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A PAUTA ANTIRRACISTA NA PESQUISA EM COMUNICAÇÃO NO BRASIL Jorge Cardoso Filho (PPGCOM UFRB/PósCom UFBA) Gabriela Machado Ramos de Almeida (PPGCOM ESPM) Deivison Campos (PPGEDU Ulbra) O dossiê Raça, Mídia e Comunicação Antirracista é fruto de uma articulação iniciada em 2020, com a proposição do Colóquio Por uma comunicação antirracista: epistemologias, metodologias e práticas culturais, promovido durante o encontro do Grupo de Pesquisa Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros da Intercom no congresso nacional da entidade daquele ano. Na ocasião, o grupo recebeu a professora Liv Sovik (UFRJ), que ministrou a conferência Revendo a história da cultura de massa no Brasil: teoria e contestação do estereótipo do negro*, em que ofereceu uma leitura detalhada e cuidadosa do texto O espetáculo do outro, de Stuart Hall, publicado no Brasil como capítulo do livro Cultura e representação (Ed. PUC-Rio, 2016). O colóquio, que teve chamada pública de artigos, reuniu ainda 12 trabalhos de notável qualidade e relevância que apareceram como bom indicativo do estado da arte da pesquisa sobre raça e mídia no país. A realização desse evento reforçou também a demanda, já sabida, pela capilarização do debate racial no campo da Comunicação no Brasil, que vem ganhando escopo com iniciativas como essa do GP, bem como com a ocupação de espaços nos programas de pós-graduação do país por pesquisadoras e pesquisadores dedicados à temática e com as propostas de criação de grupos de trabalho em diversas associações científicas nacionais da área. Ainda que se saiba o quanto esse movimento é tardio - dado que é em si bastante sintomático - também é importante reconhecer os potenciais avanços que se espera que essas ações possam promover para que o campo passe a se pensar e a pensar seus objetos à luz de uma problemática que é constitutiva e transversal a toda experiência brasileira: o racismo. Em suas Memórias da Plantação - episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba (2019) nos indica que três características são fundantes do racismo: a primeira seria a construção da/de diferença, na qual o grupo social se difere de um outro a fim de definir normas; a segunda é o processo de hierarquização valorativo dessas diferenças, no qual * A conferência está disponível no canal da TV UFRB no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=e5Yb3DU8Hag contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 5 EDITORIAL o grupo construído como “diferente” torna-se inferior perante a norma; finalmente, o exercício de um poder, no qual o grupo normatizante pode performar o racismo - alguns grupos são racistas mas não teriam poder para performá-lo. A leitura dessa análise de Kilomba nos fez, muitas vezes, pensarmos em que medida a Comunicação Social performou o racismo cotidianamente, não apenas em seu fazer mais usual - a produção de conteúdos, narrativas e formas de representação social - mas também na sua própria constituição epistemológica enquanto campo de estudos. Em uma rápida análise dos nossos cursos de graduação e pós-graduação, caberia avaliar e implementar percursos formativos que considerem as características apontadas por Kilomba. A chegada tardia da tipografia ao Brasil, por exemplo, foi tema do livro de Bruno Martins Guimarães, Corpo sem cabeça: o tipógrafo-editor e a Petalógica (2018), com uma indicação fundamental sobre o papel que negros libertos tiveram como profissionais da tipografia e deixaram legados nas formas do imaginário do Brasil Império. Mais adiante, Jonas de Jesus (2019) e Alane Reis (2020) por exemplo, seguiram analisando experiências das chamadas mídias negras para desestabilizar normalidades, como o mito da democracia racial no Brasil - ambos os trabalhos se referem ao importante papel que a jornalista e historiadora Ana Flávia Magalhães Pinto desempenhou para promover um maior interesse entre as áreas de História e Comunicação Social. Nos parece que essas iniciativas são formas de operar o antirracismo. Atuar intelectual e politicamente contra a opressão de grupos marginalizados. Após lutas históricas de movimentos sociais em muitas cidades do Brasil, como os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB), da Associação Nacional de Ação Indigenista (ANAÍ), dos coletivos de estudantes quilombolas e aldeados e, sobretudo da implementação das políticas de cotas raciais no ensino superior, observa-se um campo de estudos em ebulição, propondo a revisão de suas práticas e a descoberta pensamento de autoras e autores que ficaram por bastante tempo desconhecidas na Comunicação Social. Nosso próprio esforço, bem como dos integrantes o GP de Estéticas, Políticas do Corpo e Gêneros, tem sido também de fazer operar essa prática antirracista. Compreendemos que as proposições de novos grupos de trabalho e de pesquisa em nossas associações (como Compós e Intercom) são também indicativos de uma prática antirracista e aproveitamos para celebrar a aprovação da proposta de continuidade do GP no recente processo de renovação dos Grupos de Pesquisa da Intercom. A partir de 2022, o contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 6 EDITORIAL grupo passará a se chamar Estéticas, Políticas dos corpos e Interseccionalidades, título que sugere o direcionamento mais evidente desse trabalho coletivo no sentido de valorizar as intersecções entre marcadores de diferença como raça, classe, territorialidade, gênero e sexualidade nas pesquisas acolhidas por lá. Com o objetivo de receber contribuições de integrantes dos demais grupos de pesquisa que compõem o campo de investigações sobre raça, mídia e antirracismo no Brasil, ampliando o estado das investigações a ele dedicadas, propusemos à Contemporânea a organização do dossiê que aqui se apresenta. O trabalho de seleção final dos textos que compõem o dossiê foi árduo, dado o volume significativo de contribuições recebidas e a qualidade geral dos artigos. A submissão de quase 40 contribuições demonstra o crescente compromisso da área com uma pauta científica e política que descende e reverencia a fundamental importância do Centre for Contemporary Cultural Studies de Birmingham no agendamento de questões referentes à racialização, exotização, erotização e subalternização da alteridade na relação com uma ordem normativa. Reverencia, também, autoras e autores que vêm, nas últimas décadas, oferecendo um conjunto de questões direcionadas a temas como as diásporas, relações étnico-raciais, gênero e interseccionalidade, que se mostram muito produtivas para o campo da Comunicação, oriundas de territorialidades como a América Latina (Beatriz Nascimento, Lélia Gonzalez, Sueli Carneiro, Zélia Amador de Deus, Muniz Sodré, Frantz Fanon e Édouard Glissant), a América do Norte (Angela Davis, Patricia Hill Collins, bell hooks e Kimberlé Crenshaw), a África (Kabengele Munanga, Achille Mbembe e Bunseki Fu-Kiau) e a Ásia (Edward Said e Homi Bhabha), alguns dos quais acionados nos artigos desse volume. Os 11 trabalhos selecionados atendem às temáticas indicativas da chamada do dossiê e contemplam publicidade, jornalismo, epistemologia, estética e imagem. Nos chamou a atenção a quantidade expressiva de artigos submetidos dedicados a discutir as possibilidades e limites de uma publicidade antirracista, entre os quais publicamos dois que abrem o dossiê: Pode a publicidade ser antirracista?, de Francisco Leite, e A disputa pelo capital de visibilidade negra na publicidade, de Pedro Henrique Conceição dos Santos e Ana Paula Bragaglia. Na sequência, são apresentados dois textos que abordam raça, tecnologia e produção de assujeitamentos, sendo eles Raça: dimensão interseccional das vulnerabilidades contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 7 EDITORIAL digitais, de Antônio Hélio Junqueira e Rodrigo Botelho Francisco, e Testemunhos revelados por tecnologias racistas: fotografias de família e ressignificação de precariedades no Youtube, de Pedro Augusto Pereira e Tamires Coêlho. O dossiê traz ainda dois artigos que abordam a imprensa brasileira, um deles dedicado a uma revista produzida na universidade pública (UFRB), a Afirmativa, com o propósito de fazer emergir experiências e narrativas outras que não aquelas de violência e apagamento comumente associadas aos corpos e subjetividades dos jovens negros. Trata-se do texto A potência política da re-existência: corpos em performance contra o genocídio da juventude negra, de autoria de Daniela Matos e Jussara Maia. O segundo é Escravidão e abolicionismo na imprensa mineira do século XIX, de Phelippy Jácome. Os quatro artigos que se seguem aproximam de maneira mais evidente estética e política: Performances da negação e da recusa: casa t* aquém e além da neurose representativa colonial, de Polyane Belo e Fernando Gonçalves; Aquilombamentos artísticos contemporâneos: reterritorializações simbólicas na fotografia negra, de Daniel Meirinho; Voltar e recolher o que ficou para trás: Black is King e a não precariedade nas imagens da negritude, de Rafael Francisco Pereira, Laura Guimarães e Pablo Moreno Fernandes e Pare de nos filmar!: momentos de negociação em meio às imagens coloniais da África?, de Dieison Marconi. Encerra o dossiê o texto trabalho Dona Ivone Lara vive: redes sociais e luta política, de Zilda Martins, Lídia Michelle Azevedo e Renata Nascimento da Silva. Agradecemos às autoras e autores pelas contribuições e por escolher o dossiê Raça, Mídia e Comunicação Antirracista para compartilhar suas pesquisas, bem como aos pareceristas que avaliaram os artigos submetidos. Registramos também o valioso apoio da editora e do editor da Contemporânea, Ivanise Andrade e Samuel Barros, que acolheram a proposta do dossiê desde o primeiro momento. Desejamos a todas, todes e todos uma boa leitura! REFERÊNCIAS JESUS, Jonas. Alma Preta e Afirmativa: experiências contemporâneas de mídias negras na luta contra o racismo. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Mídia e Formatos Narrativos). Centro de Artes, Humanidades e Letras-UFRB, 2019. KILOMBA, Grada. Memórias da plantação - episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 8 EDITORIAL MARTINS, Bruno. Corpo sem cabeça: o topógrafo-editor e a Petalógica. Belo Horizonte: Autêntica, 2018. PINTO, Ana Flávia. Imprensa negra no Brasil do século XIX. São Paulo: Selo Negro, 2010. REIS, Alane. A nação em pauta: projetos políticos e vidas negras na Revista Afirmativa. Dissertação (Mestrado em Comunicação, Mídia e Formatos Narrativos). Centro de Artes, Humanidades e LetrasUFRB, 2020. contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 9 EDITORIAL contemporanea | comunicação e cultura - v.19 – n.03 – set-dez 2021 – 5-10 | ISSN: 1809-9386 10