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N8 | 2007.1 Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves* Professor da graduação e da pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social da UERJ. Doutor e mestre em Comunicação pela ECO/UFRJ. Resumo A arte, como um processo de produção simbólica, é um espaço rico para questionamentos acerca da comunicação e da cultura contemporâneas. Daí podermos pensar as manifestações contemporâneas da arte como fenômeno cultural complexo, na medida em que indicam a possibilidade de interessantes experimentações nos processos comunicativos, como campo de circulação de valores e signos. O uso que artistas vêm fazendo de materiais pouco convencionais e de mídias como fotograia, vídeo e as chamadas novas tecnologias chama a atenção por possibilitar arranjos singulares com a técnica e um diálogo inusitado com nossa contemporaneidade. Por meio dessas operações, é possível revisitar a relação que mantemos com a própria técnica, promover uma releitura de discursos e práticas sociais ligados à constituição de nossos modos de vida, jogos de poder e criar novas condições de Possibilidade para a produção de diferença na atualidade. Palavras-chave: comunicação, arte, cultura. Abstract he Art, as a process of symbolic production, is a rich locus for relections on contemporary communication and culture. Hence, it is possible to see contemporary art manifestations as a complex cultural phenomenon as they indicate the possibilities of interesting experimentations in communicative processes, considered as a domain for values production and circulation os signs. he uncanny uses that artists are doing of technologies as photography, video and the so called new media draw attention to the possibilities for unique arrangements with techniques and for unexpected dialogues with our contemporarity. By such operations, it is possible to resignify our relationship with the technology and to reread discourses and social practices which constitute our ways of life and power games, and in so doing, it is possible to create new conditions for alterity production today. Keywords: communication, arts, culture. “A única inalidade aceitável das atividades humanas é a produção de uma subjetividade auto-enriquecendo de modo contínuo sua relação com o mundo” (GUATTARI,1993,p.33). Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1  O presente trabalho é parte de um projeto de pesquisa atualmente realizado no programa de pós-graduação em comunicação da UERJ, na linha Novas tecnologias e cultura. A questão que move a pesquisa é o desejo de problematizar o que poderia ser chamado de cultura comunicacional contemporânea, forjada a partir de um primado midiático. Esta cultura poderia ser caracterizada por um “mídiaceantrismo”, ou seja, um caráter fortemente veiculativo, onde os meios e a transmissibilidade tendem a constituir o im dos processos comunicacionais. Nesse tipo de coniguração, privilegia-se a profusão da informação - na igura da disponibilidade e sobrevaloriza-se a tecnologia, a mobilidade e a interatividade como se fossem qualidades positivas em si mesmas. Com isso, muitos dos processos comunicativos na atualidade parecem estranhamente se colar a uma supercomunicação de luxos instantâneos, que parecem trabalhar para uma repetição não criadora. A comunicação produzida nesse contexto é impelida mpelida ao seu limite de inteligibilidade para garantir sua eicácia, obtida pela estabilização dos sistemas de transmissão e recepção dentro de um mecanismo deinido, como airma René Berger (1977). Nesses mecanismos, a mensagem se apaga em favor da informação e em detrimento de sua qualidade de acontecimento, produzindo apenas uma reverberação de si mesma enquanto efeito de discurso. Talvez por isso Gilles Deleuze tenha airmado que “não sofremos da falta de comunicação, mas de seu excesso” (1992, p. 172). Ora, �alter Benjamin já observara que na modernidade acentuara-se o desvalor da comunicabilidade da experiência em favor de seu registro, codiicação e circulação sob a forma de informação. Em sua análise sobre im da arte da narrar, veriicara que o desenvolvimento das forças produtivas vinha “expulsando gradualmente a narrativa da esfera do discurso” (BENJAMIN,1993, p.201). Com a desvalorização da tradição oral e do épico, agrava-se também o enfraquecimento da gratuidade em que se apóia a narrativa. Daí Benjamin airmar que a narrativa teria entrado em extinção, sobretudo com o aparecimento do romance e de modos expressivos que favorecem o consumo da informação, como o jornal. Na verdade, foi a própria experiência que de certo modo passou a ser desqualiicada ao tornar-se um “objeto de consumo”. Benjamin reconhece essa tendência de empobrecimento e vai airmar que a experiência tende a ser esvaziada em seu sentido pela profusão e rapidez da circulação de notícias. Realmente, com a modernidade, passa-se a favorecer a relação de consumo na comunicação, que vai desvalorizar a qualidade propriamente “comunicativa” da experiência para privilegiar os efeitos de sua circulação. Desse modo, veriica-se que o conhecimento e o valor da experiência tendem a se apagar frente à informação (BENJAMIN, 1993), que sobrecodiica a realidade e a relação que mantém com ela o indivíduo, inaugurando novas formas de controle subjetivo. Nossa sociedade atual, como bem lembra Deleuze, não opera mais sob regimes duros ou por coninamentos. Antes, produz formas de domínio onde as Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1  regras não são mais externas e coercitivas, mas internas e aparentemente facultativas e que remetem a “trocas lutuantes” e “modulações” (DELEUZE, 1992, p. 222). No momento atual, quando a espetacularidade desses mecanismos se exibe sem pudores e em escala planetária, tornam-se mais urgentes e necessárias novas formas de pensamento e de intervenção, pois, em última instância, ao falar da produção e de controle de subjetividade(1), é do poder sobre a vida e seus modos de manifestação que estamos falando. Para tanto, creio ser importante considerar o que Peter Pál Pelbart diagnosticou como paradoxo de nossa condição contemporânea: a possibilidade do domínio cada mais amplo sobre a vida ou biopoder – a vida tornada alvo supremo do capital – ao lado da possibilidade da vida como um capital maior, capaz de promover resistências e singularidades, um poder da vida ou biopotência. (PELBART, 2003, p. 13). Pelbart, certamente apoiado em Foucault e Deleuze, crê que, em meio à complexiicação de nossas sociedades e modos de vida, ao acúmulo do conhecimento e da informação será sempre possível imaginar também o surgimento de uma heterogeneidade, uma polifonia capaz de gerar contrapontos, dissonâncias e rupturas. Trata-se então de produzir novas estratégias para a produção de diferença, pois é sempre possível pensar formas de resistência a partir das próprias instâncias em que se articulam os mecanismos de controle. Recordamos que Foucault (apud CAIAFA, 2000, p. 61) nos falava do surgimento de uma “nova era de curiosidade”, em que poder-se-ia explorar as potencialidades das novas técnicas na direção de uma transformação, afastando-se assim do discurso segundo o qual tudo vai mal e de que vivemos num vazio sem futuro. Airma ele: “ao contrário, acredito que há uma pletora. Não estamos sofrendo de um vazio, mas de meios inadequados para pensar sobre tudo o que está acontecendo”. É justamente aí que se insere a arte. A arte, enquanto campo de produção simbólica, é um espaço vital para o exercício desses questionamentos e dessas intervenções. A arte vai nos interessar especialmente pela aventura de caráter estético e subjetivo a que pode dar lugar - onde o estético diz respeito a formas de sensibilidade criadoras e o subjetivo, à produção social de estilos de vida. Como operador discursivo, a arte participa dos processos de produção de sentido, favorecendo, a um só tempo, a investigação sobre as atuais dimensões da experiência do humano e o surgimento de novas ferramentas de ação. As aventuras a que a arte dá lugar possibilitam distintas formas de percepção e de intervenção na realidade, formas essas que poderão propiciar o surgimento dos elementos de “escape”, que constituam o que Deleuze chamou de “linhas de fuga”. Fugir aí, porém, não será sair do mundo, antes, será algo mais ativo: “fazer fugir”, criar brechas nas modelizações dominantes, nas cristalizações e codiicações que caracterizam nossas sociedades, “fazer algo escapar, fazer um sistema vazar” (DELEUZE, PARNET, 1998, p.49). A arte certamente não seria a única instância do social capaz de promover essas rupturas, mas pode ser pensada como um dos focos ativos de experimenComunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1  tações que se cruzará com outros, ampliando as condições de possibilidade de engajamento da subjetividade em processos de invenção. Assim, a arte vai nos importar menos pelo que expressa e mais pelas marcas que pode deixar em nós, pela qualidade das experiências subjetivas que pode suscitar. Os usos artísticos de distintos elementos do cotidiano têm promovido uma intensa ressigniicação de suas inalidades, capaz de instaurar com eles uma relação diferenciada, inclusive com os meios de comunicação, embora certamente de forma minoritária. Concebida dessa forma, a arte funcionaria como uma engrenagem, uma máquina produtora de novas sensibilidades: é esta máquina que realiza, segundo Caiafa, “um trabalho criador com as formas expressivas e abre brechas nas subjetividades padronizadas, fazendo surgir singularidades” (CAIAFA, 2000, p.66). Esse trabalho criador é precisamente um exemplo do que Guattari (1993, p. 134-135) chamou de processos de singularização, processos que surgem desse poder da arte de produzir rupturas nas signiicações dominantes e de sua capacidade de operar também transformações na própria subjetividade, quando os segmentos semióticos que a constituem passam a formar novos campos signiicacionais. Quando proponho pensar a relação entre os campos da comunicação e da arte, estou precisamente propondo pensar a arte como um dos elementos singularizadores das experiências comunicativas, através da instauração de uma multiplicidade no interior das instâncias expressivas. Essa multiplicidade estaria fundada precisamente na possibilidade permanente de mutação dessas instâncias e seus agenciamentos, que se tornariam, assim, capazes de engendrar novas referências para a produção de sentido. Usos diferenciados da mídia e da tecnologia podem constituir vetores de singularização e poderiam ser considerados indícios do surgimento daquilo que Guattari chamou de “era pós-mídia” (GUATTARI, 1993, p.16). Nessa era, a mídia e suas modelizações subjetivas não teriam mais pretensões de sobrecodiicar a realidade. Ao contrário, teriam como objetivo ser uma fonte de heterogeneidade e polifonia, de novas formas de viver em sociedade. Essa era seria caracterizada não pela negação ou superação das tecnologias e meios de comunicação, mas por sua reapropriação e ressingularização, a partir das experimentações sociais feitas com seus elementos. Por trabalhar, de diferentes maneiras, com uma narrativa que se apóia na duração, a arte poderia produzir interessantes experiências com a comunicação, não no nível da transmissibilidade, mas no da criação e no do rearranjo de códigos sociais. É que a arte realiza um trabalho intensivo com as formas expressivas e, pelo menos desde o começo do século XX, vem realizando uma série de experimentações com elementos da cultura e da sociedade, ora reletindo e reforçando seus valores – e concretizando-os -, ora problematizando-os ou rompendo com eles. Esse trabalho de experimentação consiste exatamente na apropriação e na ressigniicação de objetos, imagens, discursos, textos, do corpo, além de tecnologias de comunicação como fotograia, cinema, vídeo e, atualmente, o Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1  computador, a Internet e as biotecnologias. Por ser um processo de produção simbólica – que articula e retrabalha elementos da cultura a todo instante-, a arte poderia, por um lado, nos ajudar a pensar os modos como o homem se relaciona hoje com a tecnologia, como vive a própria experiência da comunicação, e por outro, permitiria criar usos diferenciados das mídias e da tecnologia, ampliando suas possibilidades de intervenção cultural hoje. Nesse sentido, acredito ser viável pensar as relações entre comunicação e arte, na medida em que permitiriam discutir, de um lado, os usos diferenciados que podem ser feitos das tecnologias de comunicação e, de outro, o papel dessas tecnologias na sociedade atual, tanto no âmbito dos processos comunicativos quanto no da produção de subjetividade. Contudo, da mesma forma que se pode suspeitar dos primados midiáticos que regem os atuais processos comunicativos, também seria necessário não conferir à arte virtudes de antemão. É preciso considerar a própria arte como uma experiência construída socialmente, o que faz dela um complexo campo de forças que se articulam segundo distintas instâncias da cultura, em distintos momentos da história. Isso implica pensá-la também como multiplicidade, que abre espaços tanto para experiências criadoras, quanto para a produção de visões e ações empobrecedoras. A produção de arte em uma sociedade sempre esteve intimamente ligada às condições de possibilidade de discurso e percepção existentes nela. É que a experiência de “ver” e “falar”, segundo Deleuze (1987, p.9), é produzida historicamente e pode ser situada na relação mesma entre saber e poder. Portanto, a produção de arte pode ser considerada não exatamente como um espelho de uma sociedade, mas talvez como um mapa onde seria possível localizar os modos como os homens produzem seus valores, problematizam sua existência e, ao mesmo tempo, a transformam. E porque uma sociedade se deine não só por aquilo que ela codiica e cristaliza, mas também por aquilo que lhe escapa, como airmou Janice Caiafa (1992), é também na produção de arte que é possível lagrar as brechas pelas quais se dá esse escape e essa transformação. Nesse sentido, a condição contemporânea da produção artística guarda forte ligação com nossa cultura comunicacional, com a evolução tecnológica de nosso tempo e com a produção de nossos modos de existência, de subjetivação. Se o mundo atual é marcado, mais do que nunca, pela incerteza, pela fragmentação, pela acumulação, colagem e justaposição de tempos, espaços e experiências, a arte contemporânea deixa para trás uma certa “coerência sistêmica” característica, em muitos momentos, da modernidade, e vai assumir um permanente estado de descontinuidade. Essas mudanças só podem ser entendidas numa perspectiva histórica, onde se observa que aquilo que chamamos de “arte” é, na verdade, uma invenção do ocidente, nascida no Renascimento (por volta de 1400) (DANTO, 2003). É nesse momento que surgem as noções do indivíduo moderno e da autoria e onde, por exemplo, a pintura deixa de ser religiosa e ritual para ser objeto estético, migrando da arquitetura para a tela, que se torna uma “janela” Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1 7 que simula o mundo real. Já no modernismo, observa-se que essa janela se fecha: abole-se a perspectiva, a representação e passa-se a operar por desconstruções. O tema da arte deixa então de ser o mundo naturalista e passa a ser a própria arte e sua linguagem. A arte moderna vai criar, então para si, paradoxalmente, novos sistemas de interpretação e de valores que constituíram novos modelos de apreciação e de produção de arte. Vai discutir a própria arte, enquanto linguagem expressiva, estrutura narrativa e modo de perceber e agir no mundo, como foi o caso das chamadas “vanguardas históricas européias”. Enquanto a arte moderna diz respeito ao mundo da indústria, mundo eletro-mecânico, mundo das estruturas e categorias, a arte contemporânea se inscreve já em outra modalidade de experiência historico-cultural. É quando se começa a falar na “morte da arte”. Segundo Danto (2003), a chamada “morte da arte” começa com a arte moderna, que dotada da consciência de uma certa descontinuidade, vai romper com os cânones da arte clássica através da aposta na crise dos modelos de representação. Na segunda metade do século XX, as grandes narrativas sobre o mundo, o homem e a sociedade deinitivamente se esfacelam e a história deixa de ser centrada num relato oicial e passa a ser contada “em migalhas”. A década de 70 pode ser considerada como marco de percepção dessas crises. O im da arte signiica, em parte, “uma legitimação do que havia permanecido para além de seus limites”. Mas, certamente, o que morre não é a arte em si, mas sua identiicação com um relato oicial e uma experiência de arte que produz objetos auráticos concebidos para serem contemplados. Num momento em que o homem se torna capaz de reproduzir tecnicamente o real e alterá-lo com a fotograia e, em seguida, de reinventá-lo com o cinema, o que pode ser dito sobre a realidade? Se a realidade vai ser cada vez mais o que fazemos dela ou o que queiramos que ela seja, a arte moderna vai desejar exatamente se libertar das amarras que mais a limitavam: os sistemas de interpretação e de signiicado e o mimetismo que reforçam as grandes narrativas sobre a realidade. Exacerbados esses princípios, a arte, em sua condição contemporânea, não se interessa mais por produzir saberes ou sagrados, trata apenas de articular questões. Daí a grande liberdade para o uso de desde objetos banais e reaproveitados às telas do computador, os hipersistemas de redes telemáticas ou mesmo a biotecnologia como suporte para trabalhos de arte(2), cujos elementos articulados entre si vão constituir uma vasta rede sígnica. Nesse sentido, a arte contemporânea está mais para o código (subjetivo) do que para a linguagem (objetivo) e evoca mais a idéia de rede e de constelação (dispersão) do que de estrutura. O artista contemporâneo trabalha não mais com desejo de rompimentos ou superações, mas com o de deslocamentos, através de colagens e simultaneidades. O próprio museu hoje perde sua aura para se tornar um depósito de objetos passíveis de serem colados, conectados. Desses deslocamentos nascem uma condição de possibilidade que permite interessantes modalidades expressivas e arranjos singulares com a imagem, o texto, o gesto e as sonoridades, que podem ser descolados de seus contexComunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1 8 tos e usos tradicionais para criações onde são articulados de forma inusitada. Exemplos disso são a apropriação e ressigniicação de objetos e situações do cotidiano e os diversos hibridismos presentes na produção da arte anunciada pelas vanguardas européias do começo do século XX e hoje já mais aceitas e compreendidas: fotos e pinturas-esculturas, vídeo-performances, teatro-dança, ambientes-objeto etc. Com isso, é a própria experiência da arte que se modiica, bem como nossos parâmetros de percepção e discurso. Se a arte contemporânea parece algumas vezes “incomunicável”, é porque justamente se apóia num jogo de códigos que brinca com uma aproximação com a vida e o cotidiano, diálogo esse que vem sendo tecido há décadas, desde os dadaístas e surrealistas até às chamadas neo-vanguardas, passando pelos expressionistas abstratos e a Pop-art dos anos 60 e 70. Essa incomunicabilidade, portanto, só pode ser entendida dentro de um contexto de mudanças que, embora ainda não tenham sido digeridas totalmente, já são vividas por cada um de nós hoje. De toda forma, essa “incomunicabilidade” já seria o indício de que novas formas de decodiicação e de sensibilidade se fazem necessárias para dar conta da emergência de novas experiências sociais, estéticas e comunicativas, nascidas da constatação de que cada vez mais não apenas palavras, imagens e idéias se entrelaçam por meio dos aparatos midiáticos, mas também que todos os elementos que forjam nossos modos de existência fazem parte de uma mesma e complexa rede. Se antes críamos e víamos esses elementos isoladamente, hoje somos capazes de percebê-los cada vez mais conectados, como airmara Bruno Latour (1994) e reforça hoje René Berger (in DOMINGUES, 2003). É que o modelo pelo qual a civilização ocidental formatou nosso mundo, tal qual o conhecemos, apóia-se na naturalização e autonomização das esferas do social, particularmente a ciência, a tecnologia e a economia (BERGER, ibid). Esse modelo nos fez crer que tudo é transformável em mercadoria e, portanto, intercambiável. Só que para sustentar-se, esse modelo está a exigir hoje complexos e soisticados mecanismos de exclusão e controle e tende a relegar-nos à condição de “sobreviventes do futuro”, como bem diagnosticou Berger, e precisa, mais do que nunca, ser colocado sob suspeita. Se, como aponta Guattari, há um vazio produzido pela técnica e pelo capitalismo, se nos encontramos hoje cada vez mais envoltos na solidão gerada pela desertiicação dos espaços de troca, esse vazio só poderá ser suprimido pela apropriação subjetiva e material das próprias possibilidades oferecidas por nosso tempo e por novas formas de subjetivação, no que arte poderia ajudar. As aventuras a que a arte pode dar lugar possibilitam distintas formas de percepção e de intervenção na realidade, formas essas que poderão propiciar o surgimento dos elementos de “escape”, que constituam o que Deleuze chamou de “linhas de fuga”. Fugir aí, porém, não será sair do mundo, antes, será algo mais ativo: “fazer fugir”, criar brechas nas modelizações dominantes, nas cristalizações e codiicações que caracterizam nossas sociedades, “fazer algo Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves N8 | 2007.1 escapar, fazer um sistema vazar” (DELEUZE, PARNET, 1998, p.49). Neste sentido, as relações entre arte e comunicação constituem um importante espaço de investigação, na medida em que os valores da cultura e da experiência do homem são aí criados, processados e rearranjados constantemente e, por isso mesmo, necessitam ser revisitados para permitir o surgimento de novas perspectivas e ferramentas de análise dos fenômenos contemporâneos da comunicação. Referências bibliográficas BARROS, Anna e SANTAELLA, Lúcia (Orgs). Mídias e artes: os desaios da arte no século XXI. São Paulo: Unimarco, 2002. BERGER, René. Tornar-se sobrevivente do futuro? In: Domingues, Diana (Org.) Arte e Vida no século XXI. 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Para o autor, a subjetividade remete não ao individual, mas à produção de sentido e dos modos de vida, que, embora vividos individualmente, são atravessados e formados por diversos vetores. 2 Para trabalhos de arte que usam tecnologia, ver obras de autores como Diana Domingues e Lúcia Santaella, no Brasil, e no exterior, Michel Rush, Stefen Wilson, Florence de Méredie, entre outros. 10 Comunicação, cultura e arte contemporânea Fernando do Nascimento Gonçalves