes apaixonadas; 4.º período de delirio. O
periodo de delirio pode deixar de se declarar ou constituir só
de per si uma manifestação isolada da nevrose, ás vezes mui
tenaz, isto é, o delirio hysterico (CHERNOVIZ, 1890, p. 187).
Vale a pena lembrar que a presa Matildes foi diagnosticada
pelo médico Manoel Pereira com “monomania amorosa, persuadindo-se que certos e determinados indivíduos eram apaixonados
por ela”, o que encaixaria como uma luva no 3º período aludido
por Chernoviz, servindo como excelente justificativa para safar qualquer um de suas supostas acometidas “apaixonadas”. É importante lembrar com Soihet (2020, p. 363) que mulheres “dotadas de
erotismo intenso e forte inteligência” eram, normalmente, “despidas do sentimento de maternidade, característica inata da mulher
normal, e consideradas extremamente perigosas. Constituíam-se
nas criminosas natas, nas prostitutas e nas loucas que deveriam ser
afastadas do convívio social”.
Ainda nesse sentido, as palavras de Di Liscia e Billorou
(2003, p. 601) reforçam essa análise, relacionando-a, ademais,
com um dos papéis exercidos pelas instituições prisionais e manicomiais: “La cárcel y el manicomio se transformam también
219
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
en laboratorios donde se observa y se experimenta con sujetos
supuestamente anormales y socialmente peligrosos, y donde
consecuentemente se construye una imagen de la locura, de altísima densidad, que depende de estereotipos étnicos, de clase
social y sobre todo de género”64.
Mas houve outra Mathilde, anos depois, que de um “nervosismo” em 1883 passou a apresentar “histerismo” pelos facultativos em 1885. Chamava-se Maria Mathildes de Oliveira,
branca, casada, sem profissão, do Rio Grande do Sul, filha de
Francisco José de Oliveira. Em sua primeira entrada, tinha 30
anos e permanecera ingressada desde o dia 2 de novembro até 2
de dezembro de 1883. Já na segunda, com 32, desde o dia 18 de
junho até 9 de julho de 1885.
Com as fontes de que dispomos não há como saber se o
referido problema se desenvolveu durante o período de reclusão
ou se o diagnóstico precedia seu ingresso na prisão, da mesma
forma que não podemos precisar se os casos de alienação eram
ou não anteriores à privação de liberdade. De qualquer maneira, há de se esclarecer que a Cadeia Civil de Porto Alegre, como
qualquer outro estabelecimento penitenciário à época, também
era utilizado para retirar de circulação os loucos molestos da
cidade. Em 1878, num total de 21 alienados havia sete mulheres
(LEMOS, 1878, p. 67). Motivo pelo qual não há nada de estranho que aparecessem nos registros da Santa Casa, tal como demonstra o caso das pretas Catharina Josefa de Souza65 e Leocadia, escrava de Manoel Vieira de Brito66, e da parda Josephina
Roque da Silva, antes mencionada.
64
Para uma análise das imagens e representaçoes femininas, veja-se Pinsky (2020,
p. 469-512).
65
Deu entrada em 22 de agosto de 1870, contando 38 anos, do Rio Grande do Sul,
solteira, filha de Manoel José de Souza, sem profissão, registrada como presa
pobre. ACHC-SCM/POA, MGE, liv. nº 3, 01/01/1866-31/12/1872, reg. 404,
fl. 101.
66
Baixou em 22 de novembro de 1870 com 43 anos, solteira, do Rio Grande do
Sul, filha de Jeronyma, registrada como presa pobre. ACHC-SCM/POA, MGE,
liv. nº 3, 01/01/1866-31/12/1872, reg. 506, fl. 104.
220
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 2: Doenças e dolências sofridas pelas presas em percentagens (1888-1912)
Enfermidades
Infectocontagiosas
Sistema digestivo
Sistema respiratório
Sistema geniturinário
Sistema endócrino
Sistema circulatório
Puerperais
Dores diversas
Outras moléstias
Total
Total
47
16
8
21
1
2
6
2
3
106
%
44,34
15,09
7,55
19,81
0,94
1,89
5,66
1,89
2,83
100
Fonte: Estatística demographo-sanitaria da Casa de Correcção de 1888 a 1912
(ALVES, 1915, s/p).
Antes de destrincharmos os dados da Tabela 2, é importante
explicá-la. Ao contrário da anterior, na qual se trabalhou com uma
amostragem de enfermas a partir dos registros dos livros de matrículas gerais de enfermos do HSCM, nesse caso, trata-se de uma
compilação realizada da tabela confeccionada pelo médico Luiz
Osorio Nogueira Flores, anexada a seu relatório apresentado ao
Administrador da Casa de Correção com data de 2 de junho de
1915. Os números que o facultativo oferece na tabela original, correspondentes aos dois sexos, foram retirados, conforme ele mesmo
esclarece, do primeiro livro de registro do movimento da enfermaria da Cadeia Civil, inaugurada em fevereiro de 1887, abarcando
25 anos seguidos, desde 1888 até 1912.67
67
A tabela de Flores apresenta alguns erros, como por exemplo no somatório final;
em vez de 107 mulheres atendidas são na realidade 106. Não obstante, revisados e
corrigidos, o número de presidiárias baixadas por ano é o que segue: 1888 (4),
1889 (1), 1890 (zero), 1891 (3), 1892 (1), 1893 (1), 1894 (2), 1895 (2), 1896 (zero),
1897 (1), 1898 (7), 1899 (4), 1900 (7), 1901 (4), 1902 (8), 1903 (3), 1904 (7), 1905
(12), 1906 (7), 1907 (9), 1908 (5), 1909 (2), 1910 (6), 1911 (6), 1912 (4).
221
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Como se pode observar, as enfermidades continuaram achacando as prisioneiras conforme se avançava pela Primeira República, apesar dos esforços empreendidos pelos governantes para que
se criassem enfermarias próprias e apropriadas às demandas do estabelecimento. De cara percebe-se que, ao contrário das doenças
que levaram as presas enfermas às camas do HSCM, o maior contingente atendido na enfermaria da cadeia entre 1888 e 1912 foram
as infectocontagiosas: febre tifoide (18), gripe (12), tuberculose pulmonar (15), escrofulose e sífilis, perfazendo quase a metade do total das baixas registradas (44,34%), ou 47 reclusas.
Nem somando os casos de doenças relativas ao sistema digestivo e respiratório, antigamente as duas principais responsáveis
conjuntamente por praticamente metade dos registros, se alcançaria entre o catálogo de problemas de saúde o velho protagonismo
gozado: 15,09% (16) e 7,55% (8), respectivamente. Para as primeiras constavam: angina e “outras afecções” da faringe, estômago
(4), diarreia e enterite (8) e fígado (3). Enquanto que, para as segundas, sobressaíam os casos de bronquite aguda (2), broncopneumonia, pneumonia e congestão (4).
Conforme já sinalizamos linhas atrás, é possível que um
maior controle higiênico-sanitário, entre outras medidas profiláticas, seja o responsável por essa observada queda na representatividade dessas doenças, principalmente as do aparelho digestivo. Neste
mesmo relatório, Flores não deixa de registrar seu empenho em
termos de acentuação da fiscalização dos “generos alimenticios e o
abastecimento de agua potavel que é distribuida depois de filtrada”
(ALVES, 1915, p. 91). Vale lembrar, tal como o próprio facultativo
fez questão de referenciar em seus gráficos, que o serviço de esgoto
tinha sido inaugurado em 1909, a distribuição parcial de água filtrada em novembro de 1912, passando a generalizar-se apenas a
partir de fevereiro do ano seguinte (ALVES, 1915, s/p.).
Vale a pena trazer igualmente à baila as impressões de Frederico Ortiz, administrador do penal. Em seu primeiro relatório de
1913, disse que o estado sanitário do estabelecimento era “assustador” (ALVES, 1913, p. 510). Não é de estranhar, portanto, as menções a desinfecções e extermínios de ratos e insetos “feitos diariamente nos saguões e corredores”, assim como à exposição ao sol
222
História das Mulheres no Brasil Meridional
das camas e roupas, e o pedido feito ao administrador para que se
redobrasse a fiscalização sobre a higiene individual dos presos e,
por fim, se introduzisse um sistema de exaustores nas celas (ALVES, 1915, p. 91).
Sobre a alimentação servida aos presos (homens e mulheres), Flores cita um relatório de 1912, dirigido ao Chefe de Polícia
pelos médicos legistas do Estado, Pitta Pinheiro, Carlos Penafiel e
Candido Reis, este último médico da Casa de Correção, em que
atestavam os cuidados não só em relação à qualidade dos gêneros,
mas também à sua conservação. Conforme a tabela de então, forneciam-se açúcar, arroz, trigo em grão, farinha comum, feijão-preto, batatas, lentilhas, canjica, sal, banha de porco, toucinho, café
moído, pão de trigo, pimenta-verde e massa (ALVES, 1915, p. 91).
Segundo Frederico Ortiz,
a ração diaria para cada detento, é, preparado o alimento, de
mil e tresentas grammas, constituídas de carne, feijão, sopa,
arroz ou cangica.
Esta ração que era immutavel, fiz variar por um cozido (puchero), que tem pezo maior e é feito de carne, algum xarque,
legumes, mandioca, batata doce ou ingleza, abobora e pirão
(ALVES, 1913, p. 512).
Esse seria o resultado das mudanças realizadas por ele na
dieta dos presos, que até então “tinha por base a carne, com certo
abuso da carne secca”, motivo pelo qual introduziu a “verdura na
alimentação dos detentos” (ALVES, 1913, p. 511).
Não obstante, outras doenças apareceram nos registros mórbidos, conformando novas tipologias. As enfermidades do sistema
geniturinário correspondiam a 19,81% (21), distribuindo-se em:
“mal de Bright”, o que hoje se conhece por insuficiência renal crônica, várias afecções do útero (19) e uma sem identificação. Houve
um caso de diabetes, identificada como sendo do sistema endócrino (0,94%), e dois do circulatório, a saber, afecções orgânicas do
coração e das artérias, ateroma e aneurisma (1,89%). Já as puerperais, como “accidentes da gravidez” (4)68, parto normal69 e “estado
68
69
1899 (1), 1900 (1), 1909 (1), 1910 (1).
1898 (1).
223
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
puerperal”70, perfazem juntas 5,66%. Sobre esses acometimentos vale
um pequeno comentário. Todos eles têm lugar em pleno regime
republicano, o que nos leva a pensar que talvez o duplo encerro
imposto às presas não fosse assim tão hermético como as autoridades gostavam de afirmar. Resta, por último, mencionar dois casos
de reumatismo, um “articular agudo” e outro “crônico e gota”, das
dores diversas (1,89%) e três não identificadas incluídas em outras
moléstias (2,83%).71
De todas essas doenças e dolências sofridas pelas reclusas ao
longo desses 25 anos corridos, foi a tuberculose pulmonar72 o maior
algoz, sendo de longe a principal responsável pelos óbitos. Com
efeito, dos oito falecimentos contabilizados para o período, sete
foram decorrentes daquela enfermidade infectocontagiosa e apenas uma do aparelho geniturinário.
Ora, desde finais do século XIX, o número de encarcerados havia aumentado em desproporção ao número de xadrezes
da instituição. Em seu relatório de 1908, Protásio Alves afirmara
que o “edifício regurgita”, restando aumentá-lo ou criar uma
Colônia Correcional (ALVES, 1908, p. 8). Nos anos seguintes, a
aglomeração foi talvez o maior problema das autoridades do executivo estadual, carcerárias, médicos, guardas e dos próprios presos que a viviam na pele. Tanto que forçou a construção, em 1917,
de um terceiro andar, que em pouco tempo também era insuficiente (veja-se a imagem n. 2).
70
1901 (1).
Infelizmente, não possuímos os dados sociológicos (idade, estado civil, cor, etc.)
dessas prisioneiras, mas ao constituir um perfil similar ao que logramos apresentar para o período imperial, deviam ser mulheres oriundas das camadas mais
populares, em sua maioria não branca, solteira, relativamente jovem, do Rio
Grande do Sul.
72
Embora não seja possível fazer nenhum tipo de comparação, ainda assim vale
mencionar que em seu estudo sobre a tuberculose em Porto Alegre, a partir dos
registros dos cemitérios da Santa Casa e da Tristeza, Medeiros encontrou um
perfil do tuberculoso entre 1896 e 1924 bastante diferente do tradicionalmente
apresentado pela historiografia especializada, que vincula o mal a “negros, pardos e morenos como as maiores vítimas”. A partir do levantamento e análise
dos dados, o autor desvelou que “em sua maioria eram da cor branca, jovens
solteiros e do sexo masculino, naturais do Rio Grande do Sul e com ocupação
militar ou de baixa renda” (2015, p. 134).
71
224
História das Mulheres no Brasil Meridional
Imagem 2: Fachada da Casa de Correção após 1917
Fonte: SEMINÁRIO DE PESQUISAS DO AHRS, 1., 2001. Porto Alegre.
Anais [...] 2001, s/p.
A superlotação, como assinalavam principalmente os administradores, nem permitia o cumprimento do isolamento celular
individual, estipulado pelo regime penitenciário moderno, nem ajudava o combate às enfermidades físicas e “morais” (ALVES, 1922,
p. 539). Conforme se fez eventualmente constar, houve longos períodos em que se chegou a encerrar de 18 até 20 presos numa mesma cela (ALVES, 1924, p. 323 e 339; ARANHA, 1928, p. 49), lembrando que o total de mulheres existentes no estabelecimento também era encerrado num único xadrez. Por esse motivo o Desembargador Armando Azambuja, Procurador Geral do Estado, refez
um pedido seu antigo, quando exercia o cargo de Chefe de Polícia,
para que se construíssem dois pavilhões novos anexos à Correção,
um para os menores e outro para as mulheres, já que, em relação à
essas últimas, devido ao “exíguo” local que ocupavam, “ellas não
dispõem de espaço para exercicios hygienicos” (ARANHA, 1928,
p. 34).
225
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Os relatórios dos anos finais da República Velha indicam
maiores investimentos e melhoramentos nas enfermarias, além do
incremento de alguns cuidados com a saúde dos reclusos, pois,
apesar de tudo, conforme presumia o médico Odone Marsiaj, sucessor de Luiz Osorio Nogueira Flores, “exceptuando a modelar
Penitenciaria de São Paulo73, é talvez [a Casa de Correção] a melhor do Brasil” (ARANHA, 1928, p. 218).
Mas, apesar disso, a situação carcerária feminina não pareceu melhorar, senão o contrário. Quanto maior era o fluxo de
reclusos, mais espremidas foram ficando dentro do estabelecimento, recluídas em comum como já se disse, sentenciadas ou não, na
parte mais alta do edifício, proibidas de sair da cela exceto para
“assistir a exercicios religiosos”. Em um relatório bastante detalhado do Desembargador Francisco de Souza Ribeiro Dantas,
presidente do Conselho Penitenciário do Estado, realizado após
uma visita do referido órgão à Casa de Correção em 1926, esse
relatou o que segue:
Quem visita esse compartimento recebe impressão desagradavel. As reclusas, em geral, apparentam signaes de estiolamento
organico, de decrepitude precoce. Este facto, não podendo ser
attribuido á alimentação que é sufficiente e sã, nem a omissões
de assistencia medica, que é constante, nem igualmente, a condições de salubridade local, que é satisfactoria, não deve ter
outra causa que não seja a falta completa de algum exercicio
ao ar livre, de alguns momentos de vida ao sol. Essa situação é
ainda mais digna de reparo, quando em confronto com a dos
condemnados. Estes, alem do trabalho activo nas officinas,
podem percorrer livremente os pateos internos, onde fazem
exercicios physicos, tomam parte em jogos esportivos, já tendo, até, algumas vezes, recebido instrucção militar.
Entretanto, dada a falta absoluta de espaço, nenhuma concessão pode ser feita às mulheres, no sentido de lhes tornar menos
sensivel aquella situação, sem se infringir a norma regulamentar que impõe a separação dos reclusos segundo o sexo, norma
que, como bem se compreende, deve ser inviolavel (A FEDERAÇÃO, 18/08/1926, p. 3).
73
Sobre essa penitenciária veja-se Salla (2006).
226
História das Mulheres no Brasil Meridional
O presente relatório, dirigido ao presidente Borges de Medeiros, em realidade não aportava nada que já não se soubesse em
relação à situação das prisioneiras. Não fazia talvez nem dois anos
que o próprio administrador, Plauto de Azevedo, havia reconhecido a total diferença de tratamento dispensado às mulheres comparado com aquele destinado aos homens privados de liberdade. Ainda que num tom bem mais suavizado do que o do magistrado, não
se furtou em afirmar que, apesar de “recolhidas a uma sala especial” no alto do edifício, “onde passam grande tempo da pena, entregues aos trabalhos de costura”, só deixavam o recinto “de longe em
longe” e “debaixo de rigorosa fiscalização, afim de assistirem aos
officios religiosos”. Diante desse quadro, sugeria o funcionário:
Seria de extraordinaria utilidade a construcção de um pavilhão para o seu recolhimento exclusivo, onde, ao contrario do
que aqui se verifica, pudessem ellas, a exemplo do que se observa já em alguns Estados da União, viver com o relativo conforto que tem, neste Estabelecimento, as detentas, trabalhando
em costuras, recebendo instrucção, cultivando hortas e jardins
e recreiando-se ao ar livre.74
Em a nossa Casa de Correcção, a não ser a costura, tudo o
mais é inexequivel, por não permitir o Regulamento o mais
ligeiro contacto das mesmas com os reclusos.
Em face do exposto, as penas são, para ellas, muito mais sensiveis e rigorosas do que para os homens, que, durante as horas
de recreio, se entregam aos exercicios physicos, no grande páteo do Estabelecimento, enquanto vivem as mulheres perennemente encerradas entre as quatro paredes da sala que habitam
(ALVES, 1924, p. 351).
Apesar dos relatórios e do conhecimento do governo do Estado do Rio Grande do Sul, nada foi feito a respeito até o final da
República Velha. Em uma extensa reportagem feita à raiz da visita
74
Cândido Mendes de Almeida, primeiro presidente do Conselho Penitenciário
do Distrito Federal e referência do penitenciarismo brasileiro nas décadas de
1920-1930, era um entusiasta das penitenciárias agrícolas femininas, pois acreditava no seu potencial educativo e lucrativo oriundo de algumas atividades rurais que considerava apropriadas às mulheres, como avicultura, apicultura, sericicultura, pequena lavoura, jardinagem, floricultura e indústria de conservas
(ARTUR, 2016, p. 69-70).
227
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
realizada pelos acadêmicos do curso de Direito ao estabelecimento
em 1923, descreveram-se com maior interesse as oficinas e os produtos nelas confeccionados do que se ocupou dos indivíduos que
nelas se empregavam e/ou habitavam os velhos xadrezes. Às prisioneiras, como era de se esperar, não se destinou mais do que uma
simples linha e de tal maneira que dava a impressão de que estavam recluídas num paraíso, já que delas apenas se disse que, na
seção feminina, havia um belvedere75, onde “lavam roupa e cultivam
pequeno jardim” (A FEDERAÇÃO, 02/10/1923, p. 6).76
Por último, resta dizer que não dispomos de dados estatísticos para asseverar com maior propriedade, mas tudo indica que,
somados à vulnerabilidade socioeconômica, foram os crimes mais
hediondos que, do período imperial à República Velha, levaram
um pequeno percentual anual de mulheres a alimentar o sistema
penitenciário sul-rio-grandense.77 No mesmo relatório anteriormente citado, discriminaram-se os delitos e penas de 14 mulheres reclusas (ALVES, 1924, p. 350), que podem ilustrar perfeitamente a referida observação:
• cinco cumpriam pena de 30 anos por “homicídio qualificado”;
• uma pelo mesmo crime a pena de 20 anos de prisão celular;
• duas cumpriam pena por “homicídio simples” (19 anos e 6
meses / 15 anos);
• uma mulher absolvida do crime de “homicídio simples”
aguardava o resultado da apelação interposta pela promotoria pública;
• duas cumpriam penas por infanticídio de três anos;
• uma cumpria pelo mesmo crime: 10 anos e 6 meses de prisão celular;
75
Terraço no alto do edifício.
Ainda conforme a matéria, havia nesse dia 16 mulheres (14 sentenciadas e 2 em
processo). Entre as primeiras se fez referência à septuagenária de 72 anos Percilia dos Anjos, condenada a 30 anos de prisão por homicídio, cometido em Lagoa Vermelha, de cuja pena já havia até então cumprido 12.
77
Ao longo de sua existência, a Casa de Correção de Porto Alegre recebera condenados oriundos de todos os rincões do Rio Grande do Sul, mas é importante
esclarecer que outras cadeias interioranas também serviam como locais de cumprimento de penas menores de privação de liberdade.
76
228
História das Mulheres no Brasil Meridional
• uma se achava pronunciada pelo crime de infanticídio;
• uma cumpria 11 anos de prisão por latrocínio.
Vale, por fim, sublinhar que a maioria dessas mulheres não
vivia ociosa. No mesmo relatório prestaram-se contas de que doze
reclusas se dedicaram, ao longo de 1923, à confecção de “peças de
vestuario dos reclusos” sob a direção de D. Josephina Martins, que
há muitos anos estava à frente da seção feminina da oficina de alfaiataria (ALVES, 1924, p. 361). Apesar de duplamente encerradas
e aglomeradas na prisão, o mundo do trabalho não prescindia delas, e o seu suor contribuiu verdadeiramente, ao longo dos anos,
para o aumento dos lucros78 auferidos pelo estabelecimento penal.79
78
Desde as propostas reformistas do século XIX se insistiu em que o trabalho deveria ser um meio de emenda, mas também de garantir recursos para abater os
gastos carcerários. Já fizemos notar em outro lugar que tais objetivos são renovados nos projetos penitenciários republicanos. Na Casa de Correção de Porto
Alegre, ao menos durante alguns anos, mais do que desonerar em parte os cofres
públicos, chegou-se a ventilar a possibilidade de alcançar uma autossustentação
completa com o fruto do trabalho penal (CESAR, 2021c). Parece que o desenvolvimento de atividades laborais que pudessem render ingressos ao Estado não
ficou restrito apenas ao âmbito penitenciário. Conforme Miranda (2006, p. 78),
a partir da década de 1930, popularizou-se entre os psiquiatras brasileiros a fé na
“praxiterapia” (trabalho terapêutico), surgindo daí várias colônias agrícolas Brasil
afora. Ainda segundo o autor: “Assim como a maioria dos psiquiatras brasileiros, Ulysses Pernambucano acreditava que os pacientes internos nas Colônias,
através do ‘trabalho terapêutico’, poderiam tornar-se autossustentáveis, deixando de se tornar um pesado ônus para o Estado”. Não é de estranhar, portanto,
que o idealizado presídio de mulheres de São Paulo, inaugurado em 1942, também tenha contemplado o trabalho enquanto terapia e meio de obtenção de
recursos econômicos. Como observou Artur (2016, p. 68), a “regeneração das
criminosas não se justificava desvinculada de lucro, [...] de êxito econômico”.
79
Vale insistir que, apesar de que muitos estabelecimentos penitenciários tenham
sido implementados sem considerar seriamente o elemento feminino, isso não
significa que, uma vez dentro, as presidiárias vivessem em completa ociosidade.
Um bom exemplo é o que demonstra Santos para o caso da Colônia Correcional
de Dois Rios. Citando um relatório do diretor da instituição, de princípios do
século XX, onde esse funcionário reclamava não saber como “aproveitar o serviço das mulheres”, observou que “não só elas eram, aparentemente, as únicas a
dar algum lucro para o estabelecimento, pois eram responsáveis pela lavagem de
roupas e pela confecção de vestimentas, colchas, lençóis, fronhas, aventais, toalhas e assim por diante, como a atribuição a elas dessas atividades parecia estar
determinada a priori” (2004, p. 157).
229
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Conclusão
Neste texto, procuramos analisar a presença fugidia80 das
prisioneiras sul-rio-grandenses desde os tempos imperiais da Cadeia Civil até os anos finais da República Velha, com a cadeia já
rebatizada como Casa de Correção de Porto Alegre sob a batuta
dos castilhistas.
Apesar de idealizada para corrigir os indivíduos durante o
transcurso do cumprimento da pena de privação de liberdade, especialmente por meio do trabalho, nada saiu como planejado. É
conhecida a justificativa dada por Muritiba, presidente da Província em 1855, para fechar as pioneiras oficinas do estabelecimento. Segundo o governante, não havia então uma quantidade
significativa de presos condenados à pena de prisão com trabalho
que compensasse com seus rendimentos os gastos produzidos para
mantê-las em funcionamento (MURITIBA, 1856, p. 37). Mas, ao
menos desde os anos 1870, nada mais escusava a completa inércia das autoridades competentes, ainda mais quando, somente
entre as prisioneiras em 1877, doze eram sentenciadas à pena de
prisão perpétua com trabalho e uma à prisão com trabalho temporário.
Malogrado o intento de tornar o estabelecimento um local
de emenda e regeneração, o lugar transformou-se rapidamente no
maior depósito de indesejáveis da província ao longo da segunda
metade do século XIX. Projetado para abrigar uma população reclusa de no máximo 150 indivíduos, em 1860 já contabilizava 136,
ultrapassando as duas centenas em 1875 e não baixando dos 300
presidiários nos anos subsequentes, ou seja, mais do que dobrando
sua capacidade. E, adentrado o período republicano, sobretudo a
partir de 1903, quando se alcançou a impressionante cifra de 687
presos, o número documentadamente mais atenuado, encontrado
até 1930, foi o correspondente ao ano de 1927, quando se registraram apenas 507 indivíduos (CESAR, 2021b).
80
Essa presença opaca e silenciada das prisioneiras também fora observada em
outras pesquisas. Veja-se, por exemplo, o capítulo “Presos Ocultos: mulheres no
cárcere” (MARIZ, 2004, p. 43-48).
230
História das Mulheres no Brasil Meridional
Ao longo desse período de nossa história penitenciária regional e brasileira, operaram-se significativas mudanças no referido estabelecimento, sobretudo após a ascensão do Partido Republicano Rio-Grandense. De fato, o PRR buscou implementar um
determinado modelo de regime correcional, introduzindo oficinas
no recinto penal, além do oferecimento de ensino básico regular e
de atenção religiosa. Esse regime certamente marcou o cotidiano e
as vidas de milhares de presos que passaram pelo sistema prisional
gaúcho entre 1897 e 1930, mas talvez de forma bem mais negativa
tenha sido para as mulheres que lá cumpriram suas penas, privadas
duplamente de sua liberdade e em condições desumanas.
Com a clara intenção de se distanciar do passado monárquico do estabelecimento, uma das primeiras medidas tomadas pelos
castilhistas foi redobrar o cuidado com a disposição que estipulava
a total separação entre os sexos. Mas, constituindo os homens o
maior contingente, dominando e ocupando praticamente todo o
espaço prisional, obrigaram-se as mulheres a uma dupla privação
de liberdade: a do mundo exterior e a de circular dentro da própria
prisão, pátios, corredores, dependências, oficinas, etc.
Em razão disso, as presas não podiam trabalhar em outra
coisa que não fosse junto às máquinas de costura numa sala contígua à cela comum, onde, por certo, conviviam forçosamente vários
tipos de prisioneiras. Assim como tampouco podiam frequentar as
aulas na escola da prisão. A nosso ver, embora se justificassem essas medidas pelo bem do funcionamento do regime penitenciário e
segurança das próprias presas, o fato é que o modelo implementado não as contemplou. Enquanto se falava de administração e
emenda do fluxo carcerário masculino em relação ao feminino,
ao menos é nossa impressão, parecia ser tão só uma questão de
conservação ou, como diria Mariz para as reclusas da Cadeia Pública de Fortaleza, “apenas considerada nos dados estatísticos”
(2004, p. 43).
Esperamos ter demonstrado que, apesar de percentualmente
pouco expressivas em relação ao movimento penitenciário masculino, centenas de mulheres conheceram e experimentaram as mais
abjetas mazelas carcerárias, e isso não se pode negar nem apagar
dos registros que deixaram.
231
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
Como se delas se envergonhasse a sociedade, a essas mulheres não se lhes conferiu nenhum protagonismo nem atenções como
as recebidas pela população masculina dentro da instituição. Farge
recorda-nos que “los pobres están condenados a una cita perpetua
de obediencia con respecto a sus condiciones y a las autoridades
que los gobiernan” (2008, p. 114), ao que poderíamos acrescentar
que, no caso brasileiro e em se tratando de mulheres pobres, a perpetração de crimes configurava uma imperdoável insolência.81 Só
assim é possível entender por que os anjos caídos não logravam visibilidade nem mesmo nos documentos oficiais, só aparecendo aqui
e ali de maneira penosamente esporádica. Intencional ou não, o
fato é que isso potencializava ainda mais o apagamento de suas
vidas, fossem erráticas ou não, transformando-as em autênticas prisioneiras de Clio.
Também gostaríamos de explicar que o percurso empreendido foi de certa forma imposto pelos vestígios levantados. Elas sempre estiveram lá, mas o maior lugar por elas ocupado nessa história
é o do silêncio. Embora as presas não aparecessem normalmente
nos testemunhos de ações contestatórias e de resistência ativa82,
81
Numa extensa matéria originalmente publicada na Estrella Polar, dissertou-se
longamente sobre a importância da mãe enquanto educadora do “homem”. Nada
mais começar, afirmara o autor: “A boa ou má educação, o caracter, os sentimentos do homem formam-se principalmente na familia, que exerce no menino
uma influencia decisiva”. Em razão disso, para o articulista, quem desejasse
“salvar o menino, quem deseja obter resultados efficazes e duradouros de sua
educação, ha de chegar ate a familia, ha de ir até a mãi”, e fecha a primeira parte
de sua reflexão citando um suposto pregador que teria dito: “Si Eva tivesse tido
mãi para educal-a, não existeria o peccado original” (STAFFETTA RIO-GRANDENSE, 31/10/1917, p. 1). Ou seja, seguindo essa linha de raciocínio, as mulheres enquanto principais responsáveis pelo futuro dos “homens” seriam, em
último caso, as autênticas culpadas quando esses incorressem em crimes e delitos,
pois deveriam ter sido o repositório e exemplo das melhores virtudes, fontes da
educação moral e, por consequência, da própria honra familiar.
82
Entendemos por resistência ativa práticas contestatórias como rebeliões, agressões a companheiros ou a guardas e carcereiros, fugas, tentativas de evasão, denúncias particulares e/ou coletivas, suicídio, etc., que colocam à mostra e revelam a existência de um discurso de resistência e insubordinação ao sistema ou,
como também diria James Scott, de um discurso oculto em relação a um discurso público/oficial/dominante (2003).
232
História das Mulheres no Brasil Meridional
isso não significava que elas não estivessem inteiradas, observando, participando de alguma maneira, nem que fosse torcendo (ou
não) pelo êxito de ditas práticas. O bilhete da presa Luciana revela,
por exemplo, quão fluida era a relação do intramuros com o mundo da liberdade ou, como diria Ignatieff, entre “o dentro e o fora”
(1987, p. 187).
Nesse mesmo sentido, trabalhamos a única petição de graça
encontrada assinada, ainda que a rogo, por uma mulher escravizada e condenada. Logicamente, se pensarmos em termos quantitativos, esse documento não diz muita coisa, mas do ponto de vista da
representação feminina no cárcere e de sua experiência-aprendizagem com as várias instâncias do poder ela é muito significativa.
Um zoom no microcosmo penal, com o auxílio da bibliografía existente, também permitiu ver essas mulheres em movimento,
trabalhando, tomando decisões, relacionando-se, criando autênticos espaços privados e/ou compartilhados de sociabilidade, alimentando o que muitos especialistas preferem chamar de “subcultura
carcerária” (O’BRIEN, 1998, p. 184-187).83
Estando aí, seus corpos enfermavam, e foi assim que também as rastreamos. A ingestão de alimentos/água em mal estado
de conservação, o escasso abrigo, a imundície do recinto e a própria insalubridade dos xadrezes acentuados pela aglomeração, entre outras agruras do cárcere, faziam com que a população reclusa
adoecesse com frequência. Em relação às mulheres, concretamente, não foram poucas as que tiveram que ser atendidas na enfermaria da prisão e, antes dela, no Hospital da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre. Não restam dúvidas de que um ambiente insalubre e hostil debilitava, mas vale sublinhar que corpos já fragilizados, oriundos de vivências difíceis pregressas, certamente adoeceriam com maior facilidade, rapidez e com desfechos fatais. Não
raramente às doenças provocadas pelas misérias internas somavam-se as que chegavam de fora, e tudo isso juntado com o desassossego produzido por um horizonte de expectativa de liberdade
83
Ver também O’Brien, em particular o capítulo três “The New Prison Subcultures” (1982, p. 75-108).
233
CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
bastante longínquo, ademais de debilitar o físico, também adoecia
a mente.
Mas, ao enfermarem, muitas dessas prisioneiras gravaram
nos registros das instituições suas passagens, às vezes fugazes,
permitindo rastreá-las e, através dos dados de morbidade, saber
um pouco mais sobre o perfil social e fazer um retrato robô da
mulher que acabava pagando seus crimes nas celas da principal
prisão sul-rio-grandense.
Prisioneiras de Clio, portanto, porque primeiramente existiram e são/podem ser objeto da pesquisa histórica, mas, quando
negadas, olvidadas e silenciadas, também se convertem em prisioneiras (entenda-se privadas) da História, e isso fala muito de nosso
passado, mas também do presente punitivo brasileiro essencialmente
desigual e desumano.84
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Alves, Secretario de Estado dos Negocios do Interior e Exterior em 6 de setembro de
1924. Porto Alegre: Officinas Graphicas d’A Federação, 1924.
84
Embora não se tenha trabalhado com um recorte mais recente sobre as presas e
presídios femininos, devemos destacar os estudos históricos de Silva (2015), Priori (2012) e Lima (1983) e sugerir na área da psicologia social, antropologia
social e sociologia política, respectivamente, as análises de Lopes (2004), Brito
(2007), Biella (2007), Soares; Ilgentritz (2002) e Souza; Teixeira; Gonçalves (2014).
234
História das Mulheres no Brasil Meridional
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CESAR, T. da S. • As prisioneiras de Clio
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236
História das Mulheres no Brasil Meridional
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243
História social da escravidão
sob a perspectiva interseccional:
mulheres escravizadas e as experiências
de maternidade (Rio Grande do Sul,
século XIX)
Bruna Letícia de Oliveira dos Santos
Marina Camilo Haack
Introdução
A história das mulheres foi e, em alguma medida, ainda é
considerada – erroneamente – uma história de valor menor dentro
da academia, cujos interesses estariam em peculiaridades, focalizada em agentes históricas isoladas ou ainda compreendida como
uma perspectiva que desconsidera o econômico e o político. Com
certeza, avançamos muito em relação a esses preconceitos, embora
o valor político atrelado ao fazer histórico seja visto com especial
desconfiança quando proposto por nós, mulheres. A partir disso,
perguntamos: é possível fazer uma história que desconsidere a economia e a política quando falamos de sujeitos históricos no tempo?
É possível escrever uma história que negligencia o papel do gênero
como uma categoria de análise, como apontou Joan Scott no século passado, sendo esse um dos pilares para compreender as relações de poder e a ação de homens e mulheres no passado?1
Pesquisar e escrever sobre a história das mulheres pela perspectiva de gênero é pensar a constituição das vivências dessas agen1
SCOTT, Joan W. Gênero: uma categoria útil de análise história. Educação & Realidade. Porto Alegre, v. 20, n. 2, jul/dez 1995. Ver também: SCOTT, Joan W.
Prefácio a Gender and Politics of History. Cadernos Pagu, n. 3, Desacordos, desamores e diferenças. Campinas: Pagu Núcleo de Estudos de Gênero, 1994.
244
História das Mulheres no Brasil Meridional
tes em suas relações sociais pelo tempo e espaço como experiências marcadas pelo fato de terem sido mulheres. Do mesmo modo,
para compreendermos as estruturas econômicas e as relações políticas, considerar o gênero, bem como a classe e a raça, é de suma
importância, pois tais dimensões são conformadas a partir dos mencionados marcadores. Embora menos recorrente nas pesquisas,
podemos – e devemos – problematizar as experiências de homens a
partir da mencionada perspectiva. Para isso também é necessário
ter o cuidado de não essencializar os significados de ser homem e
mulher, uma vez que havia outros marcadores, além do gênero,
conformadores dessas experiências em cada contexto. Ou seja, as e
os indivíduos não são constituídos e significados socialmente de
modo universal, e é necessário atentarmos para isso.
Dessa forma, o que queremos expor com este texto é, em um
primeiro momento, a perspectiva interseccional na análise da escravidão a partir da história das mulheres escravizadas. No segundo momento, colocamos em prática as prerrogativas apontadas para
pensar a maternidade na escravidão a partir da análise de dois crimes ocorridos em Cachoeira do Sul e Rio Pardo em meados do
século XIX. No final deste capítulo, acrescentamos a dimensão do
corpo, das subjetividades e dos afetos como questões a serem pensadas pela história social.
A perspectiva interseccional, informada pela epistemologia
do feminismo negro, é essencial nos estudos históricos, sobretudo porque ela parte da experiência concreta de mulheres negras e
incorpora em seus fundamentos uma teoria forjada na prática política e social. Portanto, essa epistemologia pensa as relações sociais
a partir da localização de mulheres negras na estrutura social em
variados contextos, que, aliada à pesquisa histórica e às metodologias da História Social, permite compreender como os marcadores
de opressão agiam na conformação de experiências e agências. Essa
epistemologia entende que as condições materiais de existência
foram moldadas pelas características de um tempo – período escravista – desde o aspecto econômico, perpassando as mais variadas
esferas de poder que serviram para a sua sustentação e consolidação, incluindo as construções de raça interseccionada por gênero e
245
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
condição jurídica. Ou seja, os estudos de gênero associados à interseccionalidade, a partir da epistemologia do feminismo negro, aglutinam eixos de discussão da história social.
Como estruturantes das relações de poder e das experiências de indivíduos no tempo, os marcadores de raça, gênero e classe
precisam incorporar de maneira massiva os estudos históricos de
qualquer área. No caso da escravidão no Brasil, a condição jurídica torna-se um ingrediente extra, e é a partir desses marcadores que teremos que olhar para o passado e não mais homogeneizar experiências. Conforme Maria Helena P. T. Machado
(2018b, p. 334):
Nas pesquisas sobre a escravidão, ainda é comum notar que
especialistas se referem aos escravos de forma geral como se
esses fossem isentos de gênero e sexo e pudessem ser inseridos
numa categoria única. Condições de vida, trabalho, saúde, relações sociais e comunitárias são frequentemente descritas
como características de um modo de vida do escravo, sem que
em nenhum momento se mencionem as diferenças de homens
e mulheres – sejam eles/elas africanos/as ou crioulos/as – no
sistema de trabalho escravo ou na comunidade de senzala.2
O acúmulo de debates, pesquisas e trabalhos até agora mostra-nos que não é mais possível olhar para a família escravizada,
para o trabalho compulsório e liberto, para os relacionamentos afetivos, para as discussões sobre a conquista da liberdade e as permanências da escravidão sem compreender que a relação entre gênero, raça e condição jurídica ou de classe foi conformadora do tipo
de experiência humana que mulheres e homens tiveram naquele
contexto.
Quando entendemos a centralidade da interseccionalidade
na produção das experiências de agentes históricos, torna-se impossível olhar para a história como se as pessoas – mulheres negras
e brancas; homens negros e brancos – tivessem tido experiências
comuns entre si, e nesse cálculo negligenciaram-se especialmente
2
MACHADO, Maria Helena P. T. Mulher, Corpo e Maternidade. In: SCHWARCZ,
Lilia; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da Escravidão e da Liberdade. São Paulo:
Companhia das Letras, 2018b.
246
História das Mulheres no Brasil Meridional
os significados de ser uma mulher escravizada, assim como a própria dinâmica da escravidão a partir desse dado. Escapou aos olhos
dos historiadores e historiadoras a imersão delas num contexto de
extrema vulnerabilidade, cuja violência sexual era um medo constante, assim como a luta pelo exercício da maternidade e, principalmente, que o trabalho escravizado não era o mesmo para homens e mulheres. Consideramos que houve um longo percurso,
excetuando alguns trabalhos, para que mulheres escravizadas fossem vistas pela historiografia como seres dotados de um corpo distinto daquele dos homens, conformando, assim, uma exploração
do trabalho também distinta, baseada na forma como cada corpo
escravizado poderia ter seu trabalho subtraído.
O leitor deve estar se perguntando onde entra a agência em
meio à descrição dessas violências. Bom, esse é um desafio constante da história social da escravidão, o de não amarrar os sujeitos
escravizados nas estruturas da violência escravista, mas também
não esquecer o contexto que conformava as suas vivências. Nesse
sentido, mais uma vez, o pensamento feminista negro pode ser um
aliado da historiografia, visto que o estabelecimento da relação entre
essa epistemologia e a história social nos mostra que as opressões
podiam ser (re)significadas pelas mulheres e homens no tempo, pois
esses produziram, a partir de si mesmos, no espaço de contato com
as estruturas sociais, narrativas, ações, lugares, identidades e sentidos próprios para suas existências.
Portanto, entendemos que pode haver um diálogo entre o
fazer historiográfico da história social e a epistemologia feminista
negra, mediado, principalmente, pela ideia de experiência de E. P.
Thompson. Pois, para esse historiador, “as pessoas não experimentam sua própria experiência apenas com ideias, no âmbito do pensamento e de seus procedimentos [...]. Elas também experimentam
sua experiência como sentimento e lidam com esses sentimentos
na cultura”3 (1981, p. 189). Podemos interpretar, assim, que as pes3
THOMPSON, Edward Palmer. Miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981; THOMPSON, Edward Palmer. Costumes em Comum: estudos sobre cultura popular e
tradicional. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. Ver também o já clássico:
247
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
soas subjetivam em si mesmas as suas experiências de contato com
as estruturas e relações sociais. Isso foi o que efetivou agências iguais
e distintas entre mulheres e homens escravizados e o que provocou
respostas diferentes a situações parecidas entre as mulheres de condição, cor e status jurídico iguais durante a escravização.
Para encerrar esses apontamentos teóricos iniciais, acrescentamos ainda que a dimensão do corpo da mulher escravizada precisa estar na chave de leitura e compreensão das experiências vividas e compartilhadas por elas, pois a produção de significados sociais ocorreu no tempo a partir das características específicas dos
corpos biológicos. Da mesma forma, foi a partir do corpo que as
experiências de escravização e de liberdade foram vividas e sentidas. Além disso, ele guarda a estrutura subjetiva de cada mulher e
homem. Isto é, o corpo guarda a dimensão social e subjetiva das
experiências históricas.
Mulheres que deram a vida e a morte:
maternidade e escravidão
De imediato, para iniciarmos nossas análises, é importante
ter em mente que as mulheres escravizadas viviam em um sistema
que as explorava em sua “capacidade” produtiva e reprodutiva (MACHADO, 2018b). Como escravizadas tiveram sua mão de obra apropriada pelo sistema compulsório no chamado trabalho produtivo,
mas foi através do trabalho reprodutivo que seu gênero e sexo foram explorados de forma particular. Isso quer dizer que, enquanto
vigorou o princípio do partus sequitur ventrem, que garantia a hereditariedade da escravidão, tiveram seu poder de gerar e nutrir crianças explorado.4 Essa dimensão da exploração de seus corpos preciLARA, S. H. Blowin’ In The Wind: Thompson e A Experiência Negra No Brasil. Projeto História, São Paulo, v. 12, p. 43-56, 1995; e o importante e recente artigo
que desafia as problemáticas apontadas até aqui: PUREZA, Fernando Cauduro.
Cruzando olhares: estabelecendo diálogos entre E.P. Thompson e Angela Davis.
Revista Mundo do Trabalho, Florianópolis, vol. 11, 2019, p, 1-20.
4
O princípio do partus sequitur ventrem, aplicado em diversas sociedades escravistas
das Américas, colocava sobre o ventre feminino a determinação da condição jurídica do nascituro. Devemos ter isso em mente quando pensamos na reprodução
da escravidão e das condições de vida em comunidade. A Lei do Ventre Livre, de
248
História das Mulheres no Brasil Meridional
sa ser bem compreendida, tanto para pensar o sistema em si como
as experiências e agências de escravizados.
Fernando Pureza faz uma consideração importante nesse sentido, que pode servir de chave de análise para quem busca centrar a
pesquisa nas distintas formas de exploração e dominação dos corpos no sistema escravista: “Não é necessariamente a escravidão,
mas sim o trabalho de homens e mulheres que merece ser analisado como base de desenvolvimento”5 (2018, p. 14). Angela Davis,
em Mulheres, raça e classe (2016), também faz uma contribuição neste sentido, pois percebeu em diferentes relatos sobre a escravização
1871, muito conservadora em suas prerrogativas de abolição gradual, indenizada
e tutelada, também foi manejada por escravizados na garantia de seus interesses
e direitos, conforme Melina Perussatto (2010) nos informa, de modo que os sentidos da lei também são construídos em seu uso. Contudo, a lei trouxe consigo
consequências como o aumento da mortalidade de ingênuos, de acordo com Natália Pinto e Paulo Moreira (2016), e o rearranjo da família escravizada a partir
do cerceamento de senhores para manter o status quo escravista, conforme demonstrado por Marina Haack (2019). Em breve será defendida a dissertação de
mestrado de Caroline Passarini Sousa, orientada pela professora Maria Helena
P. T. Machado, sobre projetos de emancipação nas Américas, pensando especificamente nas leis que libertavam o ventre de mulheres escravizadas, ao que recomendamos antecipadamente. Sobre a Lei do Ventre Livre no Brasil ver: MENDONÇA, Joseli Maria Nunes. Legislação emancipacionista, 1871 e 1885. In:
SCHWARCZ, Lilia; GOMES, Flávio (org.). Dicionário da Escravidão e da Liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018. Ver os trabalhos citados: PERUSSATTO, Melina K. Como se de ventre livre nascesse. Experiências de cativeiro, parentesco, emancipação e liberdade nos derradeiros anos da escravidão. Rio Pardo/RS. 1860-1888. 2010. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Humanidades, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2010; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt; PINTO, Natalia Garcia. “Sem lar, viviam abrigados sob o teto da casa de seus senhores”: Experiências de vida e morte dos
filhos do Ventre Livre (Porto Alegre e Pelotas, RS – 1871/1888). In: História
das crianças no Brasil Meridional. São Leopoldo – RS: Oikos, 2016; HAACK, Marina Camilo. Sobre silhuetas negras: Experiências e agências de mulheres escravizadas (Cachoeira do Sul, c. 1850 – 1888). 2019. Dissertação (Mestrado em História). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo.
5
Fernando Pureza utiliza esse argumento a partir do que Cedric Robinson sintetizou por meio de W.E.B DUBOIS. Black reconstruction in America: toward a history
of the part of Which Black folk played in the attempt to reconstruct democracy in
America, 1860-1880. New Brunswick: Transaction Publishers, 2013. p. 47. Apud
ROBINSON, Cedric. Black Marxism: the making of Black Radical tradition. Londres: University of North Carolina Press, 2000. p. 199.
249
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
nas plantations estadunidenses que, quando convinha, as mulheres
eram desprovidas de gênero para a exploração de seu trabalho e
poderiam trabalhar tanto quanto um homem. Mas, quando o interesse era a reprodução da escravização, seus corpos eram reduzidos à categoria de fêmeas, o que incluía a violência e os abusos
sexuais.6
A violência sexual presente nas experiências de mulheres em
situação de escravização foi outro ponto que não recebeu a devida
atenção da historiografia. Vale destacar que o estupro de escravizados e escravizadas não era considerado um crime quando praticado pelo senhor, e ao negligenciar essa prerrogativa, podemos correr o risco de tratar situações de violência como agência nas relações que analisamos. Em consulta ao catálogo de processos criminais do APERS, podemos visualizar melhor esse ponto.7 O catálogo contempla pouco mais de 100 anos de crimes em que escravizados foram réus ou vítimas para toda a província, e nele há o registro de apenas 13 processos de estupro ou defloramento de escravizadas. Todas com 11 anos ou menos. Desses 13 processos, nenhum
foi praticado pelo senhor, ainda que se desconfie do parentesco
com a família senhorial em um dos casos, cuja menina de 11 anos
faleceu em decorrência dos ferimentos do chamado “defloramento”; o réu foi absolvido. Desses 13 processos, apenas seis réus chegaram a ser condenados, lembrando que nenhum deles era senhor
das vítimas. Certamente essas condenações merecem especial atenção, mas não iremos nos deter nesse ponto.
Esses números colocados aqui de maneira superficial, mas
sintomática, a partir de um levantamento abrangente e importante
feito pelo APERS, são indicativo disso que argumentamos. Crimes
de estupros que chegavam à instância jurídica deveriam ser escandalosos a ponto de abalar a imagem paternalista que senhores
diziam ter e praticar. Até para os castigos físicos, considerados par6
7
DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.
O Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul, APERS, disponibiliza em
seu site alguns catálogos, entre eles está: “Documentos da escravidão: o escravo
como vítima ou réu”. Disponível em: <http://www.apers.rs.gov.br/arquivos/
1292867959.Livro_Processos_Crime.pdf>.
250
História das Mulheres no Brasil Meridional
te do poder e dever de um senhor que visava “instruir e elevar moralmente” seus escravizados, devia ter um limite; esse limite era
permanecer circunscrito ao espaço privado quando praticado de
maneira bárbara.8 Se em mais de 100 anos não houve, para toda a
província, registro de crime de estupro praticado contra mulheres
escravizadas adultas – portanto sintoma de uma violência tolerada
e praticada como um ato legalmente legítimo pelos senhores –, precisamos problematizar o peso da violência sexual na experiência
de mulheres escravizadas, sobretudo quando nos perguntamos em
que circunstâncias a concepção de uma criança aconteceu.
Além do exposto acima, consideramos ser necessário incorporar questões como o sentido de criar, nutrir e transmitir ensinamentos no exercício da maternidade em um contexto tão violento;
é preciso questionar, por exemplo, como a mulher, a família e a
comunidade escravizada lidavam com filhos nascidos de estupros.9
8
Destacamos também que, para castigos considerados injustos, escravizados podiam responder de maneiras diversas; ver: REIS, João José e SILVA, Eduardo.
Negociações e Conflito a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia
das Letras, 1989; MOREIRA, Paulo Roberto Staudt. Os cativos e os homens de bem:
experiências negras no espaço urbano. Porto Alegre – 1858-1888. Porto Alegre:
EST Edições, 2003; LARA, S. H. Campos da Violência: Escravos e Senhores na
Capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988; MACHADO, Maria Helena P. T. Crime e escravidão. Trabalho, luta e resistência nas
lavouras paulistas 1830-1888. Editora Brasiliense, 1987.
9
Andrea Livesey é autora de um importante estudo sobre a violência sexual de
mulheres escravizadas no século XIX na Louisiana. Livesey reflete sobre o impacto e o trauma desse tipo de violência para mães e seus filhos, concebidos através do
estupro de seus senhores. Segundo ela, esse tipo de violência poderia ser ressignificado pela comunidade escravizada ao incorporar a criança como membro da família. Logo, sobre um ato de violência, a aceitação da criança poderia ser uma forma
de lidar com o trauma, comum a muitas escravizadas. Passam também por sua
análise a interferência da família senhorial sobre a autoridade e proteção materna e
a vulnerabilidade das famílias escravizadas nos momentos de instabilidade financeira dos senhores, esse último ponto já amplamente abordado na historiografia da
escravidão no Brasil. A autora problematiza a ideia de haver certo cálculo sobre a
possibilidade de liberdade ou melhores condições de vida para mulheres submetidas a relacionamentos violentos com seus senhores, contudo adverte sobre o perigo
de tratar essas estratégias desesperadas num jogo de poder absolutamente desigual
como formas de agência, visão da qual compartilhamos. LIVESEY, Andrea. Conceived in violence: enslaved mothers and children born of rape in nineteenth-century Louisiana, Slavery & Abolition, 38:2, 373-391, 2017.
251
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
Ainda relativo à maternidade, questionamos como lidavam com a
apropriação de uma senhora na criação – no suposto sentimento
maternal que elas imputaram em cartas de alforria – de seus filhos?
Como viviam essas mulheres cuja exploração e violência sexual
não podiam ser totalmente evitadas sem que as consequências fossem também devastadoras para si e os seus? Como compreender o
efeito físico, psicológico e emocional dessa violência que podia
ocorrer com suas próprias filhas e filhos? Como lidavam com a
carga excessiva de trabalho durante a gestação, amamentação e
criação de seus filhos, enquanto eram responsáveis pelo trabalho
na propriedade para o senhor e para suas famílias em afazeres cotidianos?10 Como amamentavam e cuidavam de seus filhos enquanto seu leite e cuidado eram comercializados para outros bebês senhoriais?11 Como, diante de todo o contexto apontado, lidavam
com as próprias consequências físicas, psicológicas e emocionais
de viver sob um regime como o escravista e ainda criar e ensinar
seus filhos a sobreviver sob tal violência? Como evitavam a gravidez ou tentavam, diante das insistentes tentativas de apropriação
de seu corpo, decidir se levariam a cabo uma gestação ou qual
destino seria o mais digno para seus pequenos? Como essas mulheres viveram e expressaram o sentimento da maternidade? O
quanto suas escolhas amorosas, enquanto escolhas devemos frisar, estiveram ligadas a um exercício de controle e defesa de seus
próprios corpos?12
10
Esse ponto pode ser visto em: DIAS, Maria Odila da Silva. Escravas. Resistir e
Sobreviver. In: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova
História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2013; WEST, Emily; SHEARER, Erin. Fertility control, shared nurturing, and dual exploitation: the lives of
enslaved mothers in the antebellum United States, Women’s History Review, 2017.
11
Um importante texto sobre a carga psicológica e emocional envolvida nessa
relação é: MACHADO, Maria Helena P. T. Entre Dois Beneditos: Histórias de
amas de leite no Ocaso da Escravidão. In: XAVIER, Giovana; FARIAS, Juliana
Barreto de; GOMES, Flávio (org.). Mulheres Negras no Brasil Escravista e do PósEmancipação. São Paulo: Selo Negro, 2012.
12
As orientações e pesquisas desenvolvidas por Paulo Roberto Staudt Moreira
encontram inspiradora orientação e espaço de criação, que avançam na direção
apontada em um núcleo pioneiro no Rio Grande do Sul, ao que recomendamos
fortemente que acompanhem as pesquisas do professor Paulo Moreira e os tra-
252
História das Mulheres no Brasil Meridional
É possível falar sobre agência e ainda assim pontuar todas
essas violências às quais mulheres escravizadas estavam expostas.
Aliás, apenas se pode falar de agência a partir da conscientização
dessas camadas de subjetividade e vivência que não aparecem nas
fontes com tanta frequência e exigem do historiador sensibilidade
e preparo para compreender as dimensões do gênero racializado13 na
História (SANTOS, 2020). Nossa proposta de pensar a maternidade em escravidão passa por perceber que as formas de resistência e
agência foram construídas por e sobre esse contexto, e desconsiderá-lo pode custar o erro de ignorar a construção subjetiva daquelas
mulheres.
Conforme Patrícia Hill Collins, a maternidade de mulheres
negras necessita de uma análise do ponto de vista das mulheres ou
balhos que passam e passaram por sua orientação com recorte de gênero, como
Bruna Letícia dos Santos, Marina Haack, Priscilla Almaleh, Vitor Costa, Giane
Caroline Flores, Isabella Horst, Luana Amaral e Giovana Oliveira. Além disso,
recentes pesquisas de fôlego vêm empregando esforços primordiais aos pontos
que abordamos neste parágrafo; assim, recomendamos a leitura de: ARIZA,
Marília. Mães infames, rebentos venturosos: Mulheres e crianças, trabalho e emancipação em São Paulo (século XIX). 2017.Tese (Doutorado em História), Universidade de São Paulo, São Paulo; COWLING, Camillia. Concebendo a liberdade: mulheres de cor, gênero e a abolição da escravidão nas cidades de Havana e Rio de Janeiro. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018; TELLES, Lorena Féres da Silva. Teresa Benguela e Felipa Crioula estavam grávidas: maternidade e
escravidão no Rio de Janeiro (1830-1888). 2018. Tese (Doutorado em História
Social) – Programa de Pós-Graduação em História Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. Também recomendamos acompanhar as importantes pesquisas desenvolvidas por
Caroline Passarini, Lígya Esteves, Caroline da Silva Mariano e Giovana Tardivo sob orientação da professora Maria Helena P. T. Machado, que é expoente na
pesquisa e orientação desse campo.
13
Gênero racializado é uma expressão utilizada como eixo teórico-metodológico
que proporcionou entender mulher negra como categoria de análise histórica,
conformando as características estruturais às quais essas mulheres estiveram submetidas ao longo do século XIX, assim como a dimensão subjetiva da forma
como elas lidaram em suas relações com as condições da materialidade histórica, presente em: SANTOS. Bruna Letícia de Oliveira. “Os brancos não falam a
verdade contra mim. Por que ele é homem e não havia de passar o trabalho das fêmeas”.
Maria Rita e a interseccionalidade na experiência de mulheres escravizadas.
Comarca de Rio Pardo, século XIX. Dissertação (Mestrado em História). Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, 2020 (no prelo).
253
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
daquilo que a pensadora chama de análise autodefinida, “que
desconstrua a imagem da ‘escrava feliz’, seja ela oriunda da ideia
de ‘matriarca’ criada por homens brancos. Seja a ideia de ‘mãe
negra superforte’ perpetuada pelos homens negros” (COLLINS,
2019, p. 295). Ainda que não seja uma tarefa fácil ou que os
canais de acesso à subjetividade não estejam presentes de modo
tão explícito nas fontes, é possível aos historiadores e historiadoras alcançarem esse ponto de vista autodefinido das mulheres
negras sobre suas experiências como mães, desde que estejam
com a escuta atenta e comprometida com as vozes dessas mulheres e aos indícios deixados por elas, assim como munidos
pelas premissas da interseccionalidade relacionadas ao fazer historiográfico.
Ainda segundo Patrícia Hill Collins, existem três características que permeiam a maternidade de mulheres negras – dinamismo, dialética e contradição –, fruto das ações de imposição dos sistemas de dominação e exploração, incluindo aqui o
sistema escravista, e dos esforços das mães negras e escravizadas de vivenciar suas experiências e as de seus filhos por meio
de outros sentidos que não os da extração do trabalho de seus
ventres. Ao buscarem a autodefinição sobre a própria maternidade, mulheres escravizadas também estavam reivindicando uma
outra possibilidade de existência para seus filhos, que não eram
significados por elas como meras mercadorias fruto do trabalho
de gerar vidas escravizadas.
Talvez um dos pontos mais interessantes e de grande contribuição de Patricia Hill Collins para as análises historiográficas que buscam fazer uma história da escravidão a partir da perspectiva de gênero seja o esforço da autora em demonstrar que as
experiências de mulheres negras não é nem foi única. Ainda que
estivessem no passado e presente conformadas pelas mesmas estruturas de dominação, existiu o fator de significação individual
e subjetivo, que já comentamos aqui, responsável por fazer mulheres de uma mesma condição social agirem de modos diferentes. Nessa perspectiva, podemos interpretar as marcas e ações
dessas mulheres registradas nos documentos do passado, com
254
História das Mulheres no Brasil Meridional
os quais trabalhamos como respostas subjetivas a contextos e
situações históricas, entre elas o exercício da maternidade sob o
jugo da escravização.
É por essa perspectiva que interpretamos os infanticídios
cometidos por escravizadas, de modo que comentaremos dois
casos. Antes disso, gostaríamos de fazer algumas considerações
sobre a forma como casos dessa natureza já foram pensados pela
História. Via de regra, os infanticídios foram interpretados como
resistência à escravidão, contudo, Maria Lucia Mott (1989) chamou a atenção para o fato de que considerá-los apenas por esse
ponto de vista, mesmo que verdadeiro, era reduzir a questão.
Concordamos com essa crítica, pois nesse caso a compreensão
se restringe ao entendimento da relação dominação-resistência
focalizada na imposição escravista, deixando de lado aspectos
que podem complexificar a análise, como o ponto de vista de
mulheres escravizadas sobre suas ações e escolhas. Isso nos permite entender a forma como cada mulher lidou com o fato de as
estruturas de poder incidirem sobre seus corpos e seus afetos e
sobre aqueles que não lhes pertenciam legalmente, mas eram
extensões de si mesmas, pois tinham sido gerados pelo corpomulher-escravizada.
Como já pontuou Marina Haack (2019, p. 164), “surpreenderia [aos proprietários] se soubessem que nem todas as decisões tomadas por escravizados orbitam em torno da casa senhorial e diziam respeito à sua própria existência e à forma de sobrevivência do que mero cálculo de perdas ou lucros em mil réis”.
Assim como surpreenderia também a forma como pensava a historiografia outrora. Dessa forma, os infanticídios podem ser interpretados como atos dialógicos sobre sensibilidades femininas
– ou humanas – na História. Assim, as diferentes mulheres escravizadas que cometeram infanticídios podem tê-lo significado
de modos distintos em si mesmas, de acordo com a forma como
vivenciaram o sentimento da maternidade diante das combinações interseccionais.
***
255
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
Leopoldina e Maria Rita foram mulheres que passaram pelo
processo de escravização. A primeira neta de uma africana da Guiné, a segunda uma africana mina-nagô. Ambas passaram pela experiência da maternidade e guiaram seu filho e filhas na jornada da
travessia num ato que somente Toni Morrison poderia traduzir em
palavras. Assim, Leopoldina e Maria Rita recolheram “cada pedaço de vida que tinham feito, todas as partes que eram preciosas,
boas, bonitas, e carregaram, empurraram, arrastaram através do
véu, para fora, para longe. Fora desse lugar, onde eles estariam seguros”14. O assassinato de suas crianças foi um ato extremo, de
todos os sentimentos que podemos tentar descrever, mas também
um ato de retomada do poder de escolha, de cuidado e do que
julgavam melhor para os que haviam gestado, amamentado e cuidado da maneira que lhes era possível. Mães negras, de ensinamentos, ancestralidade e sangue africano correndo em seus corpos,
rés de um sistema judicial branco e escravista, que não poderia permitir mães escravizadas agindo a despeito de ordens senhoriais. A
punição veio, exemplar, mas é a trajetória que queremos esmiuçar,
pois é ela que nos revela fragmentos de histórias que se cruzam na
maternidade e no corpo.
Acreditamos que Maria Rita tenha nascido por volta de 1820,
provavelmente na chamada Costa da Mina. Não temos registros
sobre a sua travessia. No entanto sabemos que, no processo extremamente cruel, necessário para a transformação de pessoas em ferramentas de trabalho, o sistema escravista privou-as de si mesmas
através da negação de identidades e imposição de outras, ressignificadas pelos próprios africanos e africanas. A diáspora negra foi fundada nesse movimento de sequestro físico e pela tentativa de extração de humanidades, combatido com as estratégias de continuidade de existência, guardada pelos corpos escravizados desde a camada mais superficial da pele negra até as mais profundas marcas
14
O trecho foi adaptado para o plural; o original é: “Recolheu cada pedaço de vida
que tinha feito, todas as partes que eram preciosas, boas, bonitas, e carregou,
empurrou, arrastou através do véu, para fora, para longe. Fora desse lugar, onde
eles estariam seguros.” MORRISON, 2007. p. 222.
256
História das Mulheres no Brasil Meridional
de outro sentido de mundo. É desse ponto de vista que interpretamos a identidade mina-nagô reivindicada e autodeclarada por Maria
Rita durante o espaço-tempo de seu julgamento.15
Nesse percurso, além das identidades individuais e das concepções de mundo silenciadas, o direito ao próprio corpo e também à liberdade para o exercício de afetividades foram negados.16
Toni Morrison expressa muito bem o não espaço para o exercício
de sentimentos ao qual indivíduos escravizados estavam submetidos nesse trecho do romance já citado: “Ele sabia exatamente do
que ela estava falando: chegar a um lugar onde você podia amar
qualquer coisa que quisesse – sem permissão para desejar –, bom
ora, isso era liberdade” (2007, p. 221).
Maria Rita nunca aceitou essas imposições e condições de
existência. Na terra colonizada Brasil, mais precisamente em Rio
Pardo, no distrito de Capivari, ao longo da primeira metade do
século XIX, continuou dizendo quem ela era, de onde tinha vindo
e de que forma entendia e sentia o mundo e a si mesma, não permi15
Como indicação sobre o uso da diáspora como perspectiva de análise, destacamos os importantes estudos: GILROY, Paul. O Atlântico Negro: modernidade e
dupla consciência. São Paulo: Ed 34; Rio de Janeiro: Universidade de Cândido
Mendes, Centro de Estudos Afro-asiáticos, 2001; HALL, Stuart. Da diáspora:
identidade e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG; Brasília: representações da Unesco no Brasil, 2003. Sobre o sentido de mundo Yorubá e
apontamentos sobre o uso gênero nas análises históricas relacionadas a mulheres africanas, ver: OYEWÙMÍ. Oyeronké. La invención de las mujeres. Una perspectiva africana sobre los discursos occidentales del género. Bogotá: Editorial en
la Frontera, 2017, principalmente o Capítulo 2 – La (re)constituión de la cosmología y las instituciones de Òyó-Yorùbá: Articulación del sentido del mundo
yorubá. Sobre a identidade mina manipulada por mulheres ao longo do período
escravista no Brasil, ver: FARIA, Sheila de Castro. Sinhás Pretas, Damas Mercadoras. As pretas minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (17001850). Tese apresentada ao Departamento de História da Universidade Federal
Fluminense, concurso para Professor Titular em História do Brasil, Niterói, 2004;
GRAHAM. Sandra Lauderdale. Ser mina no Rio de Janeiro do século XIX.
Afro-Ásia, 45, 2012.
16
A título de indicação de leitura sobre afetividades e experiências negras em diáspora destacamos: HOOKS, Bell. Vivendo de amor. Disponível em: <https://
www.geledes.org.br/vivendo-de-amor>. HOOKS, Bell. Olhares negros raça e representação. São Paulo: Elefante, 2009. Ver principalmente a Introdução – Atitude
revolucionária e o Capítulo 1 – Amando a negritude como resistência política.
257
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
tindo que homens brancos, figuras que representavam o poder escravista, determinassem de que forma ela deveria viver a maternidade e expressar amor pelos seus próprios filhos.17
Na noite de 26 para 27 de outubro de 1850, Maria Rita vestiu as filhas com as melhores roupas que tinham em um gesto de
amor-cuidado, expresso no momento de preparação para a travessia do véu, levando consigo as filhas para um lugar onde talvez o
amor pudesse ser vivido e onde, por fim, a humanidade pudesse
ser reencontrada. Entretanto, entendemos que, antes de matar as
filhas, Maria Rita havia decidido morrer com base na experiência
de sujeito-mulher-escravizada e por isso não poderia deixar nas
mesmas condições de existência aquelas que carregavam no corpo a mesma marca que a sua – a capacidade e o poder de gerar
vidas dentro de si.18 Contudo, a sua tentativa de suicídio não teve
o final esperado. A partir desse momento, Maria Rita caiu nas
malhas da justiça, sendo privada da liberdade, agora em um outro espaço, igualmente escravista. O promotor público que acusou Maria Rita apenas a reconheceu como mãe para criminalizála pelo prejuízo que havia dado a seu senhor ao matar duas crianças escravizadas e pelo risco que essa atitude representava à estabilidade da ordem social, acionando o caráter da maternidade
para manter sob controle outras mulheres que pudessem fazer o
mesmo que Maria Rita.
Maria Helena Machado (2018a) alerta que, por mais que fosse
reconhecido o trabalho de reprodução como a dupla exploração
das mulheres escravizadas, a maternidade era negada a essas mulheres. Segundo a historiadora, é mais fácil encontrar na literatura
e registros da época relatos sobre questões ginecológicas do que
sobre as suas experiências de maternidade. Sob o sistema escravista, as funções relacionadas à maternidade, como, por exemplo, ges-
17
Uma análise mais aprofundada acerca da maternidade de Maria Rita está presente em SANTOS (2020).
18
As pesquisas de Silmei Petiz (2009), Melina Perussatto (2010) e Roberta Zettel
(2011) trazem dados que mostram que, durante todo o século XIX, o nascimento de escravizados ditos crioulos foi importante para a composição das escravarias para a região de Rio Pardo. ZETTEL, 2011.
258
História das Mulheres no Brasil Meridional
tar, amamentar, cuidar e criar, eram tidas como um trabalho da
mulher escravizada em prol do sistema econômico e da prole senhorial (MACHADO, 2018a, p. 330):
Existe uma vasta coleção de fotografias dedicadas a retratar a
escravidão; nota-se a existência de significativa coleção de cartes visite de fotos de álbuns de família nos quais constam imagens de amas de leite com crianças brancas. No entanto as fotografias de mulheres negras com seus filhos são raras, e as que
existem retratam a mulher escrava carregando seus filhos às
costas trabalhando.
No julgamento de Maria Rita, a acusação pediu que se aplicasse o grau de pena máxima, ou seja, a pena de morte por enforcamento, nas palavras do promotor público Antônio Vicente de Siqueira Leitão, para que servisse de exemplo contra causa tão horrorosa.19 Postura e desejo que não mudou mesmo após a absolvição
da ré em júri popular, que foi sensibilizado pelo sofrimento da
maternidade escravizada e pelo argumento de loucura utilizado
por seu defensor, o advogado Antônio Alves Guimarães de Azambuja20. Em 9 de dezembro de 1850, o processo de Maria Rita se-
19
O Código Criminal de 1832 do Império do Brasil, em seu título III. Dos crimes
contra a segurança individual. No capítulo 1 – Dos crimes contra a segurança da
pessoa e da vida. Seção 1 – Homicídio, diz: art 192. Matar alguém com qualquer
das circunstâncias agravantes mencionadas no art.16, n° 2,7,10, 12, 13, 14 e 17.
Penas – de morte no grau máximo, galés perpétuas no médio; e de prisão com
trabalho por vinte anos no mínimo.
20
Ressaltamos que o caso de Maria Rita é de 1850, anterior à Lei de Ventre Livre
(1871). Dessa forma, não havia ainda o argumento legal sobre o direito à maternidade de mulheres escravizadas, pois os seus ventres ainda eram cativos. Assim, para além da sensibilização do júri, não havia base legal que sustentasse o
lugar da maternidade escravizada. Contudo, já era possível perceber os discursos que iriam circular pelas arenas judiciais durante a segunda metade do século
XIX em torno da centralidade da disputa pela maternidade para a manutenção
da escravização e as conquistas de liberdade. No item 3.4 Mãe-escrava: discursos
sobre a maternidade e a mulher negra (SANTOS, 2020), pode ser vista uma análise
atenta sobre os discurso das peças que compõem o processo de Maria Rita, relacionando-os com os discursos médicos, jurídicos e de apelo popular do período.
Por ora indicamos novamente a pesquisa de Camillia Cowling (2018), sobretudo a parte 1 – Gênero, Legislação e escravidão urbana e parte 2 – Em busca da
liberdade.
259
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
guiu para o Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, com o pedido
de revisão da sentença a partir daí não sabemos qual foi o destino
final dessa preta mina-nagô.21
Na decisão pela morte de si mesma e daquelas que eram
extensões de sua existência significada como a de mulher escravizada, Maria Rita escolheu deixar vivo o seu filho mais novo, um
menino-homem, pois, segundo ela, “os homens não passavam
pelos trabalhos das fêmeas”22. Nesse ato-escolha de si mesma,
Maria Rita, além de nos deixar evidências sobre sua subjetividade marcada pelo fato de ser mulher, deixou-nos também o registro sobre a centralidade histórica do corpo das mulheres escravizadas daquele tempo para a consolidação e manutenção do sistema de exploração baseado no partus sequitur ventrem. Do mesmo
modo, na fala-registro sobre o seu ato, a mulher Maria Rita presenteou-nos com uma chave de análise para a interpretação histórica do processo de escravização e também dos processos de luta
pela emancipação. A voz de Maria Rita, registrada há 170 anos
de forma terceirizada pelo escrivão, comunica que o modo como
sujeitos históricos viveram e sentiram as estruturas sociais objetivas foi diferente, e isso está relacionado à forma como a exploração do trabalho se apropriou das características específicas de
nossos corpos de acordo com nossas diferenças biológicas por
meio do sistema econômico.23
Além disso, a escolha pelo não assassinato do filho evidencia que essa foi uma escolha consciente de Maria Rita, baseada na
21
Até 1874, quando foram criados os Tribunais de Relação de Porto Alegre, Ouro
Preto, São Paulo Goiás, Mato Grosso, Belém e Fortaleza, só existiam Tribunais
na Bahia, Rio de Janeiro, Maranhão e Pernambuco. O tribunal do distrito do
Rio de Janeiro era o responsável por receber as apelações da Região Sul. Por
esse motivo o pedido de apelação da decisão do júri de Maria Rita foi enviado
para lá (GRINBERG, Keila, 1994, p. 11).
22
O trecho foi adaptado do original: porque ele é homem e não havia de passar o
trabalho que as fêmeas passam. APERS, Cível e Crime. P 29, M 1, E 50. Ano de
1850.
23
Tecemos essa interpretação sobre as formas de exploração do trabalho escravizado através das obras de E. P. Thompson e Angela Davis, já referenciadas,
mediadas principalmente pelas observações feitas por Fernando Pureza (2019)
em texto também já referenciado por nós.
260
História das Mulheres no Brasil Meridional
realidade interseccionada por gênero, raça e condição jurídica à
qual seu corpo estava submetido e localizado socialmente. Assim,
ao localizar-se nessa sociedade como fêmea, Maria Rita expressou
também o lugar dos homens escravizados a partir da diferenciação
da condição social de seu filho, conforme a marca do sexo que ele
carregava. Essa mina-nagô, considerada atrevida e de gênio ruim
em seu tempo, exemplificou por meio de sua interpretação sobre a
dinâmica escravista que todas as significações sociais de dominação foram construídas de forma relacional – homem-mulher; branco-negro; livres-escravizadxs; etc. – e que essas categorias podem
se intersectar sobre os mesmos corpos. Para além disso, seguindo a
perspectiva de pensar as subjetividades e os afetos na História, gostamos de considerar que Maria Rita deixou sua esperança viva no
corpo-homem de seu menino mais novo, pois ele não carregava
dentro de si o poder de gerar vidas transformado em trabalho de
reprodução e manutenção do escravismo, ou seja, no trabalho das
fêmeas.
O segundo caso que buscamos analisar aqui para pensar experiências de maternidade é o de Leopoldina, que pode ser pensado a partir de várias perspectivas, desde o fato dela ser a terceira
geração de uma família que foi escravizada na mesma propriedade
até a organização do trabalho nesse espaço.24 Mas nosso objetivo
será pensar como a maternidade era uma vivência em disputa, sobretudo para mulheres escravizadas e libertas. Leopoldina assassinou seu filho no dia 31 de dezembro de 1873 em Cachoeira do Sul
devido os maus-tratos que sofriam da nova senhora e a iminente
alforria de sua mãe, demonstrando que a maternidade era, para
além das inseguranças e violências, um lugar de acolhimento, pertencimento e proteção. Era seu objetivo, como parece ter sido comum em muitos atos desse tipo, cometer suicídio após fazer a passagem de seu filho. Não sabemos se havia alguma crença entre eles
de que iriam se reencontrar após a travessia ou se foram iniciados
em algum ritual que lhes permitiria esse (re)encontro. Não sabe-
24
APERS, Cível e crime. N 3185, M 9, E 56, Ano de 1874; processo de Apelação
N 3181, M 9, E 56, Ano 1874, ambos Cachoeira.
261
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
mos se foi para Orixás, santos, Deus ou outras divindades que Leopoldina rogou por forças para conseguir concluir aquele acordo,
firmado no mesmo dia com Paulino. Sabemos sim que o encontro
foi adiado, pois os planos de Leopoldina tiveram que ser remanejados (HAACK, 2019).
Presa e passando por um longo julgamento, Leopoldina encontrou um defensor no processo que iria manejar e despertar os
sentimentos maternais mais profundos daqueles que decidiriam
sua inocência ou culpa. Tal argumentação não era descabida; a
maternidade despertava o interesse de observadores, médicos e
abolicionistas nas décadas finais do século XIX. Ludmila Maia
aponta que, já na década de 1850, é possível perceber críticas à
escravidão denunciando a crueldade da separação de mães e seus
filhos na venda de famílias (MAIA, 2017). Todavia, a maternidade era envolta em preconceitos cuja raça era determinante. Acreditava-se que mulheres negras sentiam menos dores no parto,
pois tinham uma anatomia diferente das mulheres brancas, além
de estar habituadas ao trabalho duro, o que as tornaria mais resistentes à dor (MAIA, 2017). Tal preconceito perdura, como
sabemos, até a atualidade.25 Já as mulheres brancas, pertencentes
a classes mais abastadas, iriam desempenhar um papel fundamental no desenvolvimento da nação, pelo menos era o que médicos e
higienistas acreditavam (CARULA, 2016). A nação que seria gestada no retorno das mães brancas às funções como amamentação e
cuidado era também a nação que hierarquizava indivíduos da escravidão ao pós-abolição pela cor da pele, que colocava a mãe negra como imoral e incapaz de criar bons indivíduos para o futuro
da nação. Ambas as perspectivas eram fundamentadas no cientificismo e na abrangência do darwinismo social. Conforme Marília
Bueno Ariza, “a consolidação dessa nova configuração normativa
fazia da família nuclear um microcosmos da sociedade que se desejava construir – e, nesse projeto, a mulher desempenhava papel fulcral” (2017, p. 51).
25
Grávidas negras e pardas recebem menos anestesia no parto. 21.03.2014. Disponível
em: <https://www.geledes.org.br/gravidas-pardas-e-negras-recebem-menosanestesia-no-parto/>.
262
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tendo esse contexto em mente, é possível dar uma interpretação ao desfecho do julgamento de Leopoldina, que leva em consideração justamente as disputas em torno da maternidade, bem
como seus significados. O defensor da ré argumentou sobre um
possível estado de loucura, pois só nesse estado seria concebível
uma mãe praticar tal crime. Esse argumento foi aceito pelo júri em
um primeiro momento, mas não pelo juiz de direito, e sua explicação para isso é muito sintomática da relação interseccional que se
formava ali. Ao apelar do resultado do júri para o Tribunal da Relação do distrito, o Doutor Augusto Cesar de Medeiros disse que
“o defensor nomeado, esforçando-se para subtraí-la da punição,
estabeleceu como ponto de defesa o achar-se ela em estado de loucura, quando cometeu o crime”. Contudo, segundo o juiz, a loucura momentânea não poderia ser averiguada por um médico; e continua: “Além disso, a loucura transitória é um fato psicológico posto em dúvida e contestado pela maior parte dos médicos”. Ao invocar conhecimento científico e médico, Augusto de Medeiros demonstrou não apenas que tal saber era importante no exercício de
sua função, mas também conhecedor das prerrogativas determinantes para enquadrar determinados sujeitos em certas patologias
e comportamentos. Exatamente por isso que o juiz reforçou que
Leopoldina cometeu o crime de sã consciência, motivada por inveja e vingança.
Inveja, pois Paulino era liberto, embora ambos não soubessem desse fato, e ele tenha vivido como escravizado durante
toda a sua vida.26 Vingança, pois a morte de Paulino era a forma
como Leopoldina poderia atingir os senhores que tanto o estimavam. Conforme Karoline Carula (2016), um dos argumentos
científicos determinantes para a condenação do uso de amas de
leite era o fato de que tais mulheres, africanas e suas descendentes, corrompidas pela escravidão, passariam qualidades indesejáveis através do leite aos bebês senhoriais. Inveja, vingança e
26
Paulino foi libertado no testamento da primeira esposa de seu senhor. APERS.
Testamento. 1868 – Joaquina Maria da Conceição. Número 355, Estante 143,
Caixa 415.
263
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
maldade conscientes, atributos que o juiz se esforçou em fazer
emergir sobre o ato de Leopoldina, o que surtiu efeito, pois a
nova sentença do júri foi condenatória. Além disso, o argumento da loucura não se poderia encaixar no caso de Leopoldina,
porque como mulher negra ela estava fora dos estereótipos associados às brancas, dentre os quais a loucura, conforme Maria
Helena Machado (2018a, p. 336):
Os ideais de privacidade burguesa, que decantavam a fragilidade extrema da mulher e da mãe, cujo mero contato com
o mundo público masculino podia conduzi-las a uma série
de doenças e desequilíbrios – histeria, infertilidade, prostração, melancolia e loucura – não podiam ser aplicados a
mulheres negras trabalhadoras, que ficavam fora dos estereótipos de gênero.
Nem após a morte de seu filho, Leopoldina pôde descansar da busca por ter sua maternidade reconhecida, lutando por
alternativas às amarras brancas escravistas que tentavam privála de tal exercício durante a curta existência de Paulino. A despeito dessa desconsideração pela maternidade negra, famílias
formaram-se e mães exerceram da maneira como podiam a proteção de seus filhos.27 O discurso em torno da mãe ideal – que
deveria ser branca – foi disputado nas arenas judiciais, isto é,
mulheres negras disputaram esse lugar de boas mães, e isso fica
claro quando olhamos para os processos de tutela em que estas
mulheres buscaram ter sua maternidade reconhecida e se disseram mães a despeito de não ser consideradas aptas para.28 Leopoldina provavelmente passou momentos duros sozinha na cadeia; a pena de 20 anos de galés castigou seus ossos cansados, e,
27
Entre os estudos da historiografia rio-grandense, destacamos a pesquisa de Sherol Santos, que privilegiou a observação da formação de famílias escravizadas
em Santo Antônio da Patrulha. SANTOS, 2009. E o trabalho defendido recentemente por Vitor da Silva Costa, em que o pesquisador investigou a formação e
trajetória da família Baptista da Silva pela perspectiva do pós-abolição, recuando a temporalidade de análise até o século XIX, destacando a figura da africana
mina Lívia para a formação da família. COSTA, 2020. (No prelo)
28
Essa problemática é desenvolvida melhor no segundo capítulo de HAACK, 2019,
também em: HAACK, 2019b, Florianópolis/SC.
264
História das Mulheres no Brasil Meridional
ainda assim, provavelmente o que mais deve ter sido doloroso
foi estar sozinha, sem sua própria mãe e filho. Leopoldina era a
terceira geração de uma família nascida do ventre de uma africana da Guiné no Brasil, aprendeu a maternidade com suas ancestrais, assim como aprendeu a partir de sua própria experiência também. Da mesma forma como foi ensinada, ensinou Paulino sobre como sobreviver sob aquele sistema, mas ela própria
ainda não sabia como o fazer sem a presença de sua mãe. O
crime de Leopoldina foi ter exercido sua maternidade e ter decidido seu futuro; o crime foi escolher para si e para aquele que
nasceu de seu ventre o que era melhor diante das circunstâncias
que viviam.
Conclusão
A dimensão da liberdade apresentada por Toni Morrison
no romance que inspirou nossa escrita aqui e completou nossa
análise histórica social interseccional foi central para pensarmos
os atos cometidos por Leopoldina e Maria Rita, mulheres que
certamente sentiram o poder de si mesmas ao trazer ao mundo
vidas novas e exerceram a liberdade sob a condição jurídica da
escravização ao consumar o ato da morte de seu filho e filhas,
assim como na escolha por deixar de existir. Pois, afinal, o que
as pessoas fizeram com os sentimentos que não poderiam ser
vividos pela realidade social imposta?
As impossibilidades ou restrições de liberdade para a construção de relações de afeto através dos laços de maternidade,
paternidade, de filhos com suas mães e pais, ou de relações amorosas e de amizade talvez tenham sido a extensão mais profunda e dolorosa da escravização, pois, como bem lembrou Bell
Hooks (2009, s/p.), “num contexto onde os negros nunca podiam prever quanto tempo estariam juntos, que forma o amor tomaria?”29.
29
HOOKS, Bell. Vivendo de amor. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/
vivendo-de-amor>.
265
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
Leopoldina e Maria Rita mostram-nos que, por vezes, o
amor tomou forma de infanticídio, resultado da subjetivação das
estruturas interseccionais de dominação, de acordo com os contextos específicos da condição social em que se encontravam,
expressos em atos individuais e únicos de mulheres e homens
escravizados.30 Esses atos podem ser interpretados como respostas distintas, tipificadas, às vezes, pelo mesmo nome na esfera
pública e de justiça. Nos casos analisados acima, é isso que se
observa, pois foi possível verificar motivos e significados próprios
de cada uma das mulheres para a efetivação dos infanticídios
que cometeram, assim como para as tentativas de suicídio.
Leopoldina temia pela nova situação que se materializava
em sua vida. Com a iminente alforria da mãe, perderia talvez a
segurança transmitida por aquela em quem reconhecia pertencimento através da condição de filha, podendo ser sua mãe também um espelho de onde assumia sua própria maternidade. Perder isso seria um corte profundo demais em sua pele escravizada e já cheia de cicatrizes. Assim, decidiu em acertar com Paulino a morte dos dois, pois não poderia deixar o filho na mesma
solidão da qual queria fugir.
Maria Rita tinha convicção sobre o que a vida de uma
mulher não poderia ser; talvez carregasse com tanta altivez o
seu corpo-mulher mina-nagô, que em hipótese alguma aceitou
ver o seu poder de nutrir e criar vidas reduzido à reprodução da
escravização. Temia pelas próximas vezes em que seria feita de
lugar para o exercício da dominação e transmissão da condição
social escravizada. Temia pelas filhas que carregavam o mesmo
poder, o mesmo corpo, a mesma altivez e contraditoriamente a
mesma capacidade de reprodução do sistema escravista. Por isso
escolheu livrar-se com elas daquela vida, deixando outra diferente da sua em seu menino-homem. Teoricamente, Patricia Hill
Collins (2019, p. 57) descreve as histórias que contamos aqui da
seguinte maneira:
30
Uma análise sobre os processos de subjetivação da racialização pode ser vista
em: FANON, 2008.
266
História das Mulheres no Brasil Meridional
A ideia de interseccionalidade se refere a formas particulares de opressão interseccional, por exemplo, intersecções
entre raça e gênero ou entre sexualidade e nação. Os paradigmas interseccionais nos lembram que a opressão não é
redutível a um tipo fundamental e que as formas de opressão agem conjuntamente na produção da injustiça. Em contrapartida a ideia de matriz de dominação se refere ao modo
como essas opressões interseccionais são de fato organizadas. Independentemente das intersecções específicas em
questão, domínios de poder estruturais, disciplinares, hegemônicos e interpessoais reaparecem em formas bastante diferentes de opressão.
A matriz de dominação – gênero, raça, condição jurídica
– estava colocada pelo sistema escravista a Leopoldina e Maria
Rita, entretanto na trajetória de cada uma havia a particularidade das situações de escravização em que estavam colocadas, no
caso delas em específico, atravessadas pela maternidade, transversalidade a partir da qual cada uma lidou em seu lugar de
morada, isto é, na subjetivação, com o fato de ser mulher. Como
não sabemos quem eram os pais das crianças que passaram pela
travessia, consequência de um sistema que desconsiderava as
relações familiares não sacramentadas pela Igreja e pela única
necessidade de garantir a posse de um escravizado pelo registro
da mãe, não sabemos em que circunstâncias aquelas crianças
foram concebidas. Tanto Maria Rita como Leopoldina talvez
tenham passado por um processo de ressignificação da concepção de seus filhos; talvez ainda Maria Rita quisesse proteger suas
filhas do trauma que estupros deixavam. Isso nos faz questionar
a própria idealização de maternidade escravizada. Ao longo deste
texto, ressaltamos que cada mulher, mesmo diante de circunstâncias similares, significava suas experiências; isso quer dizer
que a maternidade podia ser um elo, um sentimento de pertencimento, lugar de acolhimento e amor. Mas poderia ser um lugar de sofrimento, de um vínculo diferente da ideia de maternidade a que estamos acostumados; os filhos podiam não ser amados maternalmente, e lidar com isso é enfrentar aquilo que colocamos no início deste texto: não podemos essencializar os significados e vivências de ser homem e mulher.
267
SANTOS, B. L. de O. dos; HAACK, M. C. • História social da escravidão sob a
perspectiva interseccional: mulheres escravizadas e as experiências...
Como apontamos anteriormente, também é necessário que
se olhe para o gênero nas análises sobre homens escravizados.
O que significava ser um homem escravizado num sistema patriarcal que hierarquizava seres humanos pela raça e condição
jurídica? O que significava ser um homem escravizado cuja possibilidade de exercício da masculinidade era atravessado pela
escravidão? Como entender esse gênero racializado nas experiências de homens, levando em consideração uma perspectiva
diaspórica? Podiam exercer poder sobre suas companheiras?
Como compreender a violência cuja motivação parte de um exercício tolhido ou exacerbado da masculinidade, tendo em vista o
contexto patriarcal e escravista? São perguntas interessantes para
começar e, quem sabe, estimular novos estudos. E, por fim, esperamos que este texto contribua para um olhar interseccional
nas pesquisas futuras sobre escravidão e se somem cada vez mais
trabalhos interessados numa abordagem pela história social e
pelas epistemologias do feminismo negro.
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273
“E elas ainda tinham filhos!”:
mulheres e trabalho na antiga
colônia alemã de São Leopoldo
(final do século XIX e início do século XX)
Marlise Regina Meyrer
Daniel Luciano Gevehr
Pela sua irreverência, ironia e espontaneidade, a fala das mulheres é
prenhe de subversão. Ela conserva esse no-que-me-diz-respeito, essa distância que permite que os humildes preservem sua identidade. Resgatem sua memória. É também pelas mulheres [...] que se transmite,
muitas vezes de mãe para filha, a longa cadeia de histórias de família
ou aldeia. Enquanto a escola, as formas modernas de organização, o
próprio sindicalismo, constroem histórias oficiais, depuradas e acabadas, as mulheres guardam o traço do que se gostaria de recalcar. [...] as
lembranças da escravidão [...] persistem entre o povo brasileiro através
das velhas avós. E os pesquisadores de história oral conhecem por experiência própria a diferença entre a relação dos homens e a das mulheres
com seu passado: homens mudos, que esqueceram quase tudo o que
não tem ligação com a vida do trabalho; mulheres faladoras, a quem
basta apenas deixar vir à onda de lembranças, por pouco que se as
interrogue a sós: o homem habituou-se demais a impor silêncio às
mulheres, a rebaixar suas conversas ao nível de tagarelice, para que
elas ousem falar em sua presença (PERROT, 1992, p. 206-207).
O estudo trata das memórias sobre a agência feminina nos
diferentes espaços da sociedade teuto-brasileira na região de imigração alemã do Vale dos Sinos (localizado na Região Metropolitana
de Porto Alegre, Rio Grande do Sul) entre o final do século XIX e as
primeiras décadas do século XX. Essa escrita tem dois pontos de
partida: o primeiro é um acervo de entrevistas coletadas no início
dos anos 1990 na região do Vale dos Sinos sobre as atividades econômicas desenvolvidas pelas mulheres na região; o segundo trata da
vivência d@s autor@s nessa região, que possibilitaram uma troca de
274
História das Mulheres no Brasil Meridional
conhecimentos vivenciados, seja através das histórias que nos foram
contadas como pela observação empírica e a relação dessa com o
processo de formação acadêmica no campo da História.
As narrativas que servem de fonte para pensarmos as relações de gênero foram coletadas antes mesmo desse conceito ser
amplamente conhecido e difundido na academia. É somente em
1990 que foi traduzido no Brasil o texto seminal de Joan Scott
“Gênero: uma categoria útil para análise histórica”, no qual muitas historiadoras brasileiras se basearam para o desenvolvimento
posterior de suas pesquisas (PEDRO, 2005, p. 88). A história das
mulheres estava começando a entrar na academia decorrente, em
parte, do aumento dos cursos de pós-graduação no país.
O avanço da história social das mulheres e estudos de gênero, sobretudo partir da década de 1980, consolidou-se como um
novo campo de estudos (OLIVEIRA, 2018, p. 115). Além disso,
esses estudos tornaram-se fundamentais para pensar também o campo da política, sendo impossível hoje “discutir a teoria política ignorando ou relegando às margens a teoria feminista, que, nesse
sentido, é um pensamento que parte das questões de gênero, mas
vai além delas, reorientando todos os nossos valores e critérios de
análise” (MIGUEL, 2014, p. 17).
Assim, ao retomar esses relatos, o desenvolvimento tanto da
história das mulheres como dos estudos de gênero está presente na
nossa percepção e problematização do tema, enquanto sujeitos
historiador@s, cuja relação com as fontes sempre é entrecruzada
com o contexto histórico, sua própria experiência e as discussões
teóricas de seu tempo, pois, conforme Scott (1999, p. 16), “experiência é uma história do sujeito. A linguagem é o local onde a
história é encenada. A explicação histórica não pode, portanto, separar as duas”. Nesse sentido, a autora discute o significado de
determinadas categorias para estudar o passado pelos historiadores, chamando a atenção de que não há uma relação essencialista
entre as palavras e as coisas; categorias como classe, raça, gênero,
entre outras, são sempre contextuais (SCOTT, 1999, p. 19).
A fim de estruturar metodologicamente a pesquisa, recorremos a depoimentos orais de descendentes de imigrantes morador@s
das zonas de imigração alemã do Vale do Rio dos Sinos que tratas-
275
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
sem do universo feminino e do cotidiano dessas mulheres, que poderiam nos informar acerca da atuação desse grupo na sociedade
teuto-sul-rio-grandense em seu processo de desenvolvimento. Detivemo-nos aos relatos das “mulheres comuns”, aquelas cujas vivências não entraram no rol da excepcionalidade e por isso não
tiveram lugar na narrativa histórica.
Não queremos aqui compactuar com a ideia generalizada
de que a história oral sirva especificamente para contar a história
dos menos favorecidos, atribuindo a esse grupo uma teórica incapacidade de produzir sua própria história. Entretanto, essa metodologia de fato significou uma maior possibilidade de escrever a
história dos excluídos na medida em que as fontes escritas sobre
esses grupos, especialmente em períodos mais distantes no tempo,
são escassas. No caso das mulheres, Perrot (1992) utiliza a expressão “revanche das mulheres” ao se referir aos usos da história oral,
afirmando que ela se tornou a fonte mais utilizada para esse tipo de
estudo devido à quase ausência de material sobre o tema.
Cientes dos questionamentos que envolvem a história oral,
especialmente no que diz respeito à sua carga de subjetividade, analisamos os relatos à luz de referências bibliográficas sobre o contexto em questão, pois concordamos com Janoti (2010) quando ela
aponta para a necessidade de recorrer a fontes múltiplas, lembrando
que o testemunho do depoente não é apenas um relato do que viu e
ouviu, mas uma construção de um determinado discurso sobre o
fato. Além disso, a autora chama a atenção para a necessidade metodológica de levar em consideração os objetivos do entrevistador,
nesse caso o historiador, que domina todo um aparato teórico que
orienta a entrevista e influenciará a construção do discurso.
Consideramos importante mencionar que a pesquisa realizada fundamenta-se na perspectiva da história oral, proposta por
Dadalto e Pavesi (2020, p. 144), que defendem a ideia de que se
trata de uma pesquisa cujo percurso envolve o narrador e o entrevistador numa perspectiva relacional e dialógica e que contempla
uma perspectiva que envolve “o hoje/presente ao qual nos referimos e o passado – a memória – do qual estamos falando; a esfera
privada e a pública, a autobiografia e a história; e, por fim, a relação entre a oralidade da fonte e a escrita do pesquisador”.
276
História das Mulheres no Brasil Meridional
Desataca-se, nessa perspectiva, o fato de que a história oral
liga-se diretamente à questão da memória. Interessa-nos, aqui, a
elaboração da memória coletiva do grupo, que fundamenta sua identidade. Nesse sentido, o conjunto de depoimentos e seu significado
são entendidos na medida em que se referem à mesma realidade,
ou seja, uma realidade comungada por todo o grupo social, adquirindo dessa forma um significado coletivo. Entendemos que a articulação entre as narrativas individuais possibilita-nos vislumbrar a
perspectiva histórica do grupo, ou seja, um mesmo olhar do presente sobre o passado, revelando reflexões sobre si e a história do
grupo, enfatizando o caráter reflexivo dos processos de memória,
que nos remete à ideia de identidade.
As histórias de vida, assim, acabam por criar uma identidade entre as pessoas na medida em que partilham diferentes estratégias e saberes diante de uma mesma realidade. Nesse sentido, apoiamo-nos no conceito de memória coletiva de Halbwachs
(2004), que se refere ao caráter social da memória partilhada entre
os indivíduos do grupo. A partir desses pressupostos teórico-metodológicos, buscamos caracterizar as realidades do cotidiano do trabalho, do grupo formado pelas mulheres na zona de imigração alemã no início do século XX.
Tendo a história oral como metodologia, parte-se do princípio de que as experiências pessoais e as trajetórias de vida das mulheres entrevistadas e que constituem o corpus documental da pesquisa devem ser interpretadas como um importante registro das
práticas culturais do cotidiano, permitindo melhor compreender
“fragmentos das interações sociais estabelecidas no lugar, de modo
que se desvele parcialmente a realidade social construída, possibilitando compreender a constituição do cotidiano e as significações
relacionadas ao exercício da conformação do local” (DADALTO;
PAVESI, 2020, p. 147).
Cabe mencionar que a pesquisa vale-se ainda da metodologia da micro-história, que, de acordo com Vendrame e Karsburg
(2020, p. 14), se preocupa com “aspectos da espacialidade, da relação das pessoas com os lugares e os processos de constituição deles, das descontinuidades do espaço e do tempo, da interdependência entre os fenômenos sociais, econômicos e culturais”. A meto-
277
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
dologia da micro-história não está associada ao tamanho do objeto
de análise, mas sim às perguntas e questionamentos que se fazem
em relação a esse objeto, contribuindo para a revisão de elementos
presentes na historiografia e muitas vezes legitimado pelas generalizações simplificadoras.
O método aplicado neste estudo permite, assim, identificar e
analisar “aspectos que não seriam visíveis em outro nível que não o
micro” (VENDRAME; KARSBURG, 2020, p. 14). A singularidade do percurso histórico das mulheres na esfera produtiva na região de imigração alemã no Rio Grande do Sul permite melhor
conhecer as diferentes realidades do mundo do trabalho, que apresenta características próprias, considerando-se os diferentes espaços e tempos que constituem as narrativas sobre os ofícios das mulheres na história do Brasil.
O cenário
Em 1824, com a fundação da Colônia Alemã de São Leopoldo, chegam os primeiros imigrantes que receberam lotes de terras e algumas ferramentas, sementes e dois anos de subsídios. As
primeiras atividades eram destinadas somente à satisfação das necessidades essenciais: alimentar, alojar, vestir, pois “[...] cada família fiava e tecia o linho e o algodão, fabricava a farinha de arroz e de
mandioca, o óleo de sementes de abóbora, o açúcar mascavo, preparava seu fumo [...]” (ROCHE, 1926, p. 480).
Jean Roche traça uma linha evolutiva do desenvolvimento
da região de imigração, afirmando que, superadas as dificuldades
iniciais, paralelamente ao trato da terra, surge o artesanato dos
núcleos coloniais, favorecido, muitas vezes, pela habilidade técnica
que o imigrante traz de sua terra de origem. Enfatiza que o artesão,
inicialmente, produzia para o consumo local e para o mercado auxiliado pela mão de obra familiar. Seguindo essa linha, na segunda
geração, teriam se tornado numerosos profissionais como tamanqueiros, alfaiates e sapateiros.
Também supérfluos, como fábricas de fumo, charutos e cigarros, começaram a aparecer. Com o aumento das casas de comércio (venda), o progresso dos meios de transportes e da indús-
278
História das Mulheres no Brasil Meridional
tria, colocando à disposição dos consumidores, a melhor preço, a
maior parte dos produtos, o artesanato teria decaído, desaparecendo gradualmente, com exceção do artesanato do couro, que sobreviveu nas colônias e coexistiu com a indústria no Vale dos Sinos.
Ainda que não seja objetivo desta pesquisa aprofundar o processo
histórico do desenvolvimento econômico da região, cabe ressaltar
que não há um consenso sobre essa evolução do artesanato para
indústria de forma linear, uma vez que ambas as etapas acabaram
coexistindo em diferentes espaços na região do Vale dos Sinos.
Para melhor compreender esse processo histórico, deve-se
considerar que, no caso particular de Novo Hamburgo, foi de fundamental importância a construção da estrada de ferro, ligando a
cidade a Porto Alegre em 1876. Novo Hamburgo era por alguns
anos a estação final da estrada de ferro, atraindo para si todo o
comércio colonial, obtendo grande prosperidade no período. Em
1903, com a extensão da estrada de ferro até Taquara, Novo Hamburgo perde esse posto.1
A historiografia sobre a imigração alemã, seguindo os estudos de Roche, enfatiza a importância e o poder dos comerciantes
na colônia alemã. Era ele que controlava a compra e venda dos
produtos da região e a venda dos artigos não coloniais de forma
exclusiva, o que, seguindo a lógica marxista de análise de parte dos
autores, possibilitou um acúmulo de capital considerado fundamental para o desenvolvimento industrial.
Para Sandra Pesavento (1985), paralelo ao processo de industrialização, o esgotamento do solo e a perda de produtividade
das terras dos colonos, já muitas vezes subdivididas por heranças
das famílias numerosas, faziam o colono abandonar suas terras e
buscar emprego nas nascentes indústrias dos núcleos coloniais ou
nos centros urbanos:
Para os empresários, esta mão de obra era extremamente vantajosa, porque portadora de uma qualificação artesanal, apro1
Na área ocupada pela Colônia Alemã de São Leopoldo surgiram várias localidades e posteriormente municípios, entre os quais Novo Hamburgo e Taquara. O
primeiro, desde muito cedo, passou a rivalizar com a sede, São Leopoldo, o posto
de principal centro urbano e industrial da região, tornando-se município em 1927.
279
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
priada, portanto ao estágio fabril-manufatureiro das empresas,
no qual se combina o uso incipiente de máquinas com o trabalho manual do artesão (PESAVENTO, 1985, p. 34).
Segundo a mesma autora, [...] o próprio processo de imigração-colonização continuou dando entrada a elementos estrangeiros que eram operários em sua terra de origem e que não necessariamente se dirigiam para a lavoura colonial (PESAVENTO, 1985,
p. 34). Pudemos observar esse fato no depoimento de uma imigrante que chegou em 1924 com sua família. Todos os membros
masculinos da família eram mecânicos de profissão na Alemanha.
A tecnologia (maquinário) para essa incipiente indústria foi, em
parte, importada da Europa, mas também houve adaptações e fabricação local.
Em Novo Hamburgo, núcleo imigrante que mais progrediu,
ainda em fins do século XIX, foi a industrialização do couro que
protagonizou o crescimento, estando o desenvolvimento econômico da cidade vinculado a essa indústria. Nos primórdios dessa indústria na região, o couro era curtido de forma rudimentar dentro
de barris de madeira. Eram fabricados arreios, bainhas de faca, serigotes, lambris e selas. Dos retalhos que sobravam faziam-se chinelos numa produção caseira (os chinelos eram mais propícios para
o trabalho do colono). Logo em seguida, iniciou-se a fabricação de
botas, que foi o primeiro produto de grande aceitação na região.
No início de século XX, a forma artesanal de produção é
substituída pela indústria propriamente dita com o uso de máquinas. O crescente desenvolvimento das pequenas fábricas favoreceu o surgimento cada vez mais intenso de unidades fabris, fazendo com que Novo Hamburgo se transformasse num polo urbano
regional, atraindo colonos da zona rural, que vinham em busca de
melhores condições de vida.
Tendo esse cenário como pano de fundo, propomo-nos a estudar a participação feminina no processo de desenvolvimento econômico a partir da colonização alemã no Rio Grande do Sul e especialmente na região do Vale dos Sinos até meados da década de
1930. O período que se estrutura a partir do Estado Novo, constituindo-se em uma conjuntura específica, é o limite de abrangência
do trabalho.
280
História das Mulheres no Brasil Meridional
A casa, a roça e a fábrica:
a mulher na tripla jornada de trabalho
Iniciamos a discussão sobre os papéis desempenhados pelas mulheres na trajetória de desenvolvimento da Antiga Colônia
Alemã de São Leopoldo com aquilo que Pedro (2004) afirma sobre as mulheres do sul do Brasil, quando se refere à história das
mulheres do século XIX. Para a autora, que se debruça sobre as
publicações dos jornais sulistas do final do século XIX e do início
do século XX, esses veículos de informação não devem ser responsabilizados por criar – sozinhos – os modelos ideais de mulher como boas mães, virtuosas esposas e dedicadas filhas. Ao
contrário, esses modelos, em sua visão, já faziam parte do imaginário ocidental, podendo ser encontrados na literatura, no sermão das missas, nos textos escolares, bem como nas tradições
locais (PEDRO, 2004, p. 281).
Dessa forma, percebemos claramente a imagem construída
e difundida sobre as mulheres da área de imigração alemã no Rio
Grande do Sul, que colocava as mulheres em um lugar secundário,
sem grande expressividade no mundo do trabalho. Na maioria das
interpretações realizadas pelos estudiosos da imigração alemã, as
mulheres eram protagonistas do espaço doméstico, ficando sua
atuação reservada ao espaço privado da casa, da família e dos afazeres considerados como “próprio de mulheres”.
No caso específico do Rio Grande do Sul, observa-se a prevalência de narrativas historiográficas – em especial até a década
de 1980 – que colocaram os feitos masculinos em posição de destaque, reafirmando uma história marcada apenas pelos vultos do gênero masculino. É somente a partir da década de 1990, com a difusão dos programas de pós-graduação em História, que essas narrativas sofreram significativas mudanças à medida que novas pesquisas no campo da História surgiram e colocaram as mulheres como
objetos de suas produções.
Já em relação aos estudos da imigração no Rio Grande do
Sul predominou até pouco tempo a imagem do “homem imigrante”, responsável pela “epopeia” da imigração. Esse também é o
caso dos estudos sobre imigração alemã, realizados até a década de
281
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
1980 e que reafirmaram a visão “civilizadora” do imigrante no sul
do Brasil. Ainda são escassos os trabalhos que problematizam o
papel desempenhado pelas mulheres imigrantes e descendentes de
imigrantes alemães no Rio Grande do Sul, fazendo com que ainda
prevaleça a imagem de que a mulher pouco, ou quase nada, contribuiu para o desenvolvimento da economia nas áreas de imigração.
Exemplos recente dessas pesquisas que procuram dar visibilidade ao papel da mulher em contextos marcados pela imigração
alemã no extremo sul do Brasil é o trabalho publicado recentemente por Lorena Almeida Gill (2019), que problematiza um processo
judicial de1945 na cidade de Pelotas, extremo sul do estado, e que
percorre, à luz da micro-história e da história das mulheres e de
gênero, o percurso de Olga Tochtenhagen, então com vinte anos de
idade, que lutou pelo reconhecimento de seus direitos trabalhistas
na justiça em razão de sua demissão de uma alfaiataria por ter faltado ao trabalho. A trajetória de Olga ilustra, de forma exemplar,
as dificuldades das mulheres imigrantes e de suas descendentes em
seu reconhecimento fora do espaço da vida privada.
A pesquisa traz importantes elementos que permitem pensar o papel da imigração alemã na cidade, bem como traz o contexto de luta contra a pandemia de tuberculose e o movimento de luta
das mulheres em busca de postos de trabalho nos empreendimentos industriais na primeira metade do século XX e as dificuldades
encontradas em razão de serem mulheres.
Experiências de pesquisa, como essa que traz o caso da jovem descendente de imigrantes alemães em sua busca de reconhecimento no mundo do trabalho, mostram como as mulheres nem
sempre se silenciaram e se adequaram às condições impostas pelo
universo masculino, que tradicionalmente impunha sérias e diversas limitações à visibilidade do trabalho das mulheres, em especial
nos contextos associados ao desenvolvimento industrial, cujo percurso histórico é, na maioria das vezes, caracterizado pelo protagonismo masculino.
Já quando pensamos nas imagens produzidas sobre as mulheres trabalhadoras no contexto da imigração alemã no Rio Grande do Sul, devemos considerar especialmente os elementos simbólicos que muitas vezes invisibilizam seu trabalho, desconsiderando
282
História das Mulheres no Brasil Meridional
a atividade doméstica como uma forma de trabalho, inclusive desqualificando os afazeres domésticos como uma função secundária,
mas cuja função recai inevitavelmente sobre a mulher, como se essa
fosse sua função biológica.
Nesse contexto, a mulher de origem germânica aparece como
exemplo da manipulação da imagem, através da qual se busca inserir a mulher imigrante do século XIX exclusivamente no espaço
privado da casa, onde cabe a ela zelar pelo lar e cuidar da família.
Nesse universo, a mulher não aparece desempenhando atividades
fora do espaço doméstico, elemento que irá sofrer profundas transformações na região colonial, especialmente nas primeiras décadas
do século XX, com a ascensão do setor coureiro-calçadista, que se
tornará a principal atividade econômica da região.
Cabe ainda destacar que não se pretende reproduzir o discurso ufanista que faz da história da imigração alemã no sul do
Brasil uma linha ascendente de sucesso, não poucas vezes atribuído à capacidade de trabalho do elemento germânico. É inegável o
rápido desenvolvimento econômico da região a partir da colonização, para o qual incorreu todo um conjunto de fatores favoráveis,
que não nos cabe aqui analisar, mas sim ponderar um certo exagero na ênfase do discurso étnico, presente nas explicações para o
desenvolvimento econômico. Interessa-nos aqui identificar o papel
feminino nesse contexto, assinalando sua participação nas mais
diferentes atividades produtivas.
Há um consenso entre os estudiosos mais recentes da imigração alemã de que a mulher nessa região ocupava, especialmente nos
primeiros tempos, uma posição de destaque, mesmo que oficialmente o papel principal coubesse aos homens. Amado (1987) diz a esse
respeito que “a opinião delas era levada em conta na compra de um
lote de terra, de uma vaca ou mesmo de algumas sementes”. A autora atribui essa relativa importância à sua contribuição econômica,
necessária nesse período de instalação. Ela cita um trecho da carta
do argentino Gutierez em visita a São Leopoldo em 1844 e comenta:
[...] as mulheres lavram a terra juntamente com seus maridos e
pais e governam um arado tão bem quanto elas montam a cavalo como homens [...]. Além dos serviços domésticos, elas
também plantavam, colhiam, cuidavam dos animais, costura-
283
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
vam, fabricavam pão, manteiga, cerveja, charutos, tecidos. E
tinham filhos! [...] da capacidade de trabalho e organização
feminina dependia grande parte do progresso econômico da
família (AMADO, 1987, p. 41).
Embora Roche diga que essa abrangência do trabalho feminino foi mais importante na primeira geração de imigrantes, os relatos orais apontam para a permanência dessa situação no século
XX, como podemos extrair do testemunho da Sra. Luiza, moradora
de Rolante, município localizado no Vale dos Sinos, na década de
1920: “Na colônia, eu trabalhava de tudo, cortava lenha, limpava o
mato e depois pegava o cavalo, botava no arado, lavrava e, se o cavalo
não andava direito, pegava os bois [...]. Na roça, as mulhé trabalhava igual os home [...]. Em casa, os home não ajudava nada [...]”2.
A “roça” era considerada um espaço doméstico e, portanto,
parte da área de atuação feminina tradicionalmente aceita. Assim,
a maioria das entrevistadas incluem, ao relacionar as suas tarefas
ou as de sua mãe, a roça como continuidade do trabalho doméstico, como podemos observar nos depoimentos a seguir: “A mãe trabalhava na roça, o pai vendia verdura, ele era verdureiro [...] sim o
pai também ajudava na roça [...] nós também ajudava [...]”3. “Eu
cuidava dos meus irmão pequeno porque a mãe tinha que trabalhar na roça4.
A roça, por sua vez, estabelecia uma relação direta com o
espaço urbano, que se desenvolvia com os primeiros estabelecimentos industriais do setor coureiro-calçadista na medida em que a produção da roça era responsável pelo abastecimento de alimentos da
cidade. Matos e Borelli (2012) descrevem essa dinâmica que ligava
o rural e o urbano mostrando que a atividade da roça era desenvolvida, na maioria das vezes, pelos imigrantes e seus descendentes –
como é o caso da área de imigração alemã –, que produziam e
vendiam seus produtos na cidade. Assim, a cidade era abastecida
2
Entrevista com a Sra. Luiza, concedida em 20 de março de 1992. O sobrenome
foi preservado a pedido da entrevistada.
3
Entrevista com a Sra. Erica, realizada em 10 de março de 1992, então com 74
anos. O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
4
Entrevista com a Sra. Gabriela, realizada em 04 de abril de 1992, então com 82
anos. O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
284
História das Mulheres no Brasil Meridional
cotidianamente com produtos como o leite, que era entregue, na
maioria das vezes, pelas mulheres, que guiavam suas carroças e
charretes. Também fazia parte desse comércio um vasto cardápio
produzido artesanalmente pelas mulheres da roça, como compotas de frutas, de geleias, de pães e a tradicional cuca [elemento da
gastronomia teuto-brasileira que consiste em uma espécie de massa de pão, recheada com frutas e coberta com uma mistura de açúcar e banha de porco, assada em forno a lenha].
À medida que as cidades se desenvolveram com a indústria,
observou-se também a diversificação das atividades econômicas da
região, o que levou as mulheres a ocupar outros espaços, sendo um
deles a fábrica, que seguiu a lógica da expansão industrial do Brasil
como um todo, que, ao incorporar mulheres e crianças no setor industrial, leva a contradições ao nível do capital, que,
[...] de um lado, necessitava dessas mulheres para a reprodução
de força de trabalho e dessas crianças como força de trabalho
futura – quanto para família operária – que para reproduzir-se
precisava engajar todos os seus membros no âmbito do trabalho
assalariado, mas ao mesmo tempo, e pelas mesmas razões, necessitava do trabalho doméstico das mulheres (PENA, 1981, p. 193).
Entretanto, mesmo fazendo parte da realidade da maioria
delas, a fábrica situava-se fora do espaço doméstico, sendo que esse
tipo de trabalho era considerado como “extra”, passível de ser dispensado quando a situação momentânea de “aperto” passasse.
Essa concepção encontra respaldo no ideário positivista difundido no Brasil no início do século, que defendia que a mulher
deveria ficar isenta de todo trabalho exterior ao lar. A ela caberia o
papel de mãe, guardiã da família, bondosa e pacífica, encarregada
de preservar a ordem moral da sociedade e manter o equilíbrio social. Defensor da ordem burguesa da sociedade, o positivismo comtiano difundiu esses valores para toda a sociedade, inclusive no meio
operário, porém para a grande maioria esse ideal estava bastante
distante da prática.
Entre o discurso e a prática estavam as dificuldades econômicas da maioria das famílias, que tinham necessidade do trabalho
feminino fora do lar. No entanto, esse seu trabalho ficava à margem do mundo masculino da produção, sendo que às mulheres
285
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
eram destinadas as funções menos qualificadas e pouco remuneradas, como podemos extrair dos depoimentos abaixo, referentes à
atividade coureiro-calçadista em Novo Hamburgo.
Tinha aquela sessão enorme das mulheres, né [...] tinha o contramestre e depois nas outras repartições eram os homens né
[...]. Costura, prepara, não é, era isto o serviço [...] perfura o
calçado, limpá. [...] Ganhavam menos [...] aquilo ajudava [...]
eu era quase criança, uns treze, quatorze anos.5
Eu trabalhava quando eu era solteira [...] depois de casada eu
não trabalhava sempre, só quando era preciso né [...]. Eu botava sola, colava, passava cola [...]. Montar e cortar era serviço
do home. As mulher não podiam fazer esse serviço [...]. Sim,
os home sempre ganhava mais [...].6
Em outro depoimento, podemos observar que a visão masculina da realidade em questão não diferia daquela das mulheres,
conforme podemos extrair da fala do Sr. Germano:
Quando eu vim para Novo Hamburgo, né, em 1913, e depois
adiante, né, as mulheres trabalhavam em casa, as moças trabalhavam na fábrica, não é, assim foi [...]. O Adams já tinha bastante moças lá trabalhando, mulheres casadas também, quem
podia né, trabalhava lá [...]. Às vez o marido, o homem trabalhava no Adams, né, e levava serviço para casa, então a mulher
ajudava a costurar, cortar, estas coisas.7
Esse último depoimento ilustra uma prática muito comum,
consolidada na região com o desenvolvimento da indústria calçadista: a de levar o serviço da fábrica para casa, onde a mulher pudesse realizá-lo sem sair de seu espaço doméstico e sem que precisasse abandonar as tarefas da casa e o cuidado dos filhos. Elas
faziam de tudo. Aceitavam qualquer trabalho que lhes permitisse
obter algum rendimento, considerado por elas próprias como “ex5
Entrevista com a Sra. Maria, realizada em 18 de abril de 1992, então com 82
anos. O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
6
Entrevista com a Sra. Erica, realizada em 10 de março de 1992, então com 74
anos. O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
7
Entrevista com a Sr. Germano, realizada em 28 de abril de 1992, então com 97
anos. “Adams” refere-se à fábrica de calçados pioneira na região, pertencente a
Pedro Adams Filho, fundada em 1898. O sobrenome foi preservado a pedido do
entrevistado.
286
História das Mulheres no Brasil Meridional
tras”, caracterizando o seu “trabalho de resto”, como podemos
observar no depoimento a seguir:
A minha vida foi assim: desde o começo sempre trabalhei
bastante [...] com dezesseis anos aprendi a fazer chinelo [...]
e depois quando chinelo não dava mais muito, eu fazia sapatinho de criança [...]. Aí eu já era casada, tinha 21 anos [...]
meu marido trabalhava no curtume [...]. Fazia de tudo em
casa porque eu tinha 4 filhos, né? A minha irmã fazia a mesma coisa, fazia chinelo, encapava salto, montava sapato de
homem [...]. A minha irmã mais velha não trabalhava nisto,
ela muito tempo lavava roupa pros padre. A minha mãe já
fazia isto. Sabe, naquele tempo a gente pegava o que dava pra
ganhá um pouco de dinheiro[...] a gente tinha muito serviço,
eu fazia roupinha pras vizinha [...]. Ainda tinha dois terreno,
eu cuidava, plantava aipim, tudo quanto era verdura, batatadoce, um pouco de amendoim. Em sábado o marido ajudava,
dia de semana eu fazia mesmo [...].8
Essa condição foi oficializada pelo decreto 181 de 24 de janeiro de 1890, que definiu a condução da mulher como mera auxiliar
do homem na gestão familiar, sendo base do artigo 240 do código
civil de 1916, que confirma a incapacidade da mulher casada, sendo
que com o casamento ela assumia a condição de consorte, companheira e auxiliar nos encargos da família. O artigo 251 do mesmo
código ainda ressalta que, na falta do marido, essa mesma mulher
assumia o lugar de chefe da família, cessando sua incapacidade.
As trabalhadoras eram ainda tratadas como “frágeis e indefesas”, “passivas” e carentes de “consciência política” (MATOS;
BORELLI, 2012, p. 128), numa tentativa de desacreditar e desqualificar os movimentos de luta, já organizados nas primeiras décadas do século XX. As mulheres atuavam nas lutas operárias, nas
mobilizações e até mesmo nas paralisações de fábricas, onde lutavam pela implementação de melhores condições de trabalho – como
a redução da jornada de trabalho. Matos e Borelli (2012) afirmam
que, nesse contexto de luta em defesa de uma pauta feminista, eram
também chamadas de “indesejáveis”, dado o seu grau de engajamento e movimentação na causa trabalhista.
8
Entrevista com a Sra. Elza, realizada em 12 de maio de 1992, então com 91 anos.
O sobrenome foi preservado a pedido da entrevistada.
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MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
Como aponta Marques (2016) em seu estudo sobre a luta
pela regulação e reconhecimento do trabalho feminino no Brasil
na década de 1930:
Durante o intenso debate público que se deu naqueles anos,
grupos feministas se apresentaram à cena pública para reivindicar inicialmente o direito de votar e, uma vez conquistado
esse direito em 1932, pressionar os homens públicos para avançar na agenda da igualdade jurídica com os homens. Nesse
esforço, reivindicaram ter voz também na regulamentação dos
ofícios exercidos por mulheres (MARQUES, 2016, p. 669).
Soma-se a esse contexto histórico a falta de oportunidades
profissionais era, de fato, um grande obstáculo para as mulheres
conquistarem maior autonomia financeira. De forma mais visível,
as mulheres casadas e que, portanto, estavam vinculadas ao marido não conseguiam fazer parte da luta, pois nem mesmo poderiam
representar qualquer queixa trabalhista sem a anuência de seus
cônjuges. Esse elemento, que insere a mulher numa condição de
inferioridade de gênero, impediu, em grande parte, os avanços e a
visibilidade do trabalho das mulheres na esfera pública e o próprio
reconhecimento dos direitos sociais das mulheres, que eram impedidas de desempenhar cargos de chefia ou espaços de maior prestigio social no mundo do trabalho.
Como mostra Marques (2016), essa situação sofreria algumas mudanças somente com a ascensão de Getúlio Vargas em 1930
e a incorporação de um conjunto de leis trabalhistas em 1943, trazendo grande comoção nacional em torno do debate sobre os direitos das mulheres, como o fato de “proteger a maternidade e a forma de fazê-lo, a condução política do serviço de assistência social à
maternidade e à infância, além da conveniência de se restringir o
acesso de mulheres a ofícios considerados perigosos ou contrários
à natureza feminina” (MARQUES, 2016, p. 683).
Com isso, somente em 1943 a mulher adquiriu o direito de
trabalhar livremente sem autorização do marido. No entanto, esse
poderia impedi-la de continuar no emprego se considerasse que
estivesse prejudicando a família. Destaca-se ainda que as leis trabalhistas do pós-1930 desenvolveram uma série de mecanismos de
proteção com base em sua capacidade reprodutiva, em sintonia com
288
História das Mulheres no Brasil Meridional
o capital industrial, que corroboraram para a marginalização do
trabalho feminino, acentuando o caráter temporário do trabalho
mesmo.
Os depoimentos citados podem ser considerados como recortes do cotidiano de grande parte das mulheres descendentes de
imigrantes, moradoras na região de colonização alemã do Rio Grande do Sul. Muitos relatos podem ser caracterizados pelo que Weimer (2010) chama de “passagem intergeracional da memória”, na
medida em que os depoentes falam das experiências que lhes foram relatadas por suas mães e/ou avós e, mesmo se constituindo
em histórias pessoais, possuem unidade de significação na medida
em que essas pessoas partilharam de uma mesma realidade social e
cultural. Suas estratégias de sobrevivência são fruto, em parte, das
próprias condições do meio e acabavam por ser semelhantes, dando a esse segmento social – certa identidade.
As(os) entrevistados(as) moravam nas zonas rurais próximas
a Novo Hamburgo, como Rolante, Dois Irmãos, etc. Grande parte
dos habitantes dessas áreas tendia a deslocar-se para Novo Hamburgo, atraída pelo crescimento econômico. Jean Roche ressalta o
fato de as mulheres dessas áreas buscarem casamentos em outras
etnias e questiona se esse fato não seria uma fuga à condição de
agricultor.
Na cidade de Novo Hamburgo, a agricultura não possuía
muito destaque. Para Leopoldo Petry (1959), esse fato deve-se
ao solo pouco fértil e às inúmeras subdivisões das propriedades
distribuídas aos primeiros povoadores. A roça na cidade vai ser
substituída pelas hortas no fundo do quintal, geralmente mantidas pelas mulheres, auxiliadas pelos maridos nos finais de semana. Em depoimentos já citados, podemos observar essa prática, quando D. Elza relata que, além de suas atividades domésticas e fabris, possuía dois terrenos nos quais plantava produtos
para uso de sua família. A horta no fundo do quintal pode ser
vista ainda hoje na região.
Todos(as) os(as) entrevistados(as) eram descendentes de famílias alemãs, moradores na região de colonização alemã e se autodefiniam como alemães. A maioria possuía ainda um forte sotaque do dialeto alemão, falado ainda no interior dessas regiões. Al-
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MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
gumas delas frequentaram os primeiros anos escolares, sendo minimamente alfabetizadas. Nenhuma das entrevistadas frequentou
a escola além do nível básico. Ao relatar suas experiências de vida,
essas mulheres falam do mundo do trabalho, de sua luta diária pela
sobrevivência, sua e de sua família. Enfim, as narrativas referem-se
à realidade social em que viveram, e nessa o significado de suas
vidas esteve associado sobretudo ao mundo do trabalho, seja ele na
roça, em casa ou na fábrica.
Os tempos mudam os ofícios:
as mulheres na atividade comercial e industrial
As primeiras referências à atividade comercial na região de
colonização alemã remetem à “venda”. A pesquisadora Angela
Sperb (1987, p. 40) assinala que “a venda é seguramente o lugar de
maior movimento da colônia, e toda picada tinha ao menos uma.
Era o lugar onde se realizavam as transações comerciais, onde o
produto dos colonos era cotado e onde esses podiam adquirir gêneros que não produziam”.
Em seu estudo, Sperb (1987) analisou o inventário de João
Pedro Schmitt, de 1868. Schmitt era um próspero vendeiro do Hamburgerberg (localidade onde iniciou o povoamento de Novo Hamburgo). Segundo ela, a venda do Sr. Schmitt “[...] era armazém de
secos e molhados, armarinho, drogaria, casa de ferragens, papelaria, bar e, provavelmente nos finais de semana, salão de baile”
(SPERB, 1987, p. 41).
A venda foi restaurada num trabalho conjunto da comunidade e equipe técnica ligada ao município. Esse espaço comercial
foi retratado em um quadro pintado por Pedro Weingaertner em
1982. O artista ficou conhecido por pintar cenas cotidianas e paisagísticas do Rio Grande do Sul do século XIX. Nessa pintura aparece em destaque Catarina Schmitt, viúva de Pedro Schmitt. Ela está
colocada atrás do balcão, indicando sua atividade de comerciante
e então proprietária do estabelecimento. Sua função de mãe também está representada pela presença de seu filho menor, Adão
Adolfo, brincando no chão do estabelecimento.
290
História das Mulheres no Brasil Meridional
Imagem 1: Fios Emaranhados, Pedro Weingaertner, 1892
Fonte: Wikimedia Commons, the free media repository. Acesso em 11/11/2020.
No inventário estudado, consta que a viúva ficou com a casa
de comércio, além das dívidas ativas, por serem de difícil cobrança.
Provavelmente Catarina já trabalhava na venda antes da morte do
marido, estando familiarizada com as negociações. Essa afirmativa
é reforçada por ser Pedro Schmitt, além de vendeiro, transportador
estabelecido desde 1830, o que o obrigava a frequentes ausências.
Entrevistamos a neta de Schmitt, que contava 83 anos por
ocasião da entrevista em 1991. Ela nos contou um pouco sobre o
comércio de seus avós. Mesmo com um poder aquisitivo considerado elevado para a época e local, ela conta que sua mãe trabalhava
tanto na venda como na preparação dos bailes, que ocorriam no
salão de sua propriedade ao lado da venda.
Conta ainda que os bailes naquela época eram sempre acompanhados de janta, o que exigia o trabalho de uma semana inteira
com a preparação das comidas, tarefas acompanhadas de perto por
sua mãe com auxílio de moças contratadas especialmente para esse
período. Esse fato indica um corte de classe ao caracterizar as mu-
291
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
lheres da colônia alemã, mas que não trataremos aqui.9 Além disso, quando ocorriam os Kerbs10, vinham os parentes de outras localidades, sendo que a família que sediava o evento tinha obrigação de dar hospedagem aos visitantes, aumentando o trabalho doméstico, em geral realizado por mulheres.
É também dos estudos de Ângela Sperb (1983) que trazemos
outro exemplo da presença feminina na atividade comercial enquanto empreendedora. Nas primeiras décadas do século XX, instalou-se no Hamburgerberg a Padaria Reiss, de propriedade de
Heinrich Reiss. Em 1905, quando esse casou com Karolina Kraemer, Reiss já estava instalado como padeiro. O casal deu novo impulso à padaria e coube a Karolina (chamada de Kaline) a administração dos negócios, enquanto Reiss fazia os pães. Ângela Sperb
escreveu em reportagem ao jornal Hamburgerberg:
Foi Kaline quem durante os primeiros anos distribuiu o pão,
levando-o em carroças até Campo Bom, Dois Irmãos e Sapiranga, enquanto Reiss trabalhava fazendo o pão. [...] as tarefas
do casal continuaram divididas: Reiss, cuidando da produção
e trabalhando com os outros padeiros, e sua esposa responsável pela comercialização, cuidando do negócio, dos empregados e da aquisição de matéria-prima. [...] Frau Reiss era mulher do dinheiro. O caixa ficava com ela, e o próprio Reiss lhe
pedia o seu “Taschengeld” (SPERB, 1983, p. 26).
A Padaria Reiss prosperou, sendo uma das primeiras a adquirir um forno a vapor, além de toda a maquinaria – massadeira,
divisora de pão, peneira de farinhas e máquinas de limpar sacos. O
casal Reiss enriqueceu muito por conta da habilidade de Kaline
para fazer negócios. Ao que consta, Kaline sempre foi independente, cuidando de seu próprio sustento, mesmo morando com os pais.
Quando solteira, trabalhava “em casas de família, inclusive em Porto
9
Ver a esse respeito MEYRER, Marlise R.; GEVEHR, Daniel L. Gênero, identidade étnica e poder: mulheres na imigração alemã no Rio Grande do Sul. Passo
Fundo: EDUPF, 2014.
10
Kerb é uma festa difundida no contexto da colônia alemã e que comemora a
data de fundação da primeira igreja da comunidade, ou seja, cada localidade
tem sua própria data festiva, apresentando características bastante próprias em
cada lugar no qual é celebrada ainda hoje.
292
História das Mulheres no Brasil Meridional
Alegre, como costureira no preparo e feitura de enxovais para noivas e demais costuras” (SPERB, 1983, p. 25).
Esses dois exemplos, Catarina Schmitt e Karoline Reiss, foram citados por dispormos de dados mais completos sobre elas através das pesquisas de Sperb. Porém a atividade comercial exercida
por mulheres abrangia um universo bem maior, lembrando que,
além dos estabelecimentos comerciais, sempre existiu um comércio paralelo, como hoje, que era de domínio das mulheres, como o
pão e os doces que a já citada Dna. Elza fazia para vender ou os
crochês de Dna. Maria. Esse pequeno comércio de mercadorias
produzidas pelas mulheres era o ideal, pois podia ser realizado em
conjunto com o trabalho doméstico, não interferindo na ordem familiar. A mulher cumpria assim seu papel de “auxiliar do marido”
através de uma renda extra.
Entre o final do século XIX e o início do século XX surgiram as primeiras fábricas de calçados no Vale dos Sinos. Entrevistamos um descendente da pioneira fábrica de calçados de Pedro
Adams Filho, referida na entrevista do Sr. Germano. Habituado
com as entrevistas relativas à indústria da família por seu significado para o desenvolvimento econômico da região11, surpreendeu-se
quando anunciamos que nosso enfoque não era propriamente o
empreendimento industrial, mas queríamos saber sobre as mulheres da família e se elas exerceram alguma atividade na indústria. A
partir dessa provocação, o entrevistado deu-nos o seguinte depoimento:
11
Pedro Adamas Filho é um personagem destacado nos textos produzidos sobre a
região do Vale do Rio dos Sinos como exemplo da potencialidade dos imigrantes alemães para o desenvolvimento do Rio Grande do Sul. Além de constar em
publicações locais do município de Novo Hamburgo, ele consta também em
publicações oficiais do Estado na época, como em SOCIETÉ DE PUBLICITÉ
SUD-AMERICAINE MONTE DOMECQ & CIA. O Rio Grande do Sul Colonial. Paris/Barcelona: Estabelecimento Gráfico Thomas, 1918. Também é tema
da tese de doutorado de Claudia Schemes, defendida na PUCRS em 2005, intitulada Pedro Adams Filho: empreendedorismo, indústria calçadista e emancipação de Novo Hamburgo (1901-1935), que também entrevistou o neto de Pedro Adams Filho. Enfatiza-se que, na tese, Rosa Saenger Adams aparece somente no papel de esposa do empresário e mãe de seus filhos.
293
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
Minha avó, Dna. Rosa Saenger Adams, ela ajudou muito meu
avô na fundação da fábrica [...] que foi uma das pioneiras de
calçados de Novo Hamburgo. Ela ajudava na fábrica, costurava os sapatos. [...] além de ter que manter as pessoas que trabalhavam em casa, porque todo mundo morava longe, não tinha
condução, ela tinha que cozinhar para toda aquela gente e, além
disso, trabalhava na fábrica. Minha avó era muito dinâmica,
autoritária. Tinha mais uma mulher que a auxiliava na costura. A fábrica e a casa eram quase a mesma coisa, era ao lado12.
Com o avanço da indústria calçadista desenvolveram-se outras paralelas, muitas relacionadas ao calçado. Uma delas é a indústria mecânica industrial. De início, as máquinas eram importadas e depois, especialmente no período da guerra, passaram a ser
produzidas localmente. Nesse setor, uma mulher tornou-se destaque: Ella Einsfield.
Ella Einsfield era de uma família de mecânicos; seu pai e seus
irmãos foram destacados na historiografia de Novo Hamburgo devido à sua importância no desenvolvimento dos transportes. Eles adaptaram um motor de automóvel em um bonde, criando o primeiro
bonde motorizado da cidade. Posteriormente, possuíam uma linha
de ônibus que ia até o litoral. A irmã Ella não consta em nenhum
livro sobre a história da cidade, embora tenha sido matéria em algumas edições do jornal da cidade em tempos mais recentes, e é
com base nessas matérias que narramos brevemente sua trajetória.
Ella cresceu dentro da oficina de seu pai, João H. Einsfield,
e desde os sete anos de idade já trabalhava na oficina. Em 1922,
seu pai faleceu, e Ella, então com 14 anos, assumiu a oficina e
uma representação de automóveis Chevrolet. Em 1924, na primeira exposição industrial de Novo Hamburgo, foi premiada com
a medalha de ouro com gravuras em aço. Mais tarde, dedicou-se
exclusivamente às máquinas de costura de couro. Inicialmente, importava as máquinas Pfaff (alemã), as quais comercializava e fornecia manutenção. Mas Ella logo começou a adaptar as máquinas
alemãs, o que lhe rendeu grande prestígio na empresa alemã, sendo convidada para as convenções internacionais da empresa.
12
Entrevista com o Sr. Pedro, realizada em 10 de junho de 1992. O sobrenome foi
preservado a pedido do entrevistado.
294
História das Mulheres no Brasil Meridional
Ella Einsfield foi casada com Germann Gerstl, e embora tenha adotado o sobrenome do marido, ninguém a conhecia por esse
sobrenome, mas pelo seu de solteira. Essa atuação de Ella tornou-a uma figura folclórica e muito conhecida na cidade. Ao perguntar sobre ela para algumas pessoas, as lembranças vinham associadas a exemplos de alguma atividade considerada masculina e a
excepcionalidade dessas práticas: “ [...] ela tinha auto né, eu diversas vezes passei lá, ela deitada debaixo do auto trabalhando”; “[...]
ela trabalhava que nem um homem [...] ela mexia na graxa [...]”;
“[...] a Dna. Ella foi uma das mulheres que se destacaram como
trabalhando para fora”.
Em 1984, o Jornal Exclusivo de Novo Hamburgo fez uma matéria relatando a referência a Ella Einsfield feita pela revista da Pfaff alemã em 1958:
Durante o Congresso de Representantes Industriais deste ano,
celebrado em Kaiserslautern, a Sra. Gerstl, do Brasil (onde se
dedica com muito êxito à venda de máquinas de costura Pfaff),
informou sobre interessantes novas técnicas de costura inventadas por ela mesma. Seus colegas do sexo oposto estavam surpreendidos com seus excelentes conhecimentos técnicos (RIHL,
jul. 1984, p. 20).
Ela própria pensava-se como uma mulher que fazia trabalho
de homem, conforme relato do Sr. Pedro sobre uma conversa que
teve com ela:
A última vez que eu falei com ela [...] encontrei a Dna. Ella
numa FENAC e conversando [...] tirei um cigarro do bolso e
disse: Fuma? Ela disse: Não, eu não posso fumar. Ué, não pode
por que? Porque eu sou uma mulher, eu dirijo, eu sou mecânica e agora ainda fumar, aí eu vou ficar muito masculina13.
Até mesmo para homenageá-la em artigo publicitário do Jornal Exclusivo de 1990, ela é masculinizada para adquirir maior importância. O anúncio diz: “Ella Einsfield Gerstl, o pai da Mecânica Industrial no Vale”, evidenciando a construção hierárquica das
relações de gênero na linguagem.
13
Entrevista com o Sr. Pedro, realizada em 10 de junho de 1992. O sobrenome foi
preservado a pedido do entrevistado.
295
MEYRER, M. R.; GEVEHR, D. L. • “E elas ainda tinham filhos!”: mulheres e trabalho
na antiga colônia alemã de São Leopoldo (final do séc. XIX e início do séc. XX)
Por ocasião da coleta dos relatos aqui apresentados, o intento era resgatar a presença feminina nos acontecimentos históricos,
nesse caso da região de imigração alemã do Rio Grande do Sul.
Esse intento vinha no rastro das primeiras produções acadêmicas
das mulheres a partir do final dos anos 1970. O alargamento das
fontes, metodologias e temas da historiografia levou ao questionamento do sujeito universal masculino, em que as mulheres
apareciam somente nas margens ou como excepcionalidade.
“Todo discurso sobre temas clássicos como a abolição da escravatura, a imigração europeia para o Brasil, a industrialização ou o movimento operário evocava imagens da participação de homens robustos, brancos ou negros e jamais de mulheres capazes de merecer uma maior atenção.” Mesmo ainda distante dos estudos feministas que passaram a problematizar as
relações hierárquicas e de poder entre os gêneros, já estava presente “uma vontade feminina de emancipação” (RAGO, 1995,
p. 81).
Nesse sentido, são inegáveis as mudanças nos papéis e relações de gênero dos últimos anos. O binarismo feminino e masculino essencializado foi exposto aos debates de ativistas e acadêmicos
que têm contribuído para a transformação da produção de conhecimento e da vivência das pessoas (BIROLI, 2018, p. 9).
No entanto, essa condição não reflete o estatuto desses estudos na academia. A incorporação dos estudos de gênero nas ciências humanas ainda apresenta uma resistência silenciosa e difícil
de ser identificada. Segundo Maria da Glória Oliveira (2018, p.
131), há uma “guetização” desses estudos na academia, tal como
nos cursos de História, em que quase sempre são oferecidos como
disciplinas eletivas, o que demonstra certa “particularidade” desse
conteúdo “tido como específico”, ou seja, o “outro” da História.
Revela-se, portanto, um longo processo de mudanças, mas também de permanências.
A identificação dessas permanências, potencializadas pelo
momento atual de um reacionarismo que parece reavivar uma cultura histórica de exclusão e violência, entrecruzada pelo discurso
da moralidade, foi um dos fatores que nos fez retomar essas fontes
e, em parte, esse discurso dos anos 1980/90.
296
História das Mulheres no Brasil Meridional
Ao olhar novamente para esse material, emergem questionamentos para além dos papéis exercidos pelas mulheres naquela
sociedade na perspectiva da História Social. Um deles, a necessidade de percebermos a não universalidade do sujeito mulher, observando as especificidades oriundas de cortes de raça, classe e etnia.
Outro diz respeito à historicidade das relações de gênero. Sob influência dos estudos foucaultianos, podemos desconstruir os discursos por muito tempo naturalizados sobre essas mulheres, observando o caráter cultural e histórico dessas construções, entendendo sujeitos e objetos como produtos de práticas culturais, para pensar as diferenças entre os sexos enquanto construções culturais historicamente situadas.
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298
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mulheres na zona de
colonização italiana no sul do Brasil
Vania B. M. Herédia
Introdução
A história de mulheres é um tema instigante e mostra como
a sociedade é dinâmica e se transforma por meio de movimentos e
lutas sociais. A imigração italiana no sul do Brasil ocorre ainda no
século XIX e tem marcas distintas de outras partes do país que
receberam imigrantes europeus, garantidos pela “Política de Colonização e Imigração” promovida pelo governo imperial.
Depois da Lei de Terras em 1850, o Rio Grande do Sul
recebeu um número considerável de imigrantes e, a partir de 1870,
foram criadas colônias oficiais para receber mão de obra encarregada de ocupar terras devolutas, definidas como parte estratégica
da colonização agrícola. Além das Colônias Princesa Isabel, Conde d’Eu e Silveira Martins, é criada a Colônia Fundos de Nova
Palmira, que se transforma na sede da colonização italiana no sul
do país.
A política de colonização e imigração favorecia o acesso à
terra, e os imigrantes europeus beneficiavam-se pelas condições favoráveis que lhes eram oferecidas pela política. As características
dessa imigração é que seus membros eram numerosos, migravam
com a família, estavam dispostos ao trabalho e carregavam uma
história de migrações. Nesse sentido, as mulheres têm papel fundamental de cuidados com a família, bem como a socialização da
cultura passada, das histórias vividas, dos hábitos e dos costumes
que tinham até então.
Dessa forma, o estudo está dividido em dois momentos: o
primeiro traz dados da atuação feminina na colônia italiana por
meio de pesquisas realizadas acerca desse tema no Rio Grande do
299
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
Sul, seja na área rural, seja na urbana. Algumas mulheres foram
referência na ocupação territorial da zona de colonização italiana
e serviram de modelo de possibilidades para a abertura de novos
negócios. Muitas dessas análises nasceram de projetos de pesquisa
de doutoramento, cujos resultados tiveram grande valia para a historiografia da emigração. O segundo momento abarca pesquisas
realizadas recentemente sobre “mulheres empreendedoras” nessa
região italiana, cujas entrevistas evidenciam a ruptura de papéis
antigos, invisíveis e escondidos no ambiente doméstico para tornar-se protagonistas de novas histórias e mostram como pensavam
suas mães e avós sobre o papel feminino.
A mulher na colônia italiana1
A zona de colonização italiana no sul do brasil é uma região
marcada pela prosperidade, o que chamou a atenção do governo
imperial e depois do republicano sobre seu potencial. A retomada
da colonização no Rio Grande do Sul ocorreu a partir de 1869
devido à preocupação do governo imperial com o avanço do movimento abolicionista. O estímulo à colonização volta a fazer parte
da agenda pública, e novos espaços são propostos para ocupação,
como o território que liga os Campos de Cima da Serra, ao norte, e
as colônias alemãs.
Nessa proposta, o governo da província decide colonizar esse
território constituído por terras devolutas com um novo apelo à
colonização e, em fevereiro de 1870, cede à então província “dois
territórios de 16 léguas quadradas em cada um, situados nas terras
livres que se estendiam entre o rio Caí, os Campos de Cima da
Serra e o município de Triunfo” (Relatório do presidente da Província, 1870, p. 68. In: MANFROI, 1975, p. 59).
Desse ato nascem as duas primeiras colônias italianas no sul
do Brasil, Princesa Isabel e Conde d’Eu, que enfrentaram proble1
As colônias agrícolas do nordeste do Rio Grande do Sul foram, no início, divididas em léguas quadradas, linhas e travessões.[...] o número médio de lotes em
cada légua era de 132, enquanto o de travessões era de 32 (HERÉDIA, 2017, p.
58). Havia uma sede que concentrava os serviços necessários para o desenvolvimento da colônia.
300
História das Mulheres no Brasil Meridional
mas referentes à ocupação do território designado. Esse projeto foi
devolvido ao governo imperial diante da impossibilidade de atender os interesses que previa e os fins que haviam sido definidos.
Entretanto, quando da criação da terceira colônia em 1875, as perspectivas modificaram-se, e muitos italianos chegavam ao nordeste
da província do Rio Grande do Sul, inclusive se dirigindo às colônias anteriores: a Colônia Fundos de Nova Palmira, denominada
dois anos depois de Colônia Caxias, torna-se a sede da colonização italiana no Rio Grande do Sul. Tratada por Júlio de Castilhos
como a “Pérola das Colônias”, representa o coração da imigração
italiana no sul do Brasil.
Na chegada, quando os italianos ocuparam a terra, os lotes
coloniais tinham dimensão de 22 a 25 hectares, e nesses lotes ocorre a vida familiar. A mulher assume uma série de papéis na colônia, sendo um deles cuidar da família, o que representava o cuidado dos filhos, do marido, dos pais e de alguns parentes.
A família italiana era bastante numerosa, e ter muitos filhos
era comum. Não era um valor novo; traziam essa concepção do
local de partida, onde as famílias eram numerosas, e os filhos eram
a garantia da manutenção e reprodução do grupo. De acordo com
Franzina (2006, p. 73), muitos emigrantes pertenciam às “classes
rurais mais baixas, isto é, não somente de verdadeiros camponeses,
mas também de meeiros e pequenos proprietários de terra”. Chama
a atenção na história da emigração vêneta que os emigrantes tinham
contato com a terra e tinham experiências de mobilidade, o que permite afirmar que, antes da emigração transoceânica, já havia imigrado para países mais próximos, como Áustria, França e Alemanha,
para trabalhos temporários. Apenas os homens migravam, o que reflete diferenças substanciais referentes à emigração transoceânica e
ao papel que a mulher desempenha nesse processo.
A estrutura da família estava centrada na figura paterna e,
mesmo que a mulher fosse fundamental para a manutenção do grupo, o exercício da autoridade era restrito ao pai. Estudos2 acerca da
família, referentes ao período que envolve a emigração italiana no
2
Ver Barbagli (1984) e Saraceno e Naldini (2007).
301
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
mundo, defendem que a estrutura da família nas comunidades agrícolas do norte da Itália, “além de ser frequentemente complexa,
apresentava grande estabilidade” (BARBAGLI, 1984, p. 62). O fato
de a família não ter sofrido transformações econômicas e não ter
alterado a estratificação social, a população dessas comunidades
seguia as velhas regras de formação da família, “aquelas normas
que eram transmitidas de geração a geração. Não somente eram
profundamente interiorizadas, mas eram defendidas pelas autoridades morais e religiosas” (1984, p. 62). É importante relacionar
que a estrutura da família camponesa correspondia às exigências
da produção agrícola, e desta “derivavam em larga medida as mesmas diferenças das estruturas familiares nos diversos estratos agrícolas” (SARACENO; NALDINI, 2007, p. 23), o que envolvia desde os proprietários até os trabalhadores braçais. Essas autoras colocam que a família camponesa italiana, seja proprietária ou não,
“estava sempre em busca do equilíbrio entre a força de trabalho
disponível, as bocas para alimentar e a necessidade de produzir”
(2007, p. 26).
As mulheres tinham funções essenciais na manutenção da
família, da propriedade e dos negócios. Muitas atividades que desempenhavam no lote colonial faziam parte do trabalho agrícola
que era realizado pelos membros da família, o que garantia a renda
do grupo. Traziam esses hábitos e costumes de onde provinham. A
compra de terras por mulheres não era comum, o que estabelecia
uma relação de subordinação à família, e as decisões do chefe e
dono da casa eram consideradas lei.
As regras de sucessão refletiam a divisão do trabalho: aos
homens um pedaço de terra e a responsabilidade do trabalho agrícola e às mulheres uma série de atividades voltadas para o trabalho
doméstico e as atividades complementares. A preparação para o
casamento começava com a compra do enxoval e com os recursos
referentes ao dote. Não havia dúvida quanto às regras estabelecidas. A herança era definida por gênero. Aos homens a garantia
dos papéis masculinos, e às mulheres a vida doméstica e a reprodução familiar. O enxoval era feito pelas próprias mulheres. Havia uma reprodução de costumes que eram repassados pela mãe
302
História das Mulheres no Brasil Meridional
às filhas na elaboração do enxoval, com vistas à manutenção de
hábitos anteriores.
Foto 1: Joana Postali na colônia de Nova Vicenza em 1923
Fonte: Joana Morenzi Postali com os filhos (da esquerda para a direita) Adelino, Silvino e Lídia. Nova Vicenza, Caxias, RS, 1923 (atual município de
Farroupilha). Autoria Primo Postali. RLL 112. Fundo Família Radaelli. Acervo
Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
O casamento era uma instituição importante para garantir a
reprodução da família, e normalmente os pretendentes viviam perto e se conheciam por meio das parentelas. Os bailes não eram
comuns e nem sempre eram apoiados pela Igreja. Entretanto, a
Igreja não condenava os filós, que eram encontros noturnos ou no
fim de semana, quando os moradores da colônia encontravam-se
para rezar, cantar, conversar e até para a realização de trabalhos
manuais.
303
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
Giron (2008) pesquisa sobre mulheres na imigração italiana
e relata que muitas tornaram-se proprietárias de terras, enfrentando dificuldades. Não era comum o acesso à terra por mulheres. As
mulheres assumiam a propriedade apenas quando os maridos morriam ou quando eram considerados incapazes por doenças físicas e
mentais. As viúvas que dispunham de mais recursos também administravam empresas comerciais ou industriais, o que revela que
não eram discriminadas socialmente. Eram chamadas não pelo
próprio nome, mas pelo nome do marido, como a viúva João Triches (GIRON, 2008, p. 68). As mais pobres passavam por inúmeras dificuldades, e houve casos citados de que até mendigavam em
busca de auxílios básicos para sobrevivência.
Segundo documentos oficiais3, existem registros de que as
mulheres proprietárias viúvas administravam a propriedade sem
problemas e enfrentavam situações difíceis com a ajuda dos filhos
e vizinhos. Muitas delas diversificaram as atividades econômicas
sem ficar restritas apenas às atividades agrícolas, ou seja, investiram na instalação de negócios voltados para a manufatura, o comércio e a pequena indústria.
O estudo realizado por Giron e Bergamaschi (1997)4 mostra
que é possível diferenciar três tipos de mulheres proprietárias: “as
que ficaram com a terra pela morte do marido, as abandonadas e as
responsáveis pela propriedade devido à incapacidade física ou mental do cônjuge” (1997, p. 14). Mostra também que a história das
mulheres proprietárias envolve a história do acesso à terra, das estruturas de poder, das relações familiares, da estrutura patriarcal.
3
Livro de Registro de Indústrias e Profissões do Arquivo Histórico do Município
de Caxias do Sul. Quando da criação do município, a partir de 1890, o Livro de
Impostos comprova a presença de mulheres no comércio, nos serviços e nas atividades industriais. Ver estudos realizados por Herédia (2006).
4
A pesquisa “A força das mulheres proprietárias: histórias de vida”, realizada em
1994 por Loraine Slomp Giron e Heloisa Bergamaschi, teve uma amostra de
1.515 mulheres proprietárias que ficaram viúvas, na sua maioria entre 41 e 50
anos de idade, no período de 1884-1924. O estudo nasceu dos resultados da pesquisa “A mulher e o trabalho na pequena propriedade rural”, realizada entre 19891990 na Universidade de Caxias do Sul. As fontes utilizadas na primeira pesquisa
são do Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami em Caxias do Sul, RS.
304
História das Mulheres no Brasil Meridional
Os espaços que as mulheres conquistaram sempre foram fruto de
movimentos e lutas que precisaram enfrentar pelo fato de que esses
espaços não eram gratuitos. Mesmo nas atividades agrícolas, a
mulher não permaneceu fora do trabalho mais pesado nem foi considerada o lado frágil da história. Colaborava com as atividades da
propriedade rural no exercício de vários papéis a ela designados.
É importante considerar que a terra para os europeus não
era apenas símbolo de poder. Era a condição real da ascensão
social, da mobilidade social, da garantia da reprodução familiar e
era um elemento do status quo. Na Europa, o acesso à estrutura
fundiária era praticamente impossível. O senhor da terra estabelecia contratos de acesso à terra, ao qual a família camponesa se mantinha subordinada. Os tipos de contratos agrários variavam conforme as propriedades e os setores5 aos quais estavam vinculadas. Os
camponeses tinham, dependendo da região de procedência, experiências diversas no uso da terra, seja na pequena, seja na grande
propriedade. O mito do pequeno proprietário fazia parte do imaginário dos emigrantes, construído ainda na antiga pátria. Entretanto, para realizá-lo, não necessariamente era possível no lugar de
nascimento. Nesse contexto, a emigração transoceânica tornou esse
sonho uma realidade, materializada por meio da política de imigração e colonização promovida pelo governo brasileiro.
5
Segundo Franzina (2006, p. 136), no Vêneto, para entender a economia agrícola,
era necessário dividir a região em dois grandes setores: “as províncias de Vicenza, Treviso, Belluno e Udine, de um lado, e as províncias de Verona, Rovigo,
Pádua e Veneza, do outro”. O histórico chama a atenção de que “partes das
áreas e dos distritos agrícolas do segundo setor têm características típicas do primeiro setor e que, portanto, entram com esse na outra grande divisão, que separa
as zonas agrícolas do Vêneto segundo critérios geográficos e agronômicos”. Por
meio dessas especificações é possível ver a situação de propriedade e o contrato
agrário correspondente. “A pequena propriedade e a pequena e média locação
representam, de fato, o aspecto dominante de todo o primeiro setor, sobretudo
das províncias de Belluno e Friuli, onde também é praticada a parceria especialmente na província de Treviso e na área de Bassano” (2006, p. 136). Já a grande
propriedade e as culturas extensivas localizavam-se em parte do “ Polesine e das
províncias de Pádua, de Verona e de Veneza, embora não sejam totalmente ausentes nas províncias de Vicenza e Udine” (2006, p. 136).
305
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
As mulheres na cidade6
É oportuno lembrar que a mulher na sociedade colonial era
discriminada e estava submetida às regras da família patriarcal. A
mulher não ocupava nenhum papel derivado das profissões liberais
da época. Na medida em que não podia frequentar estabelecimentos de ensino, não dispunha da legitimação da profissão.
Essa regra explica que, apenas no século XIX, a mulher ocupava espaço na sociedade, que derivava de profissões liberais, tais
como: médica, advogada, professora, entre outras. O próprio Código Civil brasileiro, que foi aprovado em 1916, ao invés de dar voz
à mulher, colocava-a numa condição de submissão e de dependência ao grupo familiar. Nesse sentido, na colônia italiana, a mulher
garantia a reprodução de uma série de papéis sociais, cuja matriz
estava relacionada à família patriarcal. Sair de casa para trabalhar
implicava mudança de funções até então não desempenhadas. Os
papéis sociais permitidos restringiam-se aos espaços da casa e da
terra. O mundo dos negócios não era ocupado inicialmente pela
mão de obra feminina.
O acesso à escola era definido pela família, e apenas o filho
mais velho tinha a obrigação de frequentar a escola. Não era um
hábito feminino. Isso significou que o grau de escolaridade das
mulheres era baixo, e muitas eram alfabetizadas em casa. As crianças ajudavam no trabalho agrícola, e era comum em algumas famílias o grau de escolaridade corresponder ao quarto livro, o que representava a 4a série do Ensino Fundamental. Também era comum
na família, por ser numerosa, que alguns filhos tivessem vocação
religiosa e deixassem a casa paterna ainda muito jovens. Constata-se na história da educação do município que a educação era um
valor complementar; o que realmente importava para os descendentes dos imigrantes eram o trabalho e a religião.
A instrução era o meio através do qual os colonos acreditavam
poder proteger o futuro dos filhos com objetivo de não ser logrados e, consequentemente, assegurar o lucro e a manutenção
6
A Colônia Caxias emancipa-se do município de São Sebastião do Caí em 1890.
Muitas indústrias que são destaque na colônia italiana nasceram nesse período.
306
História das Mulheres no Brasil Meridional
da propriedade. A instrução não era considerada como ganhapão, mas era valorizada como instrumento de solução para os
problemas imediatos e futuros. Trabalho e religião eram valores fundamentais presentes nessa região de colonização italiana e, em um segundo plano, vinha a questão da educação
(DALLA VECCHIA; HERÉDIA; RAMOS, 1997, p. 71).
Segundo estudos acerca da industrialização e urbanização
no município de Caxias do Sul, a mão de obra utilizada para o
crescimento da indústria tradicional provinha das zonas rurais da
colônia italiana. Estudos de Herédia (1997), Machado (1998),
Lazzarotto (1981), Pesavento (1983), Lagemann (1980) analisam
o processo de industrialização e urbanização na zona colonial italiana no Rio Grande do Sul e confirmam essa premissa. Apontam
que a divisão de terras na área rural obrigou as gerações mais novas
a migrar para a cidade. A parcialização da terra foi um dos elementos que forçou a vinda dos colonos para a cidade, uma vez que a
mesma crescia e necessitava de mão de obra.
A necessidade de recursos financeiros para o provimento da
família obrigava os filhos de ambos os sexos a trabalhar cedo.
As filhas eram encaminhadas para o trabalho assalariado, mesmo com pouca idade, embora existisse na família o preconceito contra o trabalho da mulher fora de casa. Observa-se, contudo, que a necessidade financeira era mais forte do que o preconceito (MACHADO, 1998, p. 119).
As mulheres que foram trabalhar nas fábricas vinham de classes menos favorecidas e de setores rurais da zona de colonização
italiana. O fato de trabalharem nas fábricas ajudava o rendimento
da família. Conforme Giron (2008, p. 124), quando “a terra se tornou pouca para tantos filhos, a mudança para a cidade foi uma
espécie de migração forçada, traumática para os colonos, que passam a engrossar a massa trabalhadora”. A migração para a cidade
não foi apenas para trabalhar nas pequenas indústrias, mas no comércio e nos serviços. “As jovens que trabalhavam na cidade como
domésticas, muitas vezes, conseguiam voltar à colônia pelo casamento” (2008, p. 124).
307
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
Foto 2: Mulheres na Fábrica de Presuntos de Luiz Antunes & Cia.
Caxias do Sul em 1925
Fonte: Mulheres trabalhando no setor de embalagem de presuntos da Fábrica
de Produtos Suínos da empresa Luiz Antunes & Cia. Caxias, ca. 1925. Giacomo Geremia. ANT037NV. Fundo Luiz Antunes & Cia. Acervo Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
As mulheres eram contratadas pelas indústrias tradicionais para diversos serviços. Na indústria de vinhos, o trabalho
mais pesado era feito por homens, mas isso não significava que
as mulheres trabalhavam menos. Tinham jornadas exaustivas,
ganhavam menos e tinham muita responsabilidade. Precisavam
do rendimento do final do mês para ajudar suas famílias. Na
indústria do vinho, elas atuavam nos setores de engarrafamento, rotulagem, embalagem e escritório. Nas indústrias têxteis,
mesmo que as mulheres não fossem mestres, tinham trabalho
nos diversos setores da produção (HERÉDIA,1997; MACHADO, 1998). Além das indústrias têxteis, também atuavam em
malharias e tecelagens. Algumas delas carregavam experiência
de operárias pelo fato de ter trabalhado em indústrias têxteis na
Itália (HERÉDIA,1992).
308
História das Mulheres no Brasil Meridional
Foto 3: Mulheres na Metalúrgica Abramo Eberle, Caxias do Sul
em 1925
Fonte: Interior da Metalúrgica Abramo Eberle. Seção de Tornos e Máquinas
Automáticas. Caxias, 1925. Autoria não identificada. MAE FUN 028. Fundo
Metalúrgica Abramo Eberle. Acervo Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
Na indústria metalúrgica, a mão de obra feminina aparece
com certa frequência e cresce no período das guerras e no pós-guerra. Na produção de motores e dínamos, as mulheres tiveram atuação
na metalurgia, principalmente nos setores de montagem das tramas
elétricas. Observa-se por estudos (HERÉDIA,1997) realizados que
a mão de obra feminina na indústria ocorreu já na última década do
século XIX, seja na indústria têxtil, na metalúrgica, ou na de alimentos e bebidas.
Algumas mulheres destacam-se como proprietárias de negócios no município de Caxias do Sul na primeira e na segunda décadas do século XX. Entre elas Maria Guzzi (fábrica de chapéus de
palha), Luiza Zanol (serraria), Amélia Gattermann (selaria e cur-
309
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
tume), Mariana Agostinetto (fábrica de chapéus de palha), Maria Cesa (barbaquá e fábrica de salame), Maria Marchante (engenho de cana), Magdalena Bonotto (fábrica de chapéus), Josephina Conti (fábrica de licores), Maria Guaselli (moinho) e
Mathilde Goyes (fábrica de coroas artificiais) (MACHADO,
1998, p. 111). Essas mulheres que registraram seus negócios no
município expressavam mudanças nas atividades econômicas que
estavam ocorrendo na cidade.
Foto 4: Sala de costura da Malharia Salatino em Caxias do Sul
Fonte: Malharia Salatino, funcionárias na seção de costura. Caxias do Sul,
1948. Autoria Studio Geremia. GER(DAG) 0083. Fundo Studio Geremia.
Acervo Arquivo Histórico Municipal João Spadari Adami.
Além dessas mulheres, muitas colaboraram para o desenvolvimento da cidade, demonstrado pela atuação no comércio e nos
serviços. Alguns setores contratavam especificamente mulheres,
como o da telefonia, no atendimento de negócios: botequins, casas
de pasto e mais tarde bazares, livrarias, escritórios.
Constata-se que as mulheres não atuavam na política e que a
participação em serviços públicos foi tardia. A candidatura de Segismunda Pezzi para o Legislativo municipal em 1937 é prova des-
310
História das Mulheres no Brasil Meridional
sa afirmação. Os cargos de representação eram considerados “direitos dos homens” (RELA; HERÉDIA, 2017). Quando foi lançada a candidatura de Segismunda Pezzi, houve muita resistência
por parte da sociedade, segundo registros da imprensa. Pezzi era
funcionária do Banco Francês e Italiano e chegou a ser presidente
do Sindicato dos Bancários em 1937, o que era uma demonstração
da entrada da mulher em serviços que até então eram ocupados
apenas por homens.
Testemunhos de experiências de
mulheres emigrantes e descendentes7
Quando os emigrantes chegaram ao sul do Brasil e ocuparam o território das colônias oficiais, estabelecidas pelos governos
imperial e provincial, muitas atividades econômicas foram criadas
para atender as demandas dos recém-chegados. Em pouco tempo,
a Colônia Caxias tornou-se um centro comercial de abastecimento
da zona colonial italiana. Em aproximadamente quinze anos, a
colônia tornou-se um município do governo republicano e se desenvolveu a partir de uma economia baseada na agricultura, no
comércio e na pequena indústria.
Algumas mulheres fizeram a diferença nesse contexto. As
histórias8 narradas aqui refletem a posição de mulheres que promoveram modificações nos papéis tradicionais definidos socialmente. São histórias que ocorreram no final do século XIX e no começo do século XX e algumas mais recentes que evidenciam a ocupação em espaços profissionais que suas antecedentes não tiveram
condições de vivenciar.
7
Alguns relatos que são citados no texto são resultado de uma pesquisa realizada
pela Universidade de Caxias do Sul juntamente com o Conselho da Mulher
Empresária da Câmara de Indústria, Comércio e Serviços de Caxias do Sul sob a
coordenação de Vania B. M. Herédia e Anthony Beux Tessari. A pesquisa versou
sobre mulheres empreendedoras na região nordeste do estado do Rio Grande do
Sul e ocorreu de 2016 a 2017.
8
São histórias de mulheres que tiveram desempenho diferenciado na sociedade
local e colaboraram para mudanças nas instituições sociais.
311
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
Um caso de destaque conhecido na Colônia Caxias é a história de Anna Rech9, que perde o marido na Itália, viaja por sugestão do prefeito de seu povoado e, quando chega ao Brasil, consegue adquirir dois lotes coloniais: um para ela e os filhos menores e
outro para o filho maior. Os dois lotes localizados na Oitava Légua
representavam 50 hectares de terra a serem pagos em cinco anos e
localizavam-se em local estratégico comercialmente, vinculado ao
caminho das tropas. A casa construída para a família era grande e
foi usada como pousada, o que garantiu recursos econômicos, independentemente da terra. Além de fazer a gestão da pousada, Anna
Rech também foi parteira, habilidade que havia aprendido com a
mãe na Itália e que no Brasil foi de muita utilidade, pois muitos
jovens casais não tinham a quem recorrer no nascimento dos filhos. Como a Oitava Légua não era próxima do centro da vila,
Anna Rech tornou-se uma referência na localidade pela forma como
atendia os viajantes, os moradores da vila e das proximidades na
ajuda às mulheres. Demonstrou sua força na gestão de negócios,
numa comprovação contrária ao que se pensava das mulheres, quando partiram da Itália. A história de Anna Rech é a prova de que
havia espaço para as mulheres fora dos papéis tradicionais a elas
reservados.
Outra mulher que se destacou foi Gigia Bandera, uma emigrante vicentina que comprovou a possibilidade de as mulheres serem gestoras de seus próprios negócios. Luigia Carolina Zanrosso
havia partido juntamente com seu marido Giuseppe Eberle de
Monte Magré no distrito de Schio no ano de 1884 para fazer a
América. O marido havia aprendido na Itália o oficio de caldeirei9
A família Rech vivia no povoado de Murle em Pedavena como trabalhadores
rurais. Eram sete filhos. Apenas um era maior de idade, duas filhas deficientes,
dois pequeninos e um jovenzinho (LIOTTA, 2016) e muitos problemas. O marido de Anna Maria Pauletti Rech, Osvaldo Rech, morreu em dezembro de 1875 e,
após sua morte, o contrato da família de permanecer na terra foi suspenso. O
motivo da emigração foi buscar uma solução de vida fora da Itália, aconselhada
pelo prefeito local, seguindo os conselhos dos agentes de emigração. A família de
Anna Rech quase não conseguiu o passaporte para a viagem, pois o cônsul italiano defendia que, para viajar para América, precisavam de braços fortes para
derrubar árvores, arar campos e enfrentar os animais selvagens (LIOTTA, 2016).
312
História das Mulheres no Brasil Meridional
ro; comprou de Francisco Rossi uma funilaria ao chegar no centro
da colônia. Gigia Bandera tornou-se símbolo da mulher persistente que acreditava no trabalho e em sua transformação. Administrou a funilaria por muitos anos e ensinou aos filhos o oficio do
qual necessitavam para dar continuidade à atividade industrial. Era
chamada de “Bandera”, que significava “funileira”; de acordo com
Franco (1946, p. 48), “como outros compatriotas, passou a ser conhecida pelo apodo do ofício que exercia. Hábito talvez inconscientemente transplantado sob a influência ainda dos grêmios de
ofício e corporações artesãs, a qual ainda perdurava na Península”.
Essa mulher cuidou da pequena funilaria e ajudou a transformá-la
numa metalúrgica de destaque na zona colonial. Considerada pelos moradores como uma mulher de iniciativa, foi corajosa na manutenção do negócio que fabricava alambiques e máquinas de sulfatar (FRANCO, 1946, p. 84).
Seguem alguns testemunhos de mulheres10 que atuaram em
setores distintos, abrindo espaços de trabalho também para mulheres. Luiza Marzotto Parise é um exemplo de dedicação ao comércio e à família. Luiza dedicou-se ao comércio de calçados e possuía
também uma camisaria. “Seu marido Orestes era caixeiro-viajante, profissão que o levava a ausentar-se por longos períodos, que
exigia de Luiza um pulso forte na condução dos negócios e na educação dos filhos” (PARISE, 2005, p. 242). Minervina Fontoura de
Alencastro Guimarães é uma das mulheres “fortes e decididas. Fez
um curso de química para prestar exame e conseguir Alvará de
Licença para abrir uma das primeiras farmácias de Caxias, a Farmácia Guimarães” (AGUZZOLI, 2005, p. 284). Ítala Ártico aprendeu o oficio com a mãe, que fazia bainhas, e se dedicou ao trabalho
de bordados e costura. Abriu uma oficina em frente à Praça Dante,
onde “garantia a confecção de belos e ricos enxovais para noivas”
(LONGHI, 2005, p. 288). Margherita Maria Scabeni Scalpin dedicou-se a uma série de atividades. Mesmo sendo analfabeta, costu10
Os testemunhos de mulheres fazem parte da pesquisa “Nossas Mulheres... que
ajudaram a construir Caxias do Sul”, organizada por Maria Abel Machado e
Leonor Alencastro Guimarães Aguzzoli, projeto que fez parte da Lei de Incentivo à Cultura da Prefeitura Municipal de Caxias do Sul.
313
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
rava e “tirava as medidas dos clientes com uma gravata, pois não
conhecia os números.[...] Margherita trabalhou muito. Além de
continuar costurando, ajudava seu marido na marcenaria, sendo
também parteira na sede e no interior da vila” (COLTRO, 2005, p.
248). Mas Margherita ficou conhecida por muitos moradores como
a mulher que arrumava os ossos. “Tinha uma habilidade natural
para a ortopedia, atendendo de bom grado os inúmeros casos em
que lhe pediam para arrumar os ossos. Os jogadores do time local
eram seus clientes habituais” (COLTRO, 2005, p. 248). Ester Justina Troian Benvenutti, professora, colaborou para a educação no
município e foi a primeira mulher a assumir um cargo no Legislativo municipal. Foi diretora de uma das maiores ecolas públicas do
município (CHISSINI, 2005, p. 52).
A história da Colônia Caxias contou com a participação de
muitas mulheres que fizeram a diferença. Constata-se por meio de
relatos de mulheres do passado e do presente a realização de muitas ações que beneficiaram a sociedade e refletem que as mulheres
foram corajosas nos papéis que desempenharam. Mulheres do passado como do presente, do campo ou da cidade, sempre tiveram
sua presença identificada pela não omissão e pela força que demonstravam para enfrentar os desafios de sua época. A mudança
em diversas instituições contou com a força dessas mulheres que
modificaram papéis tradicionais e abriram novos espaços para a
garantia e a reprodução da sociedade.
Magda Corsetti Torresini – uma mulher de destaque cultural
no município de Caxias do Sul, foi professora de Língua Portuguesa em escola tradicional na cidade – relata que sua geração teve
experiências distintas daquelas dos pais pelo desejo que tinha de
que os filhos se realizassem profissionalmente fora do espaço doméstico. Em seus relatos destaca que o desejo da família era que os
filhos ultrapassassem os espaços conquistados pelos pais. Ela, como
mulher, frequentou a Universidade de Caxias do Sul nos anos 1970,
e dá o seguinte depoimento:
Quando eu comecei a fazer Letras aqui em Caxias, eu pedi para minha
mãe me ensinar como se fazia uma polenta, porque eu só estudava. Ela
disse: “Nem pensar, tu não vais aprender a cozinhar” [...] Minha mãe
314
História das Mulheres no Brasil Meridional
era uma cozinheira, uma mestre de cozinha, mas enfatizava que eu
não deveria aprender a cozinhar porque não seria valorizada! Então
isso é uma cultura, que a mãe sabia cozinhar, que a comida era especial, mas era dentro de casa. Então, por que eu aprenderia cozinhar?
Para continuar dentro de casa? [...] Quando eu chegava perto da panela para ver o molho que era maravilhoso, ela se apressava dizendo:
“Não, não, vai estudar” (Magda Corsetti Torresini, 2017).
Os fatos trazidos pela entrevistada mostram que a terceira e
a quarta gerações de descendentes italianos aspiravam para seus
filhos uma vida distinta da que tiveram, mesmo que tenham sido
exitosos em relação às condições enfrentadas nos papéis que desempenharam. A sucessão das empresas era definida a priori para
os filhos homens, e às mulheres cabia apenas executar o trabalho
demandado, mas não posições, cargos, funções de tomada de decisões e de poder. As mulheres que haviam decidido extrapolar os
ambientes domésticos nem sempre tinham a possibilidade de optar
por profissões mais audaciosas, que implicavam sair de casa para
buscar formação profissional. É oportuno lembrar que as universidades normalmente se localizavam nas capitais dos estados ou em
cidades que se destacavam economicamente, por isso nem sempre
era possível estudar, pois implicava sair de casa.
[...] a minha avó, por exemplo, era uma líder dentro da empresa Corsetti. Ela foi uma líder dentro de casa. Ela foi empreendedora porque
tinha asas para voar, só que não voava porque não permitiam que ela
trabalhasse numa empresa. Então, acho que nós ficamos um período
estagnados, [...] que os avós e os pais eram distanciados, o marido para
rua, e a mulher dentro de casa (Magda Corsetti Torresini, 2017).
Muitas histórias semelhantes às contadas pela entrevistada
são comuns nessa região. Mas, nos anos 70 e 80 do século passado,
já eram sentidos ares de mudança. As mulheres não eram mais
submissas e subordinadas às decisões familiares e às pressões sociais. Sonhavam e realizavam ações efetivas de mudanças. É importante considerar que, anteriormente a esse período, até o cargo
de professor era ocupado por homens. Se olharmos a lista dos professores nas primeiras escolas da região, veremos que as aulas eram
ministradas por homens. Algumas profissões eram masculinas, e
outras eram também masculinas. Não era impossível avançar, mas
315
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
o acesso a esses espaços profissionais estava limitado a uma série
de condicionantes socioeconômicos e políticos, que precisavam ser
negociados. A negociação não era apenas com as instituições; acontecia antes na família e, em muitas situações, era a família que impedia possíveis rupturas.
[...] eu queria ser médica; mas, na minha época, mulher não podia ser
médica, minha avó ficou apavorada. Ela dizia: “Vou contratar um
guarda para andar contigo”. Eu acho que Caxias cresceu muito, muito, e nós temos mulheres delegadas, na polícia, nós temos juízas [...]
(Terezinha Pretto Serafini, 2017).
Outra mulher que conseguiu superar barreiras no setor
metalúrgico é Cintia Buzin, empresária do setor metalúrgico, que
lembra de sua trajetória na direção da Metalúrgica Buzin.
[...] no meu caso, o ambiente profissional era totalmente masculino;
todos os funcionários eram homens nós éramos aproximadamente;
60 funcionários e tinha três mulheres. Acredito ter quebrado a barreira do feminino e do masculino com conhecimento. Eu acredito que o
conhecimento, a responsabilidade, essa perseverança leva as pessoas
a confiar em si, leva um tempo até provarmos nossa competência e
que sabemos o que estamos fazendo. Eu acredito, por exemplo, que
nesse mundo metalúrgico o homem é favorecido, porque independentemente dele ter conhecimento ou não, as pessoas acreditam que ele
saiba, a mulher não, a mulher tem que provar esse conhecimento.
No momento em que eu quebrei essa barreira, eu não tive dificuldade
para lidar com funcionários, com clientes, com fornecedores, mas tudo
isso eu penso que a base foi conhecer o produto, a empresa, a missão
e a visão dos negócios. Levou um tempo (Cíntia Buzim, entrevista
2017).
Muitas mulheres enfrentaram obstáculos para liderar empresas que eram inclusive dos pais e/ou de seus avós. A definição
social de cargos masculinos era comum em algumas profissões,
nas quais as mulheres não eram desejadas e enfrentavam não apenas o preconceito e a discriminação social da comunidade, mas
também da própria família, que esperava que alguns cargos de liderança fossem ocupados por homens.
O relato de Beatriz Caregnato da Silva também reflete
como muitas mulheres enfrentaram ambientes masculinos para
formar-se profissionalmente. Os depoimentos de Beatriz Careg-
316
História das Mulheres no Brasil Meridional
nato da Silva e de Margarete Bender ilustram essa situação que foi
comum em algumas áreas do conhecimento; profissões que eram
essencialmente masculinas envolviam as áreas da engenharia, da
contabilidade, da saúde, entre tantas outras.
Iniciei minha faculdade de Ciências Contábeis em 1977; havia aulas
em que estava somente eu como mulher. Um dos motivos também por
ser o curso noturno, opção que eu tinha, pois precisava trabalhar durante o dia. Com muita coragem, e sem medos, me esforcei para provar
que tinha melhor capacidade de que meus colegas homens para ser
responsável pela contabilidade das empresas; na maioria das vezes, tive
que baixar honorários para conquistar clientes. E o espírito de liderança, desde tempos de estudante, me fez estar inserida em entidades que
acredito que muitas mulheres conseguiram a visibilidade através do
voluntariado, para ascender em atividades profissionais e empreender
em negócios financeiros (Beatriz Caregnato da Silva, entrevista
2017).
Eu sou filha de professora, e meu pai era agricultor, já falecido. E sou
de uma época em que as mulheres tinham muita dificuldade em ganhar voo, autonomia, no sentido de buscar subsistência com as suas
próprias pernas. Então ali, isso no final da década de 60, 70, é um
período em que eu, muito jovem, mas enfim com estímulo da minha
mãe, o meu pai tinha uma visão não tão centrada na mulher como
sendo… na perspectiva da dependência. Eu fui fazer meu curso superior na cidade de Pelotas em Engenharia Civil. E me formei jovem, 21
anos. Eu estava saindo da Faculdade, volto para Caxias e trabalho
nessa área até hoje. No primeiro momento no setor público, sempre na
área da engenharia e vinculada ao planejamento de cidades, notadamente essa é minha área de atividade ao longo desse período. Atualmente, estou aposentada, no entanto eu continuo desenvolvendo atividades de consultoria e sou professora também da Faculdade da Serra
Gaúcha no curso de Engenharia Civil (Margarete Bender, entrevista 2017).
Considerações
A zona de colonização italiana no sul do Brasil não tem ainda 150 anos de existência. Isso significa que seu desenvolvimento
foi rápido e seguiu o modelo econômico clássico, sem pular as etapas necessárias. O que facilitou os resultados favoráveis que a região teve foi a forma como o território foi ocupado e como seus
habitantes acreditavam no retorno que viria com o trabalho.
317
HERÉDIA, V. B. M. • Mulheres na zona de colonização italiana
no sul do Brasil
Muitas instituições foram responsáveis pelo sucesso desse
desenvolvimento econômico, o que mostra que a política de imigração e colonização, promovida pelo governo imperial, foi vitoriosa. O acesso à terra, a pequena propriedade, o trabalho familiar, a crença na mobilidade e a ascensão social pela posse da terra
foram fundamentais nesse processo.
Nesse contexto, a mulher teve papel essencial nas diversas
instituições das quais participou, principalmente na família, no
cuidado da propriedade, na reprodução da prole e na manutenção
do status quo. O ônus do desempenho desses papéis, duplos e triplos, foi ela quem teve, uma vez que muitas obrigações e responsabilidades no cuidado do grupo eram atribuídas a ela. Sem a possibilidade de acesso à terra, desvalorizada por ser mulher e nem sempre ser reconhecida, teve sempre que lutar para conquistar reconhecimento ao que era feito.
Os estudos mostram que muitas mulheres foram pioneiras
em atividades que eram consideradas masculinas e que, quando
puderam exercê-las, tiveram êxito. Numa terra em que tudo precisava ser feito, ter iniciativas e vencer preconceitos trouxe resultados
imediatos com marcas que contaminaram outros grupos e abriram
espaços para novas possibilidades. Muitas “Gigias” estão ainda escondidas nas histórias familiares e não foram reconhecidas por seus
pares como propulsoras de mudanças, de melhorias e de transformações.
A invisibilidade que marca as atividades domésticas só é identificada quando essas não são realizadas. Para o funcionamento
dessas atividades, sempre se contou com a aceitação feminina de
que não era possível fazer de outra forma. Então essas mulheres
que conseguiram mudar o rumo do que estava definido e abrir espaços para novas formas de fazer foram precursoras de uma vida
coletiva em que a mulher buscava igualdade e a possibilidade de
escolher.
No presente estudo, vimos que a vida na colônia funcionava
porque muitos exerciam seus papéis e lutavam pela construção daquela sociedade. A vida na colônia foi marcada por muito trabalho, por jornadas extensivas, por muitos obstáculos e dificuldades,
318
História das Mulheres no Brasil Meridional
provocados pelo isolamento e também pela crença de que para vencer era necessário trabalhar muito.
A família imigrante lutou o tempo inteiro para vencer, e a
mulher colaborou continuamente para que esses resultados fossem
profícuos e trouxessem benefícios a que aspiravam desde o momento em que migraram. O trabalho na zona rural era distinto das
zonas urbanas, mas em ambas era árduo; as jornadas de trabalho
eram longas, e as exigências eram contínuas. Nas fábricas e em
alguns serviços, a mão de obra feminina percebia menos do que a
masculina, e essa discriminação tornava o trabalho feminino atraente, como produtor de mais-valia.
Nas entrevistas recentes, constatou-se por meio dos discursos das entrevistadas que houve mudanças significativas nos papéis exercidos por mulheres após a segunda metade do século XX.
O trabalho fora de casa e a possibilidade de escolarização facilitaram algumas conquistas não esperadas. Muitos voos foram feitos e
conduziram a lugares longínquos, mostrando que eram possíveis
as transformações. As mães e as avós desejavam para suas filhas
um outro futuro, um futuro em que as escolhas seriam feitas por
elas e que poderiam decidir sobre seus destinos. Uma parte da dominação sofrida em gerações anteriores havia sido superada, mas
ainda estavam previstas muitas lutas em busca de igualdade e dignidade frente às escolhas.
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320
História das Mulheres no Brasil Meridional
O “crime da parteira”:
atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano
de Porto Alegre (final do século XIX)*
Maíra Ines Vendrame
No presente capítulo, optou-se por utilizar fontes criminais
como documentos para pensar a atuação de imigrantes alemãs no
campo da saúde feminina no espaço urbano da capital do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, nas últimas décadas do século XIX. O uso
dos processos-crime como documentos preferenciais para analisar
tensões e articulações nas quais as mulheres se encontravam envolvidas, tanto na condição de vítimas como de rés, já foi apontado
em outros trabalhos.1 Nas regiões de colonização europeia do território sul-rio-grandense, as imigrantes buscavam garantir a defesa
da honra individual e familiar quando eram expostas a acusações e
rumores em relação à própria sexualidade. Enquanto um bem precioso, a reputação devia ser mantida frente à divulgação de fatos
condenados moralmente. Mais do que isso, a documentação criminal possibilita questionar as atividades laborais, os caminhos utilizados para conquistar prestígio e poder, bem como o momento em
que os recursos relacionais poderiam ser acionados.2
* Pesquisa financiada pelo Programa Pesquisador Gaúcho-PQG/FAPERGS.
1
Ver: VENDRAME (2018; 2019).
2
O uso da documentação judicial, como processos-crime, inventários, testamentos e correspondências, para analisar as mulheres imigrantes, os controles e crimes cometidos pelas mesmas nos núcleos de colonização do Rio Grande do Sul
entre o final do século XIX e início do século XX pode ser verificado nos seguintes trabalhos: VENDRAME (2016; 2017a; 2017b; 2019) e WADI (2009).
321
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
Em pesquisa já realizada, analisou-se a trajetória de imigrantes italianas que, após se estabelecerem nos núcleos coloniais na
década de 1870, passaram a se dedicar a atividades comerciais.3 O
fato de se tornarem chefes de casas de negócios e circularem por
espaços tidos como masculinos não foi impeditivo para que elas
alcançassem prestígio e sucesso econômico entre os conterrâneos.
Para tanto, as imigrantes tiveram de investir em práticas sociais que
lhes garantissem a constituição de redes de relações, o que em parte ajudava a controlar as dificuldades enfrentadas numa sociedade
marcada por uma cultura camponesa patriarcal. As experiências
individuais permitem pensar sobre os recursos possíveis de serem
acionados, os limites, possibilidades e esferas de atuação em que as
mulheres poderiam fazer suas escolhas dentro de um determinado
horizonte de possibilidades. Mapear as decisões e buscar ouvir a
voz das imigrantes, seja no espaço urbano ou rural, é uma estratégia que ajuda a pensar naquelas que não aparecem de maneira tão
visível nas fontes documentais.
Em condições e fases diferentes do ciclo de vida – ora solteiras, casadas ou viúvas –, pouco se sabe ainda sobre as imigrantes
europeias que se estabeleceram no Rio Grande do Sul nas últimas
décadas do século XIX. Os projetos, aspirações, aflições e a maneira como entendiam a viagem de transferência, bem como as expectativas em relação à nova vida são questões que devem ser buscadas para que se possa compreender de maneira mais completa as
motivações migratórias e as estratégias de inserção social nos locais de destino. Entende-se que é importante não apenas olhar para
as escolhas bem-sucedidas e trajetórias de relativo sucesso, mas também para os fracassos e frustações surgidas entre a população imigrante. No presente capítulo, tendo como ponto de partida um processo-crime, serão analisados aspectos ligados à atuação profissio-
3
No artigo “Donas do próprio destino?: experiências transnacionais de imigrantes
italianas no Brasil meridional”, analisou-se a trajetória de duas imigrantes italianas que se fixaram em diferentes regiões de colonização do Rio Grande do Sul.
Apesar das diferenças entre as mesmas, ambas irão gerir casas de negócios, utilizando estratégias específicas para garantir reconhecimento e prestígio na sociedade local (VENDRAME, 2017a).
322
História das Mulheres no Brasil Meridional
nal e ao mundo do relacional de uma imigrante alemã que, nas
últimas décadas do século XIX, se estabeleceu na capital do Rio
Grande do Sul, Porto Alegre, para atuar como parteira.
O crime
Em 1876, Joanna Mehnert, nascida em Kappel, Alemanha,
partiu para o Brasil três anos após seu casamento na companhia do
marido e do filho. Eram todos de religião luterana. A imigrante era
diplomada como parteira pelo Instituto de Partos de Dresden, localizado na capital da Saxônia. Uma vez chegada ao Brasil, em
1888, Mehnert conseguiu habilitação profissional na Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, lugar em que residiu por três anos.
Porém, em 1890, já em Porto Alegre, irá aparecer como ré num
processo-crime sob a acusação de fornecer “drogas abortivas” para
outras mulheres. Atuando como parteira, Joanna Mehnert (41 anos,
casada) residia no centro da cidade, na rua Voluntários da Pátria, no
momento da denúncia realizada pelo comerciante alemão Jacob Frederico Krause (30 anos, casado). Esse se considerava “chefe da vítima”, a também imigrante alemã Mathilde Peltz4. Jacob Krause afirmou ter tomado conhecimento do ocorrido através de sua esposa,
Rosa Krause (23 anos, casada, natural da Alemanha), que lhe comunicara que sua criada havia tido um aborto devido aos remédios proferidos pela parteira Mehnert, fato esse levado ao conhecimento do
subdelegado João Hilgert, que deu abertura à investigação policial.
Com exceção do denunciante, que era o patrão de Mathilde
Peltz, todas as outras nove testemunhas convocadas para prestar
depoimento eram mulheres. Isso porque, de acordo com a acusação, era recorrente que a parteira fornecesse remédios abortivos,
algo que a investigação buscara comprovar através da inquirição
das depoentes. Ao ser interrogada, a imigrante Clara Geidel (30
anos, casada, natural da Alemanha) afirmou ter “ouvido falar que
a parteira Joanna Mehnert fornecia drogas abortivas a diversas pessoas”. Afirmando não saber nem ter “ouvido dizer”, Maria Luiza
4
A “vítima” do aborto não foi interrogada na investigação, pois, quando o inquérito iniciou, ela não se encontrava mais residindo na capital Porto Alegre.
323
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
Müller (27 anos, casada, natural do estado) revelou que há três meses tinha abortado um feto – que fora enterrado no quintal da própria casa –, tendo sido ela assistida pela denunciada. A testemunha
Barbara Franzen (20 anos, solteira, natural do estado), que se dedicava aos serviços domésticos, confessou ter morado com a parteira
Mehnert e ter tido na residência da mesma “uma criança” após
“nove meses de gestação”. Porém, essa falecera pouco depois do
nascimento. Apesar de também declarar nada saber sobre a denúncia, Emma Nitz (33 anos, casada, natural da Alemanha) afirmou que, em “conversa íntima”, Franzen havia revelado ter tido
uma criança que falecera horas depois do nascimento e que todos os remédios foram ingeridos por “própria conta”. Como se
pode perceber, as mulheres indagadas inicialmente eram aquelas que haviam vivenciado ou acompanhado alguma experiência
de aborto, bem como recebido atendimento da parteira acusada.
Já a imigrante Helena Mierisch (38 anos, casada, natural da
Saxônia), colega de profissão da acusada, disse “não ter certeza se
Joanna Mehnert fornece drogas abortivas às suas parturientes”.
Também alegou já ter ouvido de alguém que a acusada fornecia
“drogas abortivas”, sendo ela “indiscreta”. A testemunha Helena
Mierisch acusou a denunciada de ter provocado o aborto em diversas mulheres. Ao fazer isso, ela buscou não silenciar em relação ao
desempenho reprovável da conterrânea e colega de profissão Joanna Mehnert. Para as mulheres parteiras, diplomadas ou não, os
pedidos por “drogas” e procedimentos abortivos eram algo que certamente se fazia muito presente em seu cotidiano de trabalho. Algumas, como a própria acusada, provavelmente adquiriram mais
“fama” do que outras ao realizar práticas abortivas, atendendo,
assim, o desejo daquelas que queriam se livrar dos sinais do pecado, da culpa e da vergonha. Ou ainda buscavam evitar prejuízos à
honra individual e familiar através do sigilo das transgressões sexuais e fatos moralmente reprováveis. É correto acreditar que algumas parteiras eram mais procuradas para a realização de procedimentos abortivos, sendo esse um dos motivos pelo qual construíam um conjunto de relações que lhes conferiam proteção e solidariedade, possibilitando que continuassem atuando dentro de seu
campo de saber.
324
História das Mulheres no Brasil Meridional
A denúncia realizada pelo comerciante alemão Krause, do
aborto ocorrido em sua criada aparece, portanto, como uma oportunidade para denunciar um comportamento recorrente da parteira Joanna Mehnert, que era bastante conhecida entre a população
imigrante e descendentes que viviam no espaço urbano porto-alegrense. Com a abertura da investigação pela autoridade policial,
notícias e suspeitas sobre a atuação profissional da acusada passaram a ser comentadas e a circular através das redes de contato e
vizinhança, fazendo com que inimizades surgissem, rivalidades
ganhassem mais cor, além de apoios que se manifestaram nesse
momento.
Apontada como inimiga da investigada, a testemunha Josefina Hildebrand Corangelo (28 anos, casada, natural do estado)
afirmou que Maria Flex (33 anos, casada) lhe contara que Maria
Luísa Müller tinha abortado uma criança depois de consumir remédios fornecidos por Mehnert. E pelo trabalho a parteira havia
recebido o valor de quarenta mil-réis. Porém, as mencionadas mulheres (Müller e Flex), que residiam juntas, afirmaram nada saber
sobre a denúncia contra a ré, apesar de uma delas ter sido atendida
pela parteira quando da ocorrência do aborto. Hildebrand, que assistiu ao parto de Maria Luísa Müller, ressalta que a criança havia
nascido viva. Apesar de não declarar, é provável que a depoente
também atuasse como parteira ou estivesse aprendendo a arte de
partejar, o que justifica o fato de ter assistido ao parto mencionado
acima e, na sequência, ter apresentado o que sabia ao subdelegado.
Apontada como uma das mulheres que teria contraído os
serviços da acusada, Sophia Fechtner (35 anos, casada, natural da
Alemanha) afirmou que três dias antes do aborto “confidenciou” a
Mehnert o que vinha sentindo há um mês. Nesse momento, não
foi receitado remédio algum, porém, depois do aborto, a parteira
encaminhou-a para o doutor João Birnfeld, ficando em tratamento
pelo período de quinze dias. Diferentemente das mulheres assistidas pela acusada, a testemunha Rosa Krause (23 anos, casada, natural da Alemanha), esposa do alemão que denunciou Joanna Mehnert, declarou que “a criada que esteve alugada em sua casa” adquiriu da ré “pílulas para abortar”, tendo pago pelo tratamento quarenta mil-réis. Através de seu depoimento o casal Krause responsa-
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VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
bilizou a parteira pelo aborto da empregada, que, após consumir os
remédios, foi à casa da acusada para ter o filho. O fornecimento de
“drogas abortivas” e o acompanhamento das mulheres grávidas,
bem como a assistência a elas no momento do parto parecem ter
sido a maneira como a denunciada procedia. Mas o que motivou a
acusação pública por parte dos conterrâneos, levantando suspeitas
a respeito das atividades profissionais de uma parteira imigrante
que era diplomada? Que tipo de rivalidade existia entre as mulheres alemãs do grupo ao qual pertencia Joanna Mehnert?
Na fase pública do processo, depoentes e acusada forneceram explicações sobre os questionamentos que lhes foram realizados. Ao ser perguntada, a parteira Helena Mierisch não denunciou
o indivíduo que lhe solicitou “drogas abortivas”, afirmando que
“lhe repugna o papel de denunciante”. Em relação ao procedimento de Joanna Mehnert, confirmou ser a denúncia verdadeira, bem
como ter “cortado relações com a denunciada por mau procedimento dessa para com ela”, porém “não lhe vota má vontade”.
Ambas as parteiras eram as únicas mulheres profissionais diplomadas a exercer o trabalho de partejar em Porto Alegre na última
década do século XIX. Por conta disso, não é estranho que entre
elas surgissem intrigas e disputas no que se refere à busca por espaço de atuação e clientes. Imigrantes alemãs, Mierisch e Mehnert
chegaram ao Brasil certamente com pouca experiência no campo
profissional, uma vez que eram jovens e a diferença de idade entre
elas era de poucos anos. Assim que chegaram à capital gaúcha, buscaram através de determinadas estratégias conquistar reconhecimento
e confiança entre a população imigrante e os luso-brasileiros.
Retornando às declarações das testemunhas, Clara Geidel
negou primeiro saber algo que desabonasse a denunciada, porém,
posteriormente, retificou seu depoimento falando sobre a realização de aborto numa senhora casada.
[...] A senhora de Ernesto Paulo [...], conhecida como Faéca,
disse que, querendo abortar uma criança, visto sofrer muito
por ocasião de seus partos, entendeu-se [...] com a acusada
Joanna Mehnert e por meio de um ferro que essa forneceu conseguiu o que desejava, isto é, a expulsão do feto; tendo sido
pago a acusada pelo serviço prestado a quantia de quarenta
326
História das Mulheres no Brasil Meridional
mil-réis. Disse mais que a senhora referida pediu-lhe que não
revelasse esse facto a pessoa alguma, pois ela se achava perfeitamente boa, tendo sido tratada por médico. [...] disse ter sido
o Doutor Barcelhos Filho. [...] Respondeu que essa senhora
[Faéca] lhe disse que procurou a acusada Joanna com o fim
mesmo de conseguir com o auxílio dessa um aborto.
O ocorrido havia sido relatado à depoente pela “vizinha e
amiga” que recorreu aos serviços de Joanna Mehnert, tendo essa
“exigido o pagamento do serviço prestado”. Afirmando ter “cortado relações” com a acusada, a testemunha Geidel também destacou que a amizade com a mulher que recorreu aos serviços da parteira estava um “tanto abalada” devido às declarações que havia
realizado. E ao ser questionada “se tem por profissão partejar”,
respondeu que “tem exercido tal função” apenas na falta da parteira, aqui especialmente se referindo a Helena Mierisch, a quem dá
indicação de trabalhar como assistente. Clara Geidel, a pedido da
parteira diplomada, afirma ter ido pessoalmente assistir uma parturiente que residia fora da cidade, porém “a criança nascera morta, já em estado de putrefação”.
Mesmo não aparecendo com tanta evidência, parece certo
acreditar que as mulheres que depuseram no processo-crime contra Joanna Mehnert dividiam-se em dois grupos: as que já haviam
tido contato com os serviços da mesma e aquelas que, por motivos
variados, buscavam expor as práticas realizadas pela ré imaginando causar-lhe algum tipo de prejuízo e constrangimento. As testemunhas também indicam que algumas delas atuavam como parteiras auxiliares, estavam procurando conquistar reconhecimento e
experiência, como parece ser o caso de Clara Geidel. Essa afirmou,
ao ser questionada sobre o fato de ter “passado atestado como parteira”, que apenas se tratava de um registro que comprovava ter ela
atendido a parturiente e realizado o parto no qual a criança havia
nascido morta. Várias pessoas haviam presenciado o ocorrido, deixando Geidel um relato do atendimento realizado fora da cidade.
Tal escolha pode ser percebida como uma estratégia para evitar ser
alvo de falsas acusações, o que parece ter ocorrido na sequência.
Após o atendimento da parturiente, a parteira assistente foi
chamada pela autoridade policial para “exibir seus títulos de habili-
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VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
tações” bem como justificar o documento por ela assinado. Nesse
momento, ao ser questionada, também alegou ter sido denunciada à Inspetoria de Higiene Pública e à autoridade policial por
Joanna Mehnert, a quem muito havia “protegido na sua profissão”. A relação de amizade entre ambas, segundo Geidel, rompeu-se após ocorrência da denúncia à mencionada inspetoria. É
possível perceber através das denúncias públicas contra mulheres
que atuavam como parteiras que existia um campo de disputa
aberto por prestígio e reconhecimento no que compete à arte de
partejar. A ocorrência de aborto e morte do recém-nascido era
uma situação que poderia ser usada para causar prejuízos ao trabalho e à fama das profissionais.
O depoimento da imigrante Clara Geidel é revelador das situações que fragilizavam ou rompiam as relações entre as mulheres
que exerciam a atividade de parteiras, bem como da existência de
tensões e hierarquias entre elas. Se existia circulação de auxílios e
proteções entre algumas parteiras, tudo podia romper-se, transformar-se num conflito público e desdobrar-se em investigação por
parte das autoridades policiais, caso as relações entre elas fossem
afetadas por quaisquer motivos. O próprio processo-crime ora analisado é um exemplo disso, uma vez que através dos relatos das
testemunhas percebe-se a existência de solidariedades e apoios em
momento anterior, porém as inimizades e acusações vêm à tona
quando o caso passa a ser investigado.
As denúncias realizadas contra Joanna Mehnert expõem também a tentativa de incriminação contra outra colega de profissão,
bem como a presença de um campo de disputa entre as parteiras,
diplomadas ou não. Nesse sentido, as acusações dadas às autoridades policiais por parte de mulheres que exerciam a atividade de
“partejar” livremente, mas sem possuir registro de sua condição
profissional, ou ainda de outras que, apesar de serem parteiras de
profissão, receitavam remédios abortivos, aparecem como um indício de rivalidades e concorrência local. A denúncia pública é um
recurso para causar prejuízos morais e materiais às outras parteiras, expondo-as a julgamentos públicos. No entanto, os embates
não se restringiam apenas às parteiras e suas clientes, mas envol-
328
História das Mulheres no Brasil Meridional
viam famílias e grupos formandos por homens e mulheres que ocupavam posições sociais diversas.
A denúncia contra a acusada ocorreu meses depois de ela ter
receitado remédios abortivos à “criada” que residia na casa do alemão Jacob Krause. Originária de Santa Cruz, em julho de 1889,
Mathilde Peltz transferiu-se para Porto Alegre, chegando à residência de Krause já “adoentada, queixando-se de dores de cabeça
e de falta de evacuação”. Aconselhada por “colega de profissão”,
Peltz recorreu a Joanna Mehnert, que lhe receitou umas “pílulas
do Doutor Brander Schweizer”. Passados dois meses, ela teve um
aborto, não podendo pagar o valor integral do tratamento, entregando à parteira a quantia de vinte mil-réis “devido à sua pobreza”, conforme relatou Maria Luiza Müller. Essa não confirmou,
apesar das informações fornecidas, ter a parteira dispensado um
tratamento abortivo para Peltz. O próprio comerciante Jacob Frederico Krause, que havia denunciado Mehnert, também declarou
não saber se o aborto ocorreu devido ao consumo das pílulas. Porém, ressalta que sua criada esteve alguns dias na casa da parteira
denunciada, tendo ele dado a quantia de dez mil-réis por seu serviço.
Passados alguns meses do aborto, aquela mudou-se para o município de Estrela no lugar denominado Teutônia.
Desse modo, a denúncia contra Joanna Mehnert é levada à
justiça quando a “vítima” Mathilde Peltz não residia mais em Porto Alegre. Foi no mês seguinte à saída da criada da casa de Krause
que ele apresentou explicações do ocorrido ao subdelegado. Mas o
que teria motivado o interesse tardio em apresentar denúncia de
crime de aborto praticado pela parteira? Por que não apresentou
queixa assim que soube do ocorrido? O que fica claro é que a abertura do inquérito policial serviu como uma oportunidade para algumas testemunhas exporem outros casos de abortos realizados
por Mehnert. Talvez aí esteja uma das explicações para entender
os motivos da demora na abertura da investigação contra a parteira. Não foi uma queixa específica, mas a denúncia frente a uma
prática recorrente da parteira diplomada que fez com que o subdelegado instaurasse uma investigação. Somado a isso, o surgimento
e a intensificação de rivalidades e conflitos entre algumas pessoas
propiciaram a instauração da denúncia pública contra a ré.
329
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
Se na fase do inquérito policial algumas testemunhas se
mostraram mais empenhadas em apresentar informações que pudessem prejudicar a denunciada, posteriormente o mesmo não ocorreu. Isso pode ser percebido especialmente no depoimento de Josefina Hildebrand Corangela, que afirmou ter sido comunicada sobre um caso de aborto que havia relatado à mulher do subdelegado
Hilgert, porém não havia feito a “declaração com a intenção de
denunciar a acusada”. Ela indica ter existido pressão da autoridade policial para que fosse declarado “em juízo” o que havia compartilhado em conversar privada com a família do subdelegado.
Desse modo, afirmando “não lembrar” e “não saber”, Corangela
procurou não confirmar as revelações realizadas na parte do inquérito, buscando proteger a ré. Em relação às pessoas que depuserem no processo-crime, Joanna Mehnert afirmou ser a denúncia
consequência da “perseguição de João Hilgert, Helena Mierisch e
Clara Geidel”. O subdelegado e as duas parteiras são apontados
como inimigos da acusada.
A existência de rivalidades e o rompimento das relações de
amizade entre as três imigrantes alemães, Helena, Clara e Joanna,
é reforçada na defesa apresentada pela ré. Essa atribuiu a abertura
de “diligências policiais” devido a um “sentimento de vingança”
por conta de fatos ocorridos anteriormente. O marido da parteira
Mehnert havia dado queixa de “crime de calúnia” contra o subdelegado Hilgert no dia 16 de junho de 1890 por ter esse “injuriado”
a parteira com a afirmação de que fornecia “drogas abortivas”.
No “ato de defesa” da acusada, é ressaltada a inexistência
de provas que indicassem a criminalidade. Somado a isso, entre
suas alegações é sublinhado a existência de sentimentos de ódio e
vingança por parte da autoridade policial em relação à acusada,
conforme se pode perceber em fragmento que segue:
[...] Do exame da prova testemunhal não se colige a criminalidade da acusada. Ao contrário, quem examiná-lo atentamente
reconhece a vacilação dos depoimentos, o espírito de ódio, intuitos de vingança, uma linda maquinação da maledicência,
com que se quis lançar a consternação no seio de uma família,
amargurar um esposo, desesperar tristes crianças, cuja mãe se
quer oprimir por portar ódios insaciáveis, pobre mulher sem
330
História das Mulheres no Brasil Meridional
outras afeições que não as de seu lar, sem outro amparo que
não o indefectível espírito de justiça do Ilustre Juiz Julgador,
guarda serena da liberdade individual. Para desfazer o tecido
da insídia constante dos presentes autos, basta referir que os
médicos referidos em vários depoimentos, como o Dr. João
Birnpeld e Barcellos Filho declararam [...] acharem-se dispostos a vir a juízo lançar o seu testemunho contra a veracidade
do ato criminoso que fala a denúncia. Somente a pobreza da
acusada a impediu de justificar-se, proclamando a sua inocência com semelhantes depoimentos5.
Joanna Mehnert é descrita como uma “pobre mãe” dedicada ao lar e aos filhos, que foi alvo de incriminações e intriga de
quem quer causar aborrecimentos e desesperos à família. A atuação da mesma como parteira não é mencionada, mas sim o fato do
“espírito de ódio” e os “intuitos de vingança” serem causadores de
consternação no seio da família, que atingiu marido e filhos. Nesse
sentido, a denúncia contra Mehnert afetou especialmente a sua condição de esposa e mãe, perturbando a tranquilidade no ambiente
familiar. O que ganha atenção é a defesa das condições e papéis
que as mulheres deveriam assumir. No entanto, os possíveis prejuízos que as acusações lançadas contra a parteira poderiam causar
em relação à atuação no campo profissional não são mencionados,
destacando-se a defesa das condições que prejudicavam Joanna
Mehnert na direção de suas responsabilidades familiares e maternais no espaço doméstico. A autonomia profissional das mulheres,
bem como a circulação pelas esferas públicas não eram aspectos
qualificadores do feminino, apesar de muitas alcançarem certa liberdade e prestígio ao desempenhar determinados trabalhos.
É interessante também ressaltar o fato de que dois médicos
que aparecem nos depoimentos são apontados pela acusada como
vozes que poderiam contestar as afirmações presentes contra ela
nos autos criminais. Os mencionados profissionais certamente mantinham uma proximidade com Joanna Mehnert, sendo conhecedores das atividades realizadas pela parteira, pois ela encaminhava
5
Ato de Defesa de Joanna Mehnert, Porto Alegre, 02 de outubro de 1890. Processo-crime, Comarca Porto Alegre, nº 1724, 1890, ré Joanna Mehnert, vítima Mathilde Peltz. Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS).
331
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
parturientes que necessitavam de assistência médica. As redes da
parteira estendiam-se para além do grupo conterrâneo que residia
em Porto Alegre, pois por meio de seu desempenho no campo profissional ela reforçava os vínculos com alguns médicos. Posteriormente à denúncia apresentada contra Joanna Mehnert no início de
julho de 1890, o subdelegado João Hilgert passaria a ser investigado por “crime de calúnia”6. A acusação aparece aqui como uma
contraofensa por ter o mesmo denunciado o procedimento da parteira. Nesse sentido, a ocorrência de uma queixa pública seguida
de outra é indicação do quanto a abertura de uma investigação criminal podia servir como um recurso de exposição e restauração do
equilíbrio de poder entre indivíduos e grupos que viviam um conflito. A denúncia contra o subdelegado não impediu o avanço da
investigação em relação à parteira alemã.
Em 29 de dezembro de 1890, ela foi acusada por incorrer
nos seguintes quesitos: 1º- Que “em meados do mês de setembro
do ano passado [1889] a ré Joanna Mehnert forneceu, com conhecimento de causa, a Matilde Peltz pílulas abortivas; 2º- “Que foi a
ré impelida a esse crime por um motivo reprovado”; 3º- “Que a ré
cometeu por paga”. Com a comprovação dos mencionados quesitos, a promotoria pública solicitava a condenação da parteira Mehnert nas penas do artigo 200 do Código Criminal.7 Após ser lançada no rol dos culpados sob a acusação de ter utilizado “drogas” para
produzir aborto, a ré foi presa na Rua Voluntários da Pátria, local
onde residia, e recolhida à cadeia cível de Porto Alegre.
6
Essa acusação de crime de calúnia contra o subdelegado João Hilgert não foi
levada adiante pela parte acusadora. Carlos Augusto Mehnert, marido da parteira Joanna, desistiu de manter as acusações contra aqueles que considerava acusadores da esposa. Processo-crime, Comarca Porto Alegre, nº 1724, 1890, ré Joanna Mehnert, vítima Mathilde Peltz. Arquivo Público do Estado do Rio Grande
do Sul (APERS).
7
No artigo 200 do Código Criminal do Império do Brasil (1830) constava: “Fornecer com conhecimento de causa drogas, ou quaisquer meios para produzir o aborto,
ainda que este se não verifique”. A pena para o crime era de prisão com trabalho
por dois a seis anos. Por fim, “se este crime fôr commettido por medico, boticario, cirurgião, ou praticante de taes artes; Penas – dobradas”. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lim/lim-16-12-1830.htm>. Acesso
em: 22 maio 2020.
332
História das Mulheres no Brasil Meridional
No dia seguinte à prisão, em 31 de dezembro de 1890, o júri,
composto por doze representantes dos diversos distritos da cidade,
votou não para o 1º quesito, que considerava ter a ré Joanna Mehnert
fornecido pílulas abortivas para Matilde Peltz. Frente à negativa dos
jurados em relação ao primeiro ponto, todos os demais quesitos da
acusação ficaram prejudicados. Logo a ré foi absolvida do crime,
sendo, portanto, colocada em liberdade. Na sequência, em outubro
de 1890, Carlos Augusto Mehnert aparece novamente acusando o
conterrâneo, depois de passados apenas dois dias do mesmo ter reassumido o cargo na subdelegacia do 2º distrito da capital. Agora, porém, aquele, como representante da esposa Joanna, aparece denunciando João Mierisch, Germano Wagner, João Hilgert e Helena
Mierisch. Sobre os mencionados acusados recaía a queixa de “perseguições de toda espécie” a Joanna Mehnert; não satisfeitos, “planejam os querelados desafiar a mulher do queixoso”.
Assim, na noite do dia 23 de outubro de 1890, Joanna Mehnert tornou-se alvo de agressão física orquestrada na própria casa,
localizada na Rua Voluntários da Pátria. Depois de ter atendido ao
toque da campainha, a parteira foi atacada por “diversas bengaladas” proferidas de surpresa por João Mierisch, irmão de Helena
Wagner. Na sequência, o agressor “deitou a correr, mas foi perseguido pelo clamor público e detido pelos homens do povo”. Enquanto
a perseguição ocorria, chegaram ao local Germano Wagner e João
Hilgert, que aguardavam “ambos em emboscada” a conclusão do
ataque. Apesar do ato em flagrante, o agressor não foi preso.
De acordo com o queixoso, “a agressão de que foi vítima
Joanna Mehnert” é reveladora de “um ajuste entre os querelados,
pois antes de se dar o fato Helena, Germano e Hilgert o anunciaram”. Esses três são apontados como mandantes das “bengaladas”
proferidas contra a parteira, e Carlos Augusto Mehnert solicitou
que todos eles fossem punidos por agressão física. O dano foi avaliado no valor de um conto de réis, devendo essa quantia ser concedida à parte agredida.8
8
Processo-crime, Comarca de Porto Alegre, Sumário, réus João Mierisch, Germano Wagner, João Hilgert, Helena Mierisch Wagner, n. 2717, ano 1890, APERS.
333
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
Durante o andamento de um processo-crime, poderiam ocorrer embates cotidianos diversos, como ameaças de vingança através da violência física, bem como o estabelecimento de acordos e
compensações privadas entre as partes em conflito.9 Todos elas
aparecem enquanto recursos que visavam restabelecer a paz e o
equilíbrio ameaçados ou rompidos. Assim, no desenrolar do
processo-crime contra a parteira Joanna Mehnert, agressões, denúncias públicas e tentativas de compensação foram acionadas por
parte dos integrantes das famílias que se encontravam envolvidas
no embate. O sucesso ou não dessas iniciativas interferiam no andamento e impactavam no resultado dos autos criminais, ou seja,
na absolvição ou condenação dos acusados.
Disputas entre parteiras diplomadas
Maior cidade do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, espaço
onde se desenrolou o processo-crime contra a parteira Joanna Mehnert, concentrava na segunda metade do oitocentos uma presença
significativa de imigrantes alemães. Atividades comerciais e serviços eram realizados por muitos imigrantes europeus que haviam
chegado na província em diferentes momentos e condições. Entre
os estrangeiros residentes na década de 70 do século XIX os alemães eram o terceiro maior grupo, ficando atrás apenas dos africanos e portugueses. De acordo com informações do censo de 1872,
os residentes de origem germânica totalizavam o número de 936,
representando a segunda posição em termos de número de imigrantes europeus.10
9
O acionamento do recurso da justiça como uma maneira de expor e encaminhar
a articulação de acordos privados, bem como a existência de diferentes entendimentos sobre as punições que deveriam ser aplicadas para aqueles que não obedeciam determinadas normas e comportamentos é algo discutido no livro O
poder na aldeia (VENDRAME, 2016).
10
Entre os estrangeiros residentes, os africanos correspondiam a um total de 1.608,
os portugueses 1.270 e os alemães 936. Em números menores irão aparecer os
franceses, 232, os austríacos, 170, italianos, 154, espanhóis, 98, etc. Disponível
em: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v11_rs.pdf>.
334
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tabela 1 – Alemães e portugueses residentes em Porto Alegre –
Gênero e estado civil – 1872
Homens
Nações
Mulheres
Solteiros Casados Viúvos Solteiros Casados Viúvos
Portugueses
636
485
45
37
55
12
Alemães
313
230
18
118
205
52
Fonte: <http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv25477_v11_rs.pdf>.
De acordo com os dados da tabela, analisando os dois maiores grupos de imigrantes europeus, é possível perceber que os alemães apresentam mais equilíbrio entre os sexos com 561 homens e
375 mulheres. Certamente esse era um aspecto que proporcionava
um mercado matrimonial mais apto a relacionamentos afetivo-familiares. Existia também uma relativa paridade entre aqueles que
viviam em condições cíveis diferentes, sem, portanto, levar em conta
as relações afetivo-familiares que escapam dos dados censitários,
bem como aqueles que não foram contabilizados. Nesse sentido, a
presença dos alemães foi um dos fatores que propiciou o crescimento da cidade no decorrer do oitocentos. Eles começaram a chegar ao Rio Grande do Sul a partir de 1824 com a fundação da Colônia São Leopoldo no Vale do Rio dos Sinos.
No decorrer da primeira e segunda metades do século XIX,
os imigrantes europeus fixaram-se em diferentes regiões de colonização fundadas na província mais meridional do Brasil. Aqueles
que optaram por se estabelecer em Porto Alegre abriram negócios e
passaram a desenvolver atividades profissionais variadas. Esse foi
o caso de ambas as parteiras apresentadas aqui. Joanna Mehnert,
por exemplo, após permanecer por algum período na cidade do
Rio de Janeiro, transferiu-se para a capital do Rio Grande do Sul
num momento de grande crescimento populacional, onde já se encontrava atuando a colega de profissão Helena Mierisch.
Em 1888, Porto Alegre possuía 42.115 habitantes, chegando
em 1890 ao número de 73.672 habitantes e, posteriormente, em
1910, à totalidade de 130.227 (MAUCH, 2004, p. 70). Mas a presença de alemães radicados na cidade já ocorria antes de 1850. Se-
335
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
gundo Magda R. Gans (2004, p. 26), a imigração direta da Europa
para a capital é mais significava do que a remigração nas colônias.
Em seu estudo sobre os teutos no cenário urbano porto-alegrense
da segunda metade do século XIX, a autora faz um levantamento
da presença do grupo em diversas atividades ligadas ao comércio,
constatando a presença de homens e mulheres alemães em profissões e estabelecimentos comerciais nas principais ruas da capital.
Conhecida como “rua de alemães”, o Caminho Novo (atual Rua
Voluntários da Pátria) concentrava o maior número de negócios
dos teutos, constituindo um total de 40 estabelecimentos, distribuídos entre importadores de ferros e ferragens e atacadistas de
secos e molhados. Foi na mencionada rua que se concentraram os
comerciantes alemães de nível socioeconômico mais alto (GANS,
2004, p. 39). Nela também residia a parteira Joanna Mehnert quando apareceu como ré no processo-crime anteriormente analisado.
Os teutos também se faziam presentes em outras ruas do centro da
capital, bem como ao redor do Mercado Público, onde era intensa
a comercialização de produtos que vinham das regiões coloniais.
Além da rua Voluntários da Pátria, a rua Flores da Cunha,
local em que Joanna Mehnert passou a residir e a atender suas
clientes, também existia um alto número de alemães que desenvolviam algum tipo de atividade comercial. Encontravam-se ali estabelecidas, especialmente entre as décadas de 60 e 80 do oitocentos, alemãs que eram proprietárias de escolas para moças e outros
profissionais diversos, como padeiros, ferreiros, hoteleiros, cervejeiros, serralheiros, barbeiros, relojeiros, professores, etc. (GANS,
2004, p. 65-6). Sozinhas ou acompanhadas do marido, as imigrantes aparecem gerindo negócios e atuando em profissões como comerciantes, professoras e parteiras.11
Sobre a atuação das parteiras diplomadas na capital Porto
Alegre, por meio de uma busca nominativa foi possível chegar a
outros documentos que traziam informações sobre as situações vi11
Indicações sobre os trabalhos desempenhados pelas imigrantes alemães na capital Porto Alegre na segunda metade do século XIX, bem como a presença das
mesmas na esfera pública são indicadas em alguns estudos. Sobre esse tema ver:
GANS, 2004, p. 62-66; AREND, 2001; CHARÃO, 2016.
336
História das Mulheres no Brasil Meridional
vidas por Joanna Mehnert e Helena Mierisch. Uma rápida pesquisa nos jornais da Hemeroteca da Biblioteca Nacional indica dados
importantes para auxiliar a compreender as experiências sociais de
ambas as imigrantes alemãs na capital Porto Alegre. No entanto,
neste artigo, optamos por centrar a análise na trajetória de Joanna
Mehnert. Depois de ela ser libertada da acusação, a colega de profissão Helena Mierisch encaminhou um texto para o jornal A Federação, publicado nos primeiros dias de janeiro de 1891 sob o título
“Aventureira”.
Dando indicações de sua habilidade como escritora, a mencionada parteira buscou defender-se das acusações públicas. Referindo-se ao julgamento de Joanna Mehnert e à defesa do advogado
Dr. Germano Hasslocher, afirma que esse, numa explosão de ira,
definiu-a como uma “aventureira que, para fazer fama, foi casar-se
na cadeia”. Contestando as acusações proferidas a ela, Mierisch
reforça aspectos de sua carreira profissional, como o fato de nunca
ter perdido uma só parturiente. Em relação a Hasslocher, destacou
ser o mesmo o “porta-voz” de certa “inveja profissional que desde
certo tempo me move perseguição implacável com o fim de fazerme retirar por meio de desgostos, ora com multa, ora com atentado
contra meu irmão, ora com querelas e chicanas”. Com o objetivo
de desmentir “certas inverdades” passadas publicamente contra ela,
revela também ter sido “obrigada pela autoridade a depor contra
Joanna Mehnert”. Porém, nesse momento, havia falado “tão somente o que já não se podia silenciar”. Segue afirmando:
[...] Não desejava a desgraça d’essa mulher que deve a mim,
em grande parte, a sua habilitação de parteira, como poderei
provar com as pessoas a quem nesse sentido recorri. No começo da sua carreira cedi-lhe parte das minhas clientes; cortei
depois relações com ella devido a seu modo grosseiro e gênio
rancoroso, pelo qual vive em eterna lucta com suas colegas
não diplomadas que a cada momento denuncia, como poderá
attestar a honra da inspectoria de hygiene.
Além da existência de disputas entre as duas parteiras, é possível perceber discordâncias em relação à maneira como cada uma
delas atuava, algo que aparece no processo apresentado anteriormente. Mesmo existindo afinidades entre elas, ambas as imigran-
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VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
tes utilizaram estratégias diferentes para conquistar espaço, prestígio e clientes na sociedade porto-alegrense. No entanto, isso não
evitou que entrassem em disputas e lançassem acusações mútuas.
Enquanto Helena Mierisch aparece defendendo sua reputação através de artigos publicados no jornal A Federação, o marido
de Joanna Mehnert apresentava denúncia de agressão na delegacia
contra aquela e seus familiares – irmão e marido, conforme visto
anteriormente. Os embates ocorreram em diferentes momentos e
através de pelo menos dois campos, não ficando restritos apenas a
elas, mas envolvendo seus amigos, aliados e parentes. Essa questão
pode ser percebida na maneira como a parteira/escritora se refere
ao advogado Germano Hasslocher12.
Quando do início do processo-crime que apurava o procedimento da parteira Mehnert de distribuir “remédios abortivos”,
Helena Mierisch afirma ter Hasslocher lhe solicitado que não depusesse contra sua cliente. Segundo Helena, Joanna Mehnert desejava “tão somente ‘escangalhar’ e meter na cadeia o subdelegado
João”, que era seu rival. Segue afirmando que o mencionado advogado “bem sabia do que era capaz” a acusada, que a conhecia de
longa data, tendo sido defensor da mesma num processo instaurado no Rio de Janeiro por “crime de assassinato”. E, para evitar a
prisão, Joanna Mehnert fugira para o Rio Grande do Sul. Ressalta
ainda que a divulgação do que havia sido publicado nos jornais
cariocas ou a “certidão dos respectivos autos” teria causado um
mal imenso à referida parteira. No entanto, nada disso foi feito
“porque não desejamos a desgraça de ninguém, nem dos que se
prestam como instrumentos contra nós”. Por fim, Helena Mierisch
reforça sua manifestação de indignação contra as acusações lançadas a ela.
[...] Jamais pensei que n’um tribunal de uma capital fosse possível ser injuriada uma testemunha por ter cumprido seu dever,
que fosse permitido incectivar uma mulher que, embora pobre,
12
De origem germânica, Germano Hasslocher foi político, advogado, jurista,
professor e atuou como jornalista, tendo se filiado ao Partido Liberal na segunda metade do século XIX e no Partido Republicano Rio-Grandense no
início do XX.
338
História das Mulheres no Brasil Meridional
nunca deu lugar de se poder duvidar de sua honra e decência,
– que a claque encarregada de abafar com bravo, muito bem o
brado de indignação dos homens decentes, insultasse e ameaçasse o marido que protestava contra os ultrajes feitos à sua
mulher ausente – Essa inqualificável covardia sirva de eterna
vergonha ao seu auctor.13
Helena Mierisch refere-se aos insultos proferidos em tribunal por ter testemunhado no processo-crime que investigava o comportamento da colega Mehnert de fornecer “medicamentos abortivos”. Segundo a parteira/escritora, injúrias ofensivas à sua “honra
e decência” como mulher foram proferidas publicamente, apesar
de ter cumprido seu papel como testemunha, bem como nunca ter
dado motivos para que duvidassem da própria reputação.
Durante o julgamento da conterrânea, houve troca de ofensas, tendo o marido de Helena Mierisch defendido a mesma das
difamações lançadas. Fica claro o quanto as denúncias públicas,
trocas de ameaças, ataques e a apresentação de explicações através
de artigo no jornal aparecem como recursos de defesa e exposição
dos rivais. Mais do que isso, eram escolhas que visavam defender a
honra e controlar os rumores e fofocas prejudiciais à fama individual e familiar, buscando, ao mesmo tempo, restabelecer os equilíbrios de poderes entre as pessoas e grupos em disputa. O artigo
publicado no jornal A Federação foi uma forma de rebater publicamente as ofensas lançadas contra Mierisch, bem como restabelecer
um certo equilíbrio no jogo de poder, ocorrido através dos atritos,
trocas de ameaças e denúncias intensos durante todo o ano de 1890,
entre ela – marido, irmão e aliados – e a rival Mehnert e seu grupo
de apoio.
Não é nosso objetivo analisar outros conflitos vividos por
Helena Mierisch naquela última década do século XIX, porém
novos processos-crime indicam para a continuidade das rivalidades entre a parteira/escritora e o advogado Germano Hasslocher.
13
“Aventureira”, Helena Mierisch Wagner, 10 de janeiro de 1891, Porto Alegre.
Jornal A Federação, 02 de janeiro de 1891, Porto Alegre. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional (HDBN). Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
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VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
Aquela foi acusada de lançar injúrias ao mencionado advogado ao
se manifestar na sessão “Ao público” do jornal Correio do Povo, de
abril de 1899. O motivo do conflito e acusações estava ligado à
existência de dívidas entre a acusada e seu denunciante, o qual foi
injuriado como “caloteiro”.14 Considera-se importante destacar que
a mencionada Mierisch utilizou o domínio que tinha da escrita e
da possibilidade em se manifestar nos jornais como um recurso de
defesa da própria reputação, bem como uma escolha para pressionar o devedor para que cumprisse com seus compromissos financeiros para com ela. Um aprofundamento maior sobre a trajetória
da mencionada imigrante alemã, dando conta de seu casamento
na prisão da capital e das estratégias de atuação, será feito em outra
pesquisa.
Estratégias de atuação
Posteriormente às explicações apresentadas acima pela parteira/escritora nas páginas do jornal A Federação foram também divulgadas suspeitas sobre a ocorrência de outros casos de aborto
envolvendo Joanna Mehnert.15 Numa publicação de 15 de junho
de 1909, Rosa Klaus procura inocentar Mehnert das acusações sobre um suposto envolvimento dessa no destino de uma criança recém-nascida. Com a justificativa de que não podia criá-la, Rosa
Klaus afirmou no jornal que resolvera, espontaneamente, mandar
colocar o mesmo na roda dos expostos da Santa Casa de Misericórdia. Deu ao “preto Edmundo de tal (vulgo Cinco Paus)” o valor
de 10$000 para que levasse a criança até o local, “sem que disso
tivesse conhecimento a parteira Joanna Mehnert”. Por meio dessa
declaração pública Rosa Klaus buscou justificar o que havia ocorrido após o nascimento do filho, isentando a parteira de qualquer
14
Processo-crime, Comarca Porto Alegre, Cível e Crime, Ré Helena Mierisch, n.
3643, ano 1899, APERS.
15
Notícias publicadas nas páginas do jornal A Federação sobre a ocorrência de abortos, infanticídios e nascimentos de crianças de mulheres atendidas pela parteira
Joanna Mehnert. Ver: Jornal A Federação, ed. 5, 1894; Jornal A Federação de 1909,
p. 2. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://
bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
340
História das Mulheres no Brasil Meridional
responsabilidade. Em relação a esse caso, não foi possível reunir
provas que indicassem a existência de “crime de abandono de
criança recém-nascida”16.
No entanto, através de outras notícias publicadas, sabe-se
que entre 1908 e 1909 Mehnert é denunciada às autoridades policiais por suspeita de participação em ulteriores crimes, como a
tentativa de aborto em uma paciente que falecera após o parto.17
Em relação às acusações divulgadas em um jornal, a parteira defende-se afirmando que, “revivendo um ato passado há mais de
seis meses, a Gazeta, mais uma vez, manifesta a sua má vontade
para comigo”. Segue se defendendo:
[...] Neste, como nos outros crimes, estou isenta de culpa, tanto
que nem siquer fui então chamada à presença dos representantes da justiça. Na sua inglória tarefa, explora aquele jornal o
facto de receber eu pensionista em minha casa, o que absolutamente não constitui infração de leis. Perde, portanto, o seu tempo. Felizmente, sou bem conhecida pela sociedade descendente desta
capital.18
Apesar de denúncias e abertura de investigações policiais,
em nenhuma delas a parteira Joanna Mehnert foi considerada culpada. Na defesa do processo-crime analisado anteriormente, ela
deu indicações de dois médicos que atuavam na capital Porto Alegre que poderiam desmentir as acusações lançadas contra ela. A
existência de uma rede de proteção certamente foi um dos fatores
que fez com que a mencionada imigrante conseguisse fazer com
que as acusações lançadas não prejudicassem tanto a sua atuação
16
Em nota publicada no jornal era comunicada a improcedência da denúncia lançada contra Joanna Mehnert e Edmundo Antônio da Silva. Jornal A Federação,
Porto Alegre, 4 de dezembro de 1909. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso
em: 02 jun. 2020.
17
“Crime Revoltante”. Jornal O Século, Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1908;
Movimento Forense. Jornal A Federação, Porto Alegre, 11 de setembro de 1909.
Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://
bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
18
“Ao público”. Jornal A Federação, Porto Alegre, 17 junho de 1909. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
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VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
como parteira. A declaração de que “felizmente sou bem conhecida pela sociedade descente desta capital” aponta para a questão
da segurança sentida pela mesma, fruto das relações fortes que possuía com pessoas de prestígio social que viviam na realidade urbana da cidade. As relações que mantinha com alguns médicos, com
os quais compartilhava o atendimento a parturientes, possivelmente foi um dos aspectos que garantiu a Joanna Mehnert a sequência
de seu trabalho como parteira.
Na segunda metade do século XIX, houve um aumento no
número de parteiras e a diversificação do perfil profissional do grupo, em parte provocado pelo aumento da presença de imigrantes
em algumas capitais. Muitas estrangeiras já chegavam tendo conhecimento sobre a arte da parteja, sendo algumas delas já diplomadas por instituições médicas nos locais de origem, como foi o
caso das parteiras Mehnert e Mierisch, que já chegaram com diplomas de parteira instituídos na Saxônia. Ambas também obtiveram
autorização para exercer a profissão junto à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro após certamente ter realizado algum curso de
preparação, como outras mulheres, nacionais ou estrangeiras, que
passaram a se dedicar ao ofício de partejar.
Diplomadas ou não, as parteiras teriam que investir em estratégias para conquistar clientela e vencer a concorrência. Além
de atender os mais diferentes tipos de enfermidades femininas, algumas também abriam “casas de parto” através das relações que
mantinham com os médicos, colocando-se, porém, em “posição
subalterna” (MOTT, 2005; BARBOSA; PIMENTA, 2016, p. 509).
No entanto, a existência dessa cooperação não anulava o surgimento de competição e conflitos no campo profissional, provocando divisões entre médicos e parteiras, bem como a formação de
grupos de apoio entre eles.19 Um dos campos de embate e de refor19
Sobre atuação dos diferentes curadores no Rio Grande do Sul no período da
Primeira República, Beatriz Weber, no livro As artes de curar, ressalta que as
mulheres que dominavam a arte de partejar tinham uma grande proximidade
com a população, atendendo os mais diversos “incômodos do útero” e as “moléstias de senhoras”. Como forma de controlar as atividades dessas curadoras,
os médicos organizaram um primeiro curso de partos na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre em 1897 (WEBER, 1999, p. 167).
342
História das Mulheres no Brasil Meridional
ço de uma determinada posição ocorreu através das manifestações
realizadas na imprensa, muitas vezes através da revelação de acusações, denúncias policiais, que podiam ou não se transformar em
investigações policiais.
Ambas as parteiras aqui analisadas aparecem de diferentes
maneiras manifestando-se em jornais de Porto Alegre. Em edição
do jornal A Federação, de agosto de 1891, Helena Mierisch expressa
a sua opinião sobre a “Liberdade Profissional” e ressalta a falta de
mulheres que possuam conhecimentos sobre a arte de partejar na
capital do Rio Grande do Sul. Sob forma de protesto, afirma que
no estado sempre existiu liberdade de atuação, sem que isso tenha
produzido “calamidade” e “perigo à saúde pública”. Segundo a
mesma, existia “um grande número de mulheres” que pretendiam
ser parteiras, mas poucas possuíam conhecimentos, e a maior parte
era “tão ignorante, que parece até privada de senso comum, à vista
das práticas absurdas, verdadeiras atrocidades com que sacrificam
as pobres parturientes”. Essas mulheres que “não têm diretos adquiridos por estudos”, “que nunca pagaram impostos” e não têm
“responsabilidade de seus atos” puderam sempre exercer “livremente as funções de parteira”, o que prova que por aqui “sempre houve
a mais franca liberdade profissional”. Como diplomada, Mierisch
manifesta seu temor em relação à nova lei, pois essa poderia instaurar um estado de “anarquia e perigo à vida”20. No entanto, é
preciso levar em conta que a mencionada parteira fala de um lugar
social e busca reforçar através do que escreve uma hierarquia e diferenciação entre as mulheres que têm conhecimento sobre a arte de
partejar, diplomadas ou não.
A lei de regulamentação da liberdade profissional é descrita
como algo que traria apenas prejuízos à saúde, já que as parteiras
diplomadas na capital Porto Alegre eram apenas duas. Desse modo,
através do protesto Helena Mierisch não estava apenas defendendo a sua posição, mas também à da colega Joanna Mehnert, apesar
20
“Liberdade Profissional”, Helena Mierisch, 01 de agosto de 1891. Jornal A Federação. Porto Alegre, 3 de agosto de 1891. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
343
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
de existir divergências entre ambas e críticas em relação à forma de
atuação profissional, como foi possível observar anteriormente pelo
processo-crime. Com as declarações publicadas nos jornais a diplomada Mierisch manifestava sua opinião e defendia publicamente
uma posição.
Na imprensa, também eram publicados elogios aos serviços
da “incansável e hábil parteira gynecologista exma. dra. Helena
Mierisch Wagner21, que, depois de detido exame, diagnosticou um
cancroide do collo uterino, já adiantado, como fonte dos padecimentos da minha esposa”. Depois da cura da esposa, alcançada
após cinco meses de tratamento, seu marido manifestou publicamente a “eterna gratidão pela salvação” da companheira, desejando que a “ilustre parteira e gynecologista seja sempre o anjo salvador” de enfermidades que ameaçam a “vida preciosa das esposas e
mães de famílias”22.
Joanna Mehnert também aparece recebendo agradecimentos na imprensa pelos serviços prestados, conforme se pode conferir no recorte de jornal abaixo.23 Através das informações sobre suas
atividades é possível perceber que o trabalho das parteiras diplomadas ia muito além daquele ligado à arte de partejar: problemas
ligados à saúde feminina, tratamentos para a vida sexual e reprodutiva. Mais do que isso, o cuidado aos recém-nascidos, sua circulação ou encaminhamento para uma instituição de assistência, bem
como o aluguel de amas de leite e o alojamento de mulheres grávidas, jovens solteiras ou casadas; todas essas eram funções que as
parteiras poderiam desempenhar, conforme apontam estudos
(MOTT, 2005, p. 126).
21
Em 1889, a parteira Helena Mierisch, aos 37 anos, casou-se com Germano Teodoro Wagner, viúvo de nacionalidade prussiana, na capital Porto Alegre.
22
Agradecimentos, Luiz José d’Almeida Couto, Porto Alegre, 29 de novembro de
1892. Jornal A Federação. Porto Alegre, 9 de janeiro de 1893. Ed. 7. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional, Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
23
Agradecimentos e missas. Jornal A Federação. Porto Alegre, 22 de fevereiro de
1900. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://
bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
344
História das Mulheres no Brasil Meridional
Diferentemente da co- 1. Agradecimentos aos médilega Helena Mierisch, Joanna
cos e à parteira
Mehnert aparece em jornais
associada a casos de aborto e Agradecimentos aos esforços renascimento seguido de aban- alizados pelos “ilustres drs. Didono da criança. Neles, há in- oclecio e Schmidt” e parteira
dicação de que a parteira aten- Joanna Mehnert para salvar da
dia suas clientes no local onde enfermidade D. Maria Antônia
residia, na rua Dr. Flores, pois dos Santos Lima.
ali possuía uma “clínica”, e as
Fonte: Jornal A Federação, Porto Alepacientes alugavam quartos gre, 21 de fevereiro de 1900, p. 3.
para permanecer por algum Hemeroteca Digital da Biblioteca
período. Catharina Nicolay, Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/
empregada no Hotel Trein, hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02
apresentou-se na residência da jun. 2020.
parteira e solicitou que fosse
recolhida em sua casa, alegando estar doente. Isso tudo teria ocorrido “depois de a mesma ter dado à luz uma criança morta ou cometido o crime de infanticídio no local onde morava e residia”24.
Essa prática de acolher as pacientes é algo que aparece evidenciado
no processo-crime contra Mehnert, uma vez que a mesma também
teria hospedado em sua residência a “criada” suspeita de ter tomado “medicamentos abortivos”.
A prática das parteiras em atender na própria casa, local onde
podiam ter uma “casa de parto” ou pensão, é algo identificado na
cidade do Rio de Janeiro. Muitas vezes, atender e receber as mulheres em casa era uma forma de preservá-las de fofocas, uma vez que
a presença de uma parteira na residência da paciente poderia levantar a suspeita na vizinhança sobre questões que deviam ser
mantidas em sigilo. Possuir quartos para alugar e receber “pensionistas”, apesar de ser uma situação que poderia levantar desconfianças, era prática que se somava a outras funções realizadas pelas
parteiras. É certo também pensar que esse tipo de comportamento
24
Notícias, p. 2. Jornal A Federação. Porto Alegre, 25 de abril de 1894. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional. Disponível em: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
345
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
era uma maneira de oferecer um atendimento mais completo e seguro às clientes, garantindo ao máximo o sigilo sobre os procedimentos realizados. O compartilhamento de segredos, as trocas de
auxílios e atendimentos fornecidos transformavam-se em vínculos
de confiança recíprocos. A realização de procedimentos que visavam controlar a reprodução através de práticas contraceptivas e
abortivas permitira, portanto, que algumas parteiras adquirissem
um reconhecimento privado, íntimo, sigiloso de suas habilidades
para práticas “ilegais”.
Em 1895, o jornal A Federação divulgou os nomes das parteiras que atuavam em Porto Alegre. Duas delas, as imigrantes Helena Mierisch e Joanna Mehnert, haviam se diplomado no exterior,
como mencionado. É provável que o número de parteiras estrangeiras recém-diplomadas que haviam chegado ao Rio Grande do
Sul com certificação expedida no país de origem fosse bem maior.
Além delas, outras quatro foram reconhecidas como parteiras pela
Diretoria de Higiene, sendo elas: Joanna Guerra, Manoela Rodrigues Agostini, Maria Christina Rodrigues e Maria Pennacchi25.
Essas quatro profissionais não tinham exibido títulos ou diplomas como as alemãs que atuavam como parteiras. Contudo, posteriormente em 1904, todas aparecerão como habilitadas de acordo com relação da Diretoria de Higiene do Estado gaúcho. O número de mulheres autorizadas a atuar como parteiras, apesar da
ausência de diplomas, possivelmente era significativo na Porto
Alegre da primeira década do novecentos. Nesse sentido, é preciso avançar nas pesquisas para verificar se a lei da “liberdade profissional” acirrou ou não as disputas entre aquelas que dominavam a arte de partejar, buscando perceber que recursos passaram
a serem acionados pelas mulheres que compunham esse grupo
bastante heterogêneo.
Na última década do século XIX, especialmente através da
criação da Diretoria de Higiene em 1895, foram instituídas iniciati-
25
“Parteiras”, Secretária de Higiene. Jornal A Federação, Porto Alegre, 25 de julho
de 1895, p. 3. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: <http://
bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
346
História das Mulheres no Brasil Meridional
vas para organizar os serviços sanitários, bem como controlar as
atividades dos médicos, parteiras e farmacêuticos. Todos deviam
obter o registro junto à diretoria; caso não o fizessem, seriam multados. Joanna Mehnert aparece no ano de 1899 sendo multada duas
vezes por desrespeitar alguns artigos do Regulamento do Serviço
de Higiene. Abaixo, conforme recorte de jornal (n. 2), a parteira e o
médico imigrante Huber Monschau são multados no valor de 100$
réis por descumprimento do artigo 35 e inciso 9º das regras sanitárias.26 Posteriormente, Joanna Mehnert é novamente multada no
artigo 23 – do capítulo I, que trata “Do exercício da medicina, da
pharmacia, drogaria, obstetrícia e arte dentária” – por “abusos cometidos” no exercício da profissão. De acordo com o valor da multa, é possível que a infração esteja relacionada ao inciso 5º, que diz:
“O phamaceutico que vender remédios falsificados ou deteriorados, será multado nas reincidências, além da responsabilidade”27.
Tudo indica que a mencionada parteira continuava a ser acusada
de conferir “remédios abortivos” para suas pacientes, negando ao
mesmo tempo todas as acusações que a ela fossem feitas nesse assunto.28
Alguns meses depois, em janeiro de 1900, é inaugurada uma
farmácia na Rua das Andradas no centro de Porto Alegre: “Sociedade Beneficente de Mútuos Socorros, União Policial”. Joanna
Mehnert e outros médicos dariam consultas no estabelecimento,
assim como o dr. Frederico Falk, que recentemente havia obtido o
26
O artigo 35 e inciso previa que frente ao aparecimento de qualquer “doença
transmissível” ou que possa tornar-se “epidêmica” o médico devia comunicar
imediatamente o fato à autoridade sanitária. A infração seria punida pelo valor
de 100$000. Do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Regulamento do
Serviço para Higiene, Decreto n. 44, de 2 de abril de 1895, p. 142-43. Arquivo
Histórico do Rio Grande do Sul (AHRS).
27
Do Governo do Estado do Rio Grande do Sul, Regulamento do Serviço para
Higiene, Decreto n. 44, de 2 de abril de 1895, p. 134. AHRS.
28
Após decorridos vários dias, a parteira Joanna Mehnert recorreu à última multa
lançada pela Diretoria de Serviços para Higiene contra ela no início de agosto
de 1899, conforme se constatou em informação divulgada na imprensa. Jornal A
Federação, Porto Alegre, 4 de setembro de 1899, p. 2. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
347
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
título de médico na capital da República do Brasil, a cidade do Rio
de Janeiro.29 Entre todos os profissionais que atendiam na farmácia, a parteira Mehnert e Falk eram estrangeiros, ambos imigrantes
alemães. Isso leva a pensar que a existência de uma afinidade étnica e profissional tenha sido o fator que fez com que atendessem no
mesmo estabelecimento. O dr. Frederico G. Falk era “médico operador e parteiro”, atendia na “Phamácia Allemã do Caminho
Novo”30 na Rua Voluntários da Pátria, em residência e na farmácia
fundada pela “União Policial”, ficando esses dois últimos lugares
localizados na Rua dos Andradas.
1. Multa da Diretoria de Higiene
Fonte: Jornal A Federação, Porto Alegre, 3 de julho de 1899, p. 3. Hemeroteca
Digital da Biblioteca Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
29
Jornal A Federação, Porto Alegre, 10 de fevereiro de 1900, p. 2. Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>.
Acesso em: 02 jun. 2020.
30
“Indicações”. Jornal A Federação, 13 de agosto de 1900, p. 2. Hemeroteca Digital
da Biblioteca Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
348
História das Mulheres no Brasil Meridional
2. Notícia de inauguração da farmácia na Rua dos Andradas,
Porto Alegre
Fonte: Jornal A Federação, 15 de janeiro de 1900, p. 2. Hemeroteca Digital da
Biblioteca Nacional: <http://bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>. Acesso em: 02 jun. 2020.
Considerações finais
As fontes criminais, como inquéritos e processos-crime, são
documentos especiais para entender as experiências sociais de indivíduos que circulavam pelos espaços públicos. No caso estudado, viu-se que as mulheres alemãs desempenhavam atividades profissionais ligadas à saúde, constituíam redes de relações, conflitavam e procuravam defender publicamente a honra individual e familiar. Antes de apenas identificar a presença das imigrantes em
determinadas serviços, este capítulo procurou perceber as escolhas,
as estratégias e as dinâmicas que propiciaram a elas a inserção na
sociedade de chegada, conseguindo, assim, usufruir de oportunidades de trabalho e ascensão social. A qualificação profissional ou
o domínio da arte de partejar possibilitou um amplo campo de atuação para as parteiras chegadas ao Brasil que buscavam construir
uma nova vida. Porém, era preciso conquistar clientela, confiança e espaço nas realidades urbanas da sociedade de adoção.
349
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
As imigrantes europeias trouxeram na bagagem técnicas e
métodos para tratar de doenças femininas, assistir as parturientes e
atender demandas contraceptivas e igualmente práticas abortivas –
que eram ilegais. O uso de uma infinidade de materiais e artifícios
para interromper a gravidez indesejada veio com elas em sua bagagem de saber, uma prática, contudo, que já era feita por parteiras e
médicos no Brasil bem antes da chegada daquelas. As técnicas abortivas utilizavam “agulhas de tricô, grampos, penas de ganso e palitos para perfurar a parede uterina”, o que poderia provocar graves
problemas de saúde à mulher (COSTA JÚNIOR apud SILVA, 2012,
p. 1248). O emprego de alguns dos referidos instrumentos, bem
como o uso de substâncias abortivas por parte de parteiras e boticários aparecem nas denúncias presentes na imprensa ou nas fontes
criminais.
Pode-se afirmar que a busca pelos serviços das parteiras alemãs estava ligada a uma questão étnica, pois, segundo foi possível
apurar, a maior parte da clientela vinha exatamente de imigrantes
e descendentes de mesma origem. A utilização de determinadas
técnicas, orientações em relação aos procedimentos empregados,
também pode ser uma justificativa que explique essa procura.
A disposição para atender as mais diferentes enfermidades,
demandas e aflições femininas, dominando tanto a arte de parir
como a do abortamento, conferia às parteiras um espaço mais
alargado de atuação, que, consequentemente, propiciava a ampliação das redes relacionais, de clientes e a própria fama individual.
O socorro às mulheres nas mais diferentes situações permitia o
estabelecimento de uma relação que iam além da contratação de
um serviço. Além disso, o compartilhamento de pacientes com
os médicos fazia com que as parteiras reforçassem vínculos e compromissos morais com a pessoa beneficiada por seus serviços, colocando em circulação uma economia de favores e proteções. Marcel Mauss (1974, p. 1.888), ao pensar o dom e o contradom, afirma que tais dádivas obrigam três relações: dar, receber e restituir.
Analisando somente o primeiro caso, o dar estabelece uma
dupla relação entre quem dá e aquele que recebe, institui vínculos
de solidariedade, superioridade, obrigação e dívida, como aquele
350
História das Mulheres no Brasil Meridional
de restituição do presente recebido. Em diferentes sociedades, a
“economia do dom” encontra-se na base de diversas “práticas informais de poder” e na constituição de recursos relacionais (HESPANHA apud XAVIER, HESPANHA, 1993, p. 381). Nesse sentido, o dom, expresso no ato de assistir e livrar as pacientes de seus
incômodos, garante não apenas aproximação entre parteira e paciente, mas marca também uma gratidão e amizade desigual entre
aquele que recebe e o doador. Tudo isso reforça uma posição, uma
imagem e constitui um “capital simbólico” para determinadas pessoas no grupo social do qual fazem parte.
O apoio que Joanna Mehnert recebeu nos momentos em que
foi acusada e investigada por fornecer tratamentos abortivos ou acobertar crimes de infanticídio vinha de mulheres que, em algum
momento da vida, haviam sido por ela atendidas e também de profissionais da área médica. Registros encontrados na imprensa indicam a relação bastante próxima entre Mehnert e alguns médicos
imigrantes que atuavam na capital Porto Alegre, o que possibilita
pensar no papel das afinidades étnicas como um elemento de aproximação entre os diferentes profissionais diplomados que passavam a dedicar-se às artes de curar.31 Colaboração profissional e
proteção, assentadas em vínculos étnicos e de amizade, aparecem
como um tipo de prática mantida por Joanna Mehnert. Havia
uma circulação de auxílios e benefícios entre parteiras, diplomadas ou não, e os médicos, bem como internamente em cada grupo, o que não impedia o surgimento de disputas e rupturas. Frente a acusações em relação a seu procedimento “criminoso”, a parteira ressaltou o fato de “felizmente” ser ela bem conhecida pela
sociedade descendente desta capital, indicando assim possuir um ca-
31
Entre a última década do século XIX e as primeiras do século XX o número de
médicos estrangeiros aumentou bastante na cidade de Porto Alegre. A maior
parte dos profissionais diplomados em universidades estrangeiras eram imigrantes alemães e italianos. Entre essas nacionalidades, Leonor B. Schwartsmann
(2017, p. 105) identificou em sua pesquisa a presença de 47 médicos originários
da Itália entre 1898 e 1920 apenas na capital do Rio Grande do Sul. Sobre a
presença de uma imigração qualificada de profissionais da área médica no território gaúcho ver: SCHWARTSMANN, 2008; 2017.
351
VENDRAME, M. I. • O “crime da parteira”: atuação de mulheres imigrantes
no campo da saúde no espaço urbano de Porto Alegre (final do século XIX)
pital relacional32 que lhe garantia benefícios, como proteção e amparo. As amizades realizadas através da atividade profissional transformaram-se em recursos que garantiram certa segurança para agir
e acionar apoio quando denunciada às autoridades públicas.
Alguns aspectos da atuação de Joanna Mehnert podem ser
tomados como perguntas para questionar as estratégias de inserção profissional, de conquista de clientela e controle de situações
prejudiciais à reputação das parteiras imigrantes em diferentes realidades urbanas do Brasil. Diplomadas ou apenas práticas, elas entraram em disputas com conterrâneas ou outras mulheres que também dominavam a arte de partejar. Sendo um grupo heterogêneo,
as parteiras utilizaram procedimentos e estratégias diferentes a fim
de conquistar clientes, reconhecimento e prestígio, bem como na
hora de se defender de denúncias por práticas e ações “ilegais” realizadas. O fato de muitas imigrantes serem qualificadas profissionalmente, com diploma inclusive, não impediu que entrassem em
choque com as instituições de controle do Estado e fossem colocadas como rés em investigações criminais pela realização de procedimentos abortivos.
Por outro lado, poder-se-ia levantar a hipótese de que, para a
realização de abortos, aquelas que recorreram a Joanna Mehnert
eram principalmente mulheres solteiras que trabalhavam como empregadas domésticas na capital Porto Alegre. Seria esse, portanto,
um dos motivos para ela ter sofrido um processo-crime, ou seja,
por atender pessoas de menor poder aquisitivo, diferentemente da
outra parteira alemã, a escritora Helena Mierisch? Somente uma
pesquisa mais ampla poderia confirmar ou não tal sugestão.
Como se ressaltou anteriormente, os documentos judiciais
são fontes prodigiosas para levantar questões a respeito dos espaços de atuação de sujeitos históricos tanto em espaços urbanos como
32
É certo que esse “capital relacional” havia se constituído muito em parte por
conta do comportamento da própria parteira para com as pessoas com quem se
relacionava. O desempenho da mesma para com pessoas de diferentes grupos
sociais na dinâmica da prestação de favores, trocas e auxílios pode ser visto como
mecanismo de fortalecimento do prestígio e consolidação do poder pessoal (HESPANHA; XAVIER, 1993).
352
História das Mulheres no Brasil Meridional
rurais. No caso específico deste artigo, tomou-se uma denúncia criminal como ponto de partida para buscar reconstruir a trajetória
profissional de algumas mulheres, sendo essa uma opção que possibilitou compreender o papel ativo das imigrantes no campo da
saúde feminina, as decisões bem-sucedidas e as fracassadas. Nesse
sentido, compartilha-se a ideia de que não basta falar das mulheres
imigrantes para mostrar sua presença e relevância nos diferentes
espaços sociais – familiar, público e profissional. É preciso perceber e analisar como elas operavam em tais realidades, identificando suas ações, projetos, escolhas e expectativas, mostrando os fracassos, os sucessos e reconstruindo as redes em que se encontravam inseridas.
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355
Escolarização de meninas pobres
em Porto Alegre*
Natália de Lacerda Gil
A intenção neste estudo é compreender aspectos específicos
que se referem à escolarização1 de meninas pobres2 na cidade de
Porto Alegre na primeira metade do século XX. Inicialmente, a
partir do trabalho de outros historiadores, apresento alguns elementos basilares da história da educação feminina no Brasil e procedo
à breve menção ao modo como a historiografia vem se ocupando
da questão da pobreza, pretendendo com isso sustentar a defesa da
necessidade de historicizar a expressão aluno(a) pobre. Em seguida, passo à apresentação da análise empírica de fontes documentais em torno de algumas situações específicas, tais como as relações entre filantropia e a educação das crianças pobres, as escolas
noturnas como instituição destinada às crianças trabalhadoras e as
possibilidades de continuidade dos estudos das meninas para além
do curso primário.
* Este trabalho vincula-se ao projeto interinstitucional (UFRGS, UNICAMP, USP,
UFPI) “Exclusão escolar na história brasileira: persistências e resistências (19202020)”, financiado pelo CNPq (processo nº 420799/2018-4).
1
Nem todo processo educativo compreende a escolarização, ou seja, a frequência
à instituição escolar. No caso das crianças pobres, muitas vezes, os projetos de
institucionalização da educação não se referiam a escolas, mas a orfanatos, campos de concentração, colônias agrícolas (VARELA; ALVAREZ-URIA, 1992;
MORAES, 2000; NEVES, 2014; VEIGA, 2017).
2
É preciso sublinhar a dificuldade e, às vezes, impossibilidade de distinguir, no
exame das fontes, crianças e meninas. Sempre que possível, busquei delinear
especificidades da educação feminina, mas muitas vezes a designação refere-se
genericamente a crianças pobres. Nesses casos, salvo quando estava explícito
tratar-se de meninos, considerei que as meninas pobres estavam incluídas na
menção.
356
História das Mulheres no Brasil Meridional
Não pretendi produzir um repertório de instituições ou iniciativas de escolarização no período, mas apresentar algumas questões importantes para a compreensão das semelhanças e diferenças
dos processos educativos de crianças pobres e abastadas. Este estudo permitiu observar a importância de ampliar o cruzamento de
categorias analíticas no tratamento do tema e a necessidade de aguçar a conceituação sobre pobre/pobreza nas pesquisas em história
de educação. Isso porque o exame da documentação aqui constituída como fonte aponta, em consonância com a análise de outros
pesquisadores para diferentes localidades em períodos similares, o
fato de que a designação pobre não se refere exclusiva e precisamente à escassez de dinheiro. Assim, os projetos das elites para a educação dos pobres direcionam-se a um grupo marginalizado pela
restrição econômica, mas também pelas diferenças culturais. Nesse sentido, interessou-me, além da apreensão desses projetos no
contexto porto-alegrense, identificar outras caracterizações e possibilidades de presença na escola de meninas cujas famílias tinham
recursos econômicos escassos.
Aspectos basilares da história
da educação feminina no Brasil
Na tradição luso-brasileira, a educação intelectual de mulheres foi vista como desnecessária, inadequada ou mesmo perigosa (RIBEIRO, 2007). A educação feminina deveria restringir-se aos
conhecimentos e habilidades necessários ao perfeito cumprimento
das funções de mãe e esposa. As mulheres eram consideradas seres
frágeis, de inteligência limitada e moralmente débeis. Por essas razões acreditava-se que fossem inferiores aos homens.
Até o século XIX, não havia no Brasil escolas para meninas:
a educação feminina acontecia no espaço doméstico ou em conventos e raramente incluía a alfabetização. Em 1827, a primeira lei
de educação promulgada no Brasil, recém-emancipado de Portugal, determinou a criação de escolas de primeiras letras para meninos
e meninas. Às meninas, assim como aos meninos, estavam previstas a aprendizagem de leitura e escrita, as quatro operações aritméticas, gramática da língua nacional, moral cristã e doutrina católi-
357
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
ca (BRASIL, 1827, art. 6º). No entanto, o ensino de noções de
geometria, a prática de quebrados, decimais e proporções destinavam-se apenas ao sexo masculino (BRASIL, 1827, art. 6º e 12º).
Às meninas seriam ensinadas também “as prendas que servem à
economia doméstica”3 (BRASIL, 1827, art. 12º). Além disso, é
importante destacar uma das principais justificativas para a escolarização feminina naquele período:
As mulheres carecem tanto mais de instrução, porquanto são
elas que dão a primeira educação aos seus filhos. São elas que os
fazem homens bons e maus, são as origens das grandes desordens, como os de grandes bens; os homens moldam a sua conduta aos sentimentos delas (LOPES, 1991, p. 120 apud FELIPE, 2000, p. 120).
No caso do Rio Grande do Sul, as primeiras escolas destinadas às meninas foram criadas pela Resolução de 25 de outubro de
1831 em dez localidades da província (SCHNEIDER, 1993). A
primeira delas a funcionar foi a de Porto Alegre em 1832 pela nomeação da professora D. Francisca Carolina do Prado Seixas. Em
1846, havia 51 escolas de instrução primária: 36 para meninos e 15
para meninas. Em 1869, foi criada a primeira escola destinada à
formação de professores, a Escola Normal, na Província de São
Pedro do Rio Grande do Sul, situada em Porto Alegre, anexa ao
Liceu de D. Affonso. A Escola Normal contou, inicialmente, com
“12 alunos matriculados, sendo oito do sexo masculino e quatro
do feminino. [...] com aulas pela manhã para os alunos, e à tarde
para as alunas, ocupava duas peças do prédio do Liceu, na esquina
da Rua da Ponte com a Rua da Ladeira” (SCHNEIDER, 1993, p.
238). No entanto, em pouco tempo, passou a predominar a matrícula de moças, visto que, naquele século, o magistério afirmou-se
como uma profissão feminina tanto no Brasil como em outros países (LOURO, 2004). Em 1878, a Escola Normal de Porto Alegre
tinha 164 alunos, sendo 42 do sexo masculino e 122 do feminino.
Parte dos matriculados, porém, retirava-se do curso antes da obtenção do diploma de professor. No final da década de 1880, o diretor
3
Todas as citações dos documentos tiveram a ortografia atualizada.
358
História das Mulheres no Brasil Meridional
da escola afirmava que entre as causas estava o fato de que havia
“alunas que se retiravam do curso após cursar o 1º e 2º anos, julgando-se suficientemente preparadas para seguir diversas atividades ou ser boas mães de família” (SCHNEIDER, 1993, p. 451).
No século XX, aos poucos, as escolas primárias passaram a
ser de frequência mista (meninos e meninas estudando juntos) e foi
se abandonando a diferenciação curricular em função do gênero,
mas prevaleceu por um longo período a compreensão de que a educação feminina, tanto no curso primário como na Escola Normal,
deveria voltar-se ao preparo de mães e esposas. Tal concepção articulava-se à ideia de que as mulheres seriam naturalmente destinadas à educação das crianças em função da maternidade, e portanto
parecia coerente incentivá-las ao exercício do magistério primário.
Guacira Lopes Louro (2004, p. 458) destaca que ocorreu, desde o
século XIX, um processo de “escolarização do doméstico”, compreendido não como mera transposição de saberes da casa à escola
e sim como uma reelaboração desses saberes:
A economia doméstica – às vezes apresentada com outras denominações – também se tornaria parte integrante desses cursos [de formação ao magistério], constituindo-se numa série
de ensinamentos referentes à administração do lar. Assim,
muitas aprendizagens até então restritas ao lar passariam ao
âmbito da escola.
Nas primeiras décadas do século XX, ganham espaço discursos em defesa do governo das famílias por meio da educação
das mulheres: “Não só o discurso médico se destacou na tentativa de governar as crianças e suas famílias, mas o discurso psicológico também se constituiu num campo importante para o governo da população” (FELIPE, 2000, p. 64). Embora tais discursos
não fossem monolíticos e unânimes, foram recorrentes de modo
que, mesmo atualmente, encontram espaço nos debates educacionais, disputando força nas lutas simbólicas4 ao lado de outras
ideias. Nesse processo, colocou-se em suspeita a capacidade das
4
No espaço social, o poder de estabelecer, nas estruturas mentais dos indivíduos, a
apreensão do real reconhecida como mais adequada é objeto de lutas simbólicas
em torno das representações. Segundo Roger Chartier (2002, p. 17), “[...] as lutas
359
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
famílias de bem educarem seus filhos, sobretudo quando se referia à população pobre:
Os hábitos mais rotineiros do trabalhador e sua família foram
postos em discussão. As mães das classes pobres eram responsabilizadas pela alta taxa de mortalidade infantil, sendo consideradas desinformadas e ignorantes em relação aos cuidados
de higiene dos recém-nascidos. Suas práticas tradicionais foram desautorizadas, ao passo que as mães burguesas foram
vistas como uma espécie de aliadas dos médicos na difusão
dos novos comportamentos junto às mães trabalhadoras (FELIPE, 2000, p. 128).
Tais aspectos instigam a questionar se havia diferenças nas
finalidades e nos processos de escolarização de meninas pobres e
economicamente abastadas na primeira metade do século XX.
Questão extremamente difícil, no entanto, é circunscrever analiticamente tais categorias. Quem era pobre naquele período?
Algumas considerações historiográficas
sobre o conceito de pobre
A propósito dos conceitos na pesquisa histórica, Reinhart
Koselleck (2006) tem ressaltado a importância de considerá-los
cuidadosamente. O autor compreende por conceitos não apenas as
palavras localizadas nas fontes ou as categorias analíticas mobilizadas pelo historiador. A análise histórica torna-se mais acurada
quando, em torno de conceitos principais para um dado tempo e
período, investiga-se o campo semântico que lhe é correspondente.
Nesse sentido, é preciso “compreender os conflitos sociais e políticos do passado por meio das delimitações conceituais e da interpretação dos usos da linguagem feitos pelos contemporâneos de
então” (KOSELLECK, 2006, p. 103). Importa observar que “as
palavras que permaneceram as mesmas não são, por si só, um indício suficiente da permanência do mesmo conteúdo ou significado
de representações têm tanta importância como as lutas econômicas para compreender os mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua
concepção do mundo social, os valores que são os seus, e o seu domínio”.
360
História das Mulheres no Brasil Meridional
por elas designado” (KOSELLECK, 2006, p. 105). As implicações
dessa constatação para o estudo apresentado neste capítulo não
são desprezíveis: cabe proceder à desconfiança, como procedimento metodológico, de que o termo pobre designasse no início do século XX o mesmo que atualmente, além de ser preciso escrutinar
outros termos que o ladeiam ou substituem nas fontes. Sandra Pesavento (1994, p. 8) já havia chamado a atenção, em estudo sobre
Porto Alegre entre 1880 e 1920, para o fato de que “nas cidades, o
contraponto da riqueza, do luxo, da ostentação burguesa dá-se pela
emergência dos pobres, dos populares, dos subalternos, dos proletários... Enfim, dos protagonistas da ‘questão social’”.
A historiografia tem estado frequentemente atenta à polissemia de significados do termo pobre, mas convém ainda enfatizar
esse ponto. Embora se refira, de algum modo, a indivíduos que são
incapazes ou têm dificuldade de prover seu sustento e de suas famílias, é preciso sublinhar que o termo não designa apenas aquele
que não tem dinheiro. É recorrente no exame das fontes do final do
século XIX e início do XX, a identificação dos pobres como sendo
aqueles que “precisavam ser enquadrados dentro de uma ordem
supostamente mais ordenada, bela, higiênica e moral” (PESAVENTO, 1994, p. 9). Conforme ressalta Fabiano Quadros Rückert (2019,
p. 317), a pobreza
é um fenômeno relacional, na medida em que a sua existência
é produto de relações entre grupos humanos, instituições sociais, ambiente natural, elementos culturais e saberes técnicos.
Ela também é relacional porque implica existência de arquétipos que permitam a distinção entre ricos e pobres.
Esse autor destaca, assumindo a caracterização proposta por
Milton Santos (2013), que a pobreza urbana tem certas particularidades. Primeiro pela impossibilidade de cultivo do solo visando à
produção de gêneros de subsistência, que acarreta ao pobre a dependência do trabalho remunerado para garantir sua alimentação.
Depois, a imposição da lógica do mercado imobiliário, que condiciona a precariedade e/ou o alto custo de moradia. Por fim, nas
cidades, observa-se a “existência de dispositivos jurídicos e institucionais, a partir dos quais o poder público promove a organização
361
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
do espaço e a normatização das práticas sociais desejáveis ou indesejáveis no ambiente urbano” (RÜCKERT, 2019, p. 319).
São, portanto, múltiplas as formas de percepção da pobreza
no período aqui em foco, e convém sublinhar as principais categorias abarcadas pelo termo pobre. Uma delas diz respeito aos desvalidos da sorte, desafortunados do destino, cujas mazelas são foco
das ações de filantropia e caridade: são os mendigos, os indigentes,
os órfãos. Apreendidos nos discursos pela retórica dos desígnios
divinos, servem socialmente ao exercício das virtudes cívicas e cristãs. Mas há, em outros casos, menção aos pobres como sendo os
trabalhadores livres que vivem em condições precárias: às vezes, o
“trabalhador nacional” que se diferencia dos imigrantes trazidos
ao país visando à eugenia e ao branqueamento da população, mas
também frequentemente os próprios imigrantes operários. Em
ambas as situações, os pobres são trabalhadores sempre subalternos, cujas ocupações são variadas e de grande mobilidade, já que
vão aonde haja trabalho. Os pobres podem ser referidos muito recorrentemente também como vadios, indivíduos sem ocupação
profissional legalizada e sem residência fixa. Encontra-se, por fim,
a percepção dos pobres como proliferadores de doenças, como ressaltou Sidnei Chalhoub (1996) em análise acerca da articulação
entre os preceitos higienistas e o combate a moradias coletivas. Nesse
sentido, importa observar que
o discurso contra o comportamento dos que viviam nos cortiços, apesar de expressar preocupações sanitárias, incorporou
preconceitos raciais de uma sociedade escravista e manifestou
uma crescente desconfiança da elite a respeito de negros e
mulatos que formavam a chamada “arraia miúda” (RÜCKERT,
2019, p. 333).
Os estudos históricos têm evidenciado que os pobres, por
razões variadas, geraram desconfiança e foram destinatários da imposição de uma economia moral burguesa. Como ressaltou Sandra Pesavento (1994, p. 10), prevalecia a compreensão de que “os
pobres poderiam ser perigosos, não apenas em função de sua sujeira, como focos potenciais de doenças (FAURE, 1977), mas pelas
suas características genéticas, que os predispunham à degeneração
e a toda sorte de crimes (DUMONT, 1984)”.
362
História das Mulheres no Brasil Meridional
Na historiografia da educação, há importantes trabalhos dedicados ao conhecimento de discursos, instituições e práticas educativas de crianças pobres no Brasil, mas algumas lacunas ainda
são expressivas. Cynthia Greive Veiga (2008, p. 507) ressaltava em
2008 que
apesar de os estudos históricos sobre crianças pobres estarem
em geral relacionados a instituições de recolhimento, como roda
dos expostos, asilos e abrigos, para os estudos do século XIX
podemos acrescentar a escola pública como um dos espaços
de presença das crianças pobres e particularmente de produção da identificação “aluno pobre”.
Essa necessidade se mantém. Sobretudo se levarmos em conta
que no período imperial há diferenças acentuadas entre as províncias, faz falta maior acúmulo de estudos sobre a variedade de
situações regionais. Conhecemos ainda pouco sobre a amplitude e
o significado da presença desse grupo social nas escolas do século
XIX. No que se refere ao período republicano, tem se mostrado
importante compreender como foram produzidos os processos de
exclusão escolar das crianças pobres e quais as especificidades em
função de gênero, cor, etnia, local de residência. Importa observar
também que há um conjunto fundamental de análises acerca dos
discursos (médico, psicológico, pedagógico, religioso) sobre a importância de educar os pobres. Produzidas no âmbito das elites, as
representações sobre a educabilidade da infância identificadas nesses discursos foram amplamente legitimadas em espaços de poder
e frequentemente pautaram o ordenamento legal e ações de formação docente, entre outras circulações. Convém sublinhar que há
uma diferença entre a análise das representações sobre o aluno ou
a criança pobre e o conhecimento acerca dos lugares sociais ocupados por esses indivíduos e suas experiências de escolarização, em
termos de sujeição como também em termos de agenciamentos e
ações de resistência. Evidentemente, ambas as perspectivas são importantes na compreensão do passado. Compartilhando os interesses dessa literatura histórica especializada, pretendi contribuir no
sentido de avançar no conhecimento acerca dos processos de escolarização vivenciados por meninas pobres em Porto Alegre na primeira metade do século XX.
363
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
Para que escolarizar as crianças pobres?
Ao longo do século XIX e nas primeiras décadas do século
seguinte, é notável a preocupação das elites com o controle e o
disciplinamento da população. Como já mencionado, os anseios
burgueses de consolidação de um país livre, civilizado e propenso
ao progresso animaram, entre outras ações, a difusão dos discursos
higienistas, a criação de instituições, tais como a escola e o estímulo à urbanização e à industrialização. No que se refere à escola,
teve destaque no debate público a defesa “de sua importância no
processo de civilização do povo” (FARIA FILHO, 2007, p. 136).
Desde o início do regime monárquico constitucional, construir a
nação brasileira passava por generalizar o acesso das “classes inferiores da sociedade” aos saberes escolares elementares. Esperavase que a escola garantisse às crianças pobres a formação de qualidades morais e intelectuais consideradas pelas elites como ausentes nos meios populares. Nesse sentido,
a comparação com um modelo ideal de infância e a afirmação
da inferioridade dos alunos pobres a partir desse padrão reforçava, por consequência, a necessidade de educação escolar para
suprir tais deficiências, originadas de uma vivência precária
(GOUVÊA; JINZENJI, 2006, p. 123).
Os preconceitos partilhados por esses defensores da escola
com relação aos pobres também alimentavam a expectativa de prevenir que as crianças educadas em meio social pobre se convertessem em perigo à ordem: “Circulava entre os grupos comprometidos
com a ‘causa da infância’ uma forte crença de que ‘a educação é o
antídoto da criminalidade’, cabendo ao Estado não estender os aparelhos judiciários ou policiais, mas disseminar os aparelhos educativos” (RIZZINI; GONDRA, 2014, p. 576, destaques no original).
Em um século no qual as principais características da escola
elementar foram a escassez e a precariedade, é fundamental não
perder de vista que se tratava de uma instituição rara e acessível a
poucos (FARIA FILHO, 2007; VEIGA, 2008). Isso não equivale a
dizer que fosse necessariamente uma instituição elitista. Os grupos
sociais economicamente favorecidos buscavam outras formas de
educação para seus filhos no âmbito da educação doméstica e/ou
364
História das Mulheres no Brasil Meridional
com professores particulares. A escola de primeiras letras foi proposta para a moralização dos pobres, e alguns estudos têm asseverado que, no século XIX, esse grupo representou a maioria do alunado (GOUVÊA; JINZENJI, 2006; VEIGA, 2017). Vale observar,
contudo, que para a população pobre a trajetória escolar prevista
restringia-se ao tempo mínimo necessário para o aprendizado do
ler, escrever e contar, acompanhado de uma formação moral que
assegurasse bons comportamentos, amor à pátria e obediência à
ordem estabelecida. Assim, “pode-se afirmar, como muitos faziam
à época, que, para a elite brasileira, a escola para os pobres, mesmo
em se tratando de brancos e livres, não deveria ultrapassar o aprendizado das primeiras letras” (FARIA FILHO, 2007, p. 136).
Ao longo do século XX, assiste-se à diferenciação dos percursos escolares. Paradoxalmente, é sob o regime da igualdade de
direitos que a escola vai mais duramente discriminar os grupos sociais subalternos (VEIGA, 2017). No Brasil, como em muitos países, conforme os diplomas passam a valer mais como critério de
seleção e classificação social, a competição pela escola como instância de distinção social acirra-se (BOURDIEU, 2017). Além disso, para as classes populares continuam vigorosos os projetos de
escolarização que visam disciplinamento e controle. Carmen Vidigal Moraes (2000, p. 70) reitera que, com a instauração da República, “são desenvolvidas inúmeras estratégias e dispositivos visando à
moralização e ao ajustamento do trabalhador à nova ordem social”.
A escolarização na cidade de Porto Alegre apresenta, em
linhas gerais, essas mesmas características. Capital do estado do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre passou, a partir da segunda metade do século XIX, passou por alterações na dinâmica urbana cuja
intenção era modernizá-la, prepará-la para os desafios da sociedade industrial, abrir-lhe a possibilidade de acesso às vantagens vislumbradas pelo desenvolvimento técnico-científico (BARROSO,
2010). Nas primeiras décadas do século XX, uma das metas foi a
reforma do espaço urbano com a retirada dos pobres do centro,
local de circulação das elites, bem como a moralização e o disciplinamento dos trabalhadores subalternos (MONTEIRO, 1995). A
escola estava entre as instituições propícias a essa tarefa. Houve
diversas iniciativas públicas e particulares – nem sempre planeja-
365
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
das e articuladas – de criação de tipos variados de escolas para públicos também variados: colégios elementares, escola complementar,
escolas isoladas, grupos escolares, escolas subvencionadas particulares ou municipais, escolas católicas, protestantes e/ou étnicas, ginásios particulares, escolas profissionais (GIL, 2020, no prelo).
Escolarizar a população urbana, incluindo os pobres, foi uma
das preocupações dos gestores públicos. Não que esse fosse intento
especialmente novo, visto que desde o século XIX, também no Rio
Grande do Sul, a intenção de civilizar o povo já sublinhava a escola
como instituição necessária. Em 1875, Rodrigo Azambuja Villanova, como Diretor Geral da Instrução, registrava em Relatório:
“[...] o estado da instrução elementar [...] está longe de ser lisonjeiro [...] há grande número de crianças que se acham privadas dos
benefícios da instrução” (RELATÓRIO, 1875, p. 4 apud LUCHESE, 2013, p. 280). Instituída a República, acrescentava-se a preocupação com a formação do trabalhador de moral inabalável e comprometido com o progresso da nação.
O exame da legislação provincial sul-rio-grandense permite
observar que a escola elementar foi pensada também para a frequência de crianças pobres, mas o intento esbarrava na falta de
condições objetivas para que as famílias custeassem as despesas de
manutenção de seus filhos nos bancos escolares. Daí, por exemplo,
a indicação no Regulamento da Instrução Pública em 1876 de que
“todo o ensino e expediente dentro das escolas será feito à custa
dos cofres públicos. Correrão também por conta dos mesmos cofres as despesas de fornecimento de livros e outros objetos necessários ao ensino somente dos meninos pobres” (RIO GRANDE DO
SUL, 1876). Caso não houvesse escola pública no entorno de moradia dessas crianças, o Diretor Geral da Instrução poderia “com
aprovação do Presidente da Província contratar com o professor
dessa escola [particular] a admissão de alunos pobres mediante uma
gratificação de 2$000 réis por cada um até o número de vinte e a de
50$000 réis mensais desse número para cima” (RIO GRANDE
DO SUL, 1876).
A preocupação com a escolarização das crianças pobres encontra espaço entre os debates das elites, como se pode perceber
366
História das Mulheres no Brasil Meridional
pela análise empreendida no jornal A Federação5. Esse periódico foi
criado em Porto Alegre em 1884 por homens que defendiam ideais
republicanos, liberais e abolicionistas congregados no Partido Republicano Rio-Grandense (PRR). Instituída a República, esse grupo político esteve à frente do governo do Rio Grande do Sul por
décadas. Desse modo, o jornal passou a representar o grupo político hegemônico no estado. Em 1937, deixou de ser publicado em
função da extinção dos partidos políticos pelo Estado Novo. Em
suas páginas, é possível identificar os objetivos vislumbrados para
a educação de crianças e adultos “desprotegidos da fortuna”: a
escola deveria alfabetizar e difundir a instrução primária a essas
“vítimas do desamparo e da ignorância”. Os articulistas do jornal consideravam que as iniciativas de alfabetização dos pobres
contribuíam “para tirá-los da cegueira da ignorância como também para formação de cidadãos dignos da Pátria” (A Federação,
29/09/1933, p. 4).
No que se refere à escolarização das meninas, o jornal é,
contudo, poucas vezes específico. São raros os artigos que mencionam as meninas, o mais comum sendo a identificação das
crianças por um substantivo masculino genérico. Nem sempre,
portanto, é possível identificar se as inciativas de escolarização
mencionadas nas fontes analisadas excluíam as meninas. Há algumas situações em que a referência é explícita, como no caso
das informações apresentadas em Relatório da Instrução Pública
(e transcrito no jornal) sobre o Instituto Parobé, que se destinava
ao ensino profissional em Porto Alegre: “Importante instituto de
ensino que cada ano vem prestando reais serviços para o preparo
profissional dos nossos meninos e meninas pobres – o que muito
concorrerá para o desenvolvimento industrial do nosso país [...]”
(A Federação, 20/10/1924, p. 28).
5
Para este estudo foram consultados os exemplares disponibilizados em formato
digital na Hemeroteca da Biblioteca Nacional (disponível em: <https://
bndigital.bn.gov.br/hemeroteca-digital/>). Utilizamos como motor de busca os
termos: aluno(a) pobre, escola noturna e caixa escolar. A busca e sistematização
da documentação foi realizada por Luísa Grando, bolsista de Iniciação Científica pelo Programa BIC/UFRGS.
367
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
O trabalho é, efetivamente, categoria central quando se intenciona analisar os projetos de escolarização da população pobre.
As escolas noturnas foram, nesse sentido, destinadas a possibilitar
acesso ao ensino para crianças e adultos que não podiam receber
instrução durante o dia porque trabalhavam. Em 1919, o jornal
noticiou aulas noturnas especificamente destinadas a mulheres
pobres: “A instituição Obras de Santa Izabel acaba de criar mais
uma aula noturna para senhoras e senhoritas pobres e que foi instalada em uma sala no Grupo Escolar Voluntários da Pátria, cedida
pelo dr. Protásio Alves” (A Federação, 10/07/1919, p. 6). Essa mesma instituição divulgou, em 1925, a oferta de cursos variados e ao
menos alguns de caráter profissionalizante:
A Escola Doméstica reabriu suas aulas [...] Continua aberta a
matrícula para as aulas de escrituração mercantil, desenho e
pintura, línguas, estenografia, corte e costura, flores artificiais,
chapéus, lavores femininos e arte culinária. A aula noturna
gratuita funciona com grande número de alunas (A Federação,
16/03/1925, p. 5).
Embora se chamasse Escola Doméstica, o que certamente
era percebido como apropriado para uma escola de meninas no
período, vale observar que as opções de curso não se restringiam às
tarefas que se referem ao cuidado de uma casa. Note-se também
que é possível que essa escola oferecesse apenas os cursos específicos listados acima, sem opção de frequência ao curso primário, já
que, em 1936, temos notícia de curso noturno para mulheres que
informa acerca da ausência de outras iniciativas similares:
Está em organização o curso noturno do Colégio Americano.
A organização deste curso, sendo o único curso noturno feminino em Porto Alegre, oferece grandes oportunidades às moças que queiram tirar o curso seriado, mas não podem assistir
aulas diurnas (A Federação, 10/03/1936, p. 2).
A preocupação com a preparação de mulheres para o trabalho, porém, já havia aparecido bem antes no periódico, associada
ao iminente término do regime escravocrata:
Dando-vos notícia, cidadãos vereadores, d´esta festa, cumpro
um agradável dever, em primeiro lugar rasgando o véu que
encobre a modéstia de tão digno cidadão, cujo patriotismo le-
368
História das Mulheres no Brasil Meridional
vou-o até o extremo de estabelecer uma aula noturna para essas infelizes que têm obtido suas cartas de liberdade, sem retribuição alguma, contando já o número de quarenta alunas, concorrendo assim para o melhoramento do serviço doméstico,
que, certamente, muito melhorará quando feito por pessoas de
educação literária [...] (A Federação, 09/09/1886, p. 2).
O artigo permite notar a preocupação em dar algum estudo
a mulheres recém-libertas, ao mesmo tempo em que evidencia que a
ocupação vislumbrada para essas mulheres é o serviço doméstico.
No período, além da formação das meninas destinadas a
assumir ocupações laborais, há ainda a preocupação com a formação moral, uma das funções atribuídas à escola. Nesse sentido, a
caixa escolar cumpriu uma dupla função. Criada para permitir aos
alunos abastados o exercício da filantropia, viabilizava, ao mesmo
tempo, a manutenção das crianças pobres na escola, fornecendo roupas, sapatos, alimentação e transporte (GRANDO, 2019). A documentação referente a essas caixas escolares não especifica meninos e
meninas para nenhuma das duas funções. Portanto, é possível que
não se tratasse de um recurso destinado apenas às meninas, mas também para elas. Por outro lado, uma notícia de 1929 permite-nos aventar que pelas práticas culturais do período esperava-se que as ações
filantrópicas fossem atribuições femininas:
Vários bandos precatórios, formados por senhorinhas e meninas da nossa sociedade, percorrem a cidade, angariando óbolos para a “Caixa”. Essa cooperação do nosso povo nos esforços realizados pelo governo para melhorar e ampliar a instrução darão fora de toda dúvida os melhores resultados (A Federação, 10/06/1929, p. 1).
As primeiras caixas escolares no Rio Grande do Sul foram
criadas em 1917, mas sua regulamentação foi estabelecida apenas
em 1927, fixando seu “objetivo duplo de desenvolver o sentimento
altruístico na criança e dar-lhe, ao mesmo tempo, educação cívica”
(RIO GRANDE DO SUL, 1927, Art. 46). Contribuindo para a
caixa escolar, os alunos concorriam “para o bem-estar de seus colegas desprotegidos da fortuna, auxiliando-os, sem alarde, visto que
todo benefício deve ser feito com mínimo de constrangimento para
quem recebe” (RIO GRANDE DO SUL, 1927, Art. 46). Como
369
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
afirma Frederico de Castro Neves (2014, p. 118-119), durante as
décadas finais do regime imperial,
estava em movimento uma mudança na estrutura de sentimentos que regulava a relação entre a sociedade brasileira e os pobres, na qual o “favor” (elemento pertencente à esfera privada,
associado à esmola) deveria ser substituído pelo “direito” (elemento da esfera pública, garantido por uma lei universal, associado ao socorro).
A instituição da caixa escolar no Rio Grande do Sul permite
observar a permanência da estrutura de sentimentos anterior ao
período republicano e sua acomodação às prerrogativas de uma
sociedade que passava a pensar a questão social cada vez mais como
concernente aos direitos de cidadania. Assim, a caixa escolar é prevista e regulamentada em lei, instituída e organizada pelo Estado,
mas seu funcionamento opera na lógica caritativa.
Onde escolarizar meninas pobres?
Na primeira metade do século XX, havia poucas possibilidades de continuidade dos estudos para meninas em Porto Alegre
após o curso primário. A Escola Complementar (antiga Escola
Normal, posteriormente chamada de Instituto de Educação Flores
da Cunha) havia sido instalada em 1906 e oferecia o curso de formação de professores (LOURO, 1986). Certamente essa é a mais
importante das instituições destinadas à educação feminina na capital do Rio Grande do Sul no imaginário dos antigos moradores
da cidade. Em 1929, a escola passou a oferecer o curso complementar com duração de três anos, seguido do Curso Normal ou de Aperfeiçoamento com duração de dois anos. Em 1939, instituíram-se o
curso ginasial e o complementar (compondo a Escola Secundária),
que antecediam a entrada no Curso Normal. Guacira Lopes Louro
(1986, p. 28) menciona que, ao menos entre os anos 1930 e 1970,
apesar de ter sido esta uma escola pública e gratuita, ela não
foi dirigida para a maioria feminina das classes trabalhadoras.
Ao contrário, o I. E. [Instituto de Educação] foi [...] preponderantemente uma escola para mulheres das camadas médias da
sociedade gaúcha.
370
História das Mulheres no Brasil Meridional
Apesar desse predomínio, a autora menciona que entre os
alunos da instituição “também estavam presentes (em menor número) elementos dos setores desfavorecidos socialmente” (LOURO, 1986, p. 224).
No mesmo período, havia ao menos três outras instituições
que ofereciam continuidade dos estudos às meninas na capital do
estado: o Colégio Americano, o Colégio Sevigné e o Colégio Bom
Conselho (POPIOLEK, 2016). De orientação metodista, o Colégio Americano, criado em 1885, após quatro anos passou a ser administrado pela Divisão de Mulheres da Igreja Episcopal do Sul e a
receber apenas meninas. Em 1926, instituiu um curso ginasial feminino. Os Colégios Sevigné e Bom Conselho eram escolas femininas católicas, criadas respectivamente em 1900 e 1905, que no
final dos anos 1920 também passaram a oferecer curso ginasial.
Por serem escolas pagas, não é despropositado supor que essas instituições se destinavam a meninas das classes abastadas. No entanto, sem recusar a compreensão de que a maioria dessas alunas fosse oriunda das elites, chama a atenção a brecha que se abre à possibilidade de frequências também de meninas pobres.
Um aspecto a destacar, nesse sentido, refere-se ao processo
de municipalização, e posteriormente estadualização, dos ginásios
das duas instituições católicas mencionadas acima (juntamente com
os colégios masculinos Anchieta e Nossa Senhora do Rosário)6,
ocorrido no final dos anos 1920. Não havia, até aquele período,
escolas públicas que oferecessem o curso ginasial em Porto Alegre,
e a única instituição cujo diploma se equiparava ao do Colégio Pedro II era o Instituto Júlio de Castilhos (criado pela Escola de Engenharia e, portanto, uma escola particular até 1942). Isso dificultava a preparação das elites porto-alegrenses para o ingresso no
Ensino Superior, o que era compreendido pelos gestores da época
como um problema público (GIL; POPIOLEK, 2019). Por essa
razão, foram municipalizadas e depois estadualizadas essas escolas, criando as condições para a equiparação dos diplomas. Duas
delas eram escolas femininas. No acordo firmado entre a Intendên6
Para o aprofundamento sobre esse tema ver GIL e POPIOLEK (2019).
371
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
cia Municipal de Porto Alegre e as escolas, essas se comprometiam
a “admitir, gratuitamente, 20 alunos, por acordo entre a Diretoria
do Ginásio e o Intendente” (RELATÓRIO, 1926, p. 158). Os critérios da Intendência Municipal para a distribuição dessas vagas gratuitas não aparecem mencionados na documentação examinada,
mas é possível que mantivessem o acesso circunscrito às elites.7
Porém, provavelmente elites empobrecidas não tinham condições
de pagar as mensalidades escolares. Outra possibilidade era a distribuição assentar-se nas convicções liberais acerca da meritocracia: nesse caso, as vagas poderiam ser distribuídas a crianças pobres que demonstrassem talento destacado para os estudos. Mesmo nesse caso, pode-se supor que tais vagas fossem distribuídas
entre as elites empobrecidas para aquelas crianças cujo capital cultural (BOURDIEU, 2017) favorecia obter êxito em processos seletivos formulados pelos grupos hegemônicos. O que importa assinalar aqui é que pela escassez de recursos econômicos podem estar na
condição de pobreza indivíduos que acumulam outros capitais, cuja
distribuição também é restrita e desigual – como ocorre com o capital cultural e o capital social. Para melhor compreender a estratificação social no período em estudo, é preciso, portanto, avançar no sentido de ampliar a articulação entre diversas categorias de análise.
Além do Ginásio e do Curso Normal, havia outra possibilidade de continuidade dos estudos para meninas no período que
merece ser observada: as escolas profissionais. Uma das mais importantes dessas instituições foi o Instituto Parobé, criado em 1897
com o propósito de
promover a educação de um operariado nacional, sob o ponto
de vista físico, moral e instrutivo. Concorrendo com esses recursos materiais para a cultura moral, sentimento pátrio e instrução profissional das crianças pobres e filhos de operários, o
município, além de um dever de administração, terá também
contribuído para o seu desenvolvimento econômico, preparan-
7
Assume-se aqui a compreensão de que as elites abarcam grupos sociais distintos
que têm em comum o acesso privilegiado a bens e vantagens restritos a poucos e
tendem a lutar pela manutenção de seus privilégios. Nem sempre se trata, contudo, de acúmulo de recursos econômicos.
372
História das Mulheres no Brasil Meridional
do pessoal idôneo para suas indústrias (RELATÓRIO, 1910,
p. 131 apud STEPHANOU, 1990, p. 11).
Em 1923, o Relatório da Secretaria do Interior e do Exterior
informa que o Instituto Parobé mantinha “três cursos distintos que
são: o curso diurno, o curso noturno e o curso feminino, este último destinado a fornecer a educação doméstica a meninas pobres”
(RIO GRANDE DO SUL, 1923, p. XIII). Naquele ano8, havia 488
estudantes naquela instituição, sendo 66 no curso feminino. O Relatório informa ainda que “nesta seção do Instituto é mantido um
internato para dez meninas pobres, onde lhes é fornecida roupa e
alimentação gratuita, além do ensino” (RIO GRANDE DO SUL,
1923, p. XIV). Os cursos oferecidos às meninas eram de trabalhos
domésticos e rurais, trabalhos de lavagem e engomagem, jardinagem e horticultura, trabalhos manuais, costura e bordado, padaria,
preparo de conservas.
O fato de referir-se a uma escola profissional não é, contudo,
indício suficiente da frequência a uma escola apenas para meninas
pobres. Vejamos o exemplo de outra instituição que ofereceu cursos técnicos profissionais para meninas em Porto Alegre: a Escola
Técnica Senador Ernesto Dornelles. Guacira Lopes Louro e Dagmar Meyer (1993, p. 47) destacam, em relação a essa instituição,
que se trata de “uma escola técnica proposta em princípio para
moças das classes trabalhadoras – o que justifica seu caráter profissionalizante (formando artífices e técnicas) –, mas pensada a partir
do imaginário dos grupos dominantes”. Criada em 1946, funcionava em regime de internato ou semi-internato, recebendo apenas
meninas para os cursos de Artes Industriais e Aplicadas, Corte e
Costura, Chapéus, Flores e Ornatos (SCHOLL, 2012). O exame9
8
A seção feminina havia sido criada em 1920. Maria Stephanou (1990) informa,
no entanto, que já em 1927 foi suprimida no Parobé para a criação do Instituto de
Educação Doméstica e Rural.
9
Para este estudo foram consultadas 167 fichas sociais do Serviço de Psicotécnica
e Orientação Educacional (CPOE) da Secretaria de Educação do Estado do Rio
Grande do Sul, preenchidas no momento da matrícula de alunas nos cursos técnicos profissionais (Artes Aplicadas; Corte e Costura; Chapéus, Flores e Ornatos) da Escola Técnica Senador Ernesto Dornelles, situada em Porto Alegre. As
fichas referem-se aos anos compreendidos entre 1946 e 1949 e fornecem informa-
373
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
detido das informações socioeconômicas das alunas matriculadas
nessa instituição entre 1946 e 1949 permitiu notar a predominância de alunas pobres, mas também evidenciou a presença de meninas abastadas. Além disso, foi possível identificar, pelo total de fichas em que constam a cor dos membros da família (registrado por
escrito e legível em 154 das fichas), que predominavam as alunas
de cor “branca” (139), mas também havia alunas registradas como
“de cor” ou “preta” (10) e outras em que a cor é registrada como
“morena” (3).10 Quanto às idades, identifica-se que as alunas tinham entre 11 e 17 anos.
Analisando as ocupações registradas de pais, mães ou tutores e tutoras das alunas, observam-se uma expressiva dispersão entre os pais (são designadas 61 ocupações diferentes em 167 fichas)
e a predominância do cuidado da casa entre as mães (são apenas
22 as diferentes ocupações mencionadas nesse caso e 109 fichas
indicam que a mãe é “doméstica”). Quanto à ocupação das mães,
a designação “doméstica” parece indicar que se ocupavam da própria casa, visto que raramente aparece o rendimento da mãe nesses
casos. Entre as demais ocupações mencionadas para mães encontram-se: 11 costureiras, três modistas e três professoras. Somandose as ocupações de lavadeira, passa-roupa, cozinheira, porteira, servente, doméstica mensalista e zeladora, há nove indicações. Dez
mães são falecidas. Já quanto à ocupação dos pais, as mais recorrentes são: comerciante (14 menções), funcionário público (12),
pedreiro (6), mecânico (5), viajante (4) e funcionário aposentado
(4). É expressivo o número de pais falecidos: 38. Entre as ocupações mencionadas três ou menos vezes há uma grande variedade:
marceneiro, serralheiro, eletricista, ferreiro, carpinteiro, serrador,
estudante, dentista, veterinário, jornalista, químico, engenheiro,
ções detalhadas sobre as alunas e suas famílias. A sistematização dessas informações foi realizada por Maria Vitória Longo Viana, bolsista de Iniciação Científica pelo CNPq.
10
Apenas em duas fichas, a cor de pai e mãe difere: em uma delas, trata-se de pai
branco e mãe preta; na outra, o registro é de pai índio e mãe branca. Em quatro
fichas, apenas a cor de um deles está indicada e em três não se indica a cor e sim
a nacionalidade (alemã e austríaca).
374
História das Mulheres no Brasil Meridional
proprietário, construtor, hoteleiro, negociante, cozinheiro, barbeiro, bancário, enfermeiro, açougueiro, encadernador, chofer de polícia, carteiro, alfaiate, funileiro, operário, militar, entre outros.
A ocupação de pais e mães já nos fornece fortes indícios da
diversidade de origem social das alunas. Em acréscimo, como nas
fichas há declaração dos rendimentos de cada membro da família,
é possível observar que, para a maior parte das meninas, a soma
dos ganhos de pai e mãe não ultrapassava Cr$ 1.300. Abaixo um
quadro sintético da distribuição da situação nas fichas em que foi
possível identificar essa informação11:
Rendimentos
Quantidade de fichas
12
Até Cr$ 600
17
Entre Cr$ 601 e Cr$ 1.300
70
Entre Cr$ 1.301 e Cr$ 2.500
35
Acima de Cr$ 2.501
23
Total = 145
A análise do rendimento das famílias permite-nos afirmar
que a maior parte das alunas não era oriunda de famílias ricas. Mas
chama a atenção o fato de algumas serem filhas de negociante (que
declara rendimento de Cr$ 3.000), jornalista (Cr$ 3.000), técnico
mecânico (Cr$ 5.500), cirurgião dentista (Cr$ 3.000) ou engenheiro (Cr$ 3.000). Exemplos de famílias situadas no estrato entre Cr$
1.301 e Cr$ 2.500 são aquelas com pai bancário (Cr$ 2.000) ou
veterinário (Cr$ 2.000), entre outras ocupações. Nesse estrato, é
bastante mais recorrente que as mães tenham algum rendimento
11
Foram somados valores indicados para pai e mãe em cada ficha, sem considerar
os rendimentos dos filhos trabalhadores e sem levar em conta a quantidade de
pessoas que viviam na mesma casa. Os estratos foram criados como instrumento de análise, ou seja, não constam das fichas.
12
No caso desse grupo, a primeira contagem resultou em 28 fichas. No entanto,
era notável que nesses casos mais vezes um ou mais filhos trabalhavam (o que é
mais raro nas demais fichas) e, às vezes, com rendimento maior do que a mãe ou
o pai. Assim, optou-se por somar o rendimento dos filhos apenas nessas fichas.
375
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
compondo o orçamento familiar. Por exemplo, alunas com pai funileiro (Cr$ 1.100) e mãe professora (Cr$ 1.300) ou ainda pai viajante (Cr$ 1.000) e mãe modista (Cr$ 300). No grupo quantitativamente mais expressivo estão, por exemplo, filhas de pai operário
(Cr$ 1.150), enfermeiro (Cr$ 850), serralheiro (Cr$ 720) ou marceneiro (Cr$ 1.000) – e mãe dona de casa. Para o grupo mais empobrecido, é destacado o fato de que frequentemente se trata de família com pai ou mãe falecidos, associado a ocupações pior remuneradas, como pai agricultor ou pedreiro ou mãe serviçal.
Embora seja insuficiente para dar conta da caracterização
econômica das famílias, já que seria preciso considerar quantas pessoas são sustentadas em uma casa por esses valores, bem como ter
maior conhecimento dos custos de vida em Porto Alegre no período, essas informações evidenciam a frequência em uma mesma escola de meninas pobres e outras abastadas ou mesmo ricas. Isso
sugere a pertinência de relativizar a designação dos locais de escolarização como determinantes da presença ou exclusão de alunas
pela sua condição socioeconômica e instiga a assumir a complexidade dessas distribuições, ampliando o cruzamento entre categorias analíticas nas pesquisas históricas sobre escolarização.
Por fim, cabe ainda observar que, apesar de se tratar de uma
escola profissional, não é predominante entre as alunas o desejo de
trabalhar fora de casa. Quando perguntadas sobre que “posição
ideal deseja[m] ocupar no futuro”, 70 das alunas indicam variações em torno do ideal de boas mães e esposas: ser dona de casa,
boa dona de casa, ter um lar (53); ser casada (13); ser boa mãe ou
ter um filho (4). A variação desse desejo é pequena se confrontada
com a origem social das alunas, sendo um pouco mais recorrente
entre as meninas mais abastadas, mas estando fortemente presente
também entre as mais pobres. Guacira Lopes Louro e Dagmar
Meyer (1993) já tinha apontado, a partir da análise do currículo da
Escola Técnica Senador Ernesto Dornelles, que, apesar de a oferta
ser de cursos profissionais, “a formação das jovens alunas como
donas de casa e mães foi bastante evidente”. No momento da matrícula, no entanto, é significativo que 31 das alunas indicam desejar ocupar posições associadas ao campo profissional dos cursos
oferecidos na escola: bordadeira, costureira, modista ou ter um ate-
376
História das Mulheres no Brasil Meridional
lier (de bordado, de costura, etc.). Já 28 delas vislumbram o magistério como posição ideal. Interessante notar que, quando a pergunta se refere especificamente à “profissão que gostaria de exercer”,
outras possibilidades se apresentam, bastante mais diversas. Há
quem indique bordadeira (4), chapeleira (7), costureira (22) ou
modistas (15), mas as alunas também expressam desejo de ser escriturárias (14), datilógrafas (6) ou funcionárias públicas (8). Entre
as que gostariam de ser professoras, o total é de 41. Algumas (4),
ainda assim, respondem que queriam “possuir um lar confortável”
ou ser “boa dona de casa”, mesmo quando a pergunta versa especificamente sobre profissão e como hipótese (“gostaria de exercer”).
Considerações finais
Compreender os processos e espaços de escolarização de
meninas em Porto Alegre na primeira metade do século XX associa-se aqui ao propósito de melhor conhecer como se estabeleceram historicamente os modos de estratificação social. Contra a simplificação de estabelecer a distribuição entre alunas pobres, abastadas e ricas pela designação das instituições frequentadas ou pela
mera afirmação de que meninas pobres não iam à escola, o que
busquei argumentar foi a coexistência de meninas de diferentes
origens sociais em uma mesma instituição. Isso não significa dizer
que a escolarização fosse igualitária, mas sim ressaltar que há nuances e contradições aparentes cujo exame detido nos permite uma
compreensão mais acurada dos processos que caracterizaram as
relações da sociedade com a escola em outros tempos.
Esta análise reiterou ainda, em concordância com estudos de
outros pesquisadores, que as categorias filantropia e trabalho são centrais na compreensão da escolarização de crianças pobres. Tanto a
caixa escolar, criada para prover às crianças pobres vestimenta e
materiais que garantissem sua frequência às aulas e permitir o exercício da filantropia para as abastadas, como a criação de escolas noturnas que viabilizassem a escolarização de crianças e adultos trabalhadores são temas recorrentes na documentação examinada.
Além disso, busquei destacar que escrutinar nas fontes a
menção aos(as) alunos(as) pobres é procedimento necessário, mas
377
GIL, N. de L. • Escolarização de meninas pobres em Porto Alegre
limitado, já que os discursos produzidos pelas elites – e predominantes na legislação, nos jornais, na documentação escolar – qualificam como pobre não necessariamente quem tem escassos recursos econômicos apenas, mas principalmente aqueles culturalmente marginalizados, aqueles cujos comportamentos e valores precisavam, na ótica dos dominantes, ser controlados. É preciso reconhecer, no entanto, que a análise aqui apresentada é apenas um
começo de conversa, cuja continuidade parece instigante.
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381
Memórias do magistério:
narrativas de professoras egressas
da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS
(1960-1970)
José Edimar de Souza
Fabiano Quadros Rückert
A História da Educação pode ser reconhecida como um “território” da investigação histórica que se articula em sua pluralidade em diversos níveis: “macro” ou “micro”, que “se inter-relacionam e se entrecruzam para formar um saber [...]” (CAMBI, 1999,
p. 33), que envolve teorias, práticas e o imaginário social. Interessada na dinâmica do trabalho pedagógico, nos aspectos materiais e
imateriais das instituições e sistemas de ensino e instigada pela interpretação das continuidades e descontinuidades da educação escolar, a História da Educação também se ocupa da participação e
da representação dos diferentes grupos sociais envolvidos nas situações cotidianas da organização escolar.
Por ser parte do conhecimento histórico, a História da Educação é habitada por uma subjetividade que pertence ao historiador. Pelo recorte espaçotemporal que faz e pelas relações que estabelece, o historiador atribui sentido inédito às palavras/imagens
que arranca do silêncio dos arquivos. Essa prática “[...] reintroduz
existências e singularidades no discurso histórico” (CHARTIER,
2002, p. 9). É nessa medida que a preocupação com a experiência
humana, o comportamento, valores que são aceitos em uma sociedade e que são rejeitados em outra adquirem sentido pelas “lentes”
do historiador – um pesquisador interessado no “[...] banco de
memória da experiência” (HOBSBAWM, 2000, p. 37).
382
História das Mulheres no Brasil Meridional
Neste estudo, usando a liberdade de escolha do objeto, que é
inerente ao ofício do historiador, direcionamos nossa abordagem às
memórias de um conjunto de quatro professoras egressas da Escola
Estadual de 2º Grau de Sapiranga, instituição de ensino localizada
no município de Sapiranga, Rio Grande do Sul. Atualmente, a escola é identificada como Instituto Estadual de Educação Sapiranga
(IEES), mais conhecido pela comunidade na qual está inserida pela
denominação “Estadual de Sapiranga”. A instituição apresenta uma
trajetória que agrega diferentes formas de organização e oferta do
ensino público desde sua fundação, na década de 1930. Contudo, foi
a partir da implantação dos cursos de nível médio na década de 1960
que esse educandário ganhou importância no repertório de memórias de diferentes grupos sociais do Vale dos Sinos.1
O tema selecionado contempla, de um lado, a História da
Educação e, do outro, a História das Mulheres, na medida em que
a docência se constituiu como um espaço de exercício profissional
e de representações sociais predominantemente feminino. Buscando um diálogo com autores que abordam as mudanças e/ou continuidades ocorridas na condição feminina e analisando dados procedentes de um contexto histórico e espacial específico, o texto explora, pela perspectiva da memória, os fatores que influenciaram a
escolha das entrevistadas pela profissão docente, as adversidades
encontradas e as experiências de adaptação ao trabalho com a educação escolar. Dentro desse escopo, importa também refletir sobre
as estratégias adotadas pelas entrevistadas para conciliar a vida profissional com outras variáveis da condição feminina, sobretudo a
maternidade e o matrimônio.
As narrativas de memórias docentes que serão abordadas no
texto inserem-se no campo de estudos que interpretam a feminização do magistério – fenômeno que ganhou forma inicial no decorrer do século XIX e consolidou-se na primeira metade do século
XX (FARIA FILHO et al., 2005; DEMARTINI; ANTUNES, 1993).
1
O Vale dos Sinos é constituído pelos seguintes municípios: Araricá, Campo Bom,
Canoas, Dois Irmãos, Estância Velha, Esteio, Ivoti, Nova Hartz, Nova Santa
Rita, Novo Hamburgo, Portão, Parobé, São Leopoldo, Sapiranga, Sapucaia do
Sul e Taquara (SOUZA, 2012).
383
SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
O Censo Demográfico de 1920 registrou que 72,5% do conjunto do professorado brasileiro do ensino público primário era composto por mulheres (DEMARTINI; ANTUNES, 1993, p. 7). Louro (2015) acrescenta que, entre as décadas de 1950 e 1960, “anos
dourados”, a figura da professora-modelo, comedida, comportada
– cuja postura deveria servir de exemplo para suas alunas –, contribuiu para sacralizar a feminização2 do magistério. Fischer (2005)
identifica que esse período se estende até a década de 1970. Em
alguns casos, as representações de uma identidade, uma forma de
ser professora, perpetuaram-se no cotidiano das escolas de formação de professores. As estatísticas mais recentes indicam que o predomínio feminino na docência manteve-se ao longo de todo o século XX, período que corresponde à fase mais intensa do processo
de expansão do ensino escolar no Brasil. Em 1999, o INEP constatou que as mulheres correspondiam a 82,2% dos docentes que
atuavam no Ensino Fundamental, sendo esse percentual maior nos
anos iniciais do ensino escolar (90,8%). No Ensino Médio, observou-se maior presença de homens docentes, mas persistia o predomínio feminino (64,1%). Entretanto, no Ensino Superior, o quadro
inverte-se, e as mulheres ocupam 44,8% dos cargos docentes (BRASIL, MEC/INEP, 2009).
A longa história de inserção das mulheres no ensino escolar,
o processo de profissionalização do magistério (via programas de
estudo, regulamentos e concursos públicos) e a existência de variações na porcentagem de mulheres lecionando nos diferentes níveis
do sistema de ensino brasileiro são indicativos de que a feminização da docência é um fenômeno complexo, que resiste a explicações simplistas e dificulta a produção de consensos.
2
Para Werle (2005), feminização é uma expressão que tem sido utilizada com
variados sentidos. Ora “feminização do magistério primário” refere-se à expansão da mão de obra feminina nos diferentes setores educacionais. Ora feminização está associada ao modo como estruturou argumentos empregados no discurso do governo para justificar a proposição de mulheres como professoras. E ainda
uma terceira acepção destaca a sutileza de um processo de feminilização definido pela “identificação entre a natureza feminil e a prática docente no ensino
primário” (TAMBARA, 1998, p. 49). Essas acepções relacionam-se à frequência
à Escola Normal e a traços culturais que favoreceram o exercício do magistério
pelas mulheres, próprias do sexo feminino, feminil.
384
História das Mulheres no Brasil Meridional
Revisando a bibliografia sobre a formação docente no Brasil, constatamos a existência de diversos estudos que abordam o
tema da feminização no magistério. Na busca de explicações, alguns autores relacionaram o fenômeno a fatores como (i) a expansão no ensino escolar provocada pelo sistema capitalista e pela urbanização (PEREIRA, 1963; MELLO, 1983); (ii) a preferência dos
homens por profissões mais rentáveis e o consequente abandono
da docência pelo gênero masculino (APPLE, 1988 e 1995); (iii) a
falta de oportunidades de trabalho remunerado para mulheres (WEREBE, 1963; YANOULLAS, 1994); e (iv) a existência de relações
entre funções socialmente atribuídas à mulher – maternidade e educação dos filhos – e as habilidades necessárias para a docência (ALMEIDA, 1998; TAMBARA, 1998; WERLE, 2005).
No decorrer da década de 1980, e de forma mais acentuada
nos decênios posteriores, sob a influência da difusão e discussão
dos estudos de gênero no ambiente acadêmico, o processo de feminização da docência foi reinterpretado por autores interessados na
compreensão e na crítica das representações socialmente construídas sobre a mulher, a educação escolar e a profissão docente (LOURO, 2015; PERROT, 1998; ROSEMBERG, 2011; VIANNA, 2001
e 2013). Esses autores não refutaram por completo a importância
das variáveis econômicas e políticas no desenvolvimento do processo; no entanto, enfatizaram com as suas pesquisas o peso dos
preconceitos e estereótipos construídos sobre a mulher e denunciaram a permanência de condicionantes sociais impostos ao corpo e
à mente feminina.
De fato, o comportamento do ser humano é sempre influenciado por condicionantes sociais que podem ser de ordem material
ou imaterial. E, no caso específico das mulheres, as condicionantes
tendem a ser mais complexas. No entanto, sempre existe um espaço para o ser humano exercer a sua liberdade de pensamento e de
ação. Acreditamos que essa liberdade é uma conquista gradual na
medida em que depende da percepção das condicionantes sociais
existentes numa determinada conjuntura e da definição de estratégias que podem ou não produzir os resultados desejados.
A proposta desta pesquisa não é reconstruir a trajetória de
vida ou mesmo de uma instituição. Nossa intenção consiste em
385
SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
analisar as memórias a partir da relação dos sujeitos entrevistados
com seu processo formativo. Compartilhamos da posição de Catani (1997, p. 34) quando ela afirma que “concepções sobre as práticas docentes não se formam a partir do momento em que os alunos
e professores entram em contato com as teorias pedagógicas, mas
encontram-se enraizadas em contextos e histórias individuais [...]”.
As concepções são construídas no decorrer da história de cada sujeito pelas suas vivências, experiências que acumula. Nesse sentido, buscamos compreender, a partir das memórias de egressas de
uma instituição especializada na formação para o magistério, as
práticas e culturas escolares que influenciaram o desenvolvimento
das professoras entrevistadas.
O contexto de escolarização em Sapiranga
Sapiranga é um município do Vale dos Sinos, situado no estado do Rio Grande do Sul e localizado na Região Metropolitana
de Porto Alegre. Segundo o IBGE, em 2020, a população absoluta
do município superou os 80.000 habitantes, e a densidade demográfica foi estimada em 542,14 hab/km² (IBGE, 2020). As estatísticas indicam que se trata de um município com expressivo grau de
urbanização, com uma economia diversificada e com forte presença do setor coureiro-calçadista.
A história da educação em Sapiranga está associada à presença dos imigrantes alemães instalados na região a partir de 1826.
No período imperial, era uma prática comum nas localidades estabelecidas pelos imigrantes alemães, sobretudo aqueles de confissão
luterana, a instalação de escolas junto de suas paróquias. Gevehr
(2015) argumenta que, em Sapiranga, a escola da comunidade era
dirigida pelo pastor João Jorge Klein, que ministrava as aulas em
sua residência. Essa escola originou a mais antiga instituição que
ainda se encontra em funcionamento: o atual Instituto Sinodal
Duque de Caxias, fundado no ano de 1850.
No final do século XIX, a educação era vista por setores da
elite brasileira como um instrumento de modernização econômica
e como uma condição para formar bons cidadãos. Depois da Proclamação da República, a relação entre educação, cidadania e na-
386
História das Mulheres no Brasil Meridional
cionalismo ganhou importância para a execução do projeto republicano. Contudo, no que diz respeito à educação, o projeto republicano comportava uma ambiguidade na medida em que desejava
ampliar a escolarização e, ao mesmo tempo, isentava o Estado da
responsabilidade para com a oferta do ensino escolar público.
Quando o regime republicano foi implantado, os Grupos
Escolares representavam um modelo de organização administrativa e pedagógica que teoricamente poderia auxiliar na modernização do país desejado pelas elites. O modelo, focado no ensino
primário, foi inicialmente implantado no estado de São Paulo nos
decênios finais do século XIX; tinha como princípios a racionalidade científica e a divisão do trabalho, resultando em um ensino
homogêneo, padronizado e uniforme. Assim, não demorou muito para esse modelo de ensino primário ser adotado em todo o
país (SOUZA, 1998).
Na década de 1930, a presença da escola pública começa a
se efetivar na localidade de Sapiranga. Em 1934, foi criado o Grupo Escolar Sapiranga, denominado hoje Instituto Estadual Coronel Genuíno Sampaio (SAPIRANGA, 2015). Esse primeiro Grupo Escolar foi implantando quando Sapiranga ainda era um distrito de São Leopoldo.3
Teive e Dallabrida (2011) argumentam que os Grupos Escolares representam um símbolo de progresso e civilidade, marcas de
uma política influenciada pelo positivismo da Primeira República.
E, nesse contexto, a figura da professora primária seria indispensável para que se “moldassem bons soldados à Pátria”. Cabe considerar que o modelo de ensino dos Grupos Escolares influenciou a
concepção arquitetônica das instituições de ensino, bem como a
composição do material escolar por meio do tipo da mobília e dos
instrumentos didáticos adotados. Apesar de extinto na década de
1970, o formato dos Grupos Escolares foi de extrema importância
na educação primária no Brasil, permanecendo vivo na memória
daqueles que fizeram parte dessa história, como alunos, professores e gestores.
3
A emancipação de Sapiranga ocorreu em 28/02/1955.
387
SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
Em relação à implantação dos cursos secundários, a extensão do ensino primário em Sapiranga ocorreu em 1955 com a criação do curso ginasial.4 Posteriormente, surgem os cursos técnicos e
profissionalizantes, como os Cursos Comercial e Normal. Nesse
sentido, uma das propostas que endossou as políticas de emancipação do município foi a ampliação dos níveis de ensino, antes apenas atendidos pela escolarização primária.
A Escola Normal e o “Estadual de Sapiranga”
O exercício da docência existe desde a Antiguidade e antecede a existência de cursos preparatórios de professores. A percepção da necessidade de formar profissionais de educação existe desde o século XVI nos países da Europa, mas a organização de escolas públicas estatais para a preparação desses profissionais ocorreu
com a criação dos cursos normais a partir do século XIX, no contexto da modernidade. Destacam-se como escolas normais europeias aquelas fundadas na Prússia (Alemanha) e na França, sendo
esse último país o que influenciou a implantação dessa instituição
em países latino-americanos. Estima-se que as escolas normais se
constituíram a partir do modelo instituído na França desde 1833.
A estrutura exigia frequência ao referido curso para exercício do
magistério, bem como fixou um salário para os docentes (GUIMARÃES, 2016).
Antônio Nóvoa (1992) sugere que o magistério como profissão docente, na forma mais próxima como a conhecemos na atualidade, remonta à segunda metade do século XIX, período em que
os professores passaram a formar um “corpo profissional”.
No Brasil, a institucionalização da formação de professores,
iniciada ainda no Império, foi um processo moroso. Durante a Primeira República, com a vigência do federalismo, os Estados atacaram o problema da formação docente de acordo com suas limitações financeiras e administrativas; foi somente a partir de 1930, no
4
O Decreto Nº 6.749, de 22 de novembro de 1955, criou o Ginásio; e a Portaria
512, de 12 de março de 1956, autorizou o funcionamento, porém as aulas iniciaram em 22 de abril de 1956.
388
História das Mulheres no Brasil Meridional
âmbito do governo federal, que surgem os sinais de uma atuação
mais consistente para atender a demanda por professores de primeiras letras.
Em relação à história da Escola Normal no Rio Grande do
Sul, Tambara (2008) afirma que a Escola Normal foi criada em 5
de abril de 1869 e reorganizada em 7 de março de 1877 e em 4 de
fevereiro de 1881. Em 14 de março de 1901, foi substituída pelo
Colégio Distrital da Capital5; esse, por sua vez, foi substituído pela
Escola Complementar em função do Decreto n. 907, de 16 de maio
de 1906, sendo que em ambos o ensino deveria ser orientado pelo
método intuitivo (TAMBARA, 2008).
No estado do Rio Grande do Sul, a partir do Decreto n.
1.479, de 26 de maio de 1909, a formação de professores primários
seria realizada pela Escola Complementar de Porto Alegre. Somente
com o Decreto n. 3.898, de 4 de outubro de 1927, é expedido novo
regulamento para a instrução pública, referindo-se à formação de
professores primários, possibilitando também a formação em escolas complementares equiparadas. Contudo, o Decreto n. 4.277, de
13 de março de 1929, regulamentou o ensino normal e complementar, alterando a denominação de Escola Complementar novamente para Escola Normal (BERGOZZA, 2010).
Tambara (2008) destaca que, em contrapartida à falta de uma
política pública mais determinante para a formação de professores,
surgem os cursos vinculados às confissões religiosas, tanto da Igreja Católica como dos sínodos luteranos. Além disso, o Estado firmava convênios com instituições “reconhecidas e idôneas” para
suprir o número insuficiente da oferta de vagas em escolas complementares. Nesse período, uma nova configuração começa a se constituir, e uma das instituições que buscou dar continuidade ao curso
primário – funcionando, de modo geral, como um curso geral básico de preparação para a Escola Normal – foi o Curso Primário
Complementar, como argumenta Tanuri (2000, p. 70):
5
Sobre as práticas formativas na Escola Normal da capital Porto Alegre indicamos o estudo de Souza e Grazziotin (2017). Sobre a Escola Normal de Sapiranga
ver Souza (2016).
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SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
Nestas condições, introduzia-se em nosso sistema de ensino
uma bifurcação nos estudos gerais imediatamente após a escola primária: o curso complementar, espécie de primário superior, propedêutico à escola normal, de duração, conteúdo e
regime de ensino interiores ao secundário, e este último, de
caráter elitizante, objeto de procura dos que se destinavam ao
ensino superior. A criação do curso complementar estabelecia
um elo de ligação entre a escola primária e a normal e o ingresso na última passava a exigir maiores requisitos de formação.
Para Amaral (2008), as características regionais da oferta
dessa modalidade de ensino objetivaram a preparação de futuros
professores que desejassem atuar no ensino primário. Werle (1997)
acrescenta que o curso buscava aperfeiçoar os conhecimentos básicos com uma formação complementar para o desenvolvimento do
magistério e representava um grande empreendimento do Estado
nas diferentes localidades em que fora instalado ao longo do primeiro quartel do século XX.
Em 1943, havia no estado do Rio Grande do Sul sete escolas
oficiais e dezoito equiparadas. No Vale dos Sinos, identificam-se
duas escolas equiparadas, a saber: Escola Santa Catarina em Novo
Hamburgo e Escola São José em São Leopoldo, ambas administradas por instituições particulares. A partir de 1946, com a elaboração e aprovação da Lei Orgânica do Ensino Normal, a formação
de professores para o ensino primário passou por uma nova configuração. E as escolas complementares oficiais passaram, a partir
dessa data, a denominar-se Escolas Normais (TAMBARA, 2008).
Além disso, a Lei Orgânica de 1946 pretendia garantir que a formação do pessoal docente, administradores escolares para as escolas primárias e a propagação de conhecimentos técnicos relativos à
infância fossem ensinados nas escolas normais. E, para exercer
magistério gaúcho, portanto, os estudantes deveriam passar por um
dos três tipos de instituições previstas: Curso Normal Regional,
Escola Normal ou Instituto de Educação.
A década de 1950 é marcada pelo aspecto do desenvolvimentismo e forte presença do incentivo à urbanização e à industrialização. Nos governos de Leonel Brizola e de Ildo Meneghetti,
houve um incentivo educacional nunca antes percebido no estado.
O governo estadual procurou elevar índices de aproveitamento edu-
390
História das Mulheres no Brasil Meridional
cacional por meio da valorização e qualificação dos professores e
também promoveu ações que repercutiram positivamente na qualidade de vida da população sul-rio-grandense.
A partir de 1964, a educação do Estado do Rio Grande do
Sul, assim como do município de Sapiranga, foi impactada pelas
diretrizes políticas e econômicas do Regime Civil-Militar. No plano educacional, o tecnicismo ganhou força enquanto modelo pedagógico proposto pelo governo; cresceu a importância do Ensino
Médio na modalidade técnica/profissionalizante, e o antigo discurso da educação para o trabalho foi ressignificado. Foi dentro
desse contexto mais amplo que as professoras entrevistadas cursaram o Magistério no “Estadual de Sapiranga” e iniciaram sua
formação como docentes – tema que vamos explorar na sequência do texto.
Memórias de escolarização: produzindo professoras
A memória, entendida como documento, fornece ao historiador alguns indícios que permitem a produção de leituras do passado, do vivido pelos indivíduos, daquilo de que se lembram e esquecem a um só tempo. Portanto, a memória é uma construção
social que representa um modo elaborado pelos sujeitos de lembrar
o passado. É pela narrativa que o passado adquire um sentido prático, pelo qual conseguimos acessar representações significadas nas
ações empreendidas no tempo. Nesse sentido, a narrativa produzida durante uma recordação pode ser considerada um tipo específico de interpretação do passado – interpretação que originalmente
pertence ao sujeito portador da memória e que se torna socializada a partir das intervenções do historiador.
Cientes de que a prática da História Oral, ainda que pautada
em princípios éticos, implica intervenções na memória dos entrevistados, apresentamos neste texto fragmentos de narrativas coletados em entrevistas realizadas no ano de 2015, entre os meses de
julho e agosto, nas residências das entrevistadas. As narrativas foram estruturadas através do aporte chamado entrevista compreensiva,
em que não há uma pauta ou roteiro fixo que guie o procedimento.
Elas enfatizam os aspectos formativos, as práticas e os objetos da
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SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
cultura escolar (ZAGO, 2003). Após o processo de produção das
narrativas, as mesmas foram transcritas e analisadas. No Quadro
1, abaixo, evidenciam-se informações importantes dos sujeitos desse
estudo:
Quadro 1: Relação de egressas entrevistadas6
Egressa do curso
Data de nascimento/local
Período de aluna Curso Superior
Suzana Michels Reichert* 24/08/1948 – Sapiranga
1965-1968
História
Anabela Santos Henz*
26/03/1954 – Sapiranga
1969-1972
Pedagogia
Jussara Rissi
03/02/1960 – São Vicente do Sul 1975-1978
Pedagogia
Rejane Maria Mödinger
12/12/1961 – Campo Bom
História (Incompleto)
1979-1983
Fonte: Elaborado pelos autores (2020)
* Foram professoras na Escola Estadual de Sapiranga.
A faixa etária das entrevistadas encontra-se entre os 59 e
72. E foi possível abranger dois municípios da região do Vale dos
Sinos (Campo Bom e Sapiranga). A grande maioria das entrevistadas apresenta formação superior completa. Além disso, três delas
também possuem formação em nível de pós-graduação. Enfatizase que esse grupo de professoras exerceu ou ainda exerce funções
públicas de destaque. E todas ocuparam, em algum momento de
sua trajetória, cargos que compõem a equipe pedagógica ou administrativa da escola.7 Além disso, as que já são aposentadas
6
O conjunto da empiria compreende 16 entrevistas de egressas e professoras que
estudaram/atuaram na escola entre as décadas de 1960 até final da década de
1990. Os sujeitos entrevistados foram: ex-alunas e professoras, a saber: Dóris
Rejane Fernandes, Naira Denise Zimmer Rodrigues, Gilda Jerusia da Costa Carraro, Saionara dos Reis Saldanha, Maristela da Silva Machado, Suzana Michels
Reichert e Anabela Santos Henz. Ex-alunas: Renilda Adi Gerhardt, Lisiane Rosa
de Souza, Janice Marie Blos, Rejane Maria Mödinger e Jussara Rissi. Ex-professoras: Leda Kuwer Brenner, Marcia Reniza Peglow e Edi Auler. Agrega-se a
essas memórias a entrevista realizada pela cursista (curso de extensão desenvolvido no projeto) Débora Caroline dos Santos com a ex-aluna Patrícia Nunes da
Silva. Os sujeitos assinaram termo de consentimento livre e esclarecido e optaram pela identificação ao aceitar participar da pesquisa.
7
Todas atuaram na Secretaria Municipal de Educação de Campo Bom e de Sapiranga. Anabela e Suzana foram supervisoras na Escola Estadual de Sapiranga
quando atuaram na instituição como docentes/integrantes da Equipe Diretiva.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
participam de grupos e atividades que, de alguma forma, envolvem situações de aprendizagem em espaços não formais. Essas
características podem ser entendidas como compósitas de uma
formação diferenciada no processo de constituição profissional,
como argumenta Escolano Benito (1999), quando a instituição
escolar proporciona e desafia os sujeitos a uma formação diferenciada e vinculada ao meio social no qual estão inseridos.
O primeiro aspecto que consideramos pertinente apontar no
conjunto de narrativas das entrevistadas é a existência de memórias sobre experiências de escolarização. Em nosso entendimento,
a escolarização possui duas dimensões interconectadas: uma corresponde aos processos políticos estabelecidos para que um projeto
comum de educação se institucionalize e a outra diz respeito aos
procedimentos didáticos e práticas cotidianas usados no ambiente
escolar de uma determinada instituição de ensino. As memórias
analisadas contemplam as duas dimensões.
O ingresso no curso de Magistério no Estadual de Sapiranga
constituiu-se num momento importante na escolarização das entrevistadas. Na prática, esse ingresso significava uma opção pela
continuidade nos estudos e, ao mesmo tempo, marcava uma iniciação na carreira docente. Cabe ressaltar que a conclusão do ensino primário era, por si só, uma conquista importante, sobretudo
para meninas procedentes de famílias pobres.
Ao recordar sua trajetória de escolarização, Rejane afirma:
Era muito difícil a gente estudar, [...]. A gente estudava, fazia
até a oitava série, quem chegasse a fazer a oitava série estava
ainda com a vida ganha porque a maioria era, no máximo,
quinta série, quinto ano né. Aí na sétima série a maioria desistia de estudar e não seguia, então, eu me contava uma privilegiada porque eu consegui fazer um segundo grau, então fui
fazer o Magistério, [...].
Na ocasião da entrevista, Jussara estava atuando na Secretaria de Educação de
Sapiranga. Além disso, Rejane foi por muito tempo coordenadora do Grupo de
Artes Pastor Farrapo, vinculado à Escola de Arte Educação, bem como foi diretora dessa escola no curso de sua trajetória profissional. Anabela foi também
Secretária Municipal de Educação de Sapiranga.
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SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
Na Sapiranga da década de 1960, quando uma menina concluía o ensino primário, existiam poucas opções para a continuidade de seus estudos. As entrevistadas ressaltaram que era preciso
escolher entre o curso de Magistério ou de Técnico em Contabilidade, as duas únicas opções disponíveis na cidade. Fora dos limites
territoriais do município, havia ainda a opção do curso de Ensino
Médio propedêutico, oferecido por instituições de ensino privado
existentes em Novo Hamburgo (Colégio Santa Catarina e Fundação Evangélica) ou em São Leopoldo (Colégio Cristo Rei). Dentro
dessas opções, o curso do Magistério no “Estadual de Sapiranga”
foi o destino escolhido pelas entrevistadas.
A história da criação de um Curso Normal público em Sapiranga foi uma demanda que envolveu ações de diferentes grupos
da comunidade escolar, além da ação política da administração municipal. A história do Curso Normal iniciou em 1962 com aprovação de um Curso Normal Regional. As atividades da primeira turma iniciaram em 1963 com a Escola Normal de Sapiranga; posteriormente, chamada Escola Normal Coronel Genuíno Sampaio,
funcionando até 1975 na rua Carlos Biehl, número 108, uma residência particular adaptada para funcionar como escola.
Quando questionadas a respeito da posição da família diante da escolha pelo Magistério, todas as entrevistas afirmaram ter
recebido o incentivo dos pais. A opção pela continuidade nos estudos impactava o orçamento das famílias, uma vez que o ingresso
no Magistério protelava a inserção da estudante no mercado de
trabalho. Uma das entrevistadas – Suzana – relatou que, durante o
curso de Magistério, continuou trabalhando com seus pais no estabelecimento comercial da família em Sapiranga. Anabela, por sua
vez, disse que os pais tinham preocupação com sua segurança e
apoiaram a escolha pelo curso de Magistério porque não implicava
riscos no deslocamento diário. Jussara também afirmou ter recebido o incentivo da família para poder cursar o Magistério e acrescentou que, por receber a ajuda dos pais, se sentia na obrigação de
ser aplicada nos estudos e apresentar boas notas.
O enfrentamento das adversidades é um elemento comum
nas recordações das entrevistadas. Contudo, nas memórias da professora Rejane, esse elemento aparece com mais ênfase. Ao tratar
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História das Mulheres no Brasil Meridional
do apoio recebido da família, ela recordou que os seus pais enfrentaram dificuldades para manter o seu curso, sobretudo porque o
Magistério era um curso diurno – o que impedia a estudante de
trabalhar e, apesar de ser público, demandava gastos com “transporte, livros e uma série de outras coisas”.
A ideia de que a docência era uma profissão que deveria ser
exercida por mulheres porque essas apresentavam vocação natural
para cuidar das crianças não encontra respaldo na memória das
entrevistadas. Entretanto, o apoio que receberam dos pais permite
cogitar a hipótese de que a continuidade da formação escolar – via
Magistério – tenha sido uma estratégia das famílias para ampliar a
possibilidade de êxito das filhas no mercado de trabalho. Como
bem recordou Rejane, o abandono precoce da escola e o trabalho
nas fábricas de calçado eram algo comum para as mulheres de famílias pobres. E, diante dessa realidade, cursar o Magistério era
também uma forma de rejeitar o padrão de trabalho feminino predominante em Sapiranga e nas demais cidades do Vale do Rio dos
Sinos nas décadas de 1960 e 1970.
A experiência de cursar o Magistério no “Estadual de Sapiranga” impactou profundamente a formação das professoras entrevistadas. Além da percepção de que avançar nos estudos era uma
conquista para as mulheres – conquista incentivada pelos pais –, as
narrativas destacam a importância do curso para o exercício da
docência.
Para Anabela, o aprendizado recebido no curso do Magistério ofereceu a base para que ela pudesse “ser uma professora bem
realizada”. Ela recorda que ingressou no curso de Magistério “sem
saber o que queria” e que saiu dele convicta de sua escolha profissional. Rejane relacionou o aprendizado do curso com a autoafirmação e com o crescimento pessoal. Ela ainda relatou que ingressou no Magistério como “uma pessoa insegura que não sabia o que
queria, que não sabia nem para onde ir” e saiu dele se sentindo
“uma pessoa adulta” com “objetivos bem definidos e uma pessoa
bastante realizada”.
Suzana apontou a preocupação com a didática e a valorização da “sensibilidade” como diferenciais importantes na formação
oferecida pelo Magistério e afirmou que ele é um curso “mais hu-
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SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
mano” do que um curso técnico. Jussara, por sua vez, atribuiu ao
curso o começo de sua formação docente e ressaltou que a docência é uma profissão de constante aprendizado. Quando questionada sobre o significado do Magistério, respondeu da seguinte forma: “[...] significou a minha vida profissional, a minha carreira; foi
o que eu escolhi para fazer, [...], o meu provento, a minha vida, a
minha satisfação, o meu levantar todos dias de manhã, [...]”.
A positivação do curso de Magistério presente nas narrativas das quatro entrevistadas não pode ser dissociada das experiências de sociabilidade desenvolvidas durante o curso – experiências
que remetem à representação social da mulher enquanto professora. Percebe-se nas narrativas que a preocupação com a educação
das crianças e o rigor nos métodos de ensino, presentes no trabalho
das que lecionavam no “Estadual de Sapiranga”, ofereceram um
modelo de profissionalismo para as estudantes que estavam iniciando a caminhada na docência. Nesse aspecto, importa retomarmos
a posição de Louro (2015), que reconhece a existência de uma relação entre as representações de professoras e a formação das professoras. E, no contexto específico de uma instituição de ensino especializada em formar professoras, seria um equívoco pressupor que
as estudantes não formulassem suas próprias representações sobre
as docentes.
As narrativas das entrevistadas contemplam diversos aspectos da cultura escolar existente no curso de Magistério no “Estadual de Sapiranga” nas décadas de 1960 e 1970. Dentre eles destacam-se (i) o ensino da puericultura e da higiene infantil; (ii) a hierarquia na relação docente/discente; (iii) o rigor na preparação dos
planos de ensino; (iv) as práticas de avaliação; e (v) a produção de
registros sobre as atividades de ensino. No conjunto, esses elementos, incorporados no cotidiano institucional, ofereciam uma base
para que as estudantes do Magistério adquirissem competências
necessárias para o exercício da docência.
Corretamente, Viñao Frago (1995) afirma que a cultura escolar é dinâmica e se constitui pela ação dos atores sociais – professores, pais, alunos – e pela relação direta e indireta com a comunidade de pertencimento. O espaço escolar, como espaço de síntese
de práticas culturais, compreende um “[...] conjunto de aspectos
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História das Mulheres no Brasil Meridional
institucionalizados – incluy prácticas y conductas, modos de vida,
hábitos y ritos [...]”, (VINÃO FRAGO, 1995, p. 68), englobados em
suas características organizativas, modalidades e níveis de instrução.
Dentro dessa perspectiva, o estudante não é um sujeito passivo, que será moldado pela cultura escolar de uma determinada
instituição. Ele é um sujeito ativo e apto para interagir com os códigos preexistentes, podendo ser mais ou menos receptivo para o conteúdo desses códigos. Nas memórias de professoras egressas do
“Estadual de Sapiranga”, constatamos uma receptividade em práticas ensinadas no curso de Magistério, como a preparação dos planos de ensino, a aplicação de avaliações e o registro de atividades
docentes. Contudo, a receptividade não significa imitação ou reprodução acrítica do que foi ensinado. Isso fica evidente na recordação da professora Suzana quando ela nos relata que tinha dificuldade com a parte teórica dos planos de ensino e buscava compensar esse aspecto da formação recebida sendo criativa na preparação do material didático usado com os alunos.
Outro exemplo do exercício de liberdade produzido no decorrer da formação profissional procede da narrativa da professora
Rejane. Quando estudante, nos anos iniciais da escolarização, ela
sentiu muitas dificuldades com as atividades escolares e, por ser
tímida e retraída, num determinado momento reprovou. Depois
de adulta, quando ingressou na docência, ela decidiu comprometer-se com os alunos tímidos e retraídos porque estava convicta de
que eles necessitavam de uma atenção diferenciada. Nesse caso específico, não foi o curso de Magistério que despertou na entrevistada a preocupação com a dificuldade de aprendizado dos alunos, e
sim as suas memórias de estudante e o entendimento de que o ensino escolar demanda empatia da parte do docente.
E depois do Magistério? Os desafios da carreira docente
Nas entrevistas que realizamos, inserimos uma pergunta sobre como foi o acesso ao cargo de docente ou, dito de outra forma,
como foi o primeiro emprego como professora. As respostas recebidas foram semelhantes. Duas das entrevistadas relataram que
iniciaram o exercício da profissão por meio de um convite feito por
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SOUZA, J. E. de; RÜCKERT, F. Q. • Memórias do magistério: narrativas de
professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
professores mais experientes – prática comum naquele contexto de
rápida expansão do sistema de ensino. Uma das entrevistadas informou que a sua contratação foi consequência do contato de um
político com a escola. E a quarta entrevistada relatou que ingressou na carreira como professora aprovada em concurso público
realizado logo após a conclusão do curso de Magistério.
Percebe-se nas respostas que, na época, havia uma grande
demanda por professoras, tanto em Sapiranga como nas cidades
próximas, como Campo Bom, Novo Hamburgo, Dois Irmãos e
Nova Hartz. De fato, nas décadas de 1960 e 1970, houve um expressivo aumento da rede escolar de Educação Básica no Vale do
Sinos. Uma parte desse aumento foi promovido pelo governo estadual, e outra coube aos municípios. A rede privada de Educação
Básica também se expandiu, e algumas das entrevistadas lecionaram em escolas particulares. Contudo, o tempo de docência no
ensino privado foi curto, se comparado ao tempo que cada uma
delas dedicou ao ensino público.
A narrativa sobre a facilidade no acesso ao primeiro emprego, apesar de partir das memórias das entrevistadas, precisa
ser relativizada. Como foi dito anteriormente, o sistema escolar
da época era altamente excludente; poucas mulheres cursavam o
ensino secundário, e um número menor ainda concluía essa modalidade de ensino. Nessas condições, a dificuldade era algo que
se manifestava antes e durante o curso do Magistério. Prosseguindo
na relativização, importa considerarmos que duas das quatro entrevistadas já estavam cursando o Ensino Superior quando receberam a primeira oportunidade de emprego como professoras. Isso
significa dizer que, apesar de não possuírem um diploma de Graduação, elas eram portadoras de um currículo diferenciado – fato
que não passou despercebido pelos sujeitos que formalizaram os
convites.
No que diz respeito à posição do governo sobre o uso de
convites e indicações para a contratação de professoras, não devemos perder de vista que essas práticas contribuíam para a precarização da docência, sobretudo porque não oportunizavam a estabilidade profissional assegurada pelo concurso público e privavam o
docente do gozo de benefícios previstos no plano de carreira. Os
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História das Mulheres no Brasil Meridional
efeitos colaterais da contratação por meio de convites e indicações
não foram observados nas narrativas das entrevistadas.
Existe um consenso de que a profissão docente é um ofício
que demanda um constante aprendizado, que pode ser adquirido
mediante a realização de novos cursos de Graduação e Pós-Graduação ou atividades de Formação Continuada. Sem desconsiderar a importância das modalidades supracitadas, entendemos ser
pertinente ressaltar que existem outras formas de aprendizado que
impactam o exercício da docência. Pensamos especificamente naquele adquirido por meio da atuação em cargos de Supervisão Pedagógica e Direção Escolar.
Buscando compreender como as professoras entrevistadas
conduziram sua formação profissional na etapa posterior ao Curso do Magistério, inserimos nas entrevistas um espaço para esse
assunto. As narrativas são distintas, mas convergem na percepção de que o sistema de ensino escolar é complexo, dinâmico e
desafiador.
A professora Suzana, depois de concluir o Magistério no “Estadual de Sapiranga”, iniciou o curso de Pedagogia na UNISINOS
e, posteriormente, fez Pós-Graduação em História Contemporânea. Ela relata que recebeu o apoio da família para fazer o Ensino
Superior. Na prática, esse tipo de apoio significava que os pais assumiam as despesas básicas de alimentação, vestuário, transporte e
livros e isentavam a filha do compromisso de auxiliar nas despesas
da casa. Recordando sua experiência como aluna na UNISINOS,
Suzana narrou um fato interessante: ela sabia dirigir e realizava o
trajeto de Sapiranga para São Leopoldo de carro na companhia de
colegas. Segundo a entrevistada, uma mulher saber dirigir “era
novidade na época”. A narrativa de Suzana sobre a sua formação
no âmbito do Ensino Superior permite-nos inferir que essa professora buscou diversificar suas competências profissionais para poder lecionar em outros nichos do sistema de ensino. Com a formação recebida na UNISNINOS, ela pôde lecionar disciplinas como
OSPB, História e Geografia para as séries finais do Ensino Fundamental e para o Ensino Médio. E seu trânsito por diferentes níveis
do sistema de ensino escolar contribuiu para que ela recebesse oportunidades em cargos diretivos.
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professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
A trajetória profissional da professora Jussara também registra uma transição do curso de Magistério para o Ensino Superior.
Depois de concluir o Magistério no “Estadual de Sapiranga”, Jussara cursou Pedagogia e Pós-Graduação em Gestão Escolar na FEEVALE. Na narrativa da professora Jussara não está explícito o
motivo pelo qual ela decidiu cursar o Ensino Superior. Deduzimos
que a entrevistada tenha feito escolhas visando atender o crescente
grau de exigência dos concursos públicos que foram gradualmente
restringindo o espaço para professoras formadas no curso de Magistério. A sua profissionalização possibilitou que ela atuasse em
diferentes setores da Secretaria Municipal de Educação de Sapiranga, sobretudo como supervisora escolar.
Cursar o Ensino Superior e ser arqueóloga era o desejo de
Rejane, e num determinado momento da sua vida, mesmo lecionando 40 horas na Educação Básica, ela iniciou o curso de Licenciatura em História na UNISINOS em São Leopoldo. No entanto,
diante de adversidades como o deslocamento de ônibus de Sapiranga para São Leopoldo, o custo financeiro do curso e a baixa
remuneração salarial ela não conseguiu concluir o Ensino Superior. Além das adversidades apontadas e da demanda de trabalho
que ela precisava atender na Educação Básica, Rejane relatou um
outro fator que influenciou sua decisão por interromper o Curso de
Licenciatura em História: ela decidiu priorizar o matrimônio e a
maternidade.
[...] eu arrumei um namorado e casei e decidi parar de estudar;
então eu estava mais ou menos na metade do meu curso e resolvi parar de estudar porque eu já estava com trinta anos, e eu
queria curtir a minha família, eu queria engravidar e curtir
minha casa, [...], e resolvi parar de estudar, mas o meu sonho
era ser arqueóloga.
Na narrativa de Rejane, é possível observar uma distinção
entre as adversidades que pesaram na escolha pelo abandono do
Ensino Superior e a decisão pelo matrimônio e pela maternidade.
Em sua fala não há sinais de arrependimento. Pelo contrário, percebe-se uma positivação das escolhas e de suas consequências.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Considerações finais
A escolarização das crianças e dos jovens consagrou-se entre o final do século XIX e o início do século XX a partir de diferentes finalidades, instituições e projetos culturais que circunscreveram os modos como a escola primária foi organizada. Para que a
ampliação do ensino escolar fosse uma realidade no Brasil, o Estado ocupou-se da formação de professoras, sobretudo para as escolas primárias. A disseminação de ideias positivistas, a influência de
modelos de modernização, a valorização de um determinado tipo
de grupo social e de uma cultura escolar foram práticas que contribuíram para o desenvolvimento dos processos de escolarização da
população brasileira.
A formação profissional do professor implica concebê-lo
como responsável por suas escolhas como ator do protagonismo
de uma trajetória construída diante das relações com os diferentes
contextos em que atua. Por isso a importância de considerarmos
os espaços escolares como lugares de produção de memórias – lugares que remetem às experiências que influenciaram o processo
de formação dos docentes. Nesse sentido, constatamos que as narrativas das professoras entrevistadas fazem do “Estadual de Sapiranga” um lugar de memória. Além disso, as narrativas contêm
elementos que auxiliam na compreensão do momento de ruptura
nos cursos secundários. Pensar essa ruptura pelo viés da memória
das professoras é uma alternativa para explorar as tensões que a mudança na legislação produziu no interior das organizações de ensino
e na própria representação social de profissionais que iniciaram a
docência como portadoras da Habilitação para o Magistério.
A escolha do Magistério como profissão ainda provoca nas
memórias dessas professoras referências simbólicas de um tempo
de transição, de valores e normas que foram disseminados nas décadas de 1950 e 1960, quando existiam outras representações sociais acerca da profissão docente. Mesmo que o espaço deste capítulo não comporte o processo de desenvolvimento das trajetórias
dessas educadoras, as narrativas de memórias e as evidências de
outros documentos sugerem uma história importante, construída
por elas nos diferentes espaços em que exerceram a docência.
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professoras egressas da Escola “Estadual de Sapiranga”, RS (1960-1970)
Acreditamos que os estudos das memórias de professoras,
ainda que marcados por particularidades regionais, podem contribuir para a compreensão do processo de feminização do Magistério – processo que não pode ser explicado pela simples referência
de dados estatísticos. Nesse sentido, as memórias das professoras
destacadas no texto falam do curso de Magistério no “Estadual de
Sapiranga” e, ao mesmo tempo, contam sobre as escolhas que cada
uma das entrevistadas fez e das experiências que vivenciou na trajetória profissional. Certamente existe uma feminização do Magistério, mas ela não é produto de um acaso, e todas as professoras
que escolheram a docência como profissão por motivos diversos
fazem parte dessa história que ainda se encontra inacabada.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
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405
Sem nome, mas na moda: mulheres
e vestimenta no sul do Brasil
Nikelen Acosta Witter
Vestir é parte fundamental da identidade. É um fato atestado desde que começamos a nos cobrir. As escolhas do que usar e
dos porquês de nossas removíveis segundas peles dizem imensamente não apenas sobre nós, mas também sobre nossos pertencimentos: nosso grupo, nosso gênero, nossas crenças, nossa época,
nossas técnicas, nosso comércio, nossa origem, nossas tradições e
mesmo sobre nossos desejos.
As roupas são uma extensão do corpo e, como ele, são linguagem, signo e meio de significação e de comunicação. Apesar de
muitas pessoas acreditarem que vestir é algo aleatório, que cumpre
apenas a função de cobrir e aquecer, o fato é que nada está ao acaso
em nossas escolhas e práticas de vestuário. Há uma intrínseca conexão entre cada peça e uma série de componentes que nos classificam como seres históricos, culturais e muito, muito sociais. Vestimos para ser e pertencer. Para ser vistos, lembrados, acolhidos.
As roupas também nos proporcionarão o inverso disso – ignorados, esquecidos, rejeitados –, o que pode se dar tanto por escolha quanto por forças históricas, sociais e culturais que nos acomodam em grupos excluídos dos modelos hegemônicos da sociedade.
Com tudo isso em mente, é interessante olharmos brevemente
para o que se convencionou chamar de vestimentas regionais, típicas
ou tradicionais. Esses trajes remetem-se, geralmente, à ideia de que
tais roupas são históricas. Isto é, a maioria das pessoas, sem dar
atenção a qualquer tipo de recorte de classe, ocupação ou época
(por vezes esquecendo até mesmo os necessários recortes de idade), acredita que no passado – esse universo nebuloso e estranho
chamado de antigamente – as pessoas se vestiam daquela maneira.
406
História das Mulheres no Brasil Meridional
É claro que há uma função nas ditas vestes regionais, típicas
ou tradicionais. Porém sua função não é representar a História. Pode
antes ser dita como cerimonial, no sentido de que, ao reinventar um
passado sem recortes muito visíveis entre as pessoas, tais vestes acabam por reforçar as ideias de pertencimento, comunidade, origem
comum. Digo se tratar de uma roupa cerimonial por ser vestida em
ocasiões especiais, em que se celebram os laços e a unidade de posturas, crenças e comportamentos ao religar aquele grupo a seu passado mítico. Nesse caso, entende-se passado como sendo a origem
daquela comunidade.
Nesse sentido, buscar historicidade nas vestimentas cerimoniais é pensar muito mais sobre a época em que elas foram escolhidas para ocupar esse lugar do que sobre a diversidade de tempos
históricos que se estendem sobre o passado das comunidades e grupos sociais. Ou seja, estamos no terreno da invenção das tradições, e a
História que podemos estudar é a da época em que tais tradições
foram inventadas.
Antes de prosseguir, preciso apontar como entendo esse conceito – o de invenção das tradições –, que se tornou célebre no título
do livro de Eric Hobsbawm e Terence Ranger (1983). Primeiro, retorno às ideias sobre tradição do folclorista Arnold van Gennep
(1873-1957), o qual a percebia não como algo fixo, parado no tempo, mas como uma releitura dinâmica que cada geração fazia dos
legados culturais recebidos da anterior. De fato, para van Gennep,
quando a tradição era engessada em formas fixas, ela parava de
dialogar com as pessoas e com o tempo; tornava-se assim uma encenação e tendia a perder o sentido, correndo o risco de cair no
esquecimento e ser abandonada (BURKE, 1989).
Por outro lado, Hobsbawm e Ranger – sem associar a palavra invenção a mentira, enganação, criação maliciosa – são categóricos
em afirmar que essas invenções tiveram um importante papel social na construção dos Estados Nacionais, bem como na coesão
dos grupos que vieram a formar a nação. É claro que a própria
História, enquanto disciplina científica e narrativa, cumpriu aí um
importante papel. No entanto, as tradições baseiam-se em elementos colhidos no seio da comunidade, os quais são elaborados em
407
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
narrações coerentes e combinados de forma a transmutar memórias em um passado imaginado, mítico e fortemente emotivo.
Assim sendo, e me escudando nesses autores, não percebo o
conceito de invenção das tradições como algo depreciativo. Apesar
do evidente funcionalismo dessa interpretação, parece-me claro que
o apego da população ou de grupos às tradições – compreendidas
dessa forma – cumpre um importante papel, o qual é conector e
emocional. As tradições – mesmo as que passaram por processos
de apropriação pela nação e/ou grupos identitários que as inventaram e reinventaram – são necessárias às comunidades que as celebram e decidem mantê-las.
Toda essa introdução tem, de fato, dois objetivos neste texto.
O primeiro é escusar o porquê de as roupas cerimoniais – seja das
prendas do gauchismo1 ou das imigrantes – não serem o foco desse
ensaio. O segundo é apontar que, ao falar sobre as vestimentas das
mulheres no sul do Brasil, buscarei descortinar – através do recurso
a viajantes e cronistas – as facetas do cotidiano dessas mulheres,
fazendo os recortes possíveis para demonstrar a diversidade e complexidade do feminino desse difuso antigamente.
Quem eram as mulheres do sul do Brasil?
A pergunta pode até parecer, mas não é de resposta simples.
É preciso saber antes quando podemos considerar a existência do
Brasil e à qual porção de seu atual território nos referimos. Cronistas e historiadores mais antigos demonstram ver aí pouco problema. Para muitos, o território atual dita a busca ao passado, independente das fronteiras atuais.
No caso do extremo sul, apenas em 1801 podemos encontrar fronteiras próximas às atuais. Contudo, as idas e vindas dos
limites fornecem-nos, mesmo antes, olhares sobre as populações
que viviam nessa região. A percepção dos primeiros cronistas europeus sobre os povos originários – e depois sobre as hordas de invasores/conquistadores e os resultados da mestiçagem –, porém, con-
1
Ver BRUM, 2009.
408
História das Mulheres no Brasil Meridional
segue demonstrar a diversidade e riqueza das interpretações sobre
as necessidades de vestuário. Tal diversidade me parece ser ainda
mais importante de ser relatada quando se percebe que essa vai
sendo ocultada pelos cronistas posteriores, mormente aqueles que
escreveram ao longo do século XIX. Esses autores – conscientemente ou não – parecem propor-se a idealizar ou projetar o nascimento de uma Neoeuropa2, o que os leva a descrever apenas o que
querem perceber pela semelhança ou relatar como um exotismo a
ser “civilizado”.
As mulheres que andavam pela região abaixo do rio Uruguai são, pela primeira vez, mencionadas nas cartas dos padres jesuítas que se deslocam para a região sob o controle da coroa espanhola para catequizar e reduzir os povos originários. O padre Jerônimo Rodrigues relata em suas cartas, escritas entre 1605 e 1607,
os costumes dos povos indígenas que ele nomeia como Carijós e
Arachãs, os quais viveram entre o litoral, que ia de Santa Catarina
até a barra do rio Tramandaí, e a Serra do Mar.
O texto é eivado de preconceitos e da visão de mundo de sua
época. Por conta disso, detive-me em buscar nele a referência material aos usos desses povos em termos de seu vestir. Descreve o Pe.
Jerônimo Rodrigues:
[...] andam cobertos com pelejos de coiros3 de veado ou de
ratos de água4, tamanhos como pacas, mas não trazem êstes
pelejos por via de honestidade, senão por causa dos muitos
frios, e dos grandíssimos ventos que todo ano há. São do tamanho de um cobertor pequeno; trazem-nos às costas, e a dianteira descoberta. Quando não faz tanto frio andam nus (in: CESAR, 1998, p. 24).
O grifo no texto é meu e tem a intenção de ressaltar um ponto nem sempre comentado quando se analisam as descrições das
2
Sobre o conceito de Neoeuropa ver CROSBY, 2011. Sobre as implicações dessa
ideia na descrição das paisagens e da interação entre lugares e saúde no sul do
Brasil ver WITTER, 2005; 2007.
3
Couros.
4
Acredito que o pe. Jerônimo se refira ao chamado ratão-do-banhado (Myocastor
coypus), mamífero roedor adaptado à vida em regiões alagadas. Disponível em:
<https://www.taxeus.com.br/especie/myocastor-coypus>. Acesso em: 29 set.
2020.
409
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
vestimentas dos povos originais, ou seja, a relatada nudez. O que
significava nudez para os europeus não era exatamente o mesmo
para os povos do continente americano. De fato, os panos são apenas uma das formas de se vestir. Pinturas corporais, tatuagens,
marcas tribais, cicatrizes rituais, alargamentos de pele, cortes ou
não cortes dos pelos e cabelos constituem também roupas e não
formas de nudez. A roupa é, antes de tudo, um acessório da cultura, uma forma de pertencimento e integração. Algumas vezes, a
roupa pode ser feita de panos; em outras, os povos podem usar
uma diversidade de elementos para significar quem são.
O uso dos couros e “pelejos” apontados pelo Pe. Jerônimo
podia ser (e certamente era) devido ao clima frio, mas também podia estar ligado a outros elementos que o padre não verificou. Componentes totêmicos na escolha dos animais, por exemplo, ou o status de sua caça. Peles diferentes podiam marcar diferenças de idade, gênero e até mesmo de voz ativa dentro de uma tribo. Infelizmente, o registro não permite mais do que especular.
Especificamente sobre as mulheres, Pe. Jerônimo faz o seguinte apontamento:
As mulheres, grandes e pequenas, trazem tipóias; e ainda que
algumas vezes andam nuas, contudo, diante de nós, nem à igreja
vêm nuas, ainda que seja uma menina de 4 anos (in CESAR,
1998, p. 24). (Grifo do autor).
De acordo com nota do jesuíta Serafim Leite – primeiro compilador dessas cartas –, as tipoias5 eram uma espécie de camisa sem
mangas, feitas de entrecasca de árvores. Novamente a fonte barra a
investigação, pois seria interessante saber em qual ou quais árvores
se recolhia essa entrecasca, bem como identificar seus processos de
feitura e como seu uso marcava as diferenças entre as mulheres de
um determinado grupo.
O comentário seguinte do Pe. Jerônimo, no entanto, traça
um outro panorama. Esse, inclusive, contradiz suas impressões (consonantes com sua época) sobre as incapacidades dos povos originários. As mulheres dos grupos por ele observados certamente já ha5
Aqui sem o acento usado antes do acordo ortográfico vigorado em 2016.
410
História das Mulheres no Brasil Meridional
viam percebido as formas como os homens estrangeiros apreendiam sua nudez, fosse pela censura, fosse pelo desrespeito a seus corpos. Assim, elas parecem entender quais lugares e diante de quem
deviam se apresentar usando o que os estrangeiros consideravam
vestes.
Os cronistas demoram a voltar a falar sobre as mulheres. Tal
silêncio pode dar a entender que aquelas que eram ditas da terra
não eram consideradas humanas o suficiente para ser mencionadas. Então, sem registro, é como se não houvesse mulheres circulando por esses espaços. Porém, o mais provável é que não houvesse mulheres brancas, mas, sem dúvida, mulheres indígenas, talvez
algumas escravizadas negras e, quem sabe, mestiças.
Assim, somente mais de um século depois é que aparece alguma menção a roupas, ainda que não às mulheres. André Ribeiro
Coutinho, segundo governador da capitania do Rio Grande, em
seu célebre texto sobre a terra dos muitos, comenta igualmente sobre
as coisas que faltam para que se possa ter algum luxo e agradece o
envio de “baetas, facas, tabaco e chapéus e outras drogas” (in: CESAR, 1998, p. 111). Grifei aqui as duas palavras que remetem às
vestimentas: os chapéus e as baetas, isto é, um tecido grosseiro e
felpudo, feito de lã e mais tarde de algodão, com trama bem aparente e que era usado ordinariamente para fazer roupas e hoje é
conhecido por cobrir as mesas de bilhar.6
As mulheres (brancas) só serão citadas em 1742 pelo Brigadeiro José da Silva Pais. Esse informa ter mandado vir do Rio de
Janeiro mulheres “em busca de estado”, em outras palavras, prostitutas, a fim de que se casassem com os militares das guardas do
Rio Grande. Esses se amotinam diversas vezes, cobrando do governo melhores condições de vida. Entre essas condições pedem
mulheres com as quais possam se casar. Não há referência às vestimentas, apenas aos bons ares da região, capazes de curar e fertilizar
essas mulheres para povoar os territórios de El-Rei (in: CESAR, 1998,
p. 128).
6
Dicionário Infopédia da Língua Portuguesa [em linha]. Porto: Porto Editora,
2003-2020. Disponível em: <https://www.infopedia.pt/dicionarios/lingua-portuguesa/baeta>. Acesso em: 28 set. 2020.
411
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
Um autor anônimo, provavelmente um padre jesuíta, escreve entre 1749 e 1751 sobre um costume entre as mulheres indígenas do grupo denominado Minuanos, o qual consistia em cortar os
nós dos dedos das mãos quando lhes morria algum parente (in:
CESAR, 1998, p. 144). Obviamente, o autor não imaginava ver
isso como uma vestimenta, se não como um tipo de autoflagelo.
Contudo, se compreendemos a roupa como a parte da cultura que
reveste e marca o corpo, então aqui temos um tipo de luto bastante
significativo. As mulheres do grupo carregavam o luto e a dor das
perdas familiares, mas também tornavam a si mesmas a memória
viva de cada um que já pertencera àquela comunidade. Outros cronistas também relatam o uso de tatuagens, porém, na maior parte
das vezes, apenas como uma forma de diferenciar um grupo indígena de outro, como por exemplo diferenciar os Minuanos dos
Charruas (GARCIA; MÍLDER, 2012).
Talvez de todos os cronistas que comentaram sobre o sul do
Brasil à época de sua formação o com menor boa-vontade tenha
sido o cirurgião-mor do 1º Regimento do Rio de Janeiro, Francisco
Ferreira de Souza. Seu diário, no que se refere à descrição das pessoas, não tem nenhuma concessão:
Como a maior parte dos habitantes dêste continente são insulanos ou ilhéus, os termos, os costumes e os vestuários são grosseiros, e pela mesma ordem de grossaria criam seus filhos (in:
CESAR, 1998, p. 155).
Souza entende por ilhéus as populações vindas de Nossa
Senhora do Desterro (atual Florianópolis) e também dos Açores.
Mas ele prossegue em sua descrição das mulheres e dos homens da
região, aproximando-os em modos e gostos.
Primeiro vestuário com que as mulheres vão ao templo são
mantéu e saia. [...] As mulheres são muito grosseiras (como
tãobem os homens), trazem camisas mui suja, e de ordinário
de estôpa posto que poucas de linho grosso; os corpos são mui
mal feitos, só sabem falar de éguas, potrancas, cavalo, laços,
bois, e bolas.
As saias são de baeta, e por sapatos (calçam) tamancos, por
cuja rezão têm pés disformes e grandes, os dedos mal compostos, suposto que os das mãos são tãobem grosseiros, e as unhas
muito sujas.
412
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tanto os homens, como as mulheres, têm grande paixão pelo
tabaco, como igualmente por uma erva chamada mate [...] (e)
dela usam em todo dia (in: CESAR, 1998, p. 156).
O cirurgião-mor, porém, dá-nos informações importantes.
A primeira diz respeito à relação das mulheres com a fé. Ele não se
incomoda em nos dizer como os homens iriam à missa, mas no
caso das mulheres a informação é dada com relevância. É possível
abrir aí um leque de possibilidades de interpretação, visto que muitos cronistas da mesma época costumavam descrever as brasileiras
como mulheres trancadas dentro de suas casas. No entanto, logo a
seguir, Francisco de Souza fala dos gostos dessas mulheres a respeito de cavalos e lides campesinas, o que desdiz a concepção de
mulheres isoladas do espaço público.
Pode-se acreditar que, nessas paragens do sul do Brasil, em
fins do século XVIII, a igreja era o centro e o atrativo para os encontros da comunidade. Por outro lado, também é possível perguntar sobre quais grupos de mulheres fala o cronista, pois pode estar
dissertando, de forma deliberadamente misturada, sobre diferentes
mulheres com que se encontrou. Se decidirmos acreditar na veracidade total de suas palavras, é claro.
Souza descreve as roupas sujas, e tal comentário é feito por
ferir suas sensibilidades citadinas. Levando em conta que era uma
época em que vigoravam outros padrões de higiene, pode-se pensar
nos elementos que o cronista usa como comparação. Ora, no século XVIII, limpeza era algo que se denotava nas partes visíveis do
corpo: rosto, pescoço e mãos, além, é claro, da roupa branca. Sendo essa última a roupa de baixo, que, trocada com mais frequência,
equivalia ao banho e era considerada um dos pontos altos da
higiene pessoal. A roupa de cima não sofria tal necessidade de
trocas constantes entre as classes menos abastadas.
O comentário sobre os pés parece indicar também a falta de
meias, embora não possamos saber ao certo se isso se dava por não
abastecimento, por calor ou por imposição das lides em que essas
mulheres estavam envolvidas. Os tecidos grosseiros, como a estopa
e a baeta, não denotam apenas descuido, mas sem dúvida a pobreza de meios com que lidava a região – tanto nos meios de vida
413
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
como na forma de abastecimento.7 O gosto pelo tabaco e pela ervamate fala-nos um pouco sobre cheiros e sobre comportamentos que
também vestiam os corpos.
A passagem, porém, traz um adendo interessante do autor:
Os naturais descendentes de Europeus são civilizados, atentos
e briosos, as mulheres compostas e honestas, trajam à maneira
das cidades polidas, são claras, de cabelos louros, fazes rubicundas, bem falantes e asseadas (in: CESAR, 1998, p. 157).
Novamente um comentário que pode ser interpretado pelo
que diz: “Os europeus são melhores de todas as formas a quaisquer
povos e suas mestiçagens”. Ou pelo que não diz: “Melhor escrever
alguns elogios em que as pessoas que me receberam possam acreditar que se dirige a elas e ficarem certas de que as críticas são feitas a
todos os outros”. Numa época em que as relações pessoais eram
tão importantes, assim como o “ouvir dizer” e o diz-que-diz-que,
parece natural que o autor tenha se preocupado em não se passar
por um difamador de toda a sociedade sulina. Nesse caso, cabe à
historiadora somente especular e tentar ver além da ironia e da política do texto.
Na década seguinte, pelos anos 1790, os cronistas ainda não
parecem concordar sempre sobre como se trajam as pessoas no sul
do Brasil. O militar Domingos Alves Branco Moniz Barreto chama os moradores de indigentes, tal a quantidade de privações causadas pelo desabastecimento da região em termos de víveres com
que eram acostumados nos locais de onde vieram. Já num artigo
da Gazeta de Lisboa, de 1794, há um comentário sobre uma “festa
grossa” realizada na guarnição da fronteira de Rio Pardo, em que o
autor louva as ricas vestes de sujeitos montados em “soberbos cavalos”, as “excelentes danças” e as “asseadas máscaras”.
Os autores das duas descrições, acredito, veem não apenas o
que querem ver, mas acima de tudo quem querem ver. Não se pode
acreditar que, por ser a Região Sul uma região limítrofe, aqui houvesse algum tipo de igualdade, seja na penúria, seja na bonança. É
7
Sobre os padrões de higiene corporal ver VIGARELLO, 1996; ROCHE, 2007 e
CORBIN, 1987.
414
História das Mulheres no Brasil Meridional
certo que havia classes sociais, divisões que iam além das patentes
do exército e que, sem dúvida, podiam ser notadas no vestir e no
exibir.
O escocês J. G. Semple Lisle (ao menos é o pseudônimo sob
o qual ele publica o que diz serem suas memórias em 1799) é todo
elogios ao asseio da população do sul.
O Povo [...] ao contrário do da Metrópole, é notavelmente asseado e traja de modo esplêndido; a sua roupa branca em
que parece zelarem muito, é excessivamente fina e sempre
tão limpa que logo predispõe o estrangeiro a favor de seus donos; não obstante haver sempre levado o asseio da minha pessoa ao extremo, no pôrto de São Pedro eu fazia apenas figura
de segunda ordem, pois tal é o efeito do sol e a pureza da água,
que a roupa branca dos habitantes tinha uma alvura além de
toda a imaginação. (Grifos meus) (in: CESAR, 1998, p. 186).
Note-se a que a metrópole referida é Portugal, e o viajante
não parece ser-lhe muito lisonjeiro. Contudo, se formos levar em
conta os cronistas anteriores, bem como a questão do desabastecimento, tão citada nos argumentos oficiais, Lisle é, no mínimo, um
pouco exagerado, quando não inverossímil. Afinal, trajar-se de modo
esplêndido não é exatamente o que se imagina em uma periferia colonial como o sul do Brasil em fins dos setecentos. Os comentários
sobre a roupa branca parecem ainda mais descomedidos. Novamente depõe contra a testemunha o notório desabastecimento. Quantas mudas de roupas brancas tinham os habitantes para trocá-las
com frequência? Como alvejar e manter tais roupas em asseio tão
impecável? O autor ainda narra que uma das mulheres que viera a
bordo de seu navio acabou por dar à luz e foi acolhida na casa da
viúva de um brigadeiro. Essa deu roupas a ambas e providenciou o
batismo do recém-nascido. A cerimônia é descrita como algo importante, para o qual a benfeitora teria inclusive emprestado seus
diamantes (assim garante o autor) à pobre esposa de um soldado.
As percepções dos estrangeiros – em sua maioria europeus –
vão se tornando um tanto mais gentis à medida que avança o século XIX e se percebe na província uma sociedade mais organizada.
Aos moldes, é claro, dos colonizadores. Por outro lado, há também
uma incipiente vida urbana, mormente em Porto Alegre, e aí pode-
415
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
mos encontrar uma maior quantidade de descrições acerca das roupas vestidas pelas mulheres e sobre os comportamentos de alguns
grupos socioculturais.
As mulheres indígenas praticamente desaparecem das descrições, e as mulheres negras são pouquíssimo citadas. Se o olhar
da historiadora se prendesse apenas aos relatos mais comumente
encontrados entre os viajantes, acreditar-se-ia em uma região repleta de portuguesas, alemãs e suas descendentes. Obviamente, é
uma visão falsa. Ainda assim, é preciso dizer que nenhuma dessas
é descrita vestindo qualquer roupa remotamente parecida com as
que se tornaram célebres nos festejos e rituais de pertencimento
que suas descendentes costumam usar, no século XIX, como “roupas de antigamente”.
O mineralogista polonês Wilhelm von Feldner veio com a
esposa e os filhos em 1810 com o intuito de prospectar jazidas carboníferas. Em suas primeiras impressões, ele relata algumas atitudes da esposa e filha de um cirurgião, seu vizinho, que o convidou
para uma refeição em sua casa. Diz ele sobre a mulher mais velha:
Ela não se sentou a mesa, cuidou, isso sim, de servir aos convidados e somente de vez em quando estendia a mão sobre o
ombro de algum convidado para pegar algo de seu prato.
Sobre a filha:
A meu lado estava sentada uma moça, jovem e linda, de aproximadamente 17 anos, destinada a meu entretenimento, que
não tinha nada mais afetuoso a fazer que cortar e arranjar porções para mim.
[...]
Logo após o jantar, minha linda vizinha pegou a viola e passou
a tocar e cantar canções brasileiras e italianas (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 30-1).
Mais tarde, von Feldner é chamado para um baile. Nessa
descrição, ele fala das danças feitas por mulheres maduras “com a
aparência de barris e homens com pernas arqueadas”. Às belas jovens cabia tocar e cantar para a amostra e disputas de talentos entre
seus pais. Ou seja, uma perfeita sociedade rousseauniana com
mulheres cujo lugar era entreter, enfeitar e tornar agradáveis, as
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História das Mulheres no Brasil Meridional
vidas dos homens. Pode-se reproduzir tais percepções como um
modelo geral de comportamento ou talvez ter em mente que as
fontes têm os limites das intenções de seus produtores e que esses
quase sempre verão o que querem ver.
O francês Nicolau Dreys afirma que a Porto Alegre do
início do século XIX já é brindada com todos os luxos e supérfluos
que seguem a riqueza e que se pode encontrar tecidos do melhor
gosto na cidade. Mesmo que não para desperdício (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 36-7).
O mais célebre cronista desse período é, sem dúvida, o francês Auguste de Saint-Hilaire, o qual é também o mais detalhista no
que diz respeito às maneiras dos grupos brancos com os quais conviveu. Vez por outra, conseguimos até mesmo entrever algo sobre
as mulheres escravizadas ou as indígenas, em especial quando ele
viaja pelo interior da província. Contudo, nessas ocasiões, fora uma
rápida referência às roupas brancas, Saint-Hilaire pouco comenta
sobre as roupas das mulheres. Em Porto Alegre, porém, ele faz
alguns apontamentos sobre um pequeno baile à tarde.
As mulheres vestiam-se com simplicidade e decência, sendo
que a maior parte dos rapazes trajava fraque e calças de tecido
branco (NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 41).
Quando se utilizam os viajantes como fonte para espiarmos
um pouco de outras épocas, é necessário que se tenha em conta
questões claras a fim de balizar nossas perspectivas. Em quais círculos esses informantes circularam? Como foi sua experiência fora
de suas terras de origem? Suas aventuras, desventuras, mágoas e
traumas nesse processo de embate com o outro? E, claro, qual público imaginavam que leria esse material? Infelizmente, na maioria
das vezes, só podemos especular acerca de tais respostas.
Assim sendo, reforço a necessidade de que esses elementos
sejam balizas de leitura, pois sem eles corre-se o risco de colocar
tais comentários em uma tábula rasa, sem nenhuma quadridimensionalidade. Afinal, não se pode esquecer que, além dos grupos,
classes sociais, regiões e das diferenças étnico-culturais, as modas
do século XIX alternam-se por décadas. Logo, não há como pensar tais comentários sem colocá-los no tempo.
417
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
Nesse ensaio, tenho me centrado na formação do Rio Grande do Sul enquanto província meridional do Brasil. E os olhares
que os viajantes lhe lançam são díspares. Ora sendo tão gentis e
elogiosos que se desconfia, ora colocando tal nível de má vontade
em suas descrições que novamente se busca imaginar o quão ruim
foi a experiência no sul brasileiro. É o caso do mercenário suíço
Heinrich Trächsler, que veio para a província de São Pedro em 1828
com o 28º Batalhão. Embora elogie a natureza, seus comentários
sobre as gentes são os mais desabonadores:
[...] praticamente, sua única virtude consiste na boa hospitalidade, afora isto, tendem à vingança roubo e assassinatos; são
preguiçosos, enganadores e gostam de vangloriar-se, no mais
alto grau; desde os mais bem situados até o mais miserável
criado, de tal modo intenso, que não se pode imaginar quanto;
sujos gananciosos, pederastas e selvagens [...].
E ele não é mais bem impressionado pelas mulheres da região:
[...] não compreendo o deplorável blá-blá-blá das reuniões femininas de bisbilhotice – cujas características, algumas vezes
também podem ser atribuídas a grupos masculinos – que não
conhecem melhor entretenimento do que tratar da quantidade
das suas panelas, da situação doméstica do vizinho, da qualidade de seu cãozinho, das dores de barriga e dos inventários de
suas “cara-metades”, do salário do “guardião da torre” e assuntos assemelhados (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 62).
Por outro lado, muito embora Trächsler continue discorrendo sobre os brasileiros com os menos elogiosos termos de seu vocabulário (sem ferir o decoro, é claro), ele também desertou do 28º
Batalhão para não retornar ao Rio de Janeiro. Em sua permanência no sul, ele se ocupou de vários ofícios, e suas memórias só vieram a ser publicadas em 1839, já no seu retorno à Europa. As adversidades que causaram tamanho desgosto para com as gentes da
província só podemos imaginar.
O comerciante e naturalista francês Arsène Isabelle é bem
conhecido como fonte na historiografia do sul do Brasil por conta
de suas acuradas e detalhadas observações na década de 1830. De
tal forma que seus comentários – somados aos de Saint-Hilaire e
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História das Mulheres no Brasil Meridional
de Trächsler – são reproduzidos como a verdade dos comportamentos dos sulistas para todo o século XIX. Elementos como o
“ciúme” dos luso-brasileiros em relação às suas mulheres, a pouca
educação dessas e o fato de estarem restritas às casas como “figuras
de gineceu” acabaram propagando uma espécie de modelo de comportamento. Esse, juntamente com a tal vestimenta “típica” (aqui
chamada de ritual), tornou-se algo a ser celebrado e reatualizado
como uma tradição cultural que emula e enaltece o passado.
Ainda assim, Isabelle acaba sendo mais gentil com a forma
como se davam as relações de gênero entre os e as rio-grandenses.
Para ele, os homens do sul, por sua proximidade com a região do
Prata, eram menos chocantes em seu controle das mulheres, mesmo que elas não tivessem as liberdades das montevideanas e buenairenses. Contudo, ele os nomeia de tiranos domésticos e lamenta
a ignorância em que as mulheres eram mantidas, bem como seu
isolamento. Para Isabelle, tal atitude fazia com que essas mulheres
– que fique bem claro que ele muito certamente se refere àquelas
que frequentavam a chamada “boa sociedade” – fossem de convivência enfadonha, “para não dizer intoleráveis”.
Sinto ter de repetir, mas é uma verdade que não posso calar: as
brasileiras dessa Província não são belas nem graciosas. Em
vão carregam-se e sobrecarregam-se de joias, de fantasias, de
flores, de bugigangas. Não conseguem animar seus rostos, dar
expressão aos seus olhos ou ter esse ar de liberdade nos movimentos que tanto seduz nas portenhas. Procura-se, em vão, ler
em suas fisionomias seu estado de alma: nada indica, nem mesmo ingenuidade. São em público, simples figuras de autômatos.
E tudo por obra dos portugueses!… Diz-se que são ardentes na
intimidade, apaixonadas até o excesso, mas apaixonadas por
elas mesmas… São compensações que procuram avidamente
(in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 72).
Mesmo com um recorte bem claro sobre quais dentre as
mulheres que habitavam o sul do Brasil mereciam sua atenção e
descrição, Isabelle mantém sua fama detalhista e se debruça sobre
o vestuário daquelas que frequentavam a sociedade.
Seu traje de festa é um vestido de cetim branco bordado e palhetado de ouro e prata, sapatos e luvas de cetim e muitas joias.
Os cabelos são enfeitados de flores artificiais. O vestuário co-
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WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
mum é diferente. Ainda que sigam com prazer as modas francesas, preferem as cores berrantes e os desenhos bizarros. Como
são econômicas e sedentárias, cuidam muito de suas roupas,
razão pela qual as modistas não fazem, em Porto Alegre, mais
fortuna que os boticários. Um chapéu dura uma eternidade.
São, sobretudo, as modas europeias de há seis anos atrás, que
fazem sucesso no Brasil. Vi esses enormes chapéus de palha e
tafetá, sobrecarregados de laços de fita; abrigos escoceses, vestidos vermelhos e outras monstruosidades semelhantes (in:
NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 72-3).
Na década de 1850, a percepção das liberdades das mulheres já aparece um pouco diferente. Um viajante inglês que publicou
suas percepções sob o pseudônimo de A. Rugbãan conta ter se hospedado na casa de um inglês casado com uma brasileira, com filhas brasileiras. Novamente temos um olhar para uma pequena elite, se não abastada, remediada e frequentadora do que se chamava
de “boa sociedade”. Sobre a estrutura da casa o autor comenta:
Ainda que, no andar de baixo fosse ele o chefe todo poderoso,
cercado por seus fardos e livros contábeis, no andar de cima
reinava sua excelente esposa, de forma que não poderia ser
melhor. [...]
As jovens da família gostavam de dançar e enfrentavam os perigos da pavimentação e as brisas noturnas por quinze minutos
ou mais de caminhada até algum dos salões de baile da cidade.
Alguns salões e bailes são coisas muito maçantes e deve ser o
amor inato à dança que faz as donas de pezinhos brilhosos,
uma miríade de musselinas, sentarem-se pacientemente por
quatro ou cinco horas, ao redor de uma peça lúgubre, à espera
do fim do intervalo de vinte minutos, para que sejam tiradas de
seus escaninhos e gozem cinco minutos de uma valsa rodopiante ou um silencioso tête-à-tête de uma contradança (in: NOAL
FILHO; FRANCO, 2004, p. 92).
Ainda na década de 1850, o austríaco Joseph Hörmeyer faz
grandes elogios à província do Rio Grande do Sul para vendê-lo a
possíveis migrantes europeus. O ex-soldado fala das maiores festas
populares da época e cita as promovidas pelas igrejas e os jogos de
entrudo, sobre os quais se alonga com descrições das farras carnavalescas. Hörmeyer aponta chapéus-panamá, coifas, botas de montar e anáguas entre as coisas que poderiam ser vistas em meio à
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História das Mulheres no Brasil Meridional
multidão. E “[...] os encantadores rostos das mulheres e moças, já
de per si pouco visíveis, as quais, comparáveis a uma verdadeira
mostra de beleza, enfeitam todas as janelas e balcões”. Também
comenta sobre as batalhas com limões-de-cheiro realizadas na quinta-feira gorda e em três dias do carnaval.
Aí não valem sexo, nem posição social, nem idade; todos devem acompanhar essa brincadeira ou fechar bem a casa e as
janelas. Ai daquele que leve algo a mal; ia passar mal. Asseguram-nos que tais disputas chegam, na Rua da Praia (Porto Alegre), a tal ponto que senhores e damas se empurram no fim,
para dentro do rio, aqui muito raso e, apesar da toilette apurada e dos vestidos de seda, fraques e botinhas de verniz, se molham devidamente (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 96).
Em fins da década de 1850, aparece uma das raras mulheres
estrangeiras a registrar a vida no sul do Brasil. A belga Marie von
Langendonck migrou com os filhos para o Brasil e, depois de
várias agruras em uma nascente colônia, veio morar em Porto Alegre nos últimos três anos daquela década. Comentando sobre a
Semana Santa na capital da província, ela faz interessantes apontamentos sobre os trajes usados na ocasião: “As senhoras em roupas
resplandecentes chamam a atenção pelo decote do vestido que descobre os ombros. Os braços nus, a cabeça descoberta, parecem estar prontas para o baile. Elas sentam-se no chão apesar de estarem
suntuosamente vestidas” (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p.
105). Diferente de alguns dos viajantes citados – e de seus possíveis
interesses na descrição da província –, von Langendonck demonstra, em suas memórias, boa vontade com as gentes nativas com
quem conviveu e, claro, com outros estrangeiros residentes na região à época de sua passagem.
O médico alemão Robert Avé-Lallemant passou pela província na mesma época que Marie von Langendonck e, embora ele
se limitasse a descrever praticamente só as comunidades alemãs,
deixou um interessante testemunho sobre a montagem de uma peça
de teatro. Diz ele que “as heroínas principais eram homens em trajes femininos, que aliás desempenharam bem o papel de moças”
(in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 111).
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WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
Entre os poucos relatos em que mulheres pobres e com traços étnicos são descritas está a passagem do diário de viagens do
Conde D’Eu, esposo da herdeira do trono imperial brasileiro, a
Princesa Isabel. Em inspeção a um quartel em Porto Alegre ele
conta:
O que me causou menos agradável surpresa foi encontrar quatro mulheres miseravelmente vestidas acocoradas, cosidas umas
com as outras, no canto mais escuro do alojamento; um soldado, direito como uma estaca, ao pé deste grupo, parecia estar
de guarda às mulheres. Apurado o caso, soube-se que eram
mulheres de soldados de outro corpo, que tinham alugado este
canto da sala antes da chegada do Batalhão paraense, consentiu-se com efeito que os voluntários levassem consigo a bordo
e em acampamento as suas mulheres, e mesmo os filhos, e vieram muitas, sobretudo do Norte, com os soldados da raça indígena, raça que, mais que nenhuma outra, liga importância aos
laços de família. Quando eu tal soube pareceu-me isto um enorme abuso, muito prejudicial à disciplina e à mobilidade das
tropas. Todavia os comandantes dos batalhões, longe de se
queixarem desta concessão, asseguram que estas mulheres prestam muitos serviços, que andam muito bem a pé, com os filhos
às costas, e que, sobretudo, quando os maridos estão no hospital, só elas sabem desempenhar com dedicação o serviço de
enfermeiro (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 138).
As anotações do Conde D’Eu são de grande nota para esse
capítulo justamente por olhar para mulheres que, normalmente,
são invisíveis na maioria dos relatos. Mesmo que não nos dê muito
acerca das vestimentas (miseráveis) das mulheres em questão, podemos vislumbrar o costume de permanecerem unidas aos maridos em caso de ascendência indígena. Por outro lado, embora o
conde as pense como um fardo ou uma quebra de disciplina, fica
bem claro que não é dessa forma que pensam os comandantes das
tropas. Esses as veem como de grande valor para o cotidiano das
tropas, já que “prestam muitos serviços” e ainda se dedicam ao
cuidado dos doentes. E o que não nos diz o documento, mas que
podemos inferir com certeza: sem nenhum soldo!
Voltando aos cronistas de origem teutônica, encontramos
novamente descrições extravagantes dos hábitos e vestimentas das
sul-rio-grandenses. Amand Goegg, jurista e ativista político, aca-
422
História das Mulheres no Brasil Meridional
bou por fazer uma longa viagem pela América do Sul na década de
1880 e passou por diversas localidades da província do Rio Grande
do Sul. O observador parece ter ficado muito impressionado com o
carnaval na capital, chegando a dizer que era o “mais espetacular
do Brasil”. Não vamos julgá-lo; afinal, Goegg iniciou sua viagem
ao Brasil justamente pelo RS. Sobre as roupas de brasileiras e brasileiros ricos diz ele que o “[...] luxo exagerado nas fantasias de homens e mulheres, elaborados com os mais pesados veludos, sedas e
cordões de ouro [...] era imposto a quem assistia aos desfiles”. Ainda falando do carnaval, Goegg comenta os faustosos bailes de máscaras do Clube Comercial: “Ali brilhavam nos cabelos e mesmo
nas guirlandas dos vestidos das damas uma tamanha quantidade
de diamantes que, se fossem legítimos, e me foi assegurado que
sim, representavam milhões em valor” (in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 176).
Goegg não é, claro, um observador imparcial. Mas, apesar
de destacar os elementos teutônicos como se fossem preponderantes, ele não deixa de apontar – sem esconder seu racismo – a multiplicidade étnica de Porto Alegre: “Desde o preto-ébano mais reluzente de gordura, todos os matizes de marrom e amarelo, até o
lindo branco com um alo rosa, todos os tipos de pele estão representados”. Ele prossegue até chegar às criadas vindas das colônias
alemãs, e sobre essas não há o uso depreciativo da palavra “gordura”. Numa jovem alemã, na visão de Goegg, isso era saúde. Ou
seja, um relato com claros dois pesos e duas medidas.
Um tanto menos impressionável do que seu conterrâneo, o
professor e jornalista Wilhelm Breitenbach viveu na província por
três anos. Seu relato, embora determinado a ver uma cidade fortemente alemã em Porto Alegre, também não se furta a comentar sobre a diversidade humana do cenário sulista. Descreve o mercado da
cidade, montado com inúmeras carretas que vinham da zona rural:
Em torno dessas carretas param queixosas, vivazes e gesticulantes negras, verdadeiras bolas de gordura, trajando longos e
largos vestidos brancos de algodão com um pano branco ou
vermelho, que cinde a cabeça à guisa de turbante: elas são as
mulheres do mercado, que aqui efetuam suas compras diárias
(in: NOAL FILHO; FRANCO, 2004, p. 138).
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WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
O biólogo norte-americano Herbert Smith permaneceu seis
meses no Rio Grande do Sul em uma de suas viagens entre os anos
de 1881 e 1882. Acompanhado pela esposa, Smith fez observações
interessantes sobre uma população virtualmente invisível (provavelmente até os nossos dias): os/as habitantes das ilhas do Guaíba.
Em um lugar de terreno mais alto e seco descobrimos uma
casinha de palha, ou antes um rancho, em que moravam um
pescador mulato e sua família. O homem descalço, vestido de
camisa e ceroula de algodão, estava se aquecendo ao sol quando chegamos; mas vendo-nos pôs-se de pé e ofereceu-nos a
casa; os meninos seminus e emporcalhados, agarravam-se ao
vestido da mãe, e olhavam espantados para minha senhora.
Também a dona da casa era arisca e parecia ter vergonha de
seu vestido de chita desbotada; provavelmente não tinha melhor. A cabana possuía por única mobília alguns couros estendidos no chão para camas e um banco de pau, com uma canastrinha; havia alguns utensílios na cozinha, feitos de barro, um
ou dois pratos e colheres de ferro e nada mais.
Uma vida bastante penosa, ressalta o estudioso. Por certo
que sua comparação de que seria uma “vida pouco melhor que a
dos índios (indígenas)” é bastante eurocêntrica. Entretanto, se a
mulher que ele descreve estivesse realmente com vergonha de seu
vestido, então essas pessoas compreendiam igualmente sua vida
como pobre e penosa. Fato que não podemos fazer corresponder a
outros grupos que não tinham o mesmo entendimento de existência que os brancos europeus e seus descendentes.
Conclusão
Incluir de fato as mulheres na narrativa histórica exige ao
menos duas ferramentas. Essas não necessariamente exigem que
se mudem as fontes de pesquisa. Porém é fundamental que se mudem as perguntas que fazemos às fontes e que passemos por cima
do anonimato que os produtores dessas fontes legaram às mulheres. Por outro lado, é importante tentar despir as informações das
molduras em que elas foram organizadas e perceber que isso diz
tanto sobre o informante como sobre o que ele conta.
424
História das Mulheres no Brasil Meridional
Tendo essas ferramentas nas mãos, é preciso que estejamos
atentos ao fato de que não podemos fazer emergir do passado um
quadro único. Não encontraremos “a mulher”, mas mulheres. E
elas têm culturas, etnias, comportamentos e idades diferentes. Friso aqui as idades, pois é um fato que normalmente passa ao largo
para a maioria de nós historiadores.
E qual a melhor forma de aprendermos todos esses recortes
em nossas sujeitas e sujeitos históricos que não nas vestimentas?
As que elas e eles usavam e aquelas que percebiam em seus contemporâneos. Era no vestir que se classificava quem se via, sua condição social, econômica, até mesmo sexual e, sem dúvida, seu valor naquele mundo.
Este capítulo buscou colocar em ação essas ferramentas
numa fonte tantas vezes repassada, porém levando a essas outras
questões. Buscou-se ir além das vestimentas ritualizadas em movimentos modernos e que pouco ou nada têm a ver com as vestimentas cotidianas. Afinal, o que queriam essas mulheres ao se vestir?
Para quem o faziam e o que esperavam ganhar com as leituras que
seus contemporâneos faziam delas? O que suas condições socioeconômicas lhes permitiam ou negavam?
Para as mulheres que conseguiam trafegar nas elites, as roupas eram uma mostra de sua consonância com uma civilização
maior. Uma que estava além do território que habitavam. Suas roupas diziam ao mundo que elas pertenciam a ele, a um movimento
global de europeização de costumes e, após meados do século XIX,
aburguesamento dos comportamentos.
Entretanto, as mulheres sul-rio-grandenses não se resumiam
a esse tipo humano (o qual, sem dúvida visto mais de perto, seria
ainda mais diverso). Indígenas, negras, imigrantes, mulheres miseráveis e mestiças: cada uma delas existiu e fez tanta história em sua
existência quanto qualquer dos nomes das ruas sobre as quais andamos hoje. Os observadores podem não ter registrado seus nomes
– julgando que esses nomes pertenciam a outros homens –, porém
não puderam deixar de notar sua constante presença. Não cometamos o mesmo erro apenas porque temos um universo feminino
anônimo. O importante é que é um universo!
425
WITTER, N. A. • Sem nome, mas na moda: mulheres e vestimenta
no sul do Brasil
Referências
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BURKE, Peter. Cultura Popular na Idade Moderna. Trad.: Denise Bottmann.
São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
CESAR, Guilhermino. Primeiros Cronistas do Rio Grande do Sul, 1606-1801.
Porto Alegre: Edições da Faculdade de Filosofia, UFRGS, 1998.
CORBIN, Alan. Saberes e Odores. Trad. Ligia Watanabe. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
CROSBY, Alfred. Imperialismo Ecológico: a expansão biológica da Europa, 9001900. Trad.: José Augusto Ribeiro e Carlos Augusto Malferrari. São Paulo: Companhia das Letras 2011.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence. A Invenção das Tradições. Trad.:
Celina Cardim Cavalcante. São Paulo: Paz e Terra, 1984.
NOAL FILHO, Valter Antônio; FRANCO, Sérgio da Costa. Os Viajantes
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ROCHE, Daniel. A Cultura das Aparências. Uma história da Indumentária
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VIGARELLO, Georges. O Limpo e o Sujo. A higiene do corpo desde a Idade Média. Lisboa: Difel, 1988.
WITTER, Nikelen Acosta. Apontamentos para uma história da doença
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curadores no Sul do Brasil (Rio Grande do Sul, século XIX). Tese (Doutorado). Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, 2007.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na
Porto Alegre da década de 1930
pelas fotografias da Revista do Globo
Cláudio de Sá Machado Jr.
Rostos, gestos e paisagens exigem contemplação. A fotografia atual,
porém, só consegue ver a paisagem como palco, só consegue olhar para
um rosto em busca de uma história. Mas retrata então não rostos,
apenas poses e ações. É preciso saber ver, em determinadas imagens de
hoje, aquilo que muitas vezes nos escapa. Essas imagens têm a beleza
dos pequenos gestos e das grandes paisagens. É preciso ter tempo para
ver os rostos e a paisagem. Para se evidenciarem a força e a atmosfera
que deles emanam. O drama interior das pessoas, a serenidade dos
lugares. Tudo aquilo que não se estampa de imediato.
(Brissac Peixoto, 1992, p. 304-305)
Em algumas de suas possíveis definições, contemplar remete, num primeiro momento, à ação mais simples do olhar. Um
olhar não apressado evidentemente, e sim com uma relação mais
amigável com o tempo. Remete-se a um demorar-se a ver, seja
com atenção, seja mesmo admiração àquilo que se contempla.
Em sua origem latina, contemplar também estabelece uma relação com a interpretação das coisas num outro patamar: a imaginação. Mas não é exatamente sobre a seara do filósofo e historiador polonês Bronislaw Baczko (1991) que pretendo abordar aqui.
Deixo isso a cargo do leitor em sua livre forma de se relacionar
com as imagens. Roland Barthes (1984) refletiu certa vez sobre a
importância daquilo que nos toca em determinadas imagens. Na
ocasião, ele denominou como punctum exatamente aquilo que é
pungente e específico de cada espectador. Há determinadas imagens que eu vejo e não me dizem nada. O mesmo não acontece
427
MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
com outras que chamam minha atenção e evocam memórias, induzem-me ao devaneio e à imaginação. De qualquer forma, olhar
exige dedicação de tempo, que, por sua parte, remete à necessidade de contemplação. Esse saber ver, ao qual se refere o filósofo
brasileiro Nelson Brissac Peixoto (1992), é nada mais nada menos do que a prática do olhar, especialmente se estivermos nos
dedicando a buscar aquilo que nos escapa.
A experiência que trago ao leitor ou que tento proporcionar ao leitor remete-nos a Porto Alegre da primeira metade do
século XX. Na capital do Rio Grande do Sul, foi de Getúlio Vargas, próximo aos acontecimentos de 1930 (que o conduziram ao
cargo de presidente da República), a ideia da criação de uma revista de variedades que estivesse vinculada à Livraria do Globo,
segundo indicam os relatos jornalísticos. Cogitaram-se vários nomes, tais como Charla, Coxilha, Querência, Renascimento, Pampa,
Piratini... No entanto, optou-se por Revista do Globo, que fazia
menção direta ao nome da Livraria (criada em 1883), o que atribuiu uma identidade já consolidada – e de grande prestígio – ao
periódico. A Revista do Globo acompanhava um amplo rol de publicações periódicas que se faziam presentes no início do século
XX, tais como a Careta e a Fon-Fon no Rio de Janeiro, A Cigarra
em São Paulo e outras congêneres que estiveram em atividade
ora por períodos mais curtos, ora por períodos mais alongados,
editadas entre as capitais e o interior do país. Vale lembrar que
teve grande repercussão a recém-lançada O Cruzeiro em 1928, proporcionando nova experiência diferenciada às práticas do fotojornalismo brasileiro. A Revista do Globo, por sua vez, teve sua
primeira edição publicada no ano de 1929.
Em paralelo às revistas, o cinema e o rádio constituíram-se
em atrativos de entretenimento e informação das camadas sociais
que, na época, puderam usufruir desses recursos tecnológicos. Na
década de 1930, o rádio ainda era relativamente uma novidade, já
que a primeira transmissão no Brasil aconteceu em 1922 – inaugurada pelo então presidente paraibano Epitácio Pessoa. Nesse
contexto, os periódicos desenvolveram-se numa atmosfera de diferentes produtos culturais, reapropriando em suas páginas ele-
428
História das Mulheres no Brasil Meridional
mentos da vida cotidiana (de parte da sociedade), elementos do
universo do cinematográfico e experiências artísticas outras dos
estúdios de radiodifusão. A Revista do Globo tinha periodicidade
quinzenal, o que a diferenciava das características do conteúdo
presente nas publicações diárias, como os jornais. A materialidade da revista era diferenciada em relação aos jornais diários com
a presença de cores em uma parte maior de páginas, uma qualidade distintiva no seu papel (algumas de suas páginas eram em papel couché) e um formato de manuseio diferenciado, em geral menor do que a dimensão das publicações diárias de papel simples e
em preto e branco.
No que tange ao conteúdo fotográfico, a Revista do Globo
acompanhou certa tendência editorial dos periódicos de sua época. O conteúdo visual dessa natureza era amplo, em quantidade
significativa ao longo de suas páginas. O teórico da fotografia e
historiador André Rouillé (2009) percebeu esse fenômeno no panorama de publicações de periódicos franceses na década de 1920.
Num período de avanço da alfabetização, em que cada vez mais
leitores se credenciavam à leitura, também se percebeu uma preferência cada vez maior pelo ver, constatado pelo consumo crescente de revistas e publicações congêneres que privilegiavam em
seu conteúdo uma quantidade expressiva de imagens em relação
aos textos. Nas palavras da historiadora brasileira Ana Maria
Mauad (1999), as fotografias seriam como janelas que se abrem
para o mundo; enquanto para a jornalista Marília Scalzo (2013)
as fotografias seriam as principais portas de entrada em uma página. Portanto, amplas portas e janelas que direcionavam o olhar
para as mais variadas visualidades se faziam presentes nas páginas da Revista do Globo.
Em trabalho realizado para a minha tese de doutorado
(MACHADO JR., 2011, p. 120), a partir da leitura do periódico
caracterizei tipologias fotográficas e classifiquei imagens da sociedade, dos espaços e das manifestações culturais. O periódico
sul-rio-grandense ofereceu-me conteúdo fotográfico bem diversificado, que possibilitou através de uma análise específica direcionar a atenção para a elaboração de quatro grandes categorias:
429
MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
1) fotografias da vida (quase) privada; 2) relações com o espaço e
as representações de desenvolvimento urbano; 3) personalidades
e instituições políticas, educacionais e religiosas; e, por fim, 4)
questões do entretenimento moderno e da sociabilidade. Tipologias que possibilitaram a criação de outras subtipologias, indissociada de minha subjetividade, conforme as características individuais apontadas pelo punctum barthesiano. As mulheres – tema e
objeto central deste livro – estão presentes em boa parte das categorias fotográficas. Evidentemente estavam presentes com maior
recorrência em determinadas tipologias, como galerias sociais, e
menor em outras, como colunas políticas. Tais quais as fotografias,
na metáfora de portas e janelas, minha expectativa é que este texto sirva como uma maçaneta para o leitor, que direciona o olhar à
forma sobre como abri-las e possibilita enxergar, a quem tiver interesse, o que há do outro lado. Uma experiência completa somente poderia ser proporcionada pela própria leitura dos exemplares da Revista do Globo. Assim, minha intenção aqui é apresentar uma amostra desse conteúdo e, quem sabe, deixar o leitor tentado a contemplar mais.
Voltando às questões de tipologias, destaco uma específica
que dialoga muito bem com a provocação feita na epígrafe de
Brissac Peixoto (1992). Ao menos nas edições da década de 1930,
foi possível perceber no periódico uma certa valorização da individualidade e da beleza feminina (dentro do que se entende por
padrão de beleza a partir dos indicativos textuais presentes em
fragmentos de textos da própria revista). São fotografias da sociedade feminina em apenas alguns aspectos, considerando, obviamente, a invisibilidade social presente nos conteúdos fotográficos. A sensibilidade do pesquisador social deve estar atenta às
representações de exclusão, evitando escrever uma história de perfil
metonímico, em que apenas uma parte se torna representativa de
um todo. O historiador Ulpiano Bezerra de Meneses (2005) inferiu sobre a necessidade dessa cautela, considerando que as esferas do visível se inscrevem em relações sociais de poder entre escolhas e subjetividades, intencionais ou não (considerando questões do imaginário construídas estruturalmente), que determinam
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História das Mulheres no Brasil Meridional
aquilo que deve ou não ser mostrado. Ter uma fotografia publicada na página de uma revista ao invés de um anúncio publicitário
e num formato privilegiado (retratos individuais, que ocupam uma
página inteira ou compartilham o espaço de parte dela) diz muito
sobre o lugar social ou as relações simbólicas de cada indivíduo
ali representado por sua fotografia. Caracterizou-se como a promoção do sujeito por uma espécie de contrato social, voltado para
o consumo de produtos culturais de quem se permite ver (MACHADO JR., 2006).
As fotografias de mulheres de segmentos da sociedade
sul-rio-grandense publicadas na Revista do Globo remetem à necessidade de uma reflexão sobre as diferentes formas de composição da representação da imagem dos indivíduos. É potencializada pelos meios de comunicação e carregada, desde uma perspectiva semiótica, por complexos signos culturais que denotam uma
intenção social de dar-se a ver. Nos tempos atuais, além de veículos de imprensa tradicionais em suportes digitais, como Facebook
e Instagram, temos diferentes redes sociais que são responsáveis
pela publicidade do indivíduo – muitas vezes com um alcance
amplamente maior do que o próprio veículo de comunicação em
circulação em sua versão impressa. É possível afirmar que a publicação de uma fotografia, constituída analogicamente num veículo de imprensa, ainda atestava certo grau de pertencimento social; afinal, a possibilidade de fazê-lo era muito restrita à maioria
da população. Desse modo, faz-se necessária uma reflexão sobre
seus possíveis usos e funções sociais, manifestados de formas e
em situações distintas. A fotografia pode ser considerada um objeto semanticamente carregado de polissemia – do grego polýsemos (CUNHA, 2010, p. 620) –, cujas variações remetem à subjetividade de um visível pungente.
Ainda sobre a fotografia que tem como temática o feminino na Revista do Globo foi possível considerá-la em seu paradoxo
visual: entre os termos da representação social forjada e aquilo
que ela realmente nos faz crer que vemos. Um jogo entre a referência e o referente, também indicado no mencionado ensaio de
Roland Barthes (1984). No plano da percepção, um rosto caracte-
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
riza-se como um rosto quando vemos uma fotografia. Se tivermos um conhecimento prévio de quem se trata, reconheceremos
ali uma pessoa no seu plano bidimensional, revelado em filme e
processado em maquinário gráfico (reproduzido milhares de vezes). No âmbito da produção e circulação de produtos culturais
há a polissemia simbólica, que atribui à imagem não apenas a
visualidade, mas também a carrega de significados relacionados
ao próprio comportamento social, à construção de identidades e
às noções desenvolvidas em diferentes segmentos no que diz respeito à percepção de pertencimento. Ou, em vários casos, na intenção de pertencer, um desejo de se aproximar de um eu teatralizado e de finalmente ser um outro.
Mas o que é o eu? Na verdade, será que ele não é mais facilmente perceptível nas fotos claramente teatrais? Em todo caso,
considerando a pluralidade destas, o eu não é afirmado nem
como elemento fixo nem como elemento natural; a oposição
verdade/representação, correlata da oposição natureza/cultura, é aqui recusada, assim como as distinções fotografia direta/fotografia encenada e enquadramento/composição. [...]
A pose mundana e social dá a impressão de desaparecer quando é estabelecida a pose teatral e artística: a identidade nasce
da ilusão afirmada (SOULAGES, 2010, p. 72).
A teatralização apresentada pela sociedade fotografada insere-se, dessa forma, num contexto de identidades forjadas, sem
deixar de ser um traço identitário e, de certa forma, essencial da
natureza humana. Nesses casos, importante é estar sensível às
performances que remetem aos códigos sociais, embasados em
construções culturais dos indivíduos sobre si mesmos. Para Annateresa Fabris (2004, p. 39), por meio da imagem fotográfica se
“transforma o retrato no exemplo visível de virtudes e comportamentos a serem partilhados pela sociedade”. Afinal de contas, o
que desperta tanto o nosso interesse pela fotografia? A quantidade de imagens com a presença feminina nas edições da Revista do
Globo da década de 1930 chama a atenção. Os retratos de mulheres estiveram presentes em todas as edições do periódico durante
o período supracitado. Apresentaram-se sob os mais diversos formatos de organização diagramatical. O pesquisador espanhol
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Lorenzo Vilches (1997, p. 80) destacou a importância da distribuição dos elementos de informação dentro dos meios de imprensa. No caso da fotografia, especificamente, temos o objeto fotográfico e seu conteúdo caracterizados como elementos atuantes
no espaço de uma página. Deve-se ter em mente a própria instabilidade da interpretação humana, que, segundo o próprio Vilches,
depende muito das denominadas competências do leitor, caracterizadas como iconográfica, narrativa, estética, enciclopédica, linguístico-comunicativa e modal. Nesse sentido, consideram-se aspectos da recepção para compreender a construção da interpretação.
No que tange à percepção dos códigos de organização dos
conteúdos fotográficos, há de se considerar uma determinada forma de classificação para as diferentes maneiras de produção e
apresentação das imagens. Dessa forma, leva-se em conta a historicidade da própria confecção da revista e de todo o seu conteúdo, cujo resultado foi um produto impresso, possuidor de materialidade e textura específica e que desempenhou determinadas
funções dentro da sociedade sul-rio-grandense em aspecto restrito, sendo ela própria seu produto cultural. A análise do conteúdo
fotográfico sucede etapas de apreensão ótica (o ato fotográfico
em si), de tratamento (o processo de revelação e seleção de imagens) e de ordenação do conteúdo (mais preocupado com as formas de design e adaptação às páginas do periódico). É interessante observarmos algumas peculiaridades da Revista do Globo, que
dispunha mais dos serviços de fotógrafos particulares do que daqueles que poderiam ter seus serviços contratados. Vale lembrar a
possibilidade de algumas imagens fotográficas terem saído literalmente de porta-retratos ou de álbuns fotográficos, por exemplo, para ser estampadas nas páginas da revista, promovendo a
publicidade da imagem de seus possíveis consumidores.
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
Figuras 1 e 2: A Revista do Globo publicava uma quantidade significativa de fotografias de mulheres
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 147, out. 1934 – Texto extraquadro e
nas imagens: “Vida social da sociedade do Rio Grande do Sul”. Legenda extraquadro: “Senhorinha da sociedade de Rio Grande. 1 – Clara Torres Neves;
2 – Geni Arruda; 3 – Dinorá Rego de Miranda; 4 – Anita Santos Melo; 5 –
Encida Pegas; 6 – Lavínia Lorenzoni; 7 – Suzana Klinger; 8 – Talita Lobo
Ferreira; 9 – Maria Rodrigues da Silva; 10 – Marieta Mena Barreto Costa; 11
– Iolanda Braga; 12 – Leda Medeiros; 13 – Selma Klinger”. Revista do Globo.
Porto Alegre, n. 244, jan. 1939. Texto: “A mais bela do Rio Grande”. Legenda: “Ezilda Lisboa, miss Rio Grande do Sul no concurso do Diário de Notícias;
Leda Mattos, colocada em 2º lugar no grande concurso do Diário. No medalhão: Belmira Bernardoni Linck; à esquerda, Miss Caxias, Helena Araújo; à
direita, Eny Beretta, Rainha da Primavera de Caxias”. Acervo: Laboratório
de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
Os retratos de mulheres no periódico indicavam o enquadramento somente de rosto, de busto, de meio-corpo e de corpo
inteiro. Certamente em algumas edições privilegiava-se mais uma
forma em detrimento de outra. Os formatos do enquadramento
também sofriam muitas variações, podendo ser retangulares, quadrados, circulares ou hexagonais, além de outras variantes e fotomontagens que acompanhavam a própria silhueta do corpo feminino (Figuras 1 e 2). As fotografias que representavam a visualidade do corpo feminino poderiam ocupar o espaço de uma página inteira, sendo essa composta por várias outras fotografias ou
apenas uma. Ou o espaço parcial de uma página, podendo ser
meia página ou menor, compartilhando ou não o espaço com
outros elementos de comunicação verbal e/ou visual.
A unidade de uma imagem fotográfica do corpo feminino
confunde-se algumas vezes com a própria fragmentação da diagramação, distribuída com certo equilíbrio. Nesse caso específico, as fotografias das mulheres estão ressaltando suas individualidades. São retratos que podem ser denominados como individuais porque apresentam em seu enquadramento uma única pessoa. O jogo da diagramação que acompanha os retratos fotográficos femininos pode ser de economia ou de profusão de imagens.
Entre a minimização e o exagero, a Revista do Globo procurou situar suas fotografias no meio-termo, sempre buscando um certo
equilíbrio das formas. A regularidade da diagramação das colunas, como a denominada “Galeria social”, indicava uma noção
de maior previsibilidade das formas de distribuição do conteúdo
fotográfico do que de espontaneidade.
O ato fotográfico empreende o condicionamento de uma
cultura fotográfica própria, termo também utilizado por Ivo dos
Santos Canabarro (2011), que se reflete na construção de convenções e ritos sociais que resultam na apreensão da imagem do sujeito. A fotografia apresenta-se como um produto cultural que
intervém em seu meio e influencia a própria cultura social. A
análise de fotografias seriadas de determinadas épocas desperta a
percepção para a criação de determinados padrões visuais que se
fizeram presentes em diferentes fotografias e com diferentes pes-
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História das Mulheres no Brasil Meridional
soas: uma mesma pose para sujeitos e cenários variados. A tipologia de retratos fotográficos femininos da Revista do Globo aponta para a mesma direção. É a percepção da elaboração de determinados padrões visuais que possibilita a criação de outras subtipologias que permitem uma percepção maior sobre as escolhas
estéticas que regiam as convenções fotográficas da época. Vale lembrar que as fotografias desse gênero tipológico têm como espaço de
excelência a produção em estúdio fotográfico, privilegiando antes
o espaço fechado do que a rua, os parques e outros ambientes que
podem ser denominados como externos e expostos à luz natural.
No contexto das páginas da Revista do Globo, ambas as fotografias ocuparam um lugar privilegiado no espaço, ou seja, uma
página inteira. Sob os títulos de “Sociedade” e de “Galeria Social”,
respectivamente, as mulheres fotografadas eram apresentadas
como integrantes de um provável segmento distintivo da sociedade sul-rio-grandense – que queria diferir das demais na sua concepção imaginária –, cuja conotação de pertencimento à capital esteve presente na legenda de apenas uma das mulheres. A
não frontalidade estética dos retratos confunde-se com uma estética artística, atribuindo significação poético-visual ao conteúdo
fotografado. O padrão visual presente nas fotografias femininas
da Revista do Globo caracteriza-se pelo desvio da frontalidade do
rosto diante da câmera fotográfica, optando pela manutenção da
frontalidade do corpo ao invés de privilegiar as costas.
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
Figuras 3 e 4: A frontalidade do corpo feminino parece incidir sobre o direcionamento do olhar
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 139, jun. 1934. Cabeçalho extraquadro: “Galeria Social”. Legenda extraquadro: “Senhorinha Elona Ely, da
sociedade de Porto Alegre”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 7, abr. 1929.
Legenda extraquadro: “Porto Alegre. Antonieta Roncoli”. Acervo: Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
Ao invés da horizontalidade, o olhar desviado nesse padrão visual específico (Figuras 3 e 4) buscou a linha de direcionamento diagonal. A incidência do comportamento estético,
influenciado pela cultura fotográfica, caracterizou uma leve inclinação da cabeça das mulheres para baixo, buscando a criação
da beleza estética e do melhor de si em parâmetros visuais. Enquanto o padrão anterior privilegiava a visualidade da nuca, nesse
passou para o pescoço. A linha que delimita cenário e perfil do
corpo, que pode ser iniciada no alto da cabeça das mulheres,
segue privilegiando nariz, boca e queixo, que ora se encontra
com a linha do ombro, como no caso da fotografia à direita, ora
cria uma lacuna que percorre toda a parte inferior da cabeça e
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História das Mulheres no Brasil Meridional
do pescoço, tornando visível uma lacuna de cenário, e chega ao
ombro. Novamente o recorte de cabelo favorece a percepção das
silhuetas do rosto feminino, mas tendo como diferencial em uma
das mulheres a visualidade da orelha, enquanto a outra a tem
encoberta por seu penteado. Dessa forma, dadas as proporções
que remetem ao universo das diferenças físicas, além da influência de acessórios (a exemplo do colar utilizado por uma das mulheres) e cenários (claro e escuro), observamos a construção de
um mesmo padrão visual, caracterizado pela não frontalidade
do olhar. Esse, por sua vez, quando frontal, merece uma atenção especial.
Alguns dos retratos fotográficos femininos trazem destaque às mãos das mulheres, postos em local de evidência no espaço do enquadramento. A função das mãos, nesse caso, é acessória: geralmente próxima da cabeça e geralmente segurando o
queixo. As fotografias dessa subtipologia apontam para uma
possível tendência na construção do fotográfico, mas não se
poderia afirmar sobre a existência de um padrão específico, pois
as imagens, em maior ou menor grau, diferem muito na sua forma. Poderiam trazer a fotografia da mulher na sua frontalidade
com braços semicruzados (Figura 5), visualizando seu perfil com
os dedos entrecruzados e a cabeça levemente inclinada para baixo (Figura 6) ou o corpo sutilmente virado para o lado com dedos também entrecruzados, mas com o olhar direcionado à altura dos olhos, levemente desviado da câmera fotográfica (Figura 7).
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
Figuras 5, 6 e 7: Mulheres com mãos ao queixo em situações fotográficas variadas
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 7, abr. 1929. Cabeçalho extraquadro:
“Cruz Alta”. Legenda extraquadro: “Maria Andino de Oliveira (miss)”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 7, abr. 1929. Cabeçalho extraquadro: “Caxias”.
Legenda extraquadro: “Zilma Alquati”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 169,
set. 1935. Legenda extraquadro: “Galeria social. Senhorinha Maria Cesar”.
Assinatura na fotografia: “Azevedo & Dutra, Porto Alegre”. Acervo: Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
As mãos assumiram um espaço que seria prioritariamente
do rosto, compartilhando a construção de uma forma estética feminina específica nos retratos fotográficos da época publicados
na Revista do Globo. Pode-se afirmar que a opção pela utilização
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História das Mulheres no Brasil Meridional
das mãos no registro de uma fotografia caracterizou-se também
por uma motivação estética. O que se percebe é que, dentro dos
demais padrões visuais, caracterizaram-se como um padrão menor, ou seja, de pouca ocorrência em relação aos demais. Pode
estar associado a alguns experimentalismos fotográficos da época ou possivelmente vinculado a uma nova estética da cultura
cinematográfica, uma vez que a utilização das mãos para a construção de uma pose fotográfica envolve códigos culturais de identificação com as artes cênicas. A teatralidade fotográfica poderia
confundir-se com a incorporação de determinados personagens
fictícios ou mesmo absorção de um comportamento imaginado,
cuja ação de mobilização da imagem, tornando-a estática, multiplicaria o poder poético do instante paralisado.
A presença das mulheres fotografadas nos retratos individuais da Revista do Globo durante a década de 1930 e algumas
supostamente dos segmentos abastados da sociedade sul-rio-grandense manifestava-se quase pela anulação de possíveis signos eróticos de seu corpo. Considera-se a vigência na época de uma cultura muito pautada por uma rígida – e machista – imposição moral.
Diferentemente das fotografias das atrizes de cinema ou mesmo
das anônimas da publicidade, as mulheres que frequentavam a
“Galeria Social” das páginas da Revista do Globo enquadravam-se
em uma lógica de sensualidade controlada. Apesar da década de
1930 já difundir o uso de golas mais abertas e mangas mais cavadas por parte das mulheres, ainda se estava muito longe das representações culturais de vestidos curtos e com decotes que praticamente chegavam até o fim das costas. A ousadia do nu contrastou
com a ostentação de vestimentas e acessórios presentes na maioria das fotografias da presente tipologia. A historiadora Mary Del
Priore (2009, p. 30-31) lembrou algumas características dessa condição feminina que buscava a sensualidade mais mediante a utilização de roupas e acessórios do que pela condição natural da exposição do corpo.
Aos cuidados com a beleza do rosto somaram-se outros, relativos à roupa. O caráter ambivalente desta última, desvelando ao cobrir, revestindo as partes mais cobiçadas da anato-
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
mia, constituída, ao mesmo tempo, um instrumento decisivo
e um obstáculo à sedução. Montaigne protestava: “Por que
será que as mulheres cobrem com tantos impedimentos, uns
sobre os outros, as partes onde habita o nosso desejo? Para
que servem tais bastiões com os quais elas armam os seus
quadris, se não a enganar o nosso apetite e a nos atrair ao
mesmo tempo em que nos afastam?”. [...] Em todas as latitudes, o jogo entre a roupa e o corpo foi uma constante. Suas
várias funções condicionam as formas que implicam em comportamentos, em posturas, em gestos que, por sua vez, influenciam essas mesmas formas e sua função. Sabemos que uma
mulher não caminha com saltos altos da mesma maneira que
caminha de chinelos. Da mesma forma, as funções e as formas das vestimentas sempre variaram de acordo com as circunstâncias, as classes, os papéis sociais.
O jogo entre vestimenta e corpo esteve presente na construção das representações identitárias das mulheres que tiveram
suas fotografias publicadas na Revista do Globo. Entre a necessidade da criação de uma estética vinculada aos conceitos de beleza e
o resguardo do pudor reprimido pela moral imposta à época, a
sensualidade nos retratos fotográficos manifestava-se mais pela
provocação da imaginação do que pelo nu propriamente dito.
Nesse jogo, certamente o enquadramento – o recorte fotográfico
– favorecia o exercício da imaginação sobre aquilo que não era
visto. Raras eram as fotografias de mulheres com vestimentas
ousadas que as aproximassem mais efetivamente da sensualidade
caracterizada pela presença do seminu, cada vez mais propagado
pela cultura cinematográfica, conforme demonstrado nos capítulos anteriores.
442
História das Mulheres no Brasil Meridional
Figuras 8 e 9: A sensualidade feminina recatada, incitada pelo recorte fotográfico
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 42, set. 1930. Legenda extraquadro:
“Belíssimo perfil da senhorinha Yolanda Pereira, Miss Universo 1930”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 218, nov. 1937. Legenda extraquadro: “Senhorinha Marina Botelho de Magalhães, filha do Cel. Amílcar A. Botelho de Magalhães”. Acervo: Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
No caso dos retratos fotográficos, a visibilidade do pescoço
e dos ombros das mulheres caracterizava-se como o padrão mais
ousado entre os demais presentes. A nuca da mulher, particularmente, caracterizava-se como objeto de desejo masculino, que poderia ser ressaltado com o delineamento da silhueta de seu corpo,
sem a presença de roupas, com a visibilidade da pele, até a altura
dos ombros (Figura 8). A visibilidade do nu feminino seria interrompida pela presença da roupa, sem que lhe fosse omitida a silhueta do corpo, despertando uma provável inquietação erótica no
imaginário masculino. Em outros casos, a não visibilidade da roupa no recorte da fotografia poderia causar a falsa impressão do nu
(Figura 9), incitando aquele que observa a imaginar o corpo da
mulher desta forma: despido, cuja intimidade maior teria sido excluída pelo enquadramento da fotografia. Pode-se, de maneira
ampla, fazer uma referência às pin-ups que fizeram muito sucesso
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MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
no início do século XX. Nesse caso, o seminu caracterizava-se como
a verdadeira arte da sedução em contraponto ao nu propriamente
dito.
Figuras 10, 11 e 12: Chapéus femininos em quantidade e variedade para todos os gostos
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 7, abr. 1929. Legenda extraquadro:
“Jaguarão. Odette Squeff ”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 35, jun. 1930.
Cabeçalho extraquadro: “Miss Lagoa Vermelha”. Legenda extraquadro: “Senhorinha Amélia de Moraes Branco”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 177,
fev. 1936. Legenda extraquadro: “Senhorinha Dionira Conte, da sociedade de
Garibaldi”. Assinatura na fotografia: “Foto Brazil, Porto Alegre”. Acervo:
Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Mais do que um acessório, os chapéus caracterizaram-se durante muito tempo como componentes integrantes da etiqueta social. No entanto, sua presença diminuiu ao longo do século XX,
quando já começam a aparecer vestígios visuais de sua ausência.
Na vestimenta feminina, os chapéus assumem uma conotação ainda mais plural, dadas a sua variedade e característica diferenciada,
funcionando muitas vezes como uma forma clara de adereço ao
invés de proteção ou manifestação de etiqueta social. Nas fotografias de estúdio publicadas na Revista do Globo, a quantidade de mulheres que posavam – em enquadramento individual – sem este
complemento do vestuário foi bem maior do que aquelas que optaram por usá-lo, indicando, possivelmente, uma nova tendência para
a moda feminina.
O chapéu era um componente ritual do traje, instrumento de
uma linguagem. Servia para ser tirado quando passava um enterro ou uma procissão. Ou para ser tirado ligeiramente no
encontro com pessoa a quem se devesse essa deferência. A falta do gesto insultava, mas degradava o desrespeitoso, não o
desrespeitado. Disso conscientes, os humildes não só tocavam
ligeiramente a aba do chapéu diante de terceiros: tiravam-no,
se o encontro envolvesse conversação. O chapéu falava a linguagem das classes sociais, dos que mandavam e dos que obedeciam, dos que tinham e dos que careciam. Até o mendigo
precisava de chapéu. O chapéu na mão, de copa para baixo, na
porta da igreja ou na saída da estação, poupava ao pobre a
humilhação de pedir de viva voz o pão nosso de cada dia. O
chapéu se foi, mas ainda permanece simbolicamente na cabeça de quem já não o usa (MARTINS, 2010, p. 6)
Em compensação, as fotografias externas, como aquelas tiradas durante períodos de movimento na Rua da Praia, apresentaram essa constatação ao inverso. Ou melhor, foram raras as fotografias de mulheres sem chapéus nas ruas. Sua opção na fotografia de estúdio conotou, assim, uma não intenção de reproduzir uma etiqueta social presente nos ambientes externos públicos,
especialmente nas ruas das áreas centrais de Porto Alegre. Dessa
forma, quando o chapéu ganhou visibilidade dentro do estúdio
fotográfico, certamente foi para a divulgação de um determinado
estilo de vida ao invés da reprodução de uma difundida e consoli-
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representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
dada convenção social. José de Souza Martins (2010) lembra sobre os vários usos do chapéu no passado, especialmente pelo segmento masculino.
A análise seriada de fotografias em suas diversas tipologias
aponta para algumas possibilidades de padrões visuais que indicam a semelhança de gestos e posturas dos sujeitos fotografados. A
tendência à repetição aumenta à medida que o corpus de análise
fotográfica tem também o seu aumento de fotografias. É o caso da
Revista do Globo, caracterizada pelas mais diversas temáticas e pelos
mais diferenciados formatos. Como mencionado anteriormente,
pode-se constatar que a cultura fotográfica se manifesta no ritual
de preparação para a apreensão da imagem, no condicionamento à
exposição do indivíduo a ser fotografado (pose e vestimentas) e no
cenário (com todos os seus mobiliários, fundos e demais acessórios). Foram fotografias que fugiam das cenas comuns do cotidiano, caracterizadas pelos resquícios de certa aura ainda presente na
fotografia posada e de estúdio, mas com signos fotográficos repensados e atualizados de acordo com as técnicas e tendências artísticas de cada época.
Provavelmente, o atendimento ao público por parte dos fotógrafos fazia com que determinados cenários e determinadas orientações para a pose fossem repetidos. Assim, poderia ser comum
que habitantes de Porto Alegre que frequentaram um mesmo estúdio tivessem uma fotografia com cenário igual e pose semelhantes.
É o que se pode constatar em algumas imagens presentes na Revista
do Globo durante o período estudado. Em edição de fevereiro de
1936, duas fotografias chamaram bastante a atenção por sua semelhança: duas mulheres sentadas em uma espécie de bancada, de
lado, com as pernas cruzadas voltadas para trás, um dos braços
caídos e o outro apoiado no joelho (Figuras 13 e 14). Aparentemente, parece que as fotografias foram tiradas no mesmo local,
mas foram apenas invertidas. A primeira possui a assinatura de
seus autores: a dupla Azevedo & Dutra. Já a segunda não possui
assinatura. A pose das mulheres e o cenário utilizado são muito
semelhantes, o que também pode ser verificado em outras fotografias publicadas no periódico.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Figuras 13 e 14: Poses e cenários muito semelhantes, porém invertidos
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 176, fev. 1936. Legenda extraquadro:
“Galeria social. Senhorinha Cecy Camargo”. Assinatura na fotografia: “Azevedo & Dutra, Porto Alegre”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 176, fev. 1936.
Legenda extraquadro: “Galeria social. Senhorinha Nely La Porta”. Acervo:
Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
A fotografia que dá poucos indicativos de cenários possui
um cenário abstrato, sem a presença de mobiliários, ressaltando,
por sua vez, a imagem dos sujeitos fotografados. O corpo, em evidência, teve suas expressões faciais ressaltadas, vestimentas valorizadas e acessórios bem visualizados. Quando do uso de vestidos
claros (Figuras 15 e 16), o corpo das mulheres contrasta em um
jogo de claro e escuro da fotografia. O mesmo jogo de contraste,
que se formou sutilmente no plano de fundo, revelou uma falsa
impressão de aura, fornecendo à imagem fotográfica um sentido
de qualquer lugar, pois não há os signos de localização em que se
encontra o sujeito, tendo somente alguns traços de seu corpo delineados. Os gestos podem também incitar a sensação de movimento na fotografia. Chama atenção a dedicatória escrita em letra cur-
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siva no canto inferior direito da segunda fotografia, na qual a fotografada oferece a imagem à sua mãe. Atesta, dessa forma, uma
fotografia da vida (quase) privada, cujo objeto-presente tornou-se
objeto-público, alcançando as páginas da Revista do Globo.
Figuras 15 e 16: Fotografias com fundo neutro, contrastando um
jogo de claros e escuros.
Fonte: Revista do Globo. Porto Alegre, n. 130, fev. 1934. Legenda extraquadro:
“Galeria social. A Srta. Ilza da Cunha Silva, da sociedade desta capital. Trabalho fotográfico de E. Kóvacs”. Revista do Globo. Porto Alegre, n. 212, ago.
1937. Legenda extraquadro: “Jurema Lobo, filha do Sr. Pedro Lobo”. Texto
na fotografia: “À mamãe querida, com carinhos da Jurema, 9/7/19??”. Acervo: Laboratório de Pesquisa em História da Imagem e do Som da Pontifícia
Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS.
A análise da composição de corpos e cenários presentes nas
fotografias da Revista do Globo e a respectiva menção à constituição
de possíveis padrões fotográficos devem ser feitas com a devida
cautela para que, dessa forma, não se perca a riqueza estética presente nas imagens, que, em análise seriada, podem tornar-se semelhantes. Cada fotografia possui a sua particularidade, caracteriza-
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História das Mulheres no Brasil Meridional
da pelo enquadramento, pela identidade revelada de cada sujeito e
pela composição do cenário, ora se diferenciando, ora se assemelhando. E no caso da fotografia de revista, sua localização diagramatical contempla uma nova linguagem em uma dialética da imagem com o seu suporte de circulação. O estudo da polissemia das
imagens fotográficas numa perspectiva seriada, em busca apenas
de padrões de repetição, exporia os riscos de uma provável banalização do objeto de estudo e, por certo, relegaria o detalhe e a composição ao possível plano da não observação.
A quantidade de fotografias existentes nas edições que constituíram a primeira década de circulação da Revista do Globo propiciou múltiplas possibilidades de abordagens desde o ponto de vista
histórico. Há de se considerar também a quantidade expressiva de
dispositivos teóricos que trataram sobre a questão do fotográfico e,
exclusivamente, sobre a presença da fotografia na imprensa de revistas. Nesse sentido, primeiramente procurou-se apresentar um
rol de pressupostos conceituais visando à caracterização de uma
denominada cultura fotográfica e suas possíveis repercussões no
comportamento social. Pode-se considerar que, apesar das propostas teóricas e metodológicas oferecidas na contemporaneidade para
a análise das fontes visuais, foi necessário que se estabelecesse uma
relação sincera e coesa entre as proposições bibliográficas e as fontes em estudo. Levou-se em conta, dessa forma, a ciência de que a
fundamentação de determinadas reflexões sobre o fotográfico partiu de exemplos visuais concretos, caracterizados por suas diferentes origens, intenções e contextos de produção.
As fotografias presentes nas páginas da Revista do Globo não
foram produzidas diretamente pelo próprio periódico. No caso das
imagens da sociedade sul-rio-grandense, foi possível perceber que
uma grande quantidade foi concebida em contextos que remetiam
a uma origem externa ao processo de criação elaborado pelo periódico. Informações essas atestadas pelas diferentes assinaturas, quando existentes e visíveis nas fotografias, ou na indicação de suas legendas, que informavam que as fotografias eram oriundas de outras cidades do Rio Grande do Sul, não se restringindo somente à
capital – que, mesmo assim, possuía a maior representatividade
449
MACHADO JR., C. de S. • Rostos e gestos exigem contemplação:
representações de mulheres na Porto Alegre da década de 1930...
visual. Unidas aos textos, as imagens receberam novas significações para a criação de múltiplas narrativas sobre o comportamento
social. Verificados em um espaço físico limitado, signos linguísticos e visuais geraram, em seu conjunto, uma interpretação direcionada sobre o que estava sendo apresentado por seu conteúdo. Enquanto as fotografias destacavam as imagens que os indivíduos
desejavam projetar a respeito de si, as legendas e os textos, que se
referiam a essas fotografias direta ou indiretamente, direcionavam
a atenção do espectador e informavam aquilo que não estava presente na visualidade, como, por exemplo, nomes de pessoas, profissões desenvolvidas e afiliações familiares.
Pelas fotografias foi possível verificar a caracterização de alguns perfis sociais que foram recorrentes nas páginas do periódico.
Homens e mulheres assumiam papéis bem definidos na sociedade
recriada pela fotografia, nunca estando os primeiros próximos aos
princípios estéticos de beleza e as segundas ausentes nas representações sociais ligadas às esferas do trabalho e da política. Enquanto
se poderia prezar pela sensualidade feminina, ao masculino cabiam as representações elegantes, manifestadas de formas diferenciadas daquelas visíveis nas imagens sobre mulheres. Mas também podemos falar em ilusões fotográficas, uma vez que o espaço
privado, e especificamente a cozinha, praticamente não recebeu a
atenção das lentes fotográficas da época, senão por representações
visuais outras, tais como desenhos presentes nas publicidades de
equipamentos diversos voltados para uso doméstico. Senão por
outras linguagens, não se poderia perceber o ponto de vista essencialmente masculino presente nas páginas do periódico, ridicularizando, muitas vezes, aquilo que na contemporaneidade se considera como conquistas sociais das mulheres.
Pelo que se apresentou e se pôde analisar a respeito dessas
fotografias, as hierarquias entre homem e mulher também ficaram
claras na forma da concepção fundamentada para a criação da fotografia, conforme o enquadramento feito aos sujeitos na época.
Posições no âmbito das relações domésticas entrecruzaram-se com
situações da esfera política e do mundo do trabalho e manifestaram-se nas páginas da Revista do Globo na forma de diferentes graus
450
História das Mulheres no Brasil Meridional
de visibilidade, tanto no que diz respeito à composição como ao
conteúdo fotográfico propriamente dito. Vale lembrar que as representações sobre esse universo social apresentavam a teatralização
dos sujeitos que construíram a fotografia da maneira que melhor
lhes convinha, de acordo com os padrões de comportamento adotados como ideais naquele momento. A vida social proposta pelas
fotografias do periódico não dava conta da sociedade como um
todo, mas somente do segmento que pôde ser considerado como
privilegiado desde a perspectiva das relações de poder do visual.
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452
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mulheres e feminismos
no sul do Brasil
Ana Maria Colling
Natalia Pietra Méndez
Introdução
Este artigo apresenta uma síntese sobre os movimentos feministas e de mulheres que surgiram no cenário político do Rio
Grande do Sul a partir dos anos 1960 até o começo dos anos 2000.
Não é uma tarefa fácil condensar em um único texto toda a riqueza
e pluralidade das muitas facetas de atuação das mulheres. Primeiramente, porque é preciso salientar que as experiências de gênero
são sempre vividas através da intersecção com outros marcadores
sociais, tais como raça, classe, geração, orientação sexual, religiosidade. Segundo, porque a historiografia sobre esses movimentos,
embora tenha crescido nos últimos vinte anos, ainda necessita caminhar para preencher lacunas sobre aspectos que não obtiveram a
devida atenção das historiadoras e historiadores.
Para escrever este texto, optamos por não realizar um “balanço” historiográfico, mas sim abordar temáticas e, a partir da revisão bibliográfica e do exame de diversificadas fontes documentais, apresentar às leitoras e aos leitores momentos e discussões que
consideramos relevantes para compreender os rumos dos feminismos do sul. Em alguns momentos, utilizamos a denominação movimentos feministas e, em outros, movimentos de mulheres, considerando sobretudo o modo como os próprios grupos se autodenominaram.
O texto está organizado em três seções. A primeira aborda
os movimentos de mulheres e feministas que surgiram a partir dos
anos 1960 (ainda no período da ditadura civil-militar) e como essa
militância foi sendo moldada tanto pelo crescimento dos debates
453
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
feministas como pelo clima político da redemocratização do país.
A segunda seção apresenta o que consideramos um segundo momento desses movimentos, que vai se desenrolando ao longo das
décadas de 1990 e 2000. Compreendemos que houve, ao mesmo
tempo, uma pulverização da atuação feminista, que se espalha para
organizações mistas (como partidos, sindicatos, movimentos rurais) e para instituições não governamentais e governamentais. Porém sem nunca haver deixado de atuar. Além disso, é um período
que marca uma crescente internacionalização do movimento, o que
se expressará na atuação das ativistas do Rio Grande do Sul. O
terceiro segmento aborda a temática da violência de gênero. Entre
tantas bandeiras compreendemos que o combate à violência é a
única que atravessou as diferentes décadas analisadas e que, apesar
das muitas lutas e divergências internas dos movimentos, tem servido como unificadora das lutas e atuações. Desse modo, buscamos analisar como essa problemática se desenvolveu nos contextos nacional e estadual.
Fazemos aqui um alerta: trata-se de um texto escrito por duas
historiadoras feministas, que, de certo modo, desenvolveram suas
trajetórias acadêmicas e de militância no período deste texto. Pertencemos a duas gerações diferentes, mas que viveram muitos dos
episódios que integram essa história. Para esta escrita, procuramos
valer-nos menos de nossas memórias e muito mais da documentação disponível para pesquisa (algumas, inclusive, são parte de nossos acervos pessoais). Mas certamente a memória não está ausente,
porque não temos como descolar nosso olhar daquilo que somos e
que vivemos. E nossos corpos, de duas mulheres que pensam e escrevem, também carregam as marcas dessa história.
Movimentos de mulheres no sul do Brasil:
da ditadura civil-militar à redemocratização
A década de 1960 foi um período de intensificação da participação feminina em diferentes segmentos da sociedade. Essa participação não ocorreu de forma homogênea. Ao contrário, refletia
divisões. Como apontaram Vargas e Méndez, o período que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 assinalou diferentes perspecti-
454
História das Mulheres no Brasil Meridional
vas ideológicas, indicando organizações femininas de esquerda
(como a Federação de Mulheres Brasileiras – FMB) e outras que
atuavam em grupos conservadores. Na década de 1960, em meio a
uma ditadura civil-militar, organizações de esquerda atuantes em
todo o país atraíram mulheres para suas fileiras. No sul do país não
foi diferente, e muitas militantes engajaram-se na resistência à ditadura. Colling, em sua pesquisa pioneira sobre o tema, fez entrevistas com algumas mulheres que militaram no Rio Grande do Sul
(RS) e falaram das experiências nos órgãos de repressão e no cárcere, marcadas pela condição feminina. As militantes desafiavam duplamente a ditadura, consideradas subversivas por pertencer a organizações de esquerda e por ser mulheres (COLLING, 1997).
No final dos anos 1970, muitas dessas militantes que haviam
atuado em grupos de esquerda, no movimento estudantil, bem como
algumas mais jovens começaram a encontrar nos grupos feministas uma possibilidade de articulação política a fim de discutir temas relacionados à condição feminina. Grupos feministas começaram a se organizar em Porto Alegre. Caracterizavam-se como
autônomos, sem vínculos com organizações políticas, embora identificados com um projeto que pode ser qualificado como “esquerda”. Em um primeiro momento, esses grupos se reuniam na casa
de ativistas e debatiam temas como sexualidade, saúde, violência
doméstica, divisão sexual do trabalho, entre outros. É importante
registrar aqui os nomes desses grupos, aos quais temos acesso graças às pesquisas que procuraram mapear a atuação dos mesmos:
Costela de Adão, Grupo de Mulheres de Porto Alegre, Movimento
da Mulher pela Libertação, Ação Mulher, Liberta, SOS Mulher,
Acorda Maria e Germinal foram alguns dos coletivos que organizaram o emergente movimento feminista do Rio Grande do Sul
entre fins dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Esses grupos
mantinham contato com coletivos de outros estados da federação,
publicaram textos, boletins e jornais, além de ter uma presença significativa na imprensa gaúcha, que costumava repercutir suas ações.
Em matéria especial publicada em 1980 pelo jornal Correio
do Povo foi realizado um perfil com as principais organizações atuantes em Porto Alegre. O título “Amélia é que era mulher de verda-
455
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
de. Era?” fazia referência ao clássico da música popular brasileira Ai
que saudade da Amélia, composto por Mário Lago e Ataulfo Alves. O
objetivo, segundo a reportagem, era “[...] trazer à luz as propostas
dos diferentes grupos que atuam em Porto Alegre [...] Saber quem
são, o que pensam e o que pretendem”. Matérias semelhantes foram
publicadas em diversos outros jornais, indicando que o tema “feminismo” provocava o interesse de parte do público leitor.
Figura 1: Reprodução da matéria especial publicada no Correio do
Povo, 17/08/1980
456
História das Mulheres no Brasil Meridional
Os grupos em questão possuíam algumas características comuns: eram compostos, quase que totalmente, por mulheres brancas, escolarizadas (mulheres com ensino superior ou universitárias), pertencentes às camadas médias urbanas de cidades como
Porto Alegre e Santa Maria. As universidades eram um espaço importante de aglutinação e atuação das mulheres, que, nos anos 1970
e 1980, passaram a se identificar com o feminismo. Destacamos
aqui alguns nomes de militantes que fizeram parte desses grupos
feministas: Enid Backes, Sonia Bruggemann Pilla, Dóris Breitman,
Clarice Castilhos, Dinah Lemos, Áurea Breitbach, Elisabeth Rocha, Elaine Elizabetsky, Jane Hartmann, Naia Correia, Nazaré Cavalcanti, entre tantas outras. Mapear todos os nomes dessas mulheres é ainda um trabalho a ser feito, dificultado pela escassez de
informações disponíveis nos documentos, já que a maioria dos materiais produzidos pelos coletivos não era assinado pelas integrantes. Poucas são as referências nos documentos produzidos pelo movimento desse período que chegaram até nós, espalhados em alguns arquivos privados e acervos. Nas entrevistas concedidas a jornais como Zero Hora, Coojornal, Correio do Povo constam alguns nomes que certamente não representam a totalidade das mulheres que
fizeram parte dessa história.1
Por sua vez, nesse período, as mulheres afrogaúchas estavam organizadas principalmente em coletivos de militância negra,
como o Grupo Palmares, fundado no começo dos anos 1970. Segundo a historiadora Vanessa Rodrigues da Silva, nesse período,
vários coletivos negros originaram-se em todo o país, também a
partir de grupos de mulheres negras. No final dos anos 1980 surgiu
um dos mais importantes, que existe até os dias atuais: o Maria
Mulher (SILVA, 2020, p. 04). Reginete Bispo, Vera Daisy Barcellos
e Nô Homero são algumas das militantes com atuação destacada
naquele período, ainda pouco estudado pela historiografia.
Em 1975, data que a Organização das Nações Unidas (ONU)
declarou como sendo o Ano Internacional da Mulher, outro grupo
1
As pesquisas em jornais formam parte da dissertação de mestrado: MÉNDEZ, ,
2004.
457
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
emergiu nesse cenário: o Movimento Feminino pela Anistia
(MFPA). Em 1975, foi lançado o Manifesto da Mulher Brasileira,
documento que defendia a atuação das cidadãs por uma anistia
ampla e geral aos atingidos pelos atos de exceção. No Rio
Grande do Sul, a estudante de Ciências Econômicas Dilma Roussef, a socióloga Lícia Peres e a professora Zulmira Cauduro foram
importantes articuladoras do MFPA (VARGAS; MENDEZ,
219).A relação entre esse movimento e os grupos feministas foi
marcada por aproximações e afastamentos, uma vez que algumas
de suas lideranças negavam essa identificação e, até mesmo, consideravam que poderia trazer prejuízos à luta pela anistia. No entanto, muitas mulheres que integravam a MFPA também se reconheciam como feministas.
A partir do início dos anos 1980, um novo período político
trouxe repercussões para as organizações de mulheres. Com a aprovação do pluripartidarismo – a possibilidade de organizar novos
partidos, além da ARENA e do MDB – os encontros de mulheres
realizados no Rio Grande do Sul passaram a debater o tema. De
um lado, as defensoras de que os movimentos deveriam manter
autonomia em relação aos partidos. De outro, militantes partidárias. Em 1981, o Congresso da Mulher Gaúcha, organizado por grupos feministas, sindicais e estudantis, foi um exemplo desse problema. Os jornais da capital noticiaram que houve cenas de “confusão e autoritarismo” e que os grupos políticos polarizaram o evento.2 Portanto, esse processo de abertura democrática e pluripartidarismo contribui para acirrar o debate entre as feministas que acreditavam ser relevante levar para o interior das agremiações partidárias o debate sobre os direitos das mulheres e aquelas que defendiam
a preservação dos grupos autônomos, analisando que, dentro dos
partidos, as lutas feministas sofreriam uma diluição.
O aspecto mais importante nessas três décadas foi perceber
que novos sujeitos passaram a se fazer ouvir no cenário político das
cidades do sul. Mulheres movimentavam os debates sobre temas
relacionados à democracia, aos direitos humanos, à sexualidade,
2
Jornal Correio de Povo, 09/08/1981.
458
História das Mulheres no Brasil Meridional
combate da violência, divisão sexual do trabalho, racismo, creches,
entre outras pautas vinculadas às particularidades de alguns grupos, como era o caso das estudantes universitárias. Exemplo disso,
o grupo Liberta, formado a partir de estudantes da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, atuou pela melhoria das condições
das mulheres universitárias, conseguindo, em 1982, que as mesmas
passassem a ter acesso à Casa do Estudante, que, até então, era
exclusiva para os homens. Outro caso que serve para pensar a diversidade desses grupos foi o coletivo Acorda Maria. Sua existência ficou registrada em um jornal produzido artesanalmente no ano
de 1985, onde é possível ler que “[...] o grupo Acorda Maria foi
formado por estudantes secundaristas e universitárias preocupadas
com a questão da mulher, sua opressão específica”3. Em seu editorial, é informado que algumas dessas integrantes já possuíam experiência de atuação em outros grupos, evidenciando que a militância feminista costumava circular entre diversas organizações que se
formavam, se desfaziam, dando lugar a outras.
Na mesma edição, deparamo-nos com uma sessão intitulada “Mulheres por aí”, consistindo em uma entrevista realizada com
outro pequeno coletivo de mulheres: “As taradas”. Formado por
estudantes de Medicina da UFRGS, o grupo surgiu como um questionamento ao modo como o curso de Medicina (e a universidade)
se organizava: “De que adianta ter mais livros na biblioteca se ninguém tem pique pra ler? Não dá pra ficar estudando seis anos num
curso que não oferece prazer, vivendo em função de uma universidade que é um saco”, declararam as integrantes. Esse perfil de grupos formados por mulheres universitárias representou um tipo de
militância feminista bastante corriqueiro no cenário de algumas
cidades. Esse também foi o caso do Germinal, coletivo formado
em 1981 a partir de estudantes da Universidade Federal de Santa
Maria. No editorial de seu jornal, publicado em 1982, chama a
atenção a seguinte manchete: “As mulheres não pedem nada menos que a transformação total do mundo”. Uma das matérias tra-
3
Jornal Acorda Maria, 1985 (Cópia disponível em Acervo Pessoal, Natalia Pietra
Méndez).
459
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
zia como proposta a defesa da legalização do aborto sob o título
“Aborto: legalizar para acabar com a carnificina”; defendia a legalização como único modo de acabar com as consequências nefastas dos abortos ilegais e inseguros e, junto com essa medida,
ampliar o acesso a métodos contraceptivos.4 Nota-se que, nesse
caso, mesmo se tratando de um grupo formado por estudantes, as
pautas iam muito além dos muros da universidade e miravam um
feminismo disposto a grandes transformações sociais.
A organização das mulheres no RS começou a atuar também na direção de exigir do estado respostas em relação a diversas
demandas. Em alguns casos, feministas assumiam a função de prestar serviços que o poder público não oferecia. Assim nasceu, por
exemplo, o SOS Mulher, organização que, em Porto Alegre, atendia mulheres em situação de violência em um espaço pertencente à
Igreja Santa Cecília. Em 1986, após pressões do movimento, o então governador Pedro Simon criou o Conselho Estadual da Mulher, ligado à Secretaria de Justiça. Em 1991, Lícia Peres era na
época militante do Partido Democrático Trabalhista (PDT) e reconhecida por sua atuação na MFPA em defesa dos direitos humanos das mulheres. Foi escolhida para presidir o Conselho já durante o governo de Alceu Collares, do mesmo partido. Assim, no final
dos anos 1980 e início dos anos 1990, assistimos a uma diversificação da atuação da militância feminista no Rio Grande do Sul.
Muitos daqueles coletivos autônomos que se formaram nos anos
finais da ditadura foram extintos. O espaço político passou a ser
marcado por uma atuação mais voltada a organizações não governamentais e busca por ampliar espaços institucionais.
Mulheres em movimento: pluralidade, feminismo de Estado
e internacionalização dos feminismos do sul do Brasil
1990-2000
Nesse período, o feminismo espraiou-se pelo Rio Grande do
Sul. O movimento passou a atuar em diversas, cavando espaços em
4
Jornal Germinal, setembro de 1982. Disponível no Acervo Carmen da Silva.
460
História das Mulheres no Brasil Meridional
sindicatos e partidos políticos (ainda pouco abertos aos debates sobre
as mulheres). As organizações e os coletivos autônomos continuaram presentes. A grande novidade é o crescimento da ação na esfera governamental em prefeituras e governo do Estado.
No final dos anos 1980, partidos de centro-esquerda, que,
até então, estavam agrupados no Movimento Democrático Brasileiro (MDB), começaram a disputar e ganhar as eleições municipais e estaduais. Muitas militantes, identificadas com o movimento feminista, integravam essas siglas e discutiam, internamente, a
necessidade de que os partidos desenvolvessem propostas de políticas para as mulheres. A criação dos conselhos, assessorias e coordenadorias da mulher (nas esferas estadual e municipal), a abertura de delegacias especializadas, casas-abrigo para vítimas de violência resultaram dessas articulações. Parte do feminismo nesse
período pode ser caracterizado como o que Biroli e Miguel chamam de feminismo de Estado: “fazer com que as estruturas de exercício do poder político incorporem demandas vinculadas aos direitos das mulheres” (BIROLI; MIGUEL, 2014, p. 96).
Além do Conselho Estadual da Mulher, mencionado na seção anterior, vale destacar que nos governos da Frente Popular na
cidade de Porto Alegre foram criadas assessorias de direitos humanos e, posteriormente, uma específica para tratar de políticas para
as mulheres. Em 1992, a socióloga Enid Backes assumiu essa pasta, que passou a atuar em consonância com as demandas vindas
do movimento, bem como em diálogo com o Orçamento Participativo (OP). Uma das vitórias daquele período foi a criação do
COMDIM (Conselho Municipal dos Direitos da Mulher), instituído pela Lei Complementar n. 347, de 30 de maio de 1995. As
iniciativas estavam em consonância com a Conferência de Pequim
de 1995, que, entre suas resoluções, definia a necessidade de que os
países efetivassem políticas públicas voltadas à equidade de gênero.
Ao longo dos anos 1990, Porto Alegre passou a ser reconhecida internacionalmente como a capital da democracia participativa. A implementação do OP proporcionou uma nova vivência da
cidadania, que abria espaço para que a população se organizasse a
fim de definir as demandas prioritárias das comunidades e, conse-
461
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
quentemente, debater onde seriam aplicados os recursos públicos. É interessante notar que, mesmo após décadas de aprovação do sufrágio feminino, a participação feminina na política
institucional continuava tímida. Com a organização do OP, parece que mulheres das mais diversas comunidades tiveram a possibilidade de experimentar outras formas de fazer política. Pesquisas sobre o tema mostram que, desde o início, houve uma
participação paritária entre homens e mulheres nas assembleias
comunitárias, mas que não se refletia nos Conselhos do OP e
nos Fóruns de Delegados. A partir do fim dos anos 1990, essa
situação foi revertida, e as mulheres tornaram-se maioria em
todas as instâncias (FEDOZZI; MARTINS, 2015, p. 196). Esse
ativismo feminino a partir do movimento comunitário, certamente encontra raízes no lugar que as mulheres desempenharam em diversas ações que demarcaram a importância desse
movimento para a cidade, em especial a partir do fim dos anos
1970: ocupações, lutas por creches e escolas, movimentos contra a carestia, em defesa da saúde, entre outros. Embora essas
mobilizações nem sempre estejam diretamente associadas ao feminismo, é possível notar a grande participação das mulheres
em pautas que são do interesse de toda a comunidade, mas que
dialogam fortemente com as necessidades daquelas que são as
principais responsáveis por garantir as condições de reprodução
da vida.
Com a vitória de Olívio Dutra (do Partido dos Trabalhadores – PT) para o governo do Estado, em 1999, foi criada a Coordenadoria Estadual da Mulher, órgão vinculado ao gabinete do governador com a função de articular e promover políticas públicas
de gênero. Essa foi uma das primeiras coordenadorias com caráter
estadual e era composta por mulheres de todos os partidos que compunham a frente de centro-esquerda que venceu o pleito, sendo que
a coordenadora geral, Vânia Araújo Machado, era militante do PT
e do Coletivo Feminista Lua Nova, indicando que a atuação partidária e, ao mesmo tempo, no movimento feminista continuou formando novas lideranças. Vânia foi também uma das primeiras ativistas aqui no RS em defesa do parto humanizado. Infelizmente,
462
História das Mulheres no Brasil Meridional
ela não concluiu seu trabalho à frente da Coordenadoria. Faleceu
em outubro de 2000 em decorrência de erro médico no parto. Ela
se transformou em um símbolo na luta contra a mortalidade materna.5
Figura 2: Fachada do Centro Estadual de Referência da Mulher,
que leva o nome de Vânia Araújo Machado em sua homenagem6
As coordenadorias foram inspiração para a posterior criação da Secretaria Especial dos Direitos da Mulher a nível federal.
No entanto, esses órgãos não representam uma conquista definitiva. Em termos estaduais, a Coordenadoria da Mulher seguiu operando nos governos de Germano Rigotto (PMDB) e Yeda Crusius
(PSDB). Em 2011, já durante o governo Tarso Genro (PT), foi
criada a Secretaria de Políticas Públicas para as Mulheres, adotando a nomenclatura que já era usada na esfera federal. No entanto,
em 2015, durante o governo de José Ivo Sartori (PMDB), a Secretaria foi extinta, e as políticas para as mulheres passaram a fazer
5
Disponível em: <revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,ERT5017-152545017-3934,00.html#:~:text=Vânia%20resistiu%2024%20dias%20depois,14%20
dias%20antes%20do%20filho>.
6
Fonte: Governo do Estado do RS. Disponível em: <https://estado.rs.gov.br/
inaugurada-nova-sede-do-centro-estadual-de-referencia-da-mulher>.
463
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
parte de um departamento dentro da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos.7
A abertura de órgãos voltados às pautas das mulheres teve
como resultado a ampliação dos canais de diálogo com os movimentos, resultando no acolhimento de muitas demandas históricas, especialmente no que se refere à ampliação da rede de atendimento de combate à violência. No entanto, a proximidade entre
movimentos e governos também gerou problemas, especialmente
no que se refere a delimitar a fronteira de atuação de seus agentes.
Isso pode ocasionar uma sobreposição de papéis e funções. Ainda,
uma das consequências do avanço do feminismo de Estado foi justamente a institucionalização de alguns dos movimentos de mulheres e feministas, que passaram a ter sua atuação marcada por
pautas que fossem palatáveis ao poder estatal. Ou seja, esta institucionalização, em alguns casos, pode vir a ocasionar certa dependência do movimento em relação ao Estado. Tal circunstância tende a se efetivar se os grupos e entidades feministas passam a depender da concessão de verbas públicas e de organismos internacionais para seus projetos. Um exemplo disso foi um certo abandono
da pauta da legalização do aborto, que aparecia com força nos primeiros grupos feministas aqui estudados e que, ao longo dos anos
1990, perdeu fôlego. As dificuldades em avançar nesse debate pelas
vias governamentais pode, em parte, explicar por que os esforços dos
movimentos acabaram se concentrando em outros temas, como o
combate à violência, que encontravam maior adesão dos governos.
Nesses cenários, outros movimentos formaram-se. Nos anos
2000, a Marcha Mundial de Mulheres, iniciada em 1995 a partir de
uma manifestação no Canadá, na qual mulheres pediam “pão e
rosas”, chegou ao Brasil. Organizada primeiramente por militantes sindicais, partidos políticos de esquerda (especialmente o PT) e
feministas de diversos coletivos, a Marcha passou a ser construída
como uma importante referência em todo o país, abrindo importantes canais de diálogo na América Latina e demais continentes.
7
As informações sobre a extinção da Secretaria estão disponíveis em:: <https://
ponte.org/feminicidios-aumentam-durante-quarentena-no-rio-grande-do-sul/>.
464
História das Mulheres no Brasil Meridional
Suas principais bandeiras passaram a ser o combate à pobreza e à
violência. No Rio Grande do Sul, a Marcha afirma-se como um
movimento de caráter autônomo e declaradamente anticapitalista.
Em 2001, a capital gaúcha passou a ser o palco de um dos
principais encontros da esquerda: o Fórum Social Mundial. O novo
milênio começou com a eclosão de movimentos assistêmicos que
ganhavam fôlego no continente. Para citar alguns: o Exército Zapatista de Libertação Nacional (México), a Via Campesina (em
vários países da América do Sul), as manifestações de Seattle (nos
Estados Unidos) davam o tom de um ativismo contrário aos efeitos da globalização neoliberal na precarização das condições de
vida dos mais pobres. Porto Alegre foi escolhida como sede do FSM,
porque a cidade representava um modelo alternativo, governado
por uma coalizão de esquerda e através da democracia participativa. Os movimentos de mulheres do sul do Brasil foram protagonistas nessa e nas edições seguintes do FSM. As experiências de governos locais que abriram espaço para as pautas das mulheres, somadas à democracia participativa e a eventos com grande circulação de organizações ativistas, colocaram as organizações feministas do Rio Grande do Sul na agenda das lutas nacionais e internacionais. Ao longo das diferentes edições, as organizações feministas foram galgando espaços. A partir de 2002 foi reeditado o Planeta Fêmea (construído inicialmente em 1992 durante a Eco 92), que
possuía uma programação própria dentro do FSM com os seguintes eixos: Agenda 21 das Mulheres, Gênero e Desenvolvimento
Sustentável, Direitos Sexuais, Saúde (neste eixo aparece o aborto),
Equidade de Gênero e Raça, Violência contra as Mulheres e Meninas, Gênero e Empoderamento, Democracia Participativa, Direitos Humanos das Mulheres, Mulheres e Comunicação, Mulheres e
Cultura Popular, Compromisso com a Solidariedade, Mulheres e
Socialismo.8
8
As informações constam no panfleto produzido para o evento pelo Planeta Fêmea. Nele também é possível encontrar entidades que fizeram parte da organização, entre as quais várias do RS, tais como: ACMUN – Associação Cultural de
Mulheres Negras, Coletivo Feminino Plural, Maria Mulher, Fórum Municipal
da Mulher de Porto Alegre, Griô, GAPA RS, Ilê Mulher, Liga de Lésbicas Gaú-
465
COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
Figura 3: Panfleto sobre o Planeta Fêmea 2003, Fórum Social Mundial 2003. Acervo Pessoal
Essa síntese certamente não é capaz de expressar com riqueza todo o leque de atuação e organização das mulheres que impactaram a política no sul do Brasil ao longo do período em questão.
O objetivo foi mostrar que as mulheres e os feminismos estiveram
em permanente movimentação. Com um caráter fluido, diverso,
heterogêneo (por vezes fragmentado), a militância feminista buscou avançar em pautas históricas e construir pontes para as novas
gerações.
chas, Themis, além de diversos núcleos de estudos de universidades, entidades
nacionais e internacionais.
466
História das Mulheres no Brasil Meridional
O movimento feminista na luta contra a violência
– radical desigualdade entre os sexos
O movimento feminista mudou a vida das mulheres em todos os sentidos. Não somente por colocar na rua suas pautas e
singularidades, retirando-as das amarras da representação, porque
até esse momento a construção das mulheres era uma narrativa
masculina, mas também porque trouxe à visibilidade na narrativa
histórica esse novo sujeito. Elas nunca estiveram ausentes da História, mas foram silenciadas pelas relações de poder que anunciam,
registram, mas também silenciam sujeitos e fatos.
A historiadora francesa Michelle Perrot, ao discorrer sobre a
importância da Escola dos Annales para a historiografia, lembra
que a primeira geração que substituiu a primazia da história política pela econômica e social não realizou rupturas significativas,
“mulheres, relações entre os sexos, até mesmo a família... eram
quantidades negligenciáveis...” Como o silêncio foi rompido? – pergunta ela. Com a explosão da História na década de 1970, “chegou-se a falar em ‘história em migalhas’, que favorecia o surgimento de novos objetos: a criança, a loucura, a sexualidade, a vida privada... Por que não as mulheres?” (PERROT, 2005, p. 16) A demanda social com o movimento feminista foi a principal responsável por visibilizar as mulheres na narrativa histórica.
Desde a mudança na historiografia que incorporou as mulheres como sujeitos históricos e historiadoras narrando suas experiências, uma temática uniu e une todas em diversos países do mundo – o patriarcado, esse sistema social em que homens adultos
mantêm o poder político, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades. Modelo sociopolítico em que o gênero masculino e a heterossexualidade exercem supremacia e poder sobre os
demais.
Segundo Lage e Souza (2019), o conceito de patriarcado
passou a ser utilizado pelos movimentos feministas, principalmente a partir da década de 1960, para escancarar as relações de poder
dos homens sobre as mulheres, particularmente nas relações conjugais, passando a ser utilizado como um sistema de dominação e
exploração das mulheres. Também Lerner adverte sobre os perigos
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
do patriarcado para as mulheres e anuncia que, sem uma revolução cultural, é difícil aboli-lo. Insiste em que o patriarcado, o
poder dos homens especialmente sobre as mulheres e sua família, é algo histórico e não natural, portanto pode ser transformado historicamente.
O sistema do patriarcado só pode funcionar com a cooperação
das mulheres. Assegura-se essa cooperação por diversos meios:
doutrinação de gênero, carência educacional, negação às mulheres do conhecimento da própria história, divisão de mulheres pela definição de “respeitabilidade” e “desvio” de acordo
com suas atividades sexuais; por restrições e coerção total; por
meio de discriminação no acesso a recursos econômicos e poder político e pela concessão de privilégios de classe a mulheres que obedecem (LERNER, 2019, p. 267).
O patriarcado teve, através da História, aliados poderosos e
com eles se perpetuou, corporificado nos aparatos jurídicos que
lhe deram legitimidade, longevidade e naturalização no corpo social. No caso brasileiro, além das Constituições brasileiras de 1824
e 1891, em que a mulher era um nada, o Código Civil de 1916
(inspiração napoleônica), que teve vigor até 2002, instaurou a menoridade feminina e o crime em defesa da honra. Os famosos crimes da paixão que deixaram tantos assassinos impunes.
Leis igualitárias são aprovadas, proibindo todo tipo de discriminação; as mulheres avançam em suas lutas e conquistas, mas
a violência continua. Os dados são alarmantes. Homens assassinando suas ex-mulheres, ex-noivas, ex-namoradas, ex-companheiras, ex-amantes que se negaram a continuar os relacionamentos.
Homens que matam mães em frente aos filhos, quando não matam
inclusive os filhos, tirando suas vidas em ato posterior. Mulheres
machucadas, queimadas, violentadas dando parte em delegacias
de mulheres ou calando-se por variados motivos. O assédio e o estupro ainda encarados com naturalidade.
O combate à violência, radical desigualdade entre homens e
mulheres, tem sua história, e a luta das mulheres é responsável por
ela. O ano de 1979 marcou a vitória do movimento feminista contra a impunidade desses assassinatos, tidos como crimes de paixão.
Durante o julgamento de Doca Street pelo assassinato de sua com-
468
História das Mulheres no Brasil Meridional
panheira, ocorrido em 1976, surgiram pela primeira vez manifestações feministas contra a impunidade em casos de assassinatos de
mulheres por homens. Era como se o assassino tivesse livrado a
sociedade inteira de um indivíduo que punha em risco a moral da
família brasileira. As feministas organizadas conseguiram reverter
o processo, e o assassino foi condenado. Surge desse episódio o
lema “Quem ama não mata”, que acabou se transformando numa
minissérie de televisão com altíssima audiência.
O encontro feminista de Valinhos, São Paulo, em junho de
1980, recomendou a criação de centros de autodefesa. O SOS
Mulher traduziu-se na criação das Delegacias Especiais para Atendimento de Mulheres Vítimas de Violência. As Delegacias da Mulher são importantíssimas na luta contra a impunidade, porque
muitas vezes a polícia transformava o interrogatório das vítimas
numa verdadeira tortura, desconfiando da inocência da mulher e
até manifestando certa cumplicidade com o comportamento do
agressor. As raras queixas, as dificuldades de prova e a estigmatização da vítima sempre foram componentes que transformaram o
crime de violação feminina em assunto doméstico e pessoal.
No Rio Grande do Sul, o SOS Mulher foi inaugurado em
1981, fato muito noticiado na imprensa porto-alegrense. Como vimos na seção anterior, o feminismo era um tema de debate público
na cidade, que, assim como em outras capitais, não contava com
qualquer serviço para mulheres vítimas de violência. A organização atendia o público em um espaço cedido pela Igreja Santa Cecília, e todas as participantes eram voluntárias. O SOS Mulher elaborou uma espécie de cartilha, contendo orientações contra vários
tipos de violência. No texto de apresentação desse documento é
possível ler o objetivo que movia o grupo: “BASTA! É preciso que
nos organizemos e lutemos contra essa situação. Esse não é um
problema de cada uma de nós isoladamente, mas atinge todas as
mulheres e deve ser combatido por todas juntas” (SOS MULHER,
1981, p. 2).
Em 1994, a Assembleia Geral da Organização dos Estados
Americanos – OEA –, convencida de que a eliminação da violência contra a mulher é condição indispensável para seu desenvolvimento individual e social como sujeito de direitos e para sua plena
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
e igualitária participação em todas as esferas da vida, adota a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher – Convenção de Belém do Pará. Em 1995, a
Conferência de Pequim pavimentou as políticas públicas pela equidade de gênero como uma das metas dos países signatários. O tema
do combate à violência foi um dos mais relevantes.
Como mencionado na seção anterior, as ativistas do Rio
Grande do Sul acompanhavam esses debates internacionais, e entre os desdobramentos podemos citar que, ao longo das décadas de
1990, 2000 e 2010 foram intensificadas as agendas em torno da
ampliação das redes de atendimento às mulheres vítimas de violência, que ocorriam em diversos âmbitos. Um aspecto interessante é que o Rio Grande do Sul foi pioneiro ao criar uma lei estadual
para punir o assédio sexual no serviço público (Lei Complementar
n. 11.487, de 13 de junho de 2000). De fato, nos anos 2000 houve
um avanço do feminismo de Estado no Brasil com uma atuação
importante tanto das esferas legislativas como executivas para a proposição de legislações preventivas e punitivas no âmbito do combate
à violência.
A Lei Maria da Penha, decretada em 07 de agosto de 2006, foi
um avanço histórico na luta contra a violência de gênero no Brasil.
Possibilita que agressores sejam presos em flagrante ou tenham sua
prisão preventiva detectada quando ameaçarem a integridade física da mulher. Prevê ainda medidas de proteção para a mulher que
corre risco de vida, como o afastamento do agressor do domicílio e
a proibição de sua aproximação física junto à mulher agredida e
aos filhos. A Lei do Feminicídio, lei 13.104/2015, vem somar-se a
outras peças no combate à violência contra as mulheres, alterando
o Código Penal para prever esse novo crime. A lei encara feminicídio como assassinato de mulheres, mortes intencionais e violentas
de mulheres em decorrência de seu sexo, como um tipo de homicídio qualificado e inclui-o no rol dos crimes hediondos. Os homicídios qualificados têm penas que vão de 12 a 30 anos, enquanto os
homicídios simples preveem reclusão de 6 a 12 anos. Tais leis são
importantes conquistas do movimento feminista. No entanto, elas
não terão um funcionamento efetivo sem uma rede que apoie as
mulheres mais vulneráveis. No Rio Grande do Sul, por exemplo,
470
História das Mulheres no Brasil Meridional
temos atualmente 14 casas-abrigo para vítimas de violência em operação. Uma delas, a Casa Abrigo Mirabal, é gestionada por mulheres ligadas ao Movimento Feminista Olga Benário, resultando de
uma ocupação que iniciou em 25 de novembro de 2016. A data faz
menção ao assassinato das três irmãs Mirabal em 1960 na República Dominicana e foi estabelecido como Dia Internacional pela Não
Violência contra a Mulher.
A participação de organizações feministas que atuam diretamente no combate à violência parece ser uma tônica desde os
anos 1980. Neste texto, já foi apresentado o trabalho SOS. Quanto
à década de 1990, destacam-se os projetos desenvolvidos pela Organização Não Governamental Themis, criada em 1993 e que atua
na defesa dos direitos humanos e das mulheres. Dentre outros programas destaca-se o das Promotoras Legais Populares, que trabalha na capacitação de mulheres lideranças comunitárias para que
atuem na defesa dos direitos humanos e no combate à violência.
Igualmente merece relevo a atuação nessa área da entidade
Maria Mulher (organização feminista vinculada ao movimento de
mulheres negras). Em artigo que aborda as diversas faces da atuação dessa organização, Maria da Conceição Fontoura confere destaque à publicação intitulada Palavras de Mulher, que tratava de um
projeto voltado às moradoras de uma das maiores e mais importantes comunidades de Porto Alegre:
Na apresentação, Maria Mulher indica os programas que realiza naquele momento. A organização desenvolve o projeto
Construindo a Cidadania da Mulher Vítima de Violência Doméstica na Cruzeiro do Sul, vila popular de Porto Alegre, a
fim de trabalhar a cidadania das mulheres empobrecidas que
são ou foram vítimas de violência doméstica. “A organização
entende que a violência doméstica é um problema de saúde
pública, apresentando custos para toda a sociedade e deve ser
assumida pelo poder público” (FONTOURA, 2004, p. 139).
Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, publicado
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública entre 2016 e 2018, foram mais de 3.200 mortes no país. Além disso, estimativas do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) indicam que, no mesmo período,
mais de 3 mil casos de feminicídio não foram notificados. O mais
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
alarmante disso tudo é o envolvimento de crianças. Os relatos da
Central de Atendimento à Mulher revelam que, no ano que passou, 64% dos casos de violência foram presenciados por filhos das
vítimas e 17% também sofreram agressões. E estudos demonstram
que crianças que sofrem ou presenciam violência tendem a ser violentas no futuro, pois naturalizam esses atos.
Dados divulgados em 26 de fevereiro de 2019 de uma pesquisa realizada pela Datafolha, encomendada pela ONG Fórum
Brasileiro de Segurança Pública para avaliar a violência contra as
mulheres no Brasil, deixaram todos e todas alarmadas/os. De fevereiro de 2018 a fevereiro de 2019, 1,6 milhão de mulheres foram
espancadas ou sofreram tentativas de estrangulamento, enquanto
22 milhões sofreram assédio. Entre os casos de violência, 42% ocorreram dentro do lar. Segundo a pesquisa, mais da metade das agredidas não denunciou o agressor ou procurou ajuda. A diretora do
Fórum pergunta após a pesquisa: qual o lugar seguro para uma
mulher no Brasil? Nenhum.
O Atlas da Violência, editado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), indica que houve um crescimento dos
homicídios femininos no Brasil: um crescimento expressivo de
30,7% no número de homicídios de mulheres no país durante a
década em análise (2007-2017), assim como no último ano da série, que registrou aumento de 6,3% em relação ao anterior. Entre
2007 e 2017, houve aumento de 20,7% na taxa nacional de homicídios de mulheres. O estudo ressalta a possibilidade de ter arma em
casa com o aumento de agressões às mulheres. Considerando os
altíssimos índices de violência doméstica que assolam o Brasil, a
flexibilização da posse de armas de fogo tende a vulnerabilizar ainda mais a vida de mulheres.
O Atlas o IPEA apresenta vários gráficos da espacialização
da violência contra as mulheres, assim como o Painel da Violência
contra as mulheres do Senado Federal de 2017. Segundo esse painel, os quatro estados mais violentos são Roraima, Acre, Rio Grande
do Norte e Ceará. Mas, quando se trata das notificações de violência por órgãos públicos de saúde, quem ponteia é o Mato Grosso
do Sul. Também o site Relógios da Violência apresenta o número,
472
História das Mulheres no Brasil Meridional
por segundos, de vítimas de violência física ou verbal no Brasil. É
estarrecedor. Também o IBGE publica o número das violências
através das notificações.9
O Rio Grande do Sul aparece nos gráficos como um estado
intermediário entre aqueles que mais agridem ou matam mulheres,
mas também não é um lugar seguro. A Secretaria da Segurança
Pública do Rio Grande do Sul apresentou, em sua campanha
“Rompa o Silêncio”, os indicadores de violência contra as mulheres entre os meses de janeiro a maio de 2010, sendo janeiro o mês
com o maior número de casos. Notificações: Ameaça – 14.342;
Lesão corporal – 8.434; Estupro – 644; Feminicídio consumado –
43 e Feminicídio tentado – 138. A Secretaria alertava que são muito raros os casos em que o feminicídio é resultado da primeira agressão. Em geral, as mortes por motivação de gênero são o ponto final
de um longo ciclo de violência, que, quanto antes for rompido, tem
mais chances de preservar as vítimas. O SIM (Sistema de Informação sobre Mortalidade) registrou 43.732 assassinatos no estado entre
1996 e 2016. As mulheres foram assassinadas mais em casa (38%)
do que nas ruas (23%). Se as ruas são perigosas para as mulheres,
para as meninas, o local onde são mais vulneráveis é a sua residência, de onde não podem fugir. Dentro de casa, no metrô, no ônibus, nas ruas, nas praças, a violência assusta as mulheres, deixando
a certeza de que é um problema de todos, homens e mulheres. E
nos faz indagar quando a sociedade vai acompanhar as leis e diminuir as desigualdades entre homens e mulheres. Quando vai desnaturalizar a violência?
Também herança do patriarcado (a supremacia masculina acima de tudo), o comportamento abusivo de muitos homens
é retratado na atualidade por novos conceitos que têm ocupado
a agenda das feministas para alertar as mulheres de que aquilo
que parecem pequenos gestos é também uma forma de poder
dos homens sobre as mulheres, de intimidação e de desqualificação do feminino.
9
Para consultas: IPEA <www..ipea.gov.br>; IBGE <www..IBGE.gov.br>; Secretaria de Segurança <www..ssp.rs.gov.br>.
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
Quem de nós mulheres não passou ou presenciou situações
como mansplaning – man (homem) e explaning (explicar), que significa, no novo vocabulário feminista, explicar para uma mulher algo
que, na maioria das vezes, ela já sabia, utilizando um tom de superioridade, paternalista, de quem se acha mais inteligente simplesmente por ser homem. Manspread ou man-sitting, man (homem),
spreading (espalhando), que significa a expansão do sexo masculino. Homens que se sentam em transportes públicos com as pernas
abertas, ocupando mais de um assento. Gaslighting, tortura psicológica do homem sobre a mulher, numa tentativa de que ela desacredite de si mesma, duvidando de sua inteligência e muitas vezes de
sua sanidade mental. O gaslighting é bem comum e pode aparecer
não só nas relações amorosas, mas também no trabalho e até nas
amizades. Broppriating, bro (de brother, irmão), appropriating (apropriação), é usado quando um homem se apropria de uma ideia
levantada por uma mulher. Mais do que isso, esse conceito acompanhado do manterrupting, a interrupção da fala de uma mulher
por um homem, que, em seguida, a repete como sendo sua. Outra
forma de broppriating é o silêncio sepulcral após uma mulher propor algo e, logo depois, o mesmo ser proposto por um homem e ser
recebido como uma ótima ideia. Isso pode acontecer em reuniões
de trabalho, na academia, etc.
Formas variadas de discursos e práticas violentas dão forma
a uma sociedade fortemente conservadora em relação aos direitos
das mulheres. Esse conservadorismo, expresso, por exemplo, na
grande adesão da população do Rio Grande do Sul ao bolsonarismo, não é algo novo. A escritora rio-grandina Carmen da Silva,
que a partir dos anos 1960 passou a ter projeção nacional como
colunista na revista Claudia, escreveu em sua autobiografia sobre
as desventuras de ser menina e jovem nas cidades do interior do
Rio Grande do Sul. E sentenciou, parafraseando Euclides da Cunha: “A gaúcha é, antes de tudo, uma forte” (1984, p. 11).
A atualidade das lutas feministas de Sul a Sul
A história do feminismo é uma história de transgressão, e
em todos os movimentos de resistência feminina o corpo é sempre
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História das Mulheres no Brasil Meridional
protagonista. Tanto no Movimento Feminista, que balançou o mundo a partir da década de 1960, como na atualidade, as mulheres
bradam que seu corpo lhes pertence, um corpo político enfim.
A atualidade da questão e do debate em relação ao poder e
aos corpos é essencial. Pode-se recuperar seu próprio corpo? – pergunta Judith Revel. A autora referenda Foucault, quando esse afirma que é “essa luta pelos corpos que faz com que a sexualidade
seja um problema político” (REVEL, 2005, p. 32). O maior exemplo dessa questão é a luta das mulheres em defesa dos direitos de
seu corpo pela descriminalização do aborto.
A história revela que o corpo feminino durante séculos não
pertencia à mulher que habita sua própria pele. Esse preceito parece estar na origem dos abusos sofridos ao longo dos anos, trazendo
uma herança de desrespeito e violência que ainda nos assusta e
assombra
Michele Perrot lembra-nos que, se o corpo está no centro de
toda relação de poder, o corpo das mulheres é o âmago do centro
de maneira imediata e específica. Sua aparência, suas formas, seus
gestos, suas vestimentas, etc., tudo são objetos de suspeita. Suspeita, segundo ela, que visa ao sexo, vulcão da terra: “Toda mulher
em liberdade é um perigo e, ao mesmo tempo, está em perigo, um
legitimando o outro. Se algo de mau lhe acontece, ela está recebendo apenas aquilo que merece, porque o corpo das mulheres não
lhes pertence” (PERROT, 2005, p. 447).
As feministas de ontem e de hoje insistem em colocar sob
suspeita o sexo como definidor de comportamentos e a heterossexualidade como norma, questionando os padrões definidores de
beleza e de juventude. Denunciam o patriarcado e a violência, em
especial o uso de suas roupas como provocação ao estupro. A violência contra as mulheres e as trans nada mais é do que o desprezo
ao corpo feminino.
Os corpos na rua, mulheres atravessando o mundo privado e
adentrando o público e a política, demonstrando que seus corpos
lhes pertencem, representa na atualidade a maior forma de resistência possível. A questão do aborto, sua descriminalização, está
no centro dos debates, a quem pertence esse corpo. “Meu corpo
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
me pertence” foi palavra de ordem no movimento feminista, que
balançou o mundo nas décadas de 1960/70 e continua sendo o mote
dos novos movimentos feministas, como a Marcha das Vadias.
A Marcha das Vadias teve início em 2011 no Canadá como
resposta à violência sexual na Universidade de York em Toronto,
após um policial afirmar que as mulheres deveriam evitar vestir-se
como vadias (sluts) para não ser vítimas de estupro. e transformouse num movimento mundial, transgressor, de afirmação libertária
e de pautas feministas. Escancarando as permanências e as continuidades do discurso patriarcal e da desigualdade entre os sexos, o
corpo presente na Marcha também é subversivo com seios à mostra ou em mensagens pintadas que o vestem como “meu corpo me
pertence, meu útero é laico”. A Marcha também ganhou as ruas no
sul do Brasil, tendo várias edições em um dos tradicionais parques
de Porto Alegre, o Parque da Redenção. Esse espaço público passou a ser ocupado, com ousadia, por jovens feministas que vêm
revigorando o movimento.
Mas, como tentamos demonstrar ao longo de todo este texto, o movimento de mulheres é múltiplo e diverso. As trabalhadoras rurais conhecidas como Margaridas também tomam as ruas
em suas marchas. Quem não se sensibilizou com o movimento das
mulheres camponesas, que não eram ninguém na sociedade, pois
não possuíam documentos, reivindicando sua cidadania. No Rio
Grande do Sul, esse movimento surgiu nos “clubes de mães” e mais
tarde se constituiu no MMTR (Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais). Mais tarde, na década de 1990, se notabilizaram na
luta pela aposentadoria e pela licença-maternidade remunerada.
Esse movimento de mulheres tem em seus princípios a luta por
justiça, liberdade e solidariedade.
De sul a sul do nosso continente, nas últimas décadas temos
assistido à organização das mulheres nos mais diversos movimentos. Assim, por exemplo, vemos as Mujeres de Chiapas, no México, reivindicarem seu lugar naquele território e na defesa de suas
comunidades. As relações de gênero e, portanto, as lutas das mulheres deste continente não podem ser compreendidas sem pensar
nesses corpos marcados por relações étnico-raciais. O patriarcado
colonial infringe às mulheres do sul experiências dolorosas e vio-
476
História das Mulheres no Brasil Meridional
lentas que, muitas vezes, foram negligenciadas pela perspectiva feminista ocidental.
As mulheres indígenas, que há séculos resistem a esses mecanismos de dominação, ganharam as ruas brasileiras em 2019 em
sua primeira marcha nacional, que teve como objetivo fortalecer a
potência das mulheres indígenas, retomando seus valores e memórias. Em documento final após a Marcha chamado de “Território: nosso corpo, nosso espírito” reafirmam o compromisso de fortalecer as alianças com mulheres de todos os setores da sociedade
no Brasil e no mundo, do campo e da cidade, da floresta e das
águas, que também são atacadas em seus direitos e formas de
existência: “Somos responsáveis pela fecundação e pela manutenção de nosso solo sagrado. Seremos sempre guerreiras em defesa
da existência de nossos povos e da Mãe Terra” (cf. www.cimi.org.br).
O feminismo negro é o que tem, na atualidade, maior ressonância tanto nos debates teóricos como nos movimentos sociais.
Esse movimento, que denuncia o racismo estrutural brasileiro e
suas especificidades na região sul, onde, historicamente, os projetos de branqueamento da população foram implementados, tem
sido responsável por questionar as omissões das pautas feministas
ao não colocar a raça no centro de suas análises. A Marcha das
Mulheres Negras contra o Racismo, a Violência e pelo Bem Viver
ocupou as ruas de Brasília em 2015 e contou com uma representação de mulheres de múltiplas gerações. As mulheres negras gaúchas realizaram uma importante articulação para participar, como
indica o texto da ativista Vera Daysi Barcelos, publicado na página
da Marcha em uma rede social, que noticia o papel das ONG’s
Associação Cultural de Mulheres Negras (ACMUN) e Maria Mulher na convocação das plenárias preparatórias.10
Essa recente página da história do movimento indica que
estamos diante de histórias entrelaçadas por gerações. Muitas ativistas que protagonizaram os múltiplos feminismos dos anos 1970
e 1980 seguem atuantes ao lado de jovens que trazem o frescor
necessário para que essa luta prossiga.
10
Disponível em: <https://www.facebook.com/Marchamnegra/posts/
361902630629441>.
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COLLING, A. M.; MÉNDEZ, N. P. • Mulheres e feminismos no sul do Brasil
Figura 4: Foto da Marcha das Mulheres Negras em Brasília. Autoras: Tatiana Reis e Janaina Cândido. Disponível em: <https://
www.facebook.com/Marchamnegra/posts/555251054627930>
É assim que milhares de mulheres de todas as raças, etnias e
gerações vêm movimentando as ruas do Brasil e do Rio Grande do
Sul. Ocuparam o espaço público em 2016 contra o golpe jurídicoparlamentar que derrubou Dilma Roussef, primeira mulher eleita
presidenta. Em 2017, na luta contra a violência, contra o avanço
da bancada da Bíblia e seus projetos de leis fundamentalistas, participando dos grandes atos do Dia Internacional da Mulher. Em
2018, chamaram os grandes atos “Ele não”, que aconteceram no
Parque da Redenção. Essa Primavera Feminista é demonstração
de que, em nosso país, há uma grande disputa sendo travada, e os
direitos das mulheres estão no centro dessa guerra, colocando as
feministas como protagonistas em defesa da democracia e dos avanços obtidos. Ao longo das décadas finais do século XX e do início
do nosso século, as críticas ao patriarcado e ao machismo continuaram como palavras de ordem. E uma pergunta que não quer calar
em tempos de discussão e debates (quase todos masculinos) sobre
o direito ao aborto: a quem pertencem os corpos femininos? A história de lutas e resistências das mulheres do sul do Brasil pode ser
resumida na frase do coletivo boliviano Mujeres Creando: Nem a
terra nem as mulheres somos territórios de conquista!
478
História das Mulheres no Brasil Meridional
Referências
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479
As lutas de mulheres de classes
populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das
Promotoras Legais Populares
(1993-2020)
Fabiane Simioni
As mulheres e as lutas por direitos de cidadania
As lutas dos movimentos feminista e de mulheres por direitos têm sido amplamente narradas no contexto brasileiro e latino-americano por diferentes autoras (RAGO, 1996; SOIHET; PEDRO, 2007; PINTO, 2010; ALVAREZ, 2014). Vários trabalhos historicizam essa trajetória, destacando diferentes aspectos das mobilizações sociais das mulheres por direitos de cidadania. De acordo
com Jelin (1994, p. 117), haveria duas histórias paralelas nessas
mobilizações sociais: uma situada nas lutas das mulheres por libertação e direitos e uma outra desenvolvida e ampliada por redes de
atores não governamentais internacionais, governos e sociedades a
partir da apropriação da ideia de direitos humanos. Nem todas as
participantes dessas mobilizações se identificam como feministas,
de modo que é importante registrar essa diferença. As redes ou
movimentos de mulheres empreendedoras, por exemplo, têm uma
agenda de trabalho político que deve ser compreendida como um
corolário do ideal liberal de desenvolvimento e autonomia econômica. O trabalho produtivo das mulheres é valorizado e deve ser
incrementado para o aperfeiçoamento e a melhoria da eficiência
do sistema capitalista. A máxima “não sou feminista, sou feminina” é alavancada no imaginário do senso comum entre esse grupo,
que não se identifica nem com a agenda política tampouco com os
480
História das Mulheres no Brasil Meridional
pressupostos teóricos feministas. Os movimentos feministas em suas
diferentes perspectivas e vertentes (liberal, socialista, marxista, radical, pós-estruturalista, ecofeminista e comunitário, etc.), compartilham o caráter antissistêmico em que estão interseccionadas as
lutas antirracistas, de classe e contra a dominação patriarcal. Para
Hooks (2020, p. 13), “o feminismo é um movimento para acabar
com o sexismo, a exploração sexista e a opressão”. Desse modo,
“mulheres podem ser tão sexistas quanto homens [...]. Para acabar
com o patriarcado (outra maneira de nomear o sexismo institucionalizado), precisamos deixar claro que todos nós participamos da
disseminação do sexismo” (HOOKS, 2020, p. 13).
No contexto ocidental, os direitos das mulheres podem ser
lidos como direitos de cidadania reconhecidos a partir das mobilizações políticas, primeiramente por liberdade e igualdade, em fins
do século XIX e início do século XX, notabilizadas pelas campanhas pelo sufrágio e pelo direito a uma carreira profissional, lideradas majoritariamente por um seleto grupo de mulheres brancas,
das classes médias e altas, com formação universitária, localizadas
em países do norte global. Os estreitos limites das reivindicações
por direitos individuais de liberdade e igualdade foram alargados
quando as preocupações relativas à sobrevivência econômica e à
discriminação racial foram mobilizadas por mulheres negras, pobres,
imigrantes.1 Como refere Hooks (2019, p. 33), “as mulheres brancas
de classe média fizeram de seus interesses o foco principal do movimento feminista graças ao fato de viver longe dos constrangimentos
sexistas vigentes no mundo das mulheres trabalhadoras”.
1
A filósofa e ativista afro-estadunidense Angela Davis (2016) chama a atenção
para o programa do movimento pelos direitos das mulheres nos EUA no século
XIX, quando mulheres brancas e negras estavam envolvidas nas lutas antiescravagistas: “Se a maioria das abolicionistas via a escravidão como um defeito indecente que precisava ser eliminado, a maioria das defensoras dos direitos das mulheres enxergava a supremacia masculina de forma similar – como uma falha
imoral de uma sociedade que, em seus demais aspectos, era aceitável. No interior
do movimento de mulheres, em seus primeiros anos, pouco se discutia sobre a
população branca trabalhadora – nem mesmo sobre as mulheres brancas trabalhadoras” (DAVIS, 2016, p. 75). Não havia, portanto, qualquer objeção ao sistema econômico capitalista, tanto entre as pessoas envolvidas nas lutas abolicionistas como entre o movimento de mulheres no contexto estadunidense.
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
No âmbito latino-americano, estamos falando de uma região que compartilha marcas de desigualdades e injustiças, amarradas historicamente em estruturas políticas, sociais, culturais e econômicas específicas, sem que se possa afiançar uma experiência
comum entre todas as mulheres (BALLESTRIN, 2017). As violações de direitos e os genocídios de populações indígenas poucas
vezes foram denunciados nas mobilizações por direitos ou nos processos de (re)democratização em países da região que passaram
por regimes autoritários (JELIN, 1994). A partir dos anos 1990, os
movimentos feministas no Brasil e na América Latina globalizaram-se com o apoio e o estímulo da crescente participação de ativistas nas esferas hegemônicas da política internacional e, em particular, nas conferências e cúpulas mundiais promovidas pelas Nações Unidas no decorrer desse período (ALVAREZ, 2003).
A luta das mulheres por direitos pode ser contada de diferentes perspectivas, a depender dos sujeitos, do espaço e do tempo que
estamos olhando nesse empreendimento de análise. A partir desse
cuidado, Seffner et al. (2014, p. 697) fazem um importante registro
sobre as narrativas históricas em direitos humanos: “as estratégias
de que se lança mão para contar a história de algo trazem profundas implicações na definição desse algo”. A narrativa da história
da luta por direitos humanos das mulheres deve considerar que o
percurso histórico dos direitos humanos já define, em boa medida,
o que são os direitos humanos e o que eles podem vir a ser em
nossa sociedade.
Ao traçar a origem e o “desenvolvimento” histórico de “algo”,
de modo bem claro damos os principais contornos do que é
esse “algo”. Por exemplo, ao se servir de categorias como “nossa
sociedade”, podemos narrar processos particulares a certos
povos e culturas, mas que se tornam globais e universais, impondo-se a outros povos e países que não tiveram a “sorte” de
ter um protagonismo no campo dos direitos humanos. Dessa
forma, por vezes, mesmo plenos de boas intenções, aqueles que
narram a história dos direitos humanos estão legitimando a
imposição de marcas particulares de uma cultura sobre outras.
O que se afirma universal é, em matéria de direitos humanos, a
perspectiva hegemônica na disputa, aquela que “venceu” e se
estabeleceu como a verdade histórica (SEFFNER et al., 2014,
p. 697).
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História das Mulheres no Brasil Meridional
As narrativas sobre os antecedentes históricos dos direitos
humanos desenvolvem-se a partir de longas e complexas redes de
sentidos, que tanto se referem ao plano das lutas políticas como ao
das disputas no campo das ideias (JELIN, 1994, p. 118). As feministas, como um importante grupo de influência nas sociedades
ocidentais, transformaram o que antes eram vistos como problemas particulares das mulheres em questões públicas:
Elas mostraram que os problemas pessoais das mulheres na
esfera privada são, na verdade, questões públicas constituídas
pela desigualdade de gênero da estrutura social. É evidente que
as experiências das mulheres euro-estadunidenses e o seu desejo por transformação forneceram as bases para as perguntas,
conceitos, teorias e preocupações que produziram a pesquisa
de gênero (OYÊWÚMI, 2020, p. 87).
Torna-se impossível negligenciar os apontamentos mobilizados por intelectuais e ativistas negras com relação aos debates
sobre a matriz cis-hétero-euro-branca dos direitos humanos das mulheres e dos movimentos feministas. A expressão cis-hetero-euro-branca diz respeito a alguns dos eixos de assimetria que marcam os
debates sobre o problema da universalidade da categoria “a mulher”, bem como sobre os espaços/lugares a partir dos quais a produção do conhecimento adquire o estatuto de validade científica.
O uso dessa expressão guarda a tentativa de se aproximar da ideia
de que distintos marcadores sociais (gênero, raça, classe social,
orientação sexual, geração, pertencimento religioso, nacionalidade, entre outros) interconectam-se e geram situações específicas
de hierarquias, subalternizações e desigualdades. Trata-se de pontuar a contraposição ao universo simbólico e cultural da ideia de
direitos de cidadania, os quais encontram-se bastante restritos ao
sujeito universal de direitos, o chamado “homem médio” (branco,
heterossexual, cisgênero, consumidor/proprietário) (LUGONES,
2014, 2020; HOOKS, 2019, 2020; OYÊWÚMI, 2020). Pensadoras
feministas negras frequentemente retomam esses debates a fim de
nos convocar para a necessária atitude de vigilância epistêmica e política sobre a capacidade de apropriação do patriarcado capitalista
dominante, ocupado por mulheres liberais e conservadoras, dispostas a promover seus próprios interesses de classe (HOOKS, 2019).
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
Acolhendo, portanto, esse pressuposto, opta-se por explorar
o cenário das reivindicações por direitos humanos das mulheres,
em marcos espacial e temporal específicos, em Porto Alegre e no
Brasil de 1993 a 2020. Mais especificamente, o foco está na compreensão das lutas sociais por direitos de um grupo de mulheres
urbanas de classes populares em Porto Alegre/RS: as Promotoras
Legais Populares (PLPs). Os discursos e as práticas das PLPs são
os artefatos políticos analisados na busca dessa compreensão. Para
tanto, foram utilizados os depoimentos publicados em revistas; os
materiais, manuais, livros e revistas publicados pela ONG Themis,
disponíveis on-line no site da organização de 1993 até 2020. A eleição por tais marcos está relacionada a duas situações específicas. O
início da formação de PLPs no Brasil ocorreu em 1993 com o primeiro curso realizado pela ONG Themis na Zona Leste de Porto
Alegre. O marco final de análise refere-se à publicação do relatório
do workshop on-line “Promotoras Legais Populares: desafios de agora e no pós-pandemia entre teoria e prática”, ocorrido entre os dias
03 e 17 de junho de 2020. Nesse evento estiveram reunidas PLPs
das regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil (SOARES et al., 2020). Ao longo desse período, estive profissional e afetivamente envolvida com os projetos, as ações, as ideias e as ativistas que circularam pela ONG Themis, tendo participado em diversas funções como estagiária de Direito, advogada, coordenadora
de projetos, editora da revista Themis e presidenta do Conselho
Diretor entre os anos 2000 a 2017. O estímulo para escrever este
trabalho deve-se aos encontros e provocações de que desfrutei naquele período. Não são as PLPs que precisam desse texto. Minha
gratidão a essas mulheres merecia ser reconhecida publicamente.
Nesse cenário específico, o escopo deste trabalho é pensar a
produção de discursos e de práticas sobre os direitos humanos das
mulheres a partir da experiência de atuação político-comunitária
das PLPs em Porto Alegre. Este trabalho apresenta-se em cinco
seções. Na primeira, apresento uma breve contextualização sobre
quais mulheres e quais lutas por direitos serão abordadas neste trabalho. Na segunda, o perfil das PLPs e o projeto de formação de
PLPs realizado pela ONG Themis em Porto Alegre são o foco prin-
484
História das Mulheres no Brasil Meridional
cipal. Na terceira, discuto a noção universal de direitos humanos,
partindo do pressuposto de que é histórica e localizada. Na quarta,
apresento a ideia de tradução político-cultural dos direitos humanos a partir das diferentes experiências das PLPs, refletidas no entrecruzamento do cotidiano particular e de militância política, nas
aproximações possíveis entre os contextos comunitários e institucionais com a Themis, utilizando a questão da violência doméstica como signo para a abertura dessa compreensão de ressignificação e de uso contingencial dos direitos humanos das mulheres.
Por fim, são apresentadas as considerações finais e o referencial
bibliográfico.
As PLPs, a ONG Themis e os significados das lutas
por direitos das mulheres
As PLPs são mulheres de classes populares, moradoras
de diferentes bairros periféricos de Porto Alegre que passaram
por uma capacitação legal realizada pela organização não governamental (ONG) Themis Gênero Justiça e Direitos Humanos. A capacitação legal, no caso analisado, pode ser definida
como um percurso formativo de apropriação, instrumentalização e popularização dos artefatos jurídicos com o objetivo de
reivindicar direitos e de incidir na transformação dos domínios
sociais (CADORE, 2017).
De acordo com a própria organização, a Themis investe no
empoderamento legal de lideranças comunitárias através do programa de formação de Promotoras Legais Populares (SOARES et
al., 2020). O empoderamento legal, nesse caso, é realizado através,
mas não somente, da educação jurídica popular. Esse tipo de educação jurídica tem como pressuposto a ideia de democratização do
conhecimento sobre o campo jurídico e sua ressignificação para
além das práticas estatais e dos poderes institucionalizados. De
acordo com a ONG, através do empoderamento legal “é possível
estabelecer uma nova concepção de justiça, para além dos sistemas
oficiais, tornando o conhecimento legal uma ferramenta estratégica na construção de novos paradigmas de distribuição de direitos e
justiça” (SOARES et al., 2020, p. 20).
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
O projeto de formação de PLPs foi inspirado em experiências feministas latino-americanas de capacitação legal voltadas para
mulheres das camadas populares e posteriormente foi adaptado para
a realidade de Porto Alegre pela ONG Themis. Pela sua originalidade e riqueza cultural, a experiência das PLPs já foi objeto de
numerosas pesquisas e reflexões, entre as quais destacam-se Bonetti (2000, 2001, 2003), Cadore (2017) e Dias (2015, 2017). O desenho institucional desse projeto, realizado pela ONG Themis, possui duas grandes etapas: o curso de formação, através do qual as
participantes adquirem conhecimentos básicos sobre direitos humanos e direitos das mulheres, e o Serviço de Informação à Mulher (SIM). O SIM é o local de atuação das PLPs nos bairros onde
vivem e atendem mulheres em situação de violação de seus direitos, em especial casos de violência doméstica (BONETTI, 2003).
O foco do trabalho voluntário das PLPs é, portanto, a atuação sobre a violência de gênero contra as mulheres. As PLPs identificam,
acolhem, orientam e acompanham mulheres que sofreram situações de violência (CADORE, 2017, p. 106).
A ONG Themis foi criada em 8 de março de 1993 em Porto
Alegre com o objetivo de enfrentar a discriminação contra as mulheres no sistema de justiça. A vinculação da ONG com o campo
jurídico é marcada pelas trajetórias de suas fundadoras, mulheres
identificadas com o feminismo, advogadas e cientistas sociais de
profissão (CADORE, 2017, p. 65). A Themis foi construída nos
marcos do fim da ditadura militar no Brasil e se consolidou como
uma organização feminista comprometida com acesso à justiça,
com o fortalecimento das instituições e com a redemocratização
do país (SOARES et al., 2020, p. 18). É no período da redemocratização brasileira, particularmente depois da promulgação da Constituição Federal de 1988, que outros movimentos socais de base
identitária experimentam um processo de ampliação e de visibilidade no cenário público com as reivindicações por direitos de gays
e lésbicas, dos negros, dos pacientes de HIV/AIDS, dos sem-terra,
dos sem-moradia, das mulheres, das mulheres negras, entre outros.
Em uma temporalidade que pode ser relativizada, o processo de
abertura democrática remonta até os dias atuais (CADORE, 2017)
486
História das Mulheres no Brasil Meridional
porque permanece fortemente impulsionado por movimentos sociais, por grupos autônomos e grupos institucionalizados, como a
ONG Themis e as próprias PLPs.
Interessante observar o alinhamento entre o objetivo principal da ONG de enfrentar a discriminação contra as mulheres no
sistema de justiça e a estratégia de empoderamento legal e de educação jurídica popular. Enfrentar a discriminação contra as mulheres exige a adoção de uma posição teórico-política que permita rechaçar as formas de subalternização de quaisquer mulheres quando inseridas em situações de conflitualidade mediadas pelo sistema de justiça. Esse objetivo, portanto, convoca para a reflexão sobre a necessidade de promoção de uma transformação das relações
comunais, das relações entre mulheres e homens, mulheres e mulheres. A transformação das relações comunais acontece a partir
da educação popular, como propõe Lugones (2020). Isso porque
“[a educação popular] é um método coletivo possível para explorarmos criticamente esse sistema de gênero em seus grandes traços
e, o que é mais importante, entendê-lo em sua detalhada concretude espaçotemporal, para assim nos movermos rumo a uma transformação das relações comunais” (LUGONES, 2020, p. 81).
Além de Porto Alegre, o projeto já foi realizado em outras
regiões do Brasil. A metodologia de acesso à justiça (BONETTI,
2005), desenvolvida pela ONG, tornou-se uma política pública não
estatal em mais de 11 estados brasileiros e 14 municípios gaúchos,
entre os quais podemos citar Canoas, Alvorada, São Leopoldo, Guaíba, Canela, Passo Fundo, entre outros. Em comum, esses projetos
partilham o desejo de que o direito seja acessível e esteja “nas mãos”
e “na boca” de mais mulheres (SOARES et al., 2020).
O perfil das mulheres que se tornam PLPs desde a década de
1990 é marcado por uma trajetória prévia de participação em distintos canais da política comunitária: conselhos municipais e fóruns de direitos, associação de moradores, creches comunitárias,
núcleos de partidos políticos, conselhos tutelares, entre outros, de
acordo com Bonetti (2001). O projeto de formação de PLPs da
ONG Themis e a expressiva militância comunitária daquelas ativistas populares foram bastante afetados pelo cenário político mais
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
amplo da cidade de Porto Alegre, onde a administração municipal
passou por 16 anos sob a liderança de partidos de esquerda (1989 a
2005). A primeira turma de PLPs no Brasil foi anunciada em Porto
Alegre, na zona leste da cidade, em uma das reuniões do Orçamento Participativo (OP) da região, programa do Executivo municipal
da época, que reunia, em plenárias, lideranças para discutir e aprovar prioridades para o orçamento público municipal (BONETTI,
2000).
Nesse sentido, a concepção e o desenho dos projetos desenvolvidos pela ONG Themis foram impactados pela redemocratização no Brasil, mas também pela efervescência global dos debates
sobre os constrangimentos decorrentes de uma universalização precária de direitos constituídos. Nos discursos produzidos pela Themis em seus materiais internos e de divulgação, percebe-se a construção de uma narrativa histórica sobre as suas origens, associada à
categoria de direitos humanos e a um projeto de feminismo voltado para “mulheres de classes populares” (CADORE, 2017). É nesse cenário que o projeto de formação de PLPs se apresentou, quando do surgimento da ONG, como uma estratégia de ressignificação das possibilidades de disputas por direitos, em especial pelos
direitos humanos das mulheres.
A noção universal de direitos humanos
e sua historicidade localizada
O projeto de formação de PLPs, desenvolvido pela ONG
Themis, parte da identificação do feminismo como uma ferramenta para a veiculação das reivindicações por direitos das mulheres.
Assim que o feminismo foi importante como instrumento político
para impulsionar o debate sobre desigualdades e sobre equidade na
repartição de recursos e de prestígio entre mulheres e homens. A
denúncia que o feminismo faz sobre as desigualdades, baseadas ou
na diferença sexual ou na desvalorização moral imposta às mulheres, mobiliza a noção de que as mulheres têm interesses e conflitos
específicos e, portanto, merecem igual respeito e consideração quando está em jogo o reconhecimento da condição de sujeito de direitos.
488
História das Mulheres no Brasil Meridional
No mundo ocidental, observa-se que nem sempre os direitos
humanos em geral tiveram seu significado associado às construções históricas e sociais das diferentes identidades das mulheres
(CADORE, 2017), ou de outros grupos historicamente considerados como minorias. As definições de quais são os direitos humanos, de humanidade e de titularidade desses direitos foram formalmente resolvidas a partir da adoção da ideia de universalidade dos
direitos humanos, tal como expresso na Declaração Universal de
Direitos Humanos (DUDH, 1948). A noção de universalidade de
direitos humanos é histórica e localizada, desde uma perspectiva
ocidental, de supremacia branca, de ethos modernizante, decorrente dos consensos formulados entre aqueles que participaram dos
debates para a formulação do texto da DUDH.
A própria exclusão de outras configurações sociais e epistemológicas do processo de formulação de direitos já é uma negação
de direitos humanos (JELIN, 1994). A proeminência de alguns assuntos em detrimento de questões relacionadas às desigualdades
entre mulheres e homens, como exemplo a violência doméstica,
direitos reprodutivos, assédio sexual, racismo, entre outros, pode
ser compreendida como uma espécie de “cegueira normativa”, categoria usada por Nader (1999). Essa cegueira normativa não se
estabeleceu tão somente em relação às diferentes experiências das
mulheres; outros grupos sociais também estiveram ausentes das considerações sobre a definição de humanidade pelos participantes da
comissão encarregada da elaboração da DUDH. A comissão responsável pela elaboração do texto da DUDH tinha a tarefa de conciliar as propostas de Estados ocidentais capitalistas e Estados comunistas. Além disso, as mulheres que participavam da comissão
tinham um enfoque reformista sobre os direitos individuais e a participação política. Não havia um debate sobre as causas primárias
das desigualdades, assim como não havia representantes das populações indígenas, dos povos islâmicos ou dos países em desenvolvimento (NADER, 1999).
Os movimentos feministas passam, a partir da década de
1980, em contexto doméstico e internacional, passam a reivindicar
a especificidade das experiências de injustiça contra as mulheres,
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
como resposta à universalidade seletiva da DUDH. No Brasil, com
a adesão à Convenção para a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra as Mulheres, no âmbito das Nações Unidas
(CEDAW, 1979), os movimentos de mulheres e feminista passam a
pressionar o Estado na busca de soluções para o problema da violência contra a mulher, particularmente através da incidência política para alterações legislativas e de formulação de políticas públicas nos distintos níveis federativos. De acordo com Bonetti (2000),
é nesse quadro de lutas feministas que se pode situar a luta pelos
direitos humanos das mulheres:
Direitos Humanos das Mulheres é uma categoria política do
movimento feminista que apareceu pela primeira vez na Conferência de Direitos Humanos de Viena em 1993. Ela ancora-se
na crítica radical feminista, em âmbito mundial, ao caráter sexista dos direitos dos cidadãos (BONETTI, 2000, p. 44).
Entre as ativistas feministas forjou-se o consenso de que a
luta contra a violência significava a principal reivindicação por direitos das mulheres no Brasil na década de 1980 (BONETTI, 2001,
p. 144). Esse consenso ganha impulso quando o Estado brasileiro
ratifica a CEDAW em 1981. A partir desse marco normativo global, os Estados-partes passaram a sofrer uma pressão política doméstica e transnacional para que fossem promovidas as alterações
legislativas e de políticas públicas com vistas à necessária adequação aos postulados reformadores de igualdade e liberdade presentes na CEDAW.
Com a Declaração e o Programa de Ação de Viena (1993) os
direitos das mulheres e o repúdio às discriminações de raça, sexo,
idioma ou religião são reconhecidos pelos Estados membros das
Nações Unidas. O referido instrumento normativo internacional
aprova a resolução de que os direitos das mulheres e das meninas
são parte integrante e indivisível dos direitos humanos universais,
além de explicitar que a violência contra as mulheres constitui violação dos direitos humanos. Segundo a Declaração de Viena (1993):
“A participação plena e igual das mulheres na vida política, civil,
econômica, social e cultural, a nível nacional, regional e internacional, e a erradicação de todas as formas de discriminação com
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História das Mulheres no Brasil Meridional
base no sexo constituem objetivos prioritários da comunidade internacional”2.
É nessa ênfase da luta feminista que se enquadram as reivindicações pelo reconhecimento dos direitos humanos das mulheres.
O recurso aos direitos humanos é uma estratégia de luta que visa à
nomeação do problema das desigualdades nos espaços definidos
como privados e domésticos, assim como à realização de políticas
públicas de combate à violência doméstica contra as mulheres. O
objetivo dessa estratégia é afirmar a violência doméstica como uma
violação de direitos humanos das mulheres, retirando o caráter
doméstico desse tipo específico de conflito e chamando a atenção
para a responsabilidade dos Estados pela proteção igualitária e institucionalizada de mulheres e homens (BONETTI, 2001, p. 145).
A ONG Themis faz uso desde o seu surgimento das expressões
“direitos humanos das mulheres” e “direitos das mulheres” em seus
planos de ação, posições e manifestações públicas, reivindicando a
particularidade dos direitos das mulheres em contraposição ao universalismo recorrente (CADORE, 2017).
O ativismo feminista da ONG Themis vai ao encontro desse
movimento político global e local de construção de relações de gênero mais justas e situadas nos interesses e expectativas de mulheres de classes populares. O projeto de formação de PLPs tem como
ponto de partida o entendimento de que as mulheres em situação
de violência não se reconhecem como sujeitos de direitos, não conhecem seus direitos e, portanto, não recorrem às instituições de
segurança ou de justiça para defender sua integridade física e emocional. Nessa perspectiva, o pressuposto de que o direito mais básico é o direito a ter direitos (JELIN, 1994; CADORE, 2017) diz
respeito a um tipo de acesso à ordem jurídica, mas não somente no
seu aspecto formal. Significaria particularmente um engajamento
2
No original: “The human rights of women and of the girl-child are an inalienable, integral and indivisible part of universal human rights. The full and equal
participation of women in political, civil, economic, social and cultural life, at
the national, regional and international levels, and the erradication of all forms
of discrimination on grounds of sex are priority objectives of the international
community”.
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SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
organizado e coletivo das mulheres no campo político do exercício
da cidadania, que se torna possível em um regime democrático. O
conceito de cidadania refere-se a uma prática conflitiva que reflete
as lutas em torno de quem poderá dizer o que no processo de definir quais são os problemas comuns e de que forma serão abordados
(JELIN, 1994, p. 119). O conceito de cidadania, mobilizado na
atuação das PLPs e da Themis, contrasta com uma acepção meramente abstrata, na qual as hierarquias que organizam a vida privada e que restringem a participação das mulheres na esfera pública
são desconsideradas (BIROLI, 2019). A visão de uma cidadania
adjetivada, uma “cidadania ativa”, conectar-se-ia com as condições de emergência para as lutas no espaço público, demandando a
implementação de políticas públicas específicas junto ao Estado.
Tais políticas institucionalizadas deveriam atender os distintos interesses de justiça social e distributiva para as mulheres, em que as
hierarquizações de poder (raça, gênero, classe social, orientação
sexual, pertencimento religioso e territorial, entre outras) fragilizam sua participação na esfera pública, mas também no espaço
privado das liberdades e da igualdade, marcadamente constrangidos pela dominação patriarcal na sociedade brasileira.
A defesa dos direitos das mulheres, portanto, conjuga os dois
aspectos do léxico político do “direito a ter direitos”: a mediação
comunitária a um tipo de acesso à ordem jurídica, como também a
necessária auto-organização coletiva como estratégia política para
o exercício dos direitos de cidadania. Essa noção está presente na
autodefinição das PLPs sobre seu papel:
O projeto PLPs surgiu para combater a exploração, a discriminação e a desigualdade enfrentadas pelas mulheres, conscientizá-las sobre as leis que as beneficiam e, portanto, não só denunciar a situação de violência, mas encontrar caminhos para
a defesa de seus direitos.3
O trabalho das PLPs continua necessário e, acho, sempre será.
O projeto nasceu do desejo de que a mulher da periferia, que
não tem acesso à informação, receba da Promotora Legal Popular, de dentro das comunidades, o conhecimento que é mul3
Depoimento de Juciara Almeida Souza, publicado na revista Themis (p. 59, 2017).
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História das Mulheres no Brasil Meridional
tiplicado por meio de palestras, oficinas, rodas de conversa.
[...] neste trabalho que a gente não se cansa de fazer e de passar
para as outras pessoas, seja para uma única mulher que necessite de atendimento, seja para um grupo maior de pessoas ou
serviços que atendam diretamente ou que tenham que prevenir
casos de violência.4
O trabalho desempenhado pelas PLPs em suas comunidades de origem ou nos espaços da política comunitária, partidária
ou institucional de “reivindicar direitos” para si e para outras mulheres jovens e adultas em situação de violência é um trabalho que
exige que o Estado através de seus agentes e serviços e a sociedade
reconheçam essas reivindicações como direitos. A luta por reconhecimento deve ser compreendida como uma pressão política, sob
a qual novas condições podem emergir permanentemente para a
participação na arena dos debates públicos. É necessária a articulação política de um movimento social para que o sentimento de
injustiça dos sujeitos passe a ter relevância política nas disputas por
reconhecimento, segundo Honneth (2003, p. 224). O reconhecimento à pessoa e à sua dignidade, como apontado em outro trabalho (SIMIONI, 2016), é exibido principalmente nas singularidades
identitárias, em que se apresentam as diferenciações e hierarquizações sociais. O valor ocidental da igualdade é colocado em debate,
porque a universalidade dos direitos individuais se expressa no
âmbito de uma igualdade formal, estritamente legal (SIMIONI,
2016). De outra parte, Fraser (2007, p. 107) trata o reconhecimento
como uma questão de status social. O não reconhecimento não significaria a depreciação da identidade de uma pessoa ou de um grupo, mas sim sua subordinação social como privação da participação paritária na vida social. A igualdade, portanto, para Fraser,
seria a única forma de estabelecer justiça, sem entrar em avaliações
de valores, uma vez que não haveria nenhuma concepção de boa
vida universalmente compartilhada e nenhuma que possa ser estabelecida por uma autoridade (SIMIONI, 2016). O próprio regime
4
Depoimento de Carmen Lúcia Santos da Silva, publicado na revista Themis
(p. 41, 2017).
493
SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
democrático aperfeiçoa-se com o investimento em outros padrões
culturais fundados no reconhecimento das alteridades e na promoção de políticas de reconhecimento (identitário, para Honneth, e
de estatuto social, para Fraser) para as mulheres de classes populares, como no exemplo do trabalho desenvolvido pela ONG Themis
e pelas PLPs.
O percurso desenvolvido na formação de PLPs privilegia os
temas pelos quais é preciso “brigar” em negociações com órgãos
públicos a partir da “vantagem” de saber mencionar um artigo de
lei ou da Constituição (DIAS, 2017, p. 37). O trabalho das PLPs,
portanto, pressupõe que os direitos das mulheres, declarados formalmente pela ordem jurídica, sejam de amplo conhecimento das
mulheres:
Então, o papel das PLPs é atuar junto às instâncias dos serviços públicos [...]. Buscar solução concreta para os problemas
das mulheres. Porque enquanto não somos PLP não temos o
conhecimento para entrar dentro de uma Câmara Municipal,
Assembleia Legislativa, delegacia... ser PLP facilita a entrada
nesses órgãos. Antes de fazer o curso, só sendo mulheres profissionais ou donas de casa que vivem na luta pela sobrevivência, sua e de seus filhos, as mulheres não têm a curiosidade
nem a necessidade de estar junto.5
[...] a edição da lei [Maria da Penha] mudou nosso trabalho
junto às mulheres. A partir da lei elas já tinham um referencial,
um direito em tese adquirido. Agora, elas tinham que conhecer a lei como uma ferramenta, um instrumento. [...] quando
surgiu a lei, a gente passou a dizer para a sociedade que ela
tinha que ser respeitada.6
O conhecimento sobre os direitos humanos das mulheres produzido durante a formação de PLPs e a atuação dessas lideranças
comunitárias em diferentes espaços políticos evidenciam a historicidade dos próprios sujeitos dos direitos e das constantes disputas
sobre os significados desses direitos e as possibilidades de produção de normas e de práticas sociais (CADORE, 2017). Os conteú5
6
Depoimento de Juciara Almeida Souza, publicado na revista Themis (p. 61, 2017).
Depoimento de Mara Verlaine Oliveira do Canto, publicado na revista Themis
(p. 80, 2017).
494
História das Mulheres no Brasil Meridional
dos relativos aos direitos humanos das mulheres, portanto, transformaram-se historicamente devido, em grande medida, às lutas
das mulheres organizadas em distintos coletivos e organizações políticas, exemplificado até aqui pelo trabalho da ONG Themis e pelas PLPs em Porto Alegre. É no interior desses movimentos sociais
que ainda estão sendo forjadas as narrativas contra-hegemônicas e
antissistêmicas sobre a noção de uma cidadania marcada pela necessária transformação das relações assimétricas e hierarquizadas
de poder entre mulheres e homens, tanto no espaço dos laços comunais como das relações institucionalizadas. Essas transformações, portanto, não poderiam ser deduzidas apenas de processos
formais de mudanças legislativas, da adesão aos tratados ou da participação em conferências internacionais de direitos humanos. Ao
contrário, podem ser compreendidas como um processo de tradução das diferentes experiências das mulheres em relação às condições e possibilidades de participação na vida pública.
Na próxima seção, apresento a ideia de tradução dos direitos humanos das mulheres a partir da questão da violência doméstica como signo para a abertura de outras compreensões sobre acesso
aos direitos quando esses são negados.
Os direitos humanos das mulheres e sua tradução
político-cultural no contexto da violência doméstica
O perfil das mulheres que passam pela formação de PLPs é
de mulheres com algum nível de capital social na política comunitária. De outra parte, uma marca presente nas experiências de vida
delas são os relacionamentos abusivos e violentos com seus parceiros íntimos. As distintas formas pelas quais a violência se manifesta em nossa sociedade, portanto, fazem parte do cotidiano das
mulheres em geral em Porto Alegre, assim como em outras capitais
brasileiras.
Violência é um conceito amplo que abarca distintas práticas
e esferas da vida pública e privada e que afeta o modo pelo qual as
pessoas experimentam a negação de seus direitos. No marco da
sociologia da conflitualidade, a violência não se restringe aos processos de exclusão social e econômica. Está ancorada também na
495
SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
ruptura do contrato social e dos laços sociais. Essa ruptura gera
fenômenos de desfiliação e de quebra nas relações de alteridade,
dilacerando o vínculo entre o eu e o outro. Desde essa perspectiva
teórica, uma violência é antecedida ou justificada, prévia ou posteriormente, por uma violência simbólica, exercida mediante uma
subjetivação pelos agentes sociais envolvidos na relação (SILVA,
2010). No contexto das mulheres de camadas populares, existem
diferenças significativas nos modos de experimentar os conflitos
da cotidianidade, dependendo da posição que se ocupa ao se interconectarem situações específicas de hierarquias, subalternizações e
desigualdades:
Para entendermos como as PLPs recebem o discurso feminista
sobre o tema, temos que primeiro levar em conta a vivência
rotineira com a violência no contexto dos bairros populares.
No contexto social das organizadoras do curso, a violência também está presente no cotidiano, porém de outra forma. O signo da violência dentro das camadas médias se traduz nas infindáveis grades e cadeados de proteção contra os possíveis
invasores. [...] Na vila popular, os moradores têm de se proteger tanto do assaltante que tem um rosto familiar – o “filho da
fulana”, de quem se acompanhou o crescimento brincando
pelas ruas da vila – quanto da própria polícia (BONETTI, 2001,
p. 163).
As PLPs percebem que as mulheres em situação de violência doméstica não se sentem motivadas para denunciar, pois acreditam “que a justiça não vai funcionar” porque essa vale apenas
“para os ricos”, de acordo com Dias (2015). Entretanto, além da
diferença de classe social, a discriminação por ser mulher é igualmente registrada:
[...] em conversa mais informal, as entrevistadas chegaram à
conclusão de que, se uma mulher, mesmo “bem arrumada”,
chegar em uma delegacia para denunciar o marido ou companheiro agressor, ainda assim poderá ser discriminada no atendimento pela simples condição de serem mulheres em um espaço masculinizado (que é o caso da maioria das delegacias de
polícias) (DIAS, 2015, p. 321).
A ONG Themis preocupa-se com o impacto dos cursos de
formação nas vidas dessas mulheres no sentido de avaliar o quanto
496
História das Mulheres no Brasil Meridional
os cursos de formação de PLPs podem ajudar as participantes e
outras mulheres próximas a elas a romper ciclos de violência doméstica. A ideia de propor igualdade de direitos nas relações conjugal e familiar para mulheres de classes populares impactou em
muitos casamentos das participantes da formação da Themis: alguns foram desestabilizados, outros foram rompidos porque eram
relacionamentos abusivos para algumas mulheres (SOARES et al.,
2020; DIAS, 2017). Entretanto, a opção pelo rompimento não é a
regra. Mulheres que participavam da formação de PLPs e que vivenciavam relações de violência doméstica duvidavam de sua capacidade de conciliar um discurso e uma prática de igualdade a
uma experiência cotidiana no âmbito de suas relações afetivas, de
privações, de constrangimentos e de desvalorização. A convivência
familiar, muitas vezes, tornava-se conflituosa, justamente porque a
aspirante à PLP se via na encruzilhada entre dois universos simbólicos antagônicos: de um lado, a manutenção de seu papel de “guardiã” do lar e da coesão familiar e, de outro, a promessa de construção de uma experiência de emancipação e de liberdade individual.
A PLP Joana7 estabeleceu-se em uma região periférica de
Porto Alegre após se separar do marido em fins dos anos 1970. Ela
e suas duas filhas construíram sua casa com as próprias mãos a
partir de restos de madeira desprezados em terrenos baldios daquela localidade. Ela ainda atua em sua comunidade e conta como se
tornar PLP transformou sua vida:
Depois de fazer o curso me senti muito mais segura e completa
para a minha trajetória de vida. Tive mais certeza do que queria. Pude expressar melhor meus pensamentos. Cresci no interior, minha família me permitiu estudar, mas tinha regras machistas dentro da minha formação familiar, e uma delas é a
submissão ao marido. Depois que fiz o curso, me libertei disso.
Transformei minha relação. Consegui fazer a minha defesa do
meu direito como mulher dentro da minha família. [...] Saber
reivindicar direitos não é uma questão acadêmica, é conhecimento direcionado (DIAS, 2017, p. 35-6).
7
Nome fictício.
497
SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
O impacto do curso de formação da ONG Themis nas relações de conjugalidade também é destacado pela PLP Simone8:
Todos os maridos tinham medo do curso. Alguns mostravam
apoio fora de casa, mas dentro tentavam manter o domínio
sobre a mulher. [...] Muitas, para não perder o casamento, acabaram abandonando o projeto. [...] Poucas das mulheres que
terminaram o curso continuaram com os maridos (DIAS, 2017,
p. 32-33).
Mesmo após a formação, algumas mulheres não encontram
condições suficientes para o rompimento do ciclo de violência doméstica. As dificuldades relacionadas às possibilidades de superação desse tipo específico de conflitualidade nas relações íntimas
chamaram a atenção de Dias (2017):
[...] Berta9 não conseguiu atuar como PLP. O motivo da desistência do “posto” se deu pelo fato de que essa mulher ainda se
encontra em situação de violência com seu marido. Ela sentia
vergonha perante a comunidade, pois não se considerava digna
de orientar outras mulheres sobre direitos se, na sua vida pessoal, não conseguiu colocar em prática os conhecimentos que adquiriu no curso de formação de PLPs (DIAS, 2017, p. 30).
Se a violência está muito presente nas experiências de vida
das PLPs, é interessante observar de que modo essa marca influencia o trabalho de atendimento de outras mulheres de classes populares urbanas. É o caso para pensar as possibilidades de tradução
dos direitos humanos das mulheres operada no cotidiano do trabalho das PLPs. Em outras palavras, qual seria a compreensão das
PLPs sobre as possibilidades de decisão das mulheres que buscam
pelo atendimento no SIM para as situações de violência doméstica? As PLPs, de acordo com Bonetti (2001), não pretendem transformar as mulheres atendidas em feministas:
Não estão ali para se opor aos homens como um bloco homogêneo de opressores. Seu objetivo, segunda apontam, é o de
ajudar, passar informações sobre os direitos das mulheres. Por
isso, sua atuação não enfatiza a possibilidade de separação con8
9
Nome fictício.
Nome fictício.
498
História das Mulheres no Brasil Meridional
jugal, posto que compartilham da mesma lógica relacional de
gênero das mulheres atendidas (BONETTI, 2001, p. 176).
O conceito de tradução – em sua acepção ampla, calcada em
um paradigma ontológico, não apenas linguístico – tem sido veiculado por acadêmicas feministas latinas e latino-americanas, situadas no norte e sul das Américas (COSTA e ALVAREZ, 2009). A
partir de suas experiências como “viajantes” entre diferentes contextos de produção e de recepção de conhecimento, a ideia de tradução decorre de entrecruzamentos teóricos, políticos e pessoais.
Esse transitar e permanecer em diferentes mundos é pesadamente
patrulhado e frequentemente obstruído por diversos tipos de vigilâncias (patriarcais, disciplinares, institucionais, capitalistas/neoliberais, geopolíticos, sexuais, entre outros). A tradução, portanto, é
uma estratégia de sobrevivência, um modo de vida, em que a circulação de discursos e práticas encontra pontos de controle de migração, assim como promove um ambiente propício para o fortalecimento de alianças feministas (ALVAREZ, 2009).
[...] a análise de viagens e traduções de teorias, práticas e discursos feministas nas Américas pode oferecer perspectivas revigoradas sobre questões tipicamente recortadas em termos do
transnacionalismo e novas formas de pensar sobre conexões
translocais entre feminismo do norte global e (dentro e através
do) sul global. Nosso projeto visa promover uma episteme feminista e antirracista renovada para reimaginar e reteorizar os
Estudos da América Latina travestidos para as Américas globalizadas e transmigrantes do século XXI (ALVAREZ, 2009,
p. 750).
Concordamos com Alvarez (2014, p. 48) que, “em um momento histórico em que novos campos discursivos de ação, contagiados por e intersectados com feminismos cada vez mais heterogêneos entre e em si mesmos, a política de tradução feminista é
uma necessidade urgente e imprescindível”. Uma das estratégias
de tradução político-cultural dos direitos humanos das mulheres
acionada pelas PLPs dá-se no contexto das tensões e diferenças
entre as ativistas da Themis e as PLPs, especialmente no que diz
respeito aos tipos de encaminhamentos para o tema da violência
doméstica. As participantes dos cursos realizados pela Themis em
499
SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
Porto Alegre – mulheres das camadas populares, com baixa escolaridade – e as ativistas feministas da ONG não compartilham as
mesmas experiências de vida. O grupo de mulheres que se tornaram PLPs compartilha valores informados pela preeminência da
família, do parentesco, das redes de socialidades e do código relacional de reciprocidade (BONETTI, 2001, p. 138).
A separação da sociedade conjugal como forma de superação e rompimento das relações violentas não é, em alguns casos, o
único desfecho possível. Essa percepção entra por vezes em conflito com a lógica de um certo feminismo hegemônico, de matriz liberal-burguesa. A lógica relacional e o universo dos valores das
PLPs atuantes no SIM possibilitam uma forte identificação com os
códigos culturais das mulheres atendidas – mulheres da comunidade que não necessariamente aderem a uma ideologia da libertação
que o feminismo hegemônico enfatiza como forma de conscientização das opressões de gênero.
As PLPs procuram resgatar a história de vida da mulher agredida, atribuindo-lhe outro significado. De acordo com Bonetti
(2001), aqui se revela uma atitude de compreensão e respeito pelas
escolhas feitas pelas mulheres atendidas pelas PLPs em não procurar ou não dar seguimento a um processo judicial de separação
conjugal:
Na avaliação das PLPs se justifica a não separação do homem
agressor em nome de um valor cultural maior: a coesão familiar. Associado a isto está a valorização de um código cultural
pautado pela lógica relacional de gênero, no qual a mulher desempenha o papel de “guardiã” do lar e “esteio” da família
(BONETTI, 2001, p. 179).
Ao respeitar as escolhas possíveis das mulheres em situação
de violência doméstica, ao atuar na defesa, valorização e respeito das
mulheres – como definem sua atuação –, as PLPs produzem uma
forma de tradução dos direitos humanos das mulheres. Esse respeito às circunstâncias específicas decorrentes dos deslocamentos entre “o centro e a perifieria” de Porto Alegre, entre diferentes conhecimentos e visões de mundo situados, reflete-se na confiança e na
identificação que as mulheres atendidas no SIM expressam no acolhimento das PLPs:
500
História das Mulheres no Brasil Meridional
Sempre tive essa relação muito próxima com a minha comunidade, e muitas vezes a Themis proporcionou servir de ponte,
porque as mulheres falam: vou falar isso pra ti porque tu é minha amiga e minha vizinha, mas eu não quero falar isso para o
delegado, eu não quero falar isso em audiência. Isso aconteceu
muito comigo. Meu trabalho no SIM, o Serviço de Informação à Mulher, é muito transparente: pelo fato de eu estar na
periferia, comprar o leite na mesma padaria que aquela mãe,
do meu filho estudar na mesma escola que o filho dela, de termos a mesma realidade, ela consegue se abrir comigo, porque
ela se identifica comigo10.
Em sociedades nas quais historicamente as mulheres, especialmente aquelas mais marginalizadas porque marcadas pela raça
e classe social, experimentam uma baixa efetividade de direitos universalizados, as PLPs e a ONG Themis promovem um projeto de
justiça social com foco nas experiências das mulheres da periferia
de Porto Alegre. Nesse projeto, destacam-se as traduções possíveis
do direito mais fundamental, que é o direito à vida. Esse trabalho
de tradução permite às PLPs, às ativistas da Themis e às mulheres
atendidas no SIM um processo de reposicionamento e de transposição de arbitrárias fronteiras simbólicas e culturais colocadas como
obstáculos ao acolhimento no momento da dor, às alianças entre
mulheres e à liberdade.
Sobre como “nós estamos nos fazendo entender”11
A compreensão da ideia de direitos humanos das mulheres
foi explorada neste trabalho, tendo como cenário as lutas sociais
por direitos de um grupo de mulheres de classes populares em Porto Alegre/RS. Os discursos e práticas das Promotoras Legais Populares (PLPs) no período da redemocratização brasileira, de 1993
até 2020, foram os artefatos políticos analisados na busca dessa
compreensão.
O objetivo deste trabalho foi explorar teoricamente as condições de emergência para as reivindicações por direitos humanos
10
11
Depoimento de Rosangela Santos, publicado na revista Themis (p. 49, 2018).
Depoimento de Jade Alves, publicado na revista Themis (p. 66, 2018).
501
SIMIONI, F. • As lutas de mulheres de classes populares por direitos em
Porto Alegre/RS: o caso das Promotoras Legais Populares (1993-2020)
das mulheres desde a conjuntura dos anos 1990 em Porto Alegre e
no Brasil. Nessa conjuntura histórico-política específica foram abordados dois eixos analíticos: a) a precariedade da universalização
dos direitos humanos em sociedades ocidentais e seu impacto na
produção de uma ideia de cidadania abstrata e restrita ao sujeito
universal de direitos; b) os possíveis processos de tradução dos direitos humanos das mulheres a partir da experiência da violência
doméstica compartilhada entre diferentes mulheres. Partindo da articulação entre o cenário histórico-político e os eixos de análise indicados, o propósito deste trabalho foi pensar a produção de um discurso e de uma prática específica sobre os direitos humanos das mulheres a partir da experiência das PLPs em Porto Alegre.
A defesa dos direitos das mulheres realizada pela ONG Themis e as PLPs conjuga dois aspectos do léxico político do “direito a
ter direitos”: a mediação comunitária para o acesso à ordem jurídica como também a auto-organização coletiva como estratégia política para o exercício dos direitos de cidadania. Não se trata, nesse
contexto, de uma cidadania abstrata. Ao contrário, é de uma cidadania adjetivada, situada e corporificada nas experiências (de existência e resistência) que as mulheres de classes populares experimentam em uma cotidianidade de conflitos e de violências.
A ideia de tradução constituiu-se em uma ferramenta interessante para acolher a diversidade de conhecimentos locais e situados, as várias posicionalidades que modelam as vidas das mulheres periféricas de Porto Alegre. Muitas são as margens simbólicas e estruturais a serem transpostas pelas PLPs e pelas mulheres
de classes populares atendidas no SIM, a fim de garantir o reconhecimento de seus direitos e de seus interesses mais básicos: uma
vida digna e sem violência. Um passo importante no processo de
reconhecimento e da constituição de sujeitos no interior das estruturas de poder e das práticas institucionais seria a apropriação
do conhecimento da condição de ser sujeito de direitos. Ao se
autoidentificar como um sujeito de liberdades e de direitos, a percepção das diferenças encoraja a afirmação das singularidades, ao
mesmo tempo em que possibilita a renúncia de promessas de uma
mera igualdade formal. Essa travessia entre mundos/fronteiras/
502
História das Mulheres no Brasil Meridional
margens diferentes não se faz de uma vez só, não se faz uma única
vez e não se faz sozinha. Ao fazer esses cruzamentos, não se tem a
exata dimensão dos custos emocionais, materiais ou físicos. No
entanto, a experiência da formação de PLPs seguramente transforma as subjetividades e as visões de mundo, além de possibilitar
muitas companhias ao longo das várias jornadas.
As pesquisas anteriores que analisaram a experiência das
PLPs e da ONG Themis possibilitaram diferentes abordagens a
partir de distintas disciplinas acadêmicas, como a História, a Antropologia e o Direito (CADORE, 2017; BONETTI, 2000, 2003;
DIAS, 2015; 2017), sem as quais não seria possível o presente trabalho. A riqueza das contribuições dessas disciplinas permitiu uma
melhor compreensão sobre os constrangimentos estruturais e as
coerções ideológicas, acionadas na articulação entrecruzada entre
os diferentes sistemas de hierarquização (de gênero, de raça, de classe
social e outros), na medida em que não podem ser tratados como
eixos isolados de opressão. A análise das possibilidades de tradução dos direitos humanos das mulheres a partir da questão da violência doméstica possibilitou uma abertura para a compreensão dos
significados e dos usos contingenciais e situados para os direitos
humanos das mulheres.
A narrativa apresentada sobre as lutas de mulheres de classes populares em Porto Alegre/RS permite celebrar as alianças e os
laços de reciprocidade que se estabeleceram entre diferentes mulheres. Mulheres que apostaram no empoderamento legal e na educação popular para o reconhecimento de seus direitos e de suas
experiências de vida.
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506
História das Mulheres no Brasil Meridional
Mulheres do sul, imprensa e
a tentativa de implantação do
divórcio absoluto no Brasil
(1889-1916)
Adriana Kivanski de Senna
A imprensa é uma das fontes de que se serve o historiador. No
entanto, não foi para os pesquisadores e historiadores do presente
que os jornais do passado escreveram; não somos nós os seus “leitores-modelo”, como afirma Elmir (1995, p. 22). Somos nós que, entretanto, trazemos à vida as manifestações que esses jornais veicularam. São os pesquisadores que dão visibilidade a esses periódicos,
que tentam conhecer a realidade de seu tempo e que tratam de contextualizá-los, de tal modo que suas falas se tornem pertinentes e a
partir delas se possa conhecer o pensamento de uma época, o seu
cotidiano.
As peculiaridades do jornal como fonte histórica estão relacionadas à periodicidade, constituindo-se em verdadeiros arquivos
do cotidiano, e à disposição espacial da informação, que nos permite inserir a informação dentro de um contexto mais amplo. O
jornal deve ser abordado como uma das representações possíveis
do real e não como a possibilidade excludente e exclusiva de um
dado que se queira investigar, pois as informações ou mensagens
enunciadas por um jornal inserem-se ou tentam inserir-se no imaginário social presente em uma determinada época.
A imprensa de determinado lugar ou região “é reflexo e segmento da própria sociedade a que serve”, afirma Dines. Para esse
mesmo autor, os veículos de comunicação têm um compromisso
com seu público leitor que não lhes permite desviar ou mudar o
foco de suas notícias sem pensar nesse mesmo público sob pena de
507
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
perdê-lo, afirmando inclusive que é o “leitor que escolhe o estilo, a
orientação e a linha dos respectivos jornais” (DINES, 1986, p. 508).
Entre a multiplicidade de escolhas, em que o leitor tem a facilidade
de escolher o veículo que mais se adapta à sua forma de ser e pensar; se algo muda, esse mesmo leitor tende a afastar-se do jornal
que escolheu. Esse leitor representa um universo de outros leitores
que compartilham uma mesma visão de mundo e as mesmas ideias,
por isso é significativo o que possa acontecer com as mudanças editoriais que não estejam relacionadas com a forma de ser e pensar de
seu universo de leitores.
Como Dines, compactuo da ideia de que foi esse referencial
e interdependência a seu público leitor que motivou Echo do Sul,
Diário do Rio Grande e Artista a escrever sobre o tema divórcio da
forma que fizeram.
A essência do jornalismo é a informação da atualidade, ou
seja, de fatos, situações e ideias que estão ocorrendo, desenrolando-se ou atuando sobre determinada comunidade no momento
preciso de sua manifestação. O objeto do jornalismo é a atualidade
de interesse abrangente, que se projeta dos limites espaciais em que
se origina para atingir vastos círculos de pessoas e instituições, bem
como para ser atingido pelo retorno dessas veiculações e suas assimilações pelo público leitor numa relação de interdependência.
Acerca de suas possibilidades, os próprios jornais definiam-se como provedores de informações de ideias, situações e
fatos atuais, interpretados à luz do interesse coletivo e transmitidos
periodicamente à sociedade, cujo objetivo era difundir conhecimentos e orientar a opinião pública, característica que se acentua na
virada do século XIX para o século XX, destacando o “declínio da
doutrinação em prol da informação” (DE LUCA, 2005, p. 138).
De Luca chama a atenção para as motivações que nortearam o
processo de escolha daquilo que transformaria em notícia, entretanto
[...] ter sido publicado implica atentar para o destaque conferido ao acontecimento, assim como para o local em que se deu
a publicação; [...] os discursos adquirem significados de muitas formas, inclusive pelos procedimentos tipográficos e de ilustração que os cercam. A ênfase em certos temas, a linguagem
508
História das Mulheres no Brasil Meridional
e a natureza do conteúdo tampouco se dissociam do público
que o jornal ou revista pretende atingir (DE LUCA, 2005, p.
140, grifo da autora).
Esses três jornais são os que melhor sinalizam a imprensa
diária e de grande periodicidade na cidade de Rio Grande nos anos
finais do século XIX e primórdios do século XX. Além de circularem na cidade de Rio Grande, eram também lidos em cidades do
interior como Piratini, Bagé, Pelotas, Jaguarão, Alegrete, Uruguaiana, demarcando, geograficamente, a metade sul do Rio Grande
do Sul. Politicamente, cada um dos periódicos tinha a sua identidade partidária, apesar de se declararem, na virada de século, como
órgãos apartidários. No entanto, no que diz respeito às questões
sociais, esses periódicos caracterizaram-se por um certo comedimento nas causas que defendiam. Pode-se perceber que, de certa
forma, o Echo do Sul manteve a sua característica de ser um veículo
fomentador da discussão, do debate; o Diário do Rio Grande reforçou sua característica mais conservadora, e o Artista foi aquele em
que se percebeu a maior tendência liberal.
Modernamente, na língua portuguesa, podemos conceituar
divórcio como a dissolução judicial do matrimônio, separação; nos
dicionários do século XIX, são empregadas considerações semelhantes, justificando o divórcio como “separação de casados em
virtude de sentença; ruptura entre pessoas”1.
O entendimento de Mello é muito semelhante, pois percebe
o divórcio como “dissolução da união conjugal durante a vida dos
esposos”, não especificando, contudo, se seria possível um novo
casamento para os cônjuges separados (MELLO, 1906, p. 243).
Esses periódicos não eram tão claros nos aspectos sociais de
um modo geral ou particularmente quanto ao divórcio? Procurei
outros temas e percebi que, ao externar suas considerações sobre a
abolição da escravidão, por exemplo, os jornais identificavam-se
claramente como favoráveis a tal medida e justificavam sua postura; sobre o aumento da violência, outro exemplo, os jornais emitiam ou identificavam causas muito próximas e especificamente
1
Essa concepção aparece em FONSECA, 1848.
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SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
quanto à violência praticada contra as mulheres; os três periódicos
manifestaram-se praticamente da mesma forma, condenando tal
atitude.
Ao falar de divórcio, os jornais precisariam falar do casamento, da família e percorrer sua intimidade para desvendar as situações a que tal recurso, o da dissolução matrimonial, se aplicaria; precisariam revelar intimidades, expor situações que se queria
relegar ao esquecimento, evidenciar escândalos, tornar público o
que se queria inteiramente privado.
A instituição do casamento civil em 24 de janeiro de 1890,
que retirou da Igreja o controle sobre a prática das celebrações matrimoniais, não trouxe consigo a prerrogativa da dissolução desse
contrato civil, que na época se criava, embora o entendimento de
muitos fosse que, tido como um contrato civil, podia o casamento
ser desfeito. Pouco tempo após a instituição do casamento civil,
tiveram início as propostas ou modalidades como se poderia pôr
fim ao matrimônio.
O próprio Código Civil Brasileiro de 1916 (Lei n. 3.071, de
1º de janeiro de 1916, que esteve em vigor até bem pouco tempo)
afirmava em seu artigo 267 que o casamento só podia ser desfeito
pela morte de um dos cônjuges ou por sentença de anulação do
casamento, não sendo elencada nenhuma outra possibilidade. Isso
implicava o fato de que, se os cônjuges optassem pela simples separação de corpos (divortium quoad thorum et mensam), não teriam
dissolvido o vínculo conjugal, o que os impediria de contrair novas
núpcias. Essa forma de separação, que não cortava definitivamente
os elos entre um casal litigioso, parecia ser o modelo questionado
por aqueles que propuseram, em diversos momentos, a instituição
do divórcio absoluto, que abria a possibilidade para um novo casamento.2
Essa foi a grande discussão travada na imprensa entre 1890
e 1916 sobre o polêmico assunto do divórcio.
2
Acerca dessas acepções sobre divórcio ver BEVILAQUA, 1938; MELLO, 1906;
DINIZ, 1915.
510
História das Mulheres no Brasil Meridional
Até o momento de ser lei, o decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890, toda a matéria de casamento esteve sempre regulada
pelo direito canônico. A doutrina girava em torno do princípio,
trazido pelas tradições portuguesas, do Concílio de Trento e
codificada nas Constituições do Arcebispado da Bahía, datadas
de 1765.
O matrimônio era indissolúvel; não se admitia, de modo
algum, o divórcio. Como sacramento da Igreja, o matrimônio tinha o caráter de perpetuidade, mantendo-se, no entanto, as duas
formas de separação aceitas pelo direito canônico. Uma era a separação temporária, decretada por um juiz competente. Nessa forma, o marido continuava na posse dos bens comuns do casal com a
obrigação de garantir o sustento da mulher e da prole. No caso de
separação perpétua, mais do que a simples separação de corpos
havia a separação dos bens do casal, fazendo com que cada um
administrasse seus próprios bens. E era apenas nisso que consistiam essas modalidades de separação, que não permitiam novo
recasamento.
O primeiro movimento sério contra a exclusividade do casamento religioso e que chegou a ponto de propor a dissolução completa do vínculo matrimonial foi o desenvolvido em torno do projeto do governo de 1858, proposto por Diogo de Vasconcellos; tramitou pelo Parlamento até 1860 e foi significativamente alterado
na Câmara dos Deputados. Esse projeto, apresentado como “proposta do governo”, não alterava a legislação vigente, mantendo a
indissolubilidade do vínculo matrimonial e adotando apenas a separação quoad thorum et mensam.
Como um sinal de adaptação aos novos contingentes populacionais que acorriam ao Brasil, resultado da política de captação
de recursos humanos estrangeiros a que o país se propusera, oriundos de diferentes pontos do continente europeu e professando as
mais distintas crenças, proveio a lei de 11 de setembro de 1861, que
reconhecia o casamento de pessoas que não fossem católicas. A
sobredita lei definia a indissolubilidade matrimonial como um fato
unicamente religioso e não de natureza social, criando a figura do
casamento acatólico.
511
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
O decreto de 17 de abril de 1863, aludindo e complementando a lei de 1861, adotou três novas formas de enlace: o casamento
católico, o casamento misto e o casamento acatólico. O primeiro
realizava-se dentro das normas do Concílio de Trento; o casamento misto, de um católico com um cristão dissidente, era regido também pelos preceitos tridentinos, e o casamento dos acatólicos não
diferia muito, devendo, inclusive, assemelhar-se o seu registro ao
de católicos.
De qualquer forma, a indissolubilidade do vínculo matrimonial ficava preservada. Adotava-se apenas a separação de corpos, e
serviam de causas justamente aquelas determinadas pelo direito
canônico.
Ainda durante o Império, houve outras tentativas de instituir a possibilidade de quebra do vínculo matrimonial e ocorreram
nos anos de 1867, 1875 e 1884. No entanto, um pensamento parecia predominar no cenário nacional: o casamento era indissolúvel,
e o divórcio aterrorizava o povo. Todas as tendências eram para
não se praticar mais do que a simples separação de corpos (quoad
thorum et mensam).
Logo depois de proclamada a República e dias após decretada a separação do Estado com a Igreja, instituiu-se no direito brasileiro o casamento civil pelo decreto n. 181, de 24 de janeiro de 1890,
do qual se tentou que fizesse parte o divórcio absoluto, proposto mesmo em uma das seções do referido decreto e regulamento, originalmente pelos artigos 80 até o 92. Isso para o regime do casamento
civil; quanto ao aspecto religioso, ainda hoje, como em 1890, é afirmada a indissolubilidade do matrimônio, ato sacramental.
Logo se estabeleceu um certo embate: o Estado deveria
reconhecer o casamento religioso? Validá-lo como um ato civil?
Uma vez que se separara da Igreja, poderia continuar aceitando, ainda que de forma indireta, que essa continuasse regulando
os casamentos? A Igreja fez forte oposição ao casamento civil e
protestou veementemente contra transformação do ato matrimonial divino em um mero contrato civil. Nesses primeiros tempos após a obrigatoriedade do casamento civil, em que as pessoas ficavam entre o poder do Estado e o da Igreja, na cidade de
512
História das Mulheres no Brasil Meridional
Rio Grande, por exemplo, muitos casamentos continuaram a
ocorrer apenas no religioso, como um reflexo do peso da tradição católica na celebração dos casamentos.3
Tornou-se necessário refrear a onda de uniões que poderiam
estar ocorrendo de forma incompleta e ilegal perante o Estado; foi
estabelecido então o Decreto n. 521, de 26 de junho de 1890, que
desapareceu com a Constituição de 1891, proibindo que as cerimônias religiosas do matrimônio fossem realizadas antes de celebrado
o casamento civil, prevendo inclusive sanção penal, processo e julgamento aplicáveis aos infratores.
Ainda que Estado e Igreja discordassem sobre o caráter do
casamento, um ponto parece ter sido comum na aplicação da lei de
1890: venceu a indissolubilidade do vínculo matrimonial, ainda
que o casamento civil fosse cotejado apenas como um contrato.
Parece-nos que ao governo provisório, com tantas e diversas questões a resolver, não seria oportuno polemizar ainda mais sobre os
matrimônios; seria prudente esperar, apaziguar os ânimos e posteriormente pensar e cogitar o divórcio absoluto.
Muitas outras tentativas de implantação de uma lei divorcista apareceram com o regime republicano. O projeto Érico Coelho,
apresentado ao poder legislativo em 1893, sofreu rejeição por 78
contra 35 votos.
A Comissão de Legislação e Justiça do Senado Federal apresentou um parecer favorável ao divórcio vincular, mas a Câmara
dos Deputados manifestou-se contrariamente. Um ano depois, Érico
Coelho formulou novo projeto divorcista, mas esse não chegou ao
plenário.
Em 1900, o jurista e senador Martinho Garcez propôs no
Senado uma lei de divórcio e que, depois de gerar muita discussão,
foi rejeitada. Em 1910, foi a vez de Alcindo Guanabara fazer sua
proposição sobre o tema, mas também não logrou êxito.
3
Não se descarta, contudo, a possibilidade de terem agido de má fé aqueles que,
sabendo da obrigatoriedade do casamento civil, optaram apenas pelo matrimônio religioso, podendo, assim, quando achassem conveniente, desfazer um enlace que não era reconhecido civilmente e que portanto não possuía validação legal. Sobre essa questão ver SENNA, 2001.
513
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
No Congresso Jurídico, ocorrido em 1908, debateu-se o parecer de Virgílio de Sá Pereira a respeito do tema, o que gerou grande repercussão na sociedade brasileira e, finalmente, em 1912, nova
tentativa, novo projeto, proposto por Floriano de Brito e novamente rejeitado.4
Como sabemos, o divórcio absoluto só seria introduzido no
Brasil em 1977 depois de amplos debates e de já ter percorrido, ao
longo do tempo, uma trajetória persistente de discussão sobre
sua aplicabilidade. Como o próprio casamento civil, consequência de muitas evoluções no reconhecimento e validação de distintas uniões, assim também a lei do divórcio trilhou um longo caminho até que pudesse ser incluída na legislação brasileira. O Brasil
foi um dos países em que mais tardiamente foi possível instituir-se
o divórcio, tido por muitos como o melhor remédio para as feridas
familiares e por outros como o grande câncer da sociedade. Remédio ou doença, cedo ou tarde, o pensamento nascido no século
XIX finalmente triunfou.
O casamento, entendido como a união legal de um homem
e uma mulher, foi amplamente comentado no Echo do Sul, no Diário do Rio Grande e no Artista com a finalidade de expressar as distintas formas de conceber os compromissos advindos do matrimônio, bem como argumento fundamental e antecessor ao entendimento de divórcio, uma vez que a existência desse último só seria
possível em decorrência de uma união legalmente constituída.
Através de cinco editoriais, três resenhas, cinco cartas, uma
entrevista, uma resposta à carta e treze comentários5, tanto de caráter informativo como opinativo, os jornais referidos manifestaramse sobre o casamento, atribuindo a esse o caráter de mero contrato
social ou destacando-o como ato sacramental e portanto divino.
Conforme o pronunciamento emitido, favorável ou não ao divórcio, uma dessas possibilidades foi desenvolvida para que, a partir
4
Acerca da tentativa de criação de uma legislação sobre divórcio ver Annaes da
Câmara; DINIZ, 1915; SILVA, 1964.
5
Resultado da utilização da análise de conteúdo aplicada nos textos selecionados
entre os jornais trabalhados.
514
História das Mulheres no Brasil Meridional
do casamento, se pudesse pensar na dissolução do mesmo. Quanto
ao caráter informativo da notícia emitida, os jornais optaram pela
mera reprodução de aspectos e aparatos legais sobre a condição
civil do enlace.
A imprensa rio-grandina realmente promoveu uma grande discussão sobre o tema do divórcio em seus mais diversos
periódicos. Postura da redação dos jornais, opiniões dos leitores
e/ou assinantes, não só os citadinos, mas também aqueles de
outras localidades onde os jornais Echo do Sul, Artista e Diário do
Rio Grande circulavam, acirraram os ânimos sobre o assunto,
gerando, inclusive, manifestações em atos públicos, que objetivavam um posicionamento da região sobre a adoção do divórcio absoluto no Brasil. Para todas as ocasiões em que o tema foi
proposto como projeto de lei, declarações foram produzidas para
combater ou apoiar a indicação.
O contexto político, os avanços econômicos da região e
as questões de interesse social expressas na imprensa rio-grandina de alguma forma concorriam para a formação ou afirmação
de opiniões entre a comunidade local, reforçando modelos que
eram amplamente difundidos em toda a sociedade brasileira.
Ao longo do século XIX e meados do século XX, a imprensa escrita teve um papel significativo na formação dos hábitos, dos gostos, das atitudes, dos desejos e, enfim, da opinião
pública, tornando-se um “instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social”, promovendo análises em
que a imprensa pode ser um “agente da história e captar o movimento vivo das ideias e personagens que circulam pelas páginas
dos jornais” (CAPELATO, 1988, p. 21). Mas, também um refletor importante das formas de pensamento e expressão de uma
dada comunidade, “os jornais expressam a opinião pública”
(CAPELATO, 1988, p. 18), destacando os aspectos que esta mesma comunidade de leitores deseja ver evidenciado nos periódicos
de sua escolha.
A tarefa da imprensa em grande parte do século XIX era
“interpor-se nos debates e dar publicidade às propostas, ou seja,
divulgá-las e torná-las conhecidas” (DE LUCA, 2005, p. 133-4),
515
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
num processo contínuo que garantisse o fluxo da informação, opinando ou não sobre ela, mas com certeza elencando a notícia que
se tornaria pública.
Ainda no século XIX, ao lado do jornalismo político-partidário, dá-se o surgimento do jornalismo noticioso na província do
Rio Grande do Sul, progressivamente uma alternativa àquele primeiro modelo. Essa possibilidade é viabilizada graças aos progressos econômicos e sociais que a região alcançava.
A multipolarização de interesses da sociedade exigia esforços no sentido de resgatar o caráter informativo dos jornais, encontrando-se latente, nessa mesma sociedade, o interesse pela “cultura, as ciências e as humanidades” (RUDIGER, 1993, p. 44). Nesse
sentido, a produção de um jornal deslocou seu objetivo da obra em
si e dos interesses a ela atrelados para o consumidor. Politicamente, por exemplo, os jornais do século XIX não deixaram de difundir suas ideias ou simpatias partidárias; no entanto, nas questões
consideradas de cunho social, como o casamento civil ou a adoção
do divórcio absoluto, o enfoque dos jornais nitidamente se direcionam para aquilo que a sociedade quer consumir como notícia. Ainda, se no campo político os jornais apresentam e defendem, muitas
vezes, ideais opostos, no cenário social, no entanto, pouco divergem de opinião, tratando o casamento civil e suas consequências
como o divórcio de forma semelhante.
O telégrafo e os interesses mundiais, promovidos por uma
nascente globalização, geravam uma demanda por notícias. O jornalismo literário e noticioso tornou-se um especialista “na difusão
de notícias e na discussão de assuntos de atualidade sem compromisso doutrinário” (RUDIGER, 1993, p. 45). Atingir o público
em geral (uma questão de sobrevivência) leva os jornais noticiosos
e literários a abdicar do maior anseio dos periódicos político-partidários: formar e conduzir a opinião pública.
Uma mentalidade burguesa (ideal social) favorecia a pluralidade das concepções jornalísticas vigentes, propondo a supremacia de novos valores como a “veracidade noticiosa e a imparcialidade editorial” (ALVES, 1998), que, na realidade, afinava-se com
o público-alvo, cansado do comprometimento político-partidário
516
História das Mulheres no Brasil Meridional
que vigorava até então. Como consequência, proliferaram os jornais de tendência propagada como neutra.
No entanto, será entre 1890 e 1930 que o jornalismo literário-noticioso terá seu apogeu. Nessa época, multiplicaram-se em
todo o estado os jornais comprometidos com esse modelo jornalístico. O ciclo de desenvolvimento econômico-social, cujo início deuse em meados do século XIX, estava passando por seu auge, e a
sociedade encontrava-se em processo de modernização, afetando o
jornalismo em seu conjunto. Superando o predomínio literário,
deu-se, ainda nessa época, “a consolidação do componente noticioso do regime jornalístico” (RUDIGER, 1993, p. 49); comentários opinativos tornaram-se a tônica dos textos, que em muitos
casos deixaram de ter apenas o caráter de informação. Disseminase a preocupação principal de informar o público sobre a realidade
contingente em seus aspectos menos desvelados.
Contemporaneamente, muito se tem falado nas histórias de
família, mulheres e crianças, entre outros. Essa preocupação não é
recente. Nas décadas de 1950 e 1960, proliferaram os trabalhos sobre a organização e a estrutura da família brasileira, o casamento e
o divórcio. Autores como Donald Pierson, Oracy Nogueira, Thales de Azevedo e Antonio Cândido (1954) enfatizaram mais a questão do poder e das parentelas e buscaram as bases patriarcais da
sociedade brasileira e o entendimento das relações sociais e raciais.
A década de 1970 irá priorizar as questões antes colocadas,
buscando novas perspectivas de entendimento da sociedade brasileira do passado, inclusive contestando os estudos da família brasileira produzidos sob a ótica da “família patriarcal”. É a época da
Demografia Histórica, da análise quantitativa, das relações ligadas
à nupcialidade e à fecundidade. Citem-se, por exemplo, Eni de Mesquita Samara (1979) e Iraci del Nero Costa (1979).
A riqueza e o ineditismo das fontes primárias, associadas à
pluralidade de assuntos que o tema aborda (mulher, criança, sexualidade, educação, etc.), colocaram definitivamente a História
da Família no Brasil como um ramo específico de conhecimento e
pesquisa com área de atuação própria, caracterizando a década de
1980. Autores como Margareth Rago, Luciano de Figueiredo, Mary
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SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
Del Priore e Eni de Mesquita Samara podem ser lembrados para
esse período (RAGO, 1985; FIGUEIREDO, 1993; DEL PRIORE, 1993).
Além da preocupação com as condições gerais e a felicidade
dos filhos, a mulher e sua visão perante a sociedade foram outro
fator de destaque nos periódicos rio-grandinos.
1. A mulher
A chegada da família real e de toda a corte portuguesa no
Rio de Janeiro no final de 1807 trouxe influências que acabaram
por mudar a situação reinante na colônia, embora muitos costumes em relação às mulheres tivessem sido mantidos.
Com o processo de urbanização a vida da mulher pertencente à elite dominante começa a se modificar. Ela não mais permanece reclusa à casa-grande, frequentando festas, teatros e indo à igreja, o que possibilita um aumento em seus contatos sociais. Sua
instrução geral, porém, permanece desvalorizada, uma vez que a
sociedade espera que ela seja educada e não instruída. À sua educação doméstica acrescenta-se o cuidado com a conversação para
torná-la mais agradável nos eventos sociais.
Aos poucos, a mulher sai da domesticidade e integra-se finalmente na sociedade, a princípio como escritora ou professora.
Em fins do século XIX, o Brasil já possui mulheres que sabem ler e
escrever, limitando-se, no entanto, à esfera do romance francês.
No entanto, apesar da opinião predominante de que as mulheres brasileiras do século XIX viviam limitadas a uma vida doméstica, Bernardes põe em questão tais afirmações, buscando novos dados. Ao contrário do que se pode imaginar, após a análise
de todos os depoimentos, romances e artigos selecionados em sua
obra, sua prefaciadora Maria Isaura Pereira de Queiroz confirma:
Não parecia haver, assim, nem na maneira de pensar dos homens, nem na das mulheres, e nem no modo de agir destas, um
único modelo preferencial que padronizasse as imagens e que
tornasse sempre semelhantes comportamentos e atividades.
Pelo contrário, entre os extremos detectados, opiniões e comportamentos revelavam uma gama de pontos intermediários,
de nuances, separando a submissão total da total autonomia.
518
História das Mulheres no Brasil Meridional
Inferiorização e marginalização da mulher, dentro e fora do
lar, não pareciam marcar irremediavelmente sua posição, nas
famílias urbanas abastadas, no Rio de Janeiro da segunda metade do século XIX. [...] O que reinava era a variedade (QUEIROZ, 1989, p. XV).
Além disso, Queiroz constata que uma das mais relevantes
reivindicações dessas mulheres foi o acesso à instrução, além do
fato de elas estarem cientes de seu estado de subordinação.
Mesmo assim, notava-se uma certa sacralização da mulher,
que, embora dançasse nos bailes de máscara, pouco falava, pouco
fazia para libertar-se da opressão masculina e permanecia virgem
até o casamento. Sua saída às ruas foi feita por meio do teatro, da
janela, do estudo de dança, de música e do francês. Foi esse o resultado da urbanização: a mulher burguesa que redefinia sua função
dentro do espaço doméstico.
Nesse cenário de transformações, característico do século
XIX, deu-se nova ênfase ao doméstico, preservando, nos estilos
das construções das casas, espaços para o recolhimento, aconchego e intimidade. As casas passaram a ser construídas separadas
umas das outras, isolando os indivíduos. No interior ganha espaço
a construção dos corredores, que promovem maior reclusão às alcovas, espaços da intimidade dos esposos.
Maria Ângela D’Incao chama a atenção para o fato de que
Convém não esquecer que a emergência da família burguesa,
ao reforçar no imaginário a importância do amor familiar e
do cuidado com o marido e com os filhos, redefine o papel
feminino e ao mesmo tempo reserva para a mulher novas e
absorventes atividades no interior do espaço doméstico. Percebe-se o endosso desse papel por parte dos meios médicos,
educativos e da imprensa na formulação de uma série de propostas que visavam ‘educar’ a mulher para o seu papel de
guardiã do lar e da família – a medicina, por exemplo, combatia severamente o ócio e sugeria que as mulheres se ocupassem ao máximo dos afazeres domésticos. Considerada base
moral da sociedade, a mulher de elite, a esposa e mãe da família burguesa deveria adotar regras castas no encontro sexual com o marido, vigiar a castidade das filhas, constituir
uma descendência saudável e cuidar do comportamento da
prole (D’INCAO, 2000, p. 230).
519
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
É pensando nessa estrutura doméstica – da mulher rainha
do lar e da família – que os jornais rio-grandinos expuseram a condição feminina frente ao divórcio.
A esse respeito foram encontradas 17 ocorrências nos jornais em análise, sendo doze no Echo do Sul, quatro no Diário do Rio
Grande e apenas uma no Artista.
Em 1896, através do artigo de Maia Roble, que abertamente
condenava o divórcio, aparece a preocupação de que, uma vez livre
(através do divórcio), pudesse a mulher ser facilmente induzida a
toda sorte de erros. Maia Roble irá destacar aspectos da condição
feminina que são tão caros às modernas feministas: o jugo feminino. Assim se expressa:
Tentam persuadir a mulher de que está sendo explorada pelo
homem, de que é a eterna escrava e o homem o seu perpétuo
senhor e, por consequência, urge e sem perda de tempo, que
seja proclamada a emancipação dela. Quereis então a mulher
livre!6
Claro está que à mulher caberia o lar para ser feliz, sujeitar-se às ordens do pai ou do marido e deixá-los conduzir sua vida.
O articulista tem noção dos dissabores que atormentam a alma feminina, mas não vê nisso motivos para que assim não permaneça
ou continue. A ideia de alterar essa condição não precisa ser cogitada. “Quereis então a mulher livre?” Livre para escolher, para decidir por si mesma, para formar e emitir opinião, ainda que diversa
de seu pai ou marido, livre para escolher entre permanecer casada
ou divorciar-se. Eis possibilidades para as quais Maia Roble não
via necessidade de “libertar-se” a mulher.
No ano de 1907, no Echo, artigo semelhante foi escrito, dando conta de opinar sobre os malefícios do divórcio à mulher. Nesse
sentido, Fregoli, autor do artigo intitulado Pontos de vista / o divórcio
/ II, chamou a atenção para o fato de que uma família só estaria
segura e gozando do bem-estar que merece se a mulher fosse bem
“preparada” para tal:
6
Echo do Sul, 22 de julho de 1896.
520
História das Mulheres no Brasil Meridional
Honremos o lar, veneremos a mulher e procuremos incutir-lhe
no ânimo as noções precisas de honestidade, ensinando-lhe os
verdadeiros deveres e direitos e, por assim dizer, amoldando-a
ao nosso sentir.
É essa a missão de quantos se interessem realmente pelo bem
estar da família7.
Durante séculos, a mulher foi vista como inferior ao homem e via de regra esteve à mercê de suas decisões. Até a segunda metade do século XIX, as mulheres mantiveram condições
desprivilegiadas quanto ao homem na maioria das situações do
cotidiano. A presença da mulher na sociedade ficava restrita ao
lar, aos afazeres domésticos. A presença feminina era reduzida
no espaço público. Seu acesso a clubes, teatros, cafés, etc., só
era permitido se estivessem acompanhadas. Imaginar que até
mesmo seus sentimentos fossem moldados poderia ser visto
como natural, como se a mulher fosse um ser irracional e sem
controle de seus impulsos, embora muitas mudanças estivessem
acontecendo no cenário internacional para reverter essa forma
de pensar sobre as mulheres. Infelizmente, pareciam ainda não
ter eco em Rio Grande.
Maia Roble admite, num sinal inconteste de seu pensamento conservador sobre a mulher, que pequenas rusgas são necessárias
ao casal para que, depois de feitas as pazes, possa desfrutar com
maior vigor a cumplicidade de sua união. Segundo ele, “contendas
com a esposa ... quantas mais, melhor; pois é nisso justamente que
consiste o segredo de gozar as novidades”8, sugerindo que fazem
parte e podem ser mesmo naturais os desentendimentos que possam
ocorrer no casamento, pois a reconciliação deveria fazer parte da
dinâmica de convívio de um casal. Sem esses pequenos sobressaltos
talvez o matrimônio caísse em grande monotonia.
A imagem da mulher, mãe, dona de casa dedicada aos
filhos e ao marido, religiosa, exemplo de integridade, era a considerada ideal pelas elites conservadoras. Muitas vezes, os jor-
7
8
Echo do Sul, 09 de novembro de 1907.
Echo do Sul, 23 de julho de 1896.
521
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
nais de maior circulação em Rio Grande publicavam artigos reforçando essa ideia, como no trecho que segue, escrito por João
Cezimbra Jacques:
É no lar que a mulher aprende a ser esposa e mãe, é o gracioso
mister de formar cidadãos, é aí que ela desenvolve a graça natural e auxiliada pelos carinhos maternos e pelas somações
delicadas da arte, a música, o canto e a pintura, desenvolve a
meiguice e a doçura. E ainda aí ela adquire o conhecimento
das artes domésticas necessárias e em cuja prática se desenvolvem todos os grandes predicados naturais que tanto a nobilitam, constituindo-se a síntese do belo e o tipo mais sublime de
natureza.
Em resumo, é necessariamente a existência doméstica que predispõe o cidadão para as maiores virtudes9.
O caráter conservador é observado nesse discurso sobre a
mulher, vista quase como um adorno doméstico, aproximando-se
muito do referencial positivista que via na mulher “a rainha do lar
e o anjo tutelar” de sua família, cuja inferioridade do sexo feminino era defendida.10
Algumas situações poderiam motivar as mulheres ao divórcio; é o que o Artista publicou em 1893, ainda que se refira às mulheres francesas, esses argumentos podem muito bem ilustrar alguns dramas da sociedade de Rio Grande:
A mulher parece suportar as uniões muito prolongadas com
mais impaciência que o homem; sobre 100 divórcios 61 são
requeridos por ela.
Aqueles que a difamam e desconhecem hão de ver nisso nova
prova de sua leviandade e inconstância, mas é provável que se
enganem.
Se ela se divorcia, é porque teve decepções e, o que é pior, é
porque o marido borboleteou em demasia, teve a mão muito
rápida e muito pesada ou se aborrecia muito em sua casa11.
Notícias, as mais diversas, sobre o continente europeu ou
mais especificamente sobre a França eram avidamente consumidas
9
Diário do Rio Grande, 31 de janeiro de 1908.
Acerca dessa questão ver ISMÉRIO, 1995.
11
Artista, 20 de junho de 1893.
10
522
História das Mulheres no Brasil Meridional
pelos leitores de muitos jornais, entre esses os rio-grandinos. Política, moda, comportamento e legislação interessavam de perto; como
esse país adotava o divórcio entre suas leis, as notícias francesas sobre esse tema ganhavam repercussão na imprensa local.
Os opositores do divórcio identificaram a mulher como a
maior defensora da indissolubilidade matrimonial e, por consequência, ferrenha combatente do divórcio. Nessa perspectiva, os
jornais locais davam conta de publicar as manifestações das senhoras rio-grandinas que tentaram sensibilizar o Congresso Nacional
a votar contra a lei do divórcio. Em 1896, assim se expressa a redação do Echo do Sul:
Reflitam as senhoras rio-grandenses que, cansam-se em buscar
assinaturas para um protesto contra o divórcio absoluto, que
tem por bases principais o adultério e o conjugicidio.
Se não fora a boa intenção com que se agitam na propaganda
contrária ao magno problema social estabelecido no congresso brasileiro, não teriam desculpas as senhoras rio-grandenses,
que procuram, é verdade, concorrer com seus esforços para
fins morais e muito puros, mas que, de fato, teriam efeitos bem
diversos, se vingassem12.
A honra feminina também será explorada pelo Echo: “Uma
mulher nunca muda de nome sem que a sua honra sofra grave dano,
quando existem vivos dois homens que têm um o nome que ela
deixou e o outro o nome que ela tomou”13.
A alusão é bem clara: como contrair novo casamento estando um dos cônjuges ainda vivo? Como fica a situação dessa mulher
perante a família e a sociedade? Esse argumento foi defendido por
Anna Aurora do Amaral Lisboa em 1907 numa carta dirigida ao
Echo do Sul intitulada “O divórcio”, onde a referida autora posiciona-se de forma contrária ao divórcio, o que, aliás, parecia ser o esperado das mulheres: que condenassem veementemente o divórcio.
Nesse mesmo ano, o de 1907, aparece uma orientação que
até então não fora por todos apreendida: a de dar maior responsa-
12
13
Echo do Sul, 26 de julho de 1896.
Echo do Sul, 02 de outubro de 1907.
523
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
bilidade à mulher pela escolha de seu consorte. Embora ainda caracterizassem a mulher como “frágil, irresponsável e irracional”,
essa carta, encaminhada ao Echo por A. D., favorável ao divórcio,
assim se expressou:
Nesta jogatina (jogatina tão perigosa que se chega às vezes a
arrepender para toda a vida) a que tem mais a perder é, justamente, a mulher. Uma cautela extremada deveria empregar uma
moça antes de casar-se, pois, sem ser promulgado o divórcio,
qual a lei que ampara o seu direito se ela se casar, por exemplo,
com um dos tantos sifilíticos14.
Continuando seu artigo, A.D., pseudônimo de que se utilizou esse assinante do Echo, argumenta sobre a condição daquelas mulheres que serão obrigadas a viver afastadas de seus maridos pelas mais diversas circunstâncias (entre elas a de um marido condenado pela justiça) e que serão impedidas de refazer suas
vidas legalmente com novos parceiros; restaria a essas mulheres
o concubinato. O que seria pior para ela, os filhos e a sociedade:
uma vida irregular ou a possibilidade de um novo casamento,
plenamente constituído em seus direitos? Assim se expressou
A. D.:
Que ajuda podereis levar, pois adversários da lei do divórcio, à
pobre mulher de um condenado a 15, 20 ou 30 anos de cadeia?
Que confortos dareis a esta vítima dos crimes do marido, condenado por sua vez a suportar, inocentemente, todas as misérias, a enfrentar todos os males, a cumprir os sacrifícios?
Infeliz dela se tenta rebelar-se contra o seu destino, pobre dela
se o seu coração não permanece mudo como uma tumba e
ousar quebrar os vínculos matrimoniais!15
A ideia de divórcio absoluto trazia consigo preocupações –
expressas mais em função dos sentimentos femininos – de que as
mulheres, ante a facilidade em ver seus lares desfeitos por uma separação, deixassem de criar os vínculos de afeto, amizade e envolvimento com o cônjuge e com os filhos advindos dessa união. É o
14
15
Echo do Sul, 16 de outubro de 1907.
Echo do Sul, 16 de outubro de 1907.
524
História das Mulheres no Brasil Meridional
que aparece expresso no artigo de C. H. Schon16, publicado no diário Echo do Sul em 1907:
Que dedicação e interesse poderá sentir uma esposa pela família a qual não tem certeza de estar sempre ligada?; é porque
não apresenta a nosso ver um progresso moral social, pois antes segundo Ahrens, “uma união para a vida é o ideal para
onde deve tender o aperfeiçoamento social...”17
Atribuía-se uma certa fragilidade aos sentimentos femininos,
evidenciando que, a partir de incertezas, a mulher não poderia plenamente realizar-se e nem conceber, em estado pleno, uma família.
As incertezas, contudo, poderiam também estar relacionadas às
perdas de entes queridos e, mesmo assim, diante desse fato inerente ao ser humano, as mulheres não deixaram de casar ou ter filhos!
Preocupação semelhante apareceu no Diário do Rio Grande,
temeroso da sorte das mulheres à mercê do divórcio. Se no casamento não houve garantias, que será da mulher que for abandonada? Assim se refere o editorial do Diário:
Que será da sorte das mulheres, dos incultos ou dos pretensamente cultos, do rude operário, quando tiver a certeza de que
tem um meio fácil para se libertar das obrigações domésticas?
Com o obstáculo da indissolubilidade, porém, ele há de refletir
e muitas vezes há de dominar a razão do amor-próprio.
Não há, pois, proteção às mulheres como apregoam os divorcistas. Parece que elas vislumbram a desgraça que o divórcio
lhes trará18.
Sobre o adultério como causa para divórcio, o Echo informou que “poderá deixar de ser motivo para divórcio somente quando o réu for a mulher e em virtude de violência”19, esclarecendo
16
C. H. Schon residia em Rio Grande, à rua Marquês de Caxias, 57 (atual rua
Duque de Caxias). O endereço foi declarado por Schon após uma série de 13
artigos que escreveu sobre o divórcio e publicou no Echo do Sul entre 04 de outubro e 18 de dezembro, elegendo e defendendo seus argumentos contrários ao
divórcio.
17
Echo do Sul, 09 de dezembro de 1907.
18
Diário do Rio Grande, 28 de novembro de 1901.
19
Echo do Sul, 02 de agosto de 1912; refere-se ao projeto de divórcio amplo, tramitando na Câmara dos Deputados.
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SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
uma concepção muito usual de que as “escapadas” masculinas
deveriam ser toleradas e quase aceitas naturalmente, ao passo que
o adultério feminino seria pernicioso aos filhos, principalmente
meninas, bem como à moral do marido.
No entanto, o adultério feminino foi também justificado
como possível de acontecer em função da incompetência masculina em manter suas esposas envolvidas e felizes com o ambiente
doméstico. Nesse sentido, o Echo reproduziu a entrevista que o jornalista Marcelo Gama (do Jornal da Manhã) fez ao jurista dr. Plínio
Casado no seguinte teor:
– Bem, o adultério. Esse é o principal. Discutamos o adultério
do homem e o da mulher.
Comecemos pelo da mulher.
Ela é ou não poliandra? Admitindo, como está aprovado, que
ela não o é, só excepcionalmente praticará ela o adultério; e
desde que o pratique, ela o faz ou por ser um caso mórbido, ou
porque houve imprevidência na efetuação do enlace, ou por
qualquer outra causa anormal. Ora, como já deixei dito, o poder público não pode legislar para casos especiais.
Acresce que, em muitos casos, o marido é o maior culpado do
adultério da mulher20.
Causou surpresa aos leitores de Rio Grande verem expressa
a opinião de algumas mulheres, ainda que não fossem rio-grandinas, sobre as vantagens na adoção da ruptura definitiva dos vínculos matrimoniais; em agosto e setembro de 1907, o Diário do Rio
Grande reproduziu as ideias que duas mulheres, uma advogada e
uma escritora (as duas do Rio de Janeiro), utilizaram para argumentar sobre divórcio. O que maior surpresa causou ao público
leitor deve ter sido o fato de que essas mulheres pudessem defender
o divórcio, justamente elas, as mulheres, que supostamente teriam
muito a perder com o divórcio. No entanto, essas autoras argumentaram sob a pertinência de pôr fim aos matrimônios mal encaminhados, aos problemas de conflitos domésticos, em muitos casos geradores de toda sorte de violências contra a mulher, dos maus
20
Echo do Sul, 29 de janeiro de 1908.
526
História das Mulheres no Brasil Meridional
exemplos aos filhos e que poderiam ocasionar sérias falhas na formação do caráter dos mesmos.
No entanto, essas concepções expressas por duas mulheres
foram de certo modo ridicularizadas pelos homens ao identificá-las
como “solteironas” e por isso mesmo arrumando uma forma de incomodar aquelas que tiveram a “sorte” de já estar casadas.21
Parece-nos ser o desejo da imprensa disciplinar o comportamento feminino frente às questões domésticas: reforçá-la como rainha do lar, mantenedora das tradições e formadora de cidadãos conscientes e ordeiros. Normatizar o comportamento familiar e feminino era o desejo da sociedade, expressamente manifesto pela Igreja.
Como adaptar o novo ao que existe? Como promover uma
caminhada conciliatória? Com certeza acostumar-se à novidade
torna-se muito mais difícil e complexo do que viver, fazer e pensar
“como sempre”, uma vez que fazemos parte de um modo de vida
que nos foi legado pela cultura, pela tradição e pelos costumes que
nos dão uma ideia de pertencer a um complexo muito maior do
que nós mesmos.
Todos os povos, mesmo os mais primitivos, tiveram e têm
uma cultura, transmitida no tempo, de geração a geração. Mitos,
lendas, costumes, crenças religiosas, sistemas jurídicos e valores
éticos refletem formas de agir, sentir e pensar de um povo e compõem seu patrimônio cultural.
A reflexão sobre esses valores nos jornais locais foi visível e
contundente, presente tanto nos editoriais como nos artigos produzidos por aqueles que utilizaram a imprensa para manifestar suas
opiniões.
Falar sobre divórcio modernamente é corriqueiro; crescem
no país e no mundo os casos em que casais põem um fim às suas
uniões. Diferentes e diversos motivos concorrem para essa interrupção da vida a dois: adultério, incompatibilidade de gênios, desencontros ou inapetência para o convívio em família são algumas
entre tantas motivações.
21
Ver os editoriais e artigos que o Diário do Rio Grande publicou nos dias 27 de
agosto, 05, 07 e 11 de setembro de 1907.
527
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
A tendência nos dias atuais é não nos surpreendermos mais
com o tanto de casais que optam pela separação. Já faz parte do
nosso dia a dia, já foi assimilado e incorporado por nossa cultura
ocidental. Para o século XIX é outra história.
O divórcio começou a ganhar notoriedade e destaque no cenário nacional a partir do momento em que se decretou o casamento
civil.22 O casamento, como pressuposto civil, passou a ser vislumbrado como um contrato que, por essa natureza civil, podia
ser desfeito a qualquer tempo pela vontade de uma ou de ambas
as partes. A novidade estava em incluir a possibilidade de novos
recasamentos.
Até então, os casais que não mais desejavam permanecer
unidos poderiam recorrer aos tribunais eclesiásticos para pleitear
sua separação, somente permitida na modalidade quoad thorum et
mensam, que desobrigava o casal da vida marital e que previa, inclusive, a partilha dos bens e o sustento dos filhos quando houvesse. Essa condição separava os cônjuges, mas não permitia a nenhum deles um novo casamento. Como a Igreja havia sacramentalizado o matrimônio, não seria possível – salvo vício ou má-fé na
origem dos votos23 – anular ou retirar um sacramento que fora instituído. Para a Igreja Católica, a possibilidade do divórcio e de novos casamentos para divorciados inexiste até hoje, desde que, é claro, tenham os cônjuges recebido o sacramento do matrimônio.
O divórcio era possível em diversos países europeus e americanos à época em que foi pleiteado pela primeira vez no Brasil.
Inglaterra, França e Portugal (a partir de 1910) e países americanos
como Estados Unidos da América, Guatemala, El Salvador, Equador e Uruguai tinham no seu código legal a previsão do divórcio,
enquanto que México, Argentina, Cuba, Chile e Colômbia, por
exemplo, ainda não o haviam adotado.
22
Instituído a partir do Decreto nº 181, “Do casamento Civil”, de 24 de janeiro de
1890.
23
A Igreja Católica permitia e concede ainda hoje a “anulação” do casamento
através de processo requerido e devidamente fundamentado por um ou pelos
dois cônjuges. A esse respeito ver HORTAL, 2002.
528
História das Mulheres no Brasil Meridional
Percebendo e acompanhando essas condições pela América
e pela Europa, os jornais Echo do Sul, Diário do Rio Grande e Artista
buscaram subsidiar seus leitores sobre o que se passava nesses países em que já havia sido adotado o divórcio, procurando destacar
as vantagens ou os perigos da adoção de tal lei. Inúmeras foram as
considerações a esse respeito.
Aliás, esses mesmos periódicos brindaram seus leitores com
as mais distintas asseverações sobre o divórcio e seu predecessor, o
casamento plenamente validado, sem o qual não poderia existir o
divórcio. O casamento foi apresentado tanto como salutar instituição como terrível prisão – princípio essencial e natural da constituição familiar e cerne da mentira. Bom ou mau negócio, assim foi
defendido pelos jornais em diversas ocasiões. Semelhante entendimento tiveram os periódicos sobre o divórcio, compreendido e caracterizado como medida saneadora das hipocrisias que ganhavam
espaço no núcleo familiar e como terrível ameaça à continuidade
da existência desse núcleo primário da sociedade.
Ao expor suas formas de conceber o casamento e o divórcio,
os jornais estavam explicitando uma preocupação que se evidenciava no campo das ideias por todo o país: as novas tendências na
compreensão dos direitos femininos e da sexualidade ilícita, fazendo do casamento e da família o centro das explicações e dos planejamentos tanto da mudança como do conservadorismo social. O
divórcio, sinal de alteração na estrutura doméstica, tornou-se tema
recorrente nos debates sociais e políticos da época.
Manter os laços de um casal que vivia em harmonia era compreensível e o que se desejava para todos os casais, mas e para aqueles
que não conheciam tal condição? Para aqueles que viviam debaixo
da violência doméstica, do abandono, do adultério, da infâmia e
da hipocrisia, o que se deveria pensar? Poderia a sociedade continuar a fazer vistas grossas a tal situação ou buscar uma alternativa
para tais conflitos? A opção pelo divórcio dirigia-se a essas famílias
que viviam sob condições tão adversas. Tal possibilidade só foi
possível a partir de 1977.24
24
Lei nº 6.515, de 26 de dezembro de 1977, assinada pelo então presidente Ernesto Geisel, que possibilitou, em seus 50 artigos e demais alterações no Código
529
SENNA, A. K. de • Mulheres do sul, imprensa e a tentativa de implantação
do divórcio absoluto no Brasil (1889-1916)
Discutiu-se tanto a questão do divórcio, tantos foram os projetos que visavam adotar tal prática na legislação nacional, mas se
demorou alguns anos até que tal condição fosse aceita, senão pela
sociedade como um todo, pelo menos pelos legisladores, que seria
de estranhar que tal tema não tivesse repercutido na imprensa
nacional, regional e citadina, como de fato aconteceu.
Inseridos em sua época, resultantes das formas de conceber
o mundo a partir dos modelos até então conhecidos ou que se descortinavam ao conhecimento, os redatores escreveram com as condições e ideias possíveis naquela época em que o fizeram.
Claro ficou que a visão de mundo que prevaleceu nos escritos jornalísticos foi a que se fundava na tradição e na moral cristã,
sustentada no tripé tradição – família – religião como pressuposto
norteador. No entanto os novos tempos se avizinhavam, e o Artista
não deixou de lembrar à comunidade que a mudança aconteceria,
cedo ou tarde, de forma gradual ou imposta, mas aconteceria. Como
de fato aconteceu.
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ECHO DO SUL. Rio Grande, 1889-1916.
533
534
História das Mulheres no Brasil Meridional
Sobre as autoras e os autores
Adriana Kivanski de Senna é Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e
Professora Associada da Universidade Federal do Rio Grande
(FURG), atuando nos cursos de Graduação em História e no
Programa de Pós-Graduação em História da instituição.
Ana Maria Colling é Doutora em História pela Pontificia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Professora permanente na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD),
atuando no Programa de Pós-Graduação em História e pesquisadora da UNESCO junto à Cátedra Gênero, Diversidade Cultural e
Fronteiras.
Ana Silvia Volpi Scott é Doutora em História & Civilização pelo
European University Institute (EUI/Florença/Itália) e Professora
do Departamento de Demografia, do Programa de Pós-Graduação em Demografia e do Programa de Pós-Graduação em História
da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Pesquisadora do Núcleo de Estudos de População Elza Berquó (NEPO/
UNICAMP). Bolsista Produtividade em Pesquisa 1C do CNPq.
Bruna Letícia de Oliveira dos Santos é Mestra em História pela
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e doutoranda em História pela mesma universidade; bolsista CAPES.
Cláudio de Sá Machado Jr. é Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Professor Adjunto da
Universidade Federal do Paraná (UFPR), atuando nos Programas
de Pós-Graduação em Educação e em História da instituição.
Daiane Silveira Rossi é Doutora em História das Ciências pela
Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz). Realiza pós-doutoramento junto ao Programa de Pós-Graduação em História das Ciências e da
Saúde da Fiocruz, com bolsa da Fundação Carlos Chagas Filho de
Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).
535
Sobre as autoras e os autores
Daniel Luciano Gevehr é Doutor em História pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Professor Titular das Faculdades Integradas de Taquara (FACCAT), atuando no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Regional da instituição.
Dario Scott é Doutor em Demografia pela Universidade Estadual
de Campinas (UNICAMP).
Denize Terezinha Leal Freitas é Doutora em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora da
rede de ensino do Rio Grande do Sul (SEDUC-RS).
Fabiane Simioni é Doutora em Direito pela Universidade Federal
do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professora Adjunta da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando nos cursos de Graduação em Relações Internacionais e Direito e no Programa de
Pós-Graduação em Direito e Justiça Social da mesma instituição.
Fabiano Quadros Rückert é Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Doutor em Patrimônio pela Universidade de Jaén/Espanha, realiza pós-doutoramento no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal do Rio Grande (FURG). É Professor Adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), atuando no Câmpus do Pantanal, no curso de Licenciatura em História, no Programa de Pós-Graduação em Educação e no Programa de Pós-Graduação em Estudos Fronteiriços.
Jonathan Fachini da Silva é Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Professor Referência
na Área de Ciências Humanas na EJA EaD do SESI-RS e Tutor a
Distância do Curso de Licenciatura em História da Universidade
Federal do Pampa (UNIPAMPA/Campus São Borja).
José Carlos da Silva Cardozo é Doutor em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Professor Adjunto
da Universidade Federal do Rio Grande (FURG), atuando nos cursos de Graduação em Relações Internacionais e Comércio Exterior e no Programa de Pós-Graduação em História da instituição.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
José Edimar de Souza é Doutor em Educação pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Professor Adjunto II
da Universidade de Caxias do Sul (UCS), atuando nos cursos
de Graduação na Área de Humanidades e nos Programas de
Pós-Graduação em Educação e História da instituição.
José Iran Ribeiro é Doutor em História Social pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGHIS/UFRJ) e Professor Associado
na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde atua nos
cursos de Licenciatura em História e Pedagogia, assim como no
ProfHistória/UFSM.
Maíra Ines Vendrame é Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e professora no
curso de História e no Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).
Marina Camilo Haack é Mestra em História pela Universidade
do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), doutoranda em História
Social pela Universidade de São Paulo (USP) e professora de História do Brasil no projeto de educação popular pré-Enem Emancipa (Gravataí).
Marlise Regina Meyrer é Doutora em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Professora
Adjunta da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do
Sul (PUCRS), atuando nos cursos de Graduação em História e no
Programa de Pós-Graduação em História da instituição.
Natália de Lacerda Gil é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e Professora Associada da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde desenvolve pesquisa em História da Educação e atua nos cursos de Licenciatura em
nível de Graduação e no Programa de Pós-Graduação em Educação da instituição.
Natalia Pietra Méndez é Doutora em História pela Universidade
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e Professora Associada da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), atuando
no curso de História, no Programa de Pós-Graduação em História
e no Mestrado Profissional em Ensino de História da instituição.
537
Sobre as autoras e os autores
Nikelen Acosta Witter é Doutora em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e Professora Adjunta da Universidade Federal Santa Maria (UFSM), atuando no curso de Graduação em História, no Programa de Mestrado Profissional em
História (PROFHISTORIA) e no Programa de Pós-Graduação
em Estudos de Gênero da instituição.
Tiago da Silva Cesar é Doutor em História pela Universidad de
Córdoba (UCO/Espanha) e Professor da Universidade Católica
de Pernambuco (UNICAP), atuando no curso de Graduação em
História e no Programa de Pós-Graduação em História da instituição.
Vania B. M. Herédia é Doutora em História pela Università degli
Studi de Genova/Itália, Professora Titular da Universidade de
Caxias do Sul (UCS) e docente no Mestrado em História da instituição.
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História das Mulheres no Brasil Meridional
Posfácio da 2ª edição
Qual a finalidade de um livro? Essa pergunta pode ter uma
gama de respostas, mas apenas uma certeza: livros foram feitos
para serem lidos! História das Mulheres no Brasil Meridional nasceu
com a ambição de reunir um grupo de pesquisadoras e pesquisadores para pensar como as mulheres construíram suas histórias
ao longo do tempo no território mais meridional do Brasil.
O desafio não foi simples, mas o resultado que o leitor tem
agora em mãos (no seu computador ou dispositivo móvel), reflete
o interesse que a edição impressa despertou, estimulando os organizadores a disponibilizarem o livro em formato digital, de acesso aberto. Se o livro impresso, em pouco tempo, alcançou grande
repercussão, rompendo fronteiras geográficas, sendo acolhido com
grande entusiasmo pela crítica especializada, chegou o momento
de um público ainda maior ter acesso a ele.
Esta 2ª edição (agora em formato e-book) de História das
Mulheres no Brasil Meridional, assim como a primeira, contou com
recursos públicos advindos da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e do Programa de
Pós-Graduação em História da UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas). Reforçamos nossos agradecimentos a essas instituições, que acreditaram no projeto editorial, assim como
a OIKOS Editora, a Editora da UNISINOS e a Coleção EHILA
pela oportunidade desta nova edição.
Ana Silvia Volpi Scott
José Carlos da Silva Cardozo
Jonathan Fachini da Silva
Outono de 2022
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