Discussão sobre uma base teórica para o estudo da
social-democracia contemporânea
•
Guilherme Simões Reis••
RESUMO: A ciência política geralmente interpreta a social-democracia como
moderação, adesão ao capitalismo e diferenças apenas residuais em relação ao
liberalismo de mercado. Este artigo advoga por outra definição, baseada nas
ideias de Kautsky e Bernstein, com dois elementos-chave: a importância central
da democracia representativa e parlamentar e o reconhecimento de que há
limites para avançar na transformação social. O reformismo gradual que daí
decorre é o meio pelo qual os partidos social-democratas buscam melhorar a
vida de trabalhadores e excluídos, sua base eleitoral prioritária. Há nesses
partidos uma tensão entre o pragmatismo “bernsteiniano” e o purismo
“kautskiano”, que evita que a social-democracia vá para um dos extremos e,
com isso, se descaracterize. O avanço no limite das possibilidades e a luta para
modificar tais limites requerem o enfrentamento à hegemonia mercantilizadora.
PALAVRAS-CHAVE: Social-democracia, partidos, democracia representativa, Karl
Kautsky, Eduard Bernstein, hegemonia.
ABSTRACT: Political Science uses to interpret social democracy as
moderateness, adhesion to capitalism and only residual differences relatively to
market liberalism. This paper advocates for another definition based on the
ideas from Kautsky and Bernstein, containing two key elements: the core
importance of representative and parliamentary democracy and the
acknowledgement that there are constraints to the advancement of social
transformation. The gradual reformism which results is the way social
democratic parties use to pursue the improvement of the workers’ and excluded
people’s lives, who compose their core constituency. Inside these parties there is
a tension between “Bernsteinian” pragmatism and “Kautskyan” purism, which
avoids that social democracy moves to one of the two extremes and loose its
traits. Advancing as far as possible and fighting to transform the constraints,
both require confronting commodification hegemony.
KEYWORDS: Social democracy, parties, representative democracy, Karl
Kautsky, Eduard Bernstein, hegemony.
***
Trabalho preparado para IV Seminário Científico Internacional Teoria Política do Socialismo, realizado em
Marília, entre 15 e 18 de agosto de 2011.
••
Doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (IESP-UERJ), bolsista FAPERJ.
•
1
Discussão sobre uma base teórica para o estudo da
social-democracia contemporânea
•
Guilherme Simões Reis••
O mais nobre no Socialismo é justamente
que ele não é o regime da minoria. Ele
não pode, portanto, e não deve ser
imposto por uma minoria.
Jean Jaurès
Este trabalho está voltado para a elaboração de bases teóricas para analisar a socialdemocracia – e mais especificamente os partidos social-democratas, especialmente quando
estes estão no governo – contemporaneamente e/ou ao longo do tempo. Este objetivo tem
implícitas duas premissas, as quais marcam um rompimento com formas tradicionais de se
abordar a questão. A primeira delas é a consideração de que o conceito de socialdemocracia é aplicável a diferentes épocas e contextos, e não apenas a uma época do
tempo e lugar, a saber, o período entre a Segunda Internacional e o pós-guerra na Europa.
A segunda é a de que a social-democracia deve ser tratada de modo semelhante ao que
faziam autores como Karl Kautsky e Eduard Bernstein – como uma forma de política
socialista que tem a democracia representativa eleitoral parlamentar como essencial e não
meramente como instrumental – e não como tem sido abordada mais correntemente.
A presente crítica considera a forma recorrente de se analisar a social-democracia
como muito próxima a uma sistematização do senso comum: moderação, defesa e adesão
ao capitalismo, diferenças no máximo residuais em relação ao liberalismo de mercado,
políticas equivalentes àquelas defendidas pelos neoliberais. De acordo com tal visão,
haveria uma progressiva moderação desses partidos até não mais se diferenciarem dos
adversários. A social-democracia seria, por definição, moderada, de “centro-esquerda”, e
implicaria mudanças superficiais. Essa abordagem obscurece as diferenças entre direita e
Trabalho preparado para IV Seminário Científico Internacional Teoria Política do Socialismo, realizado em
Marília, entre 15 e 18 de agosto de 2011.
••
Doutorando em Ciência Política no Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro (IESP-UERJ), bolsista FAPERJ.
•
2
esquerda ou limita o escopo em que se percebe que a social-democracia pode atuar
efetivamente.
Este trabalho propõe outra abordagem: a social-democracia é uma política socialista,
partidária, que visa a avançar na transformação do sistema produtivo, de modo a torná-lo
mais favorável aos trabalhadores (não apenas o operariado fabril1) e excluídos, que
formam sua base eleitoral prioritária (core constituency). Contrariamente aos partidos
comunistas, ou marxista-leninistas, os social-democratas destacam a importância central da
democracia representativa e parlamentar. Ao refutarem a opção pela revolução violenta
(revolução, aqui, não tem o significado de transformação profunda da ordem, pois a
premissa é justamente a de que esta pode ser realizada pela via institucional), reconhecem
que há limites conjunturais para esse avanço, que impactam em sua velocidade.
Tal abordagem pode ser representada como uma tensa síntese das ideias de Karl
Kautsky e Eduard Bernstein. Ambos concordam com esses pontos, mas apresentam
discordâncias que estão presentes no interior de qualquer partido social-democrata,
dividido em uma ala mais pragmática e outra mais purista. A questão será analisada em
uma seção específica.
Não se trata de uma visão ingênua e voluntarista de que todos os partidos ditos socialdemocratas efetivamente agem com a motivação de transformar a sociedade favorecendo
os trabalhadores. Ao contrário, é uma abordagem muito mais exigente: caso eles não façam
isso, é necessário que eles não sejam classificados como social-democratas. Avaliações
impressionistas, entretanto, não contribuem para um diagnóstico adequado. Há que se
analisar as medidas adotadas pelos governos de partidos social-democratas e as limitações
que eles enfrentam, conforme será discutido neste texto.
Gramsci chama a atenção para o papel da hegemonia, por meio da qual os interesses
do grupo dominante, aquele cuja ideologia prevaleceu no confronto das ideologias, são
vistos como coordenados com os interesses dos grupos subordinados (Sader, 2005). Aí está
tanto um perigo como uma missão para a social-democracia. O perigo é o de os partidos
tidos como social-democratas não atuarem de modo realmente social-democrático, isto é,
não defendendo os interesses dos trabalhadores ou excluídos, ao menos não quando estes
1
Uma abordagem da social-democracia que não a considere um conceito unicamente aplicável a um período
passado não poderia anacronicamente excluir da base eleitoral dos partidos social-democratas outros grupos
de trabalhadores que não o operariado. A ênfase de autores clássicos nesse grupo específico de trabalhadores
fazia sentido em sua época, mas hoje deve ser expandida.
3
representarem uma ameaça aos interesses do capital. A missão é agir para que prevaleça
uma nova ideologia, alcançando apoio para sua plataforma e um ambiente mais favorável.
Os partidos realmente social-democratas avançam no limite das possibilidades e trabalham
para reduzir essas limitações à plataforma socialista.
A melhoria das condições de vida dos trabalhadores e excluídos em geral passa não
apenas por lhes garantir uma renda suficiente para uma boa vida, mas também pela
desmercantilização dos indivíduos frente ao mercado, ou seja, pela sua emancipação da
dependência do mercado. Os direitos sociais devem estar relacionados à cidadania e não à
eficiência ou à produtividade do indivíduo no mercado, não ao seu poder de pagar uma
contribuição (Esping-Andersen, 1985 e 1990).
Na próxima seção serão abordados a visão predominante sobre a social-democracia e o
importante papel desempenhado por Adam Przeworski (1989) em sua sistematização. Em
seguida, será realizado o contraponto, apresentando-se o conceito de social-democracia
aqui proposto, sua relação com o pensamento de Kautsky e Bernstein, a dinâmica interna
dos partidos social-democratas e, por fim, uma conclusão acerca do significado da
moderação da social-democracia e o desafio que ela impõe ao pesquisador.
1. A visão predominante sobre a social-democracia
O senso comum basicamente repete a sistematização realizada por Adam Przeworski
(1989). Sua análise oferece uma importante contribuição para o entendimento do momento
inicial de expansão e fortalecimento dos partidos social-democratas na Europa. Ele narra o
processo de adesão e defesa da democracia, seguidos pela opção pela reforma em
detrimento da tese da revolução e pela aceitação de alianças, passando a social-democracia
a se pautar pelas melhorias gradativas e cumulativas. É de grande utilidade sua constatação
de que a única política econômica que os partidos socialistas tinham em seu programa de
governo era a nacionalização da indústria, de modo que, quando venceram pela primeira
vez as eleições, só lhes restou adotar as mesmas políticas econômicas ortodoxas dos
adversários, apenas com um pouco mais de política social, e que isso mudou a partir da
adoção do Keynesianismo desde os anos 1930, com o intuito de redefinir o papel do
Estado.
Przeworski, no entanto, tira conclusões questionáveis quando afirma categoricamente
que há uma mudança nos objetivos dos partidos social-democratas e, pior, considera isso
4
como um traço característico da social-democracia. O cientista político polacoestadunidense sistematizou a trajetória da social-democracia sob uma perspectiva
determinista.
Ele afirma que o abandono do capitalismo deixou de ser o objetivo da socialdemocracia, sendo substituído por sua humanização. Essa aceitação do capitalismo,
segundo ele, implicaria a necessidade de que as intervenções do Estado devessem se pautar
pela eficiência econômica, de modo que os partidos social-democratas teriam passado a se
preocupar mais com o abrandamento dos seus efeitos perversos do que com o próprio
reformismo, que teria perdido seu caráter cumulativo.
Esping-Andersen (1985:14) classifica a argumentação de Przeworski como “uma
variação mais sutil e sofisticada de leninismo”. Este não negaria a possibilidade de a
social-democracia parlamentar conseguir a maioria necessária para a transformação
socialista; justamente nesse momento histórico, no entanto, segundo o autor, ela
encontraria sua derrota, sobrecarregada com demandas populares que não poderiam ser
atendidas sem desestabilizar a economia e sem provocar crises incontroláveis.
A tese da diluição ideológica da social-democracia antecede a obra de Przeworski.
Manin (1989) constata que ela se difundiu já nos anos 1960, a partir da tese de
Kirchheimer (1966) da “americanização” dos partidos social-democratas. Manin, no
entanto, recusa que o objetivo final é abandonado na social-democracia. Para ele, o
objetivo final continua existindo, como um tipo de ideia reguladora, de guia para as ações.
O conceito de social-democracia adotado neste artigo se identifica mais com Manin do que
com Przeworski.
O argumento de mudança de objetivo da social-democracia, que ecoa no senso
comum, está presente tanto em autores liberais, que aplaudem a esquerda por sua suposta
domesticação, como em marxistas, como Coelho (2001), que a tratam como traidora. Mais
rica é a análise de Panizza (2005) da “social-democratização” da esquerda brasileira,
uruguaia e chilena. Ele dá a atenção devida às limitações – era do capital móvel e
financeiro, sindicatos enfraquecidos, baixo número de trabalhadores industriais – e ao
respeito às instituições democráticas na busca por reformas. Também está atento às
possibilidades de aprofundamento das instituições democráticas e à mudança radical na
vida da população que a produção de empregos e a melhoria dos serviços públicos
significariam.
5
Ainda assim, no entanto, Panizza caracteriza o posicionamento da social-democracia
como uma guinada do radicalismo para a “centro-esquerda”, como se o não-rompimento
(imediato) com o capitalismo – e sim a sua limitação e correção – inviabilizasse a
classificação como “esquerda”.
2. Uma outra abordagem sobre os partidos social-democratas
Há, na presente definição de social-democracia derivada da síntese de Kautsky e
Bernstein, um consenso quanto à importância central da democracia representativa e
parlamentar e quanto ao reconhecimento de que há limites conjunturais (ou estruturais
mas, ainda assim, alteráveis) para se avançar na transformação do sistema produtivo, de
modo a torná-lo mais favorável aos trabalhadores e excluídos, que formam sua base
eleitoral prioritária (core constituency).
Trata-se de um tipo de socialismo em que as instituições democráticas liberais são
vistas como um instrumento para as políticas socialistas e em que o Estado é concebido
como uma instituição não necessariamente antiproletária, pois muda seu caráter quando os
representantes do povo estão no poder. O reformismo gradual que daí decorre é adotado
em meio a um conflito interno nos partidos social-democratas entre o pragmatismo
“bernsteiniano” – que, por não ter objetivos de longo prazo definidos, por vezes se
confunde com os adversários da direita – e o purismo “kautskiano” – que recusa alianças
que não apenas não impediriam, como até viabilizariam reformas profundas.
A social-democracia seria, portanto, herdeira da Segunda Internacional2, na qual
continuaram tanto os “ortodoxos” democráticos como os revisionistas – estes, apesar de
condenados no discurso, acabaram por predominar na prática dos partidos socialdemocratas. A social-democracia contrasta, dentro do campo socialista, com os comunistas
– que romperam com a Segunda Internacional para formar a Comintern, a Terceira
Internacional, condenando a rejeição à revolução violenta e a defesa da “democracia
burguesa” como “deformações” do marxismo. Como observa Andreucci (1982), aquela foi
uma fratura dramática no movimento operário, muito mais significativa do que as
2
Andreucci (1982: 18) diz que não há uma “estrita continuidade com a Segunda Internacional” no marxismo
não-comunista, havendo, na verdade, casos de inovação, como o austromarxismo. Ele reconhece, porém, que
as inovações eram em parte “resultado de uma seleção muito atenta no âmbito das tradições da Segunda
Internacional”.
6
divergências entre ortodoxos e revisionistas no seio do Partido Social-democrata Alemão,
que tinha como norma interna ampla “liberdade de crítica”.
A referência a Kautsky e Bernstein, dois teóricos de origem marxista de contato muito
próximo com Engels, na apresentação deste conceito de social-democracia não significa
ignorar que a social-democracia não tem o marxismo como única base teórica. É
necessário ter em vista que ela incorporou muitas outras influências, como a do socialismo
utópico, a do socialismo cristão e a de diferentes tradições econômicas. Esse ecletismo, que
foi duramente condenado por muitos marxistas favoráveis à revolução violenta, é nítido em
Bernstein, bastante influenciado pelo contato com a socialista Sociedade Fabiana britânica,
particularmente com o casal Sidney e Beatrice Webb (Kloppenberg, 1986).
3. Proximidades e divergências entre Kautsky e Bernstein
Este trabalho vê a social-democracia como uma tensa síntese das ideias dos “teóricos
fundadores” Karl Kautsky e Eduard Bernstein. Afinal, como afirma Esping-Andersen
(1985: 17): “A teoria social-democrata moderna deriva da controvérsia entre o reformismo
marxista, exemplificado por Kautsky, e o revisionismo de Bernstein.”
Kautsky via a política dentro da lógica da luta de classes e, por isso, ele se opunha a
alianças com os partidos burgueses, salvo em casos excepcionais e em períodos breves3.
Parcerias dos proletários com camponeses e intelectuais eram bem-vindas, mas não
poderiam implicar qualquer alteração no programa do partido social-democrata. Kautsky
defendia a adesão ao sistema representativo e eleitoral e, inclusive, o respeito pela
existência e atuação de partidos adversários, burgueses, mas considerava inaceitável uma
composição com eles. Para ele, o proletariado deveria atuar na democracia como oposição,
até que, maduro e numeroso o suficiente, fosse capaz de atingir a maioria no parlamento e,
então, levar adiante a “revolução social” (Salvadori, 1982; Waldenberg, 1982). A ideia de
“revolução”, aí, está dissociada tanto de violência como de rapidez, e diz respeito apenas à
profundidade da transformação (Przeworski, 1989; Manin, 1989).
Kautsky não abandona a ideia de derrubar o capitalismo e de substituí-lo pela ordem
de produção socialista, mas vê na democracia representativa um meio eficiente de atingir
3
Conforme observa Salvadori (1982), Kautsky mudaria de opinião quanto aos governos de coalizão,
defendidos por ele abertamente em seu A revolução proletária e seu programa, publicada em 1921, três anos
depois de A ditadura do proletariado. Entretanto, em quase todo o período de maior influência intelectual do
autor, ele defendeu uma adesão pacífica à democracia liberal sem qualquer concessão política aos burgueses,
encarando as eleições e disputas parlamentares como uma arena preferencial da luta de classes
7
tal objetivo – que necessariamente viria a ocorrer, de acordo com sua teoria determinista –,
ainda que de forma lenta, sem desperdício de forças. Como observa Manin (1989), a
oposição que marca a diferença entre a cultura social-democrata pacífica e a leninista
violenta é a do curto e do longo prazo.
Para Bernstein, por outro lado, a democracia não só é o meio para o socialismo, como
também é o fim, pois o fim é sempre construído, não podendo ser definido ex ante.
Segundo Bernstein (1997: 126), “Sem uma determinada quantidade de instituições ou
tradições democráticas, [...] Haveria, por certo, um movimento operário, mas não uma
social-democracia.”
Contrariamente a Kautsky – que vê uma inevitabilidade da democracia em direção ao
socialismo, assim como a disputa política como um jogo de soma zero, em que quem tem a
maioria para vencer as eleições implementa o seu programa –, Bernstein é cético em
relação a essa uniformização. Ele defende justamente a incorporação das camadas médias
como aliados, o que faz sentido em sua concepção ética de socialismo, não deduzida do
materialismo histórico (Waldenberg, 1982; Fetscher, 1982; Salvadori, 1982; Kloppenberg,
19864; Przeworski, 1989).
Se por um lado as diferenças entre Kautsky e Bernstein são importantes e se
reproduzem no interior dos partidos social-democratas até hoje, por outro a essência da
social-democracia é o que suas visões de mundo têm em comum. Ambos defendiam a
importância central da política parlamentar e do sufrágio universal. Já na redação do
Programa de Erfurt, Kautsky (1971) afirmava que, quando os trabalhadores começam a
fazer parte da política parlamentar, ela tem sua própria natureza alterada; passa a ser como
uma arena da luta de classes sem violência, em que não havia desperdício de tempo e
energia de nenhuma das duas partes, pois ambas viam, como em um termômetro, o seu
grau de apoio e sua capacidade de avançar nas mudanças ou de freá-las.
Kautsky diz que não é possível o socialismo existir sem democracia, porque, na
ausência dela, ele não emancipa o proletariado, não cumpre o objetivo final: a meta é a
4
Kloppenberg não enfatiza a adesão à democracia e sim outros elementos em sua definição de socialdemocracia, que, por vezes, é contraposta ao marxismo. Aspectos presentes em Bernstein, e que o autor
reconhece em pensadores que segundo ele seriam os representantes teóricos social-democratas na França, no
Reino Unido e nos Estados Unidos, são os tópicos que ele identifica como definidores da social-democracia:
empiricismo, reconhecimento da impossibilidade de se ter certezas sobre o futuro, idealismo e ética em vez
de materialismo. Kautsky, segundo ele, não seria nem um social-democrata, nem um revolucionário, e estaria
espremido entre os dois, no centro do Partido Social-democrata Alemão. Kloppenberg, no entanto, considera
Jean Jaurès como o representante por excelência da social-democracia francesa e, ao mesmo tempo, afirma
que ele está ideologicamente mais próximo de Kautsky do que de Bernstein.
8
“revolução social”, isto é, uma profunda transformação da sociedade, com a eliminação da
opressão e da exploração – e não uma mera troca de quem está no poder, à semelhança das
revoluções burguesas e do regime soviético. Essa “revolução social” é necessariamente
gradual e lenta, deve ser aceita pela maioria da população – o que ocorrerá quando ela
estiver madura para o socialismo – e não imposta por uma minoria que se intitule detentora
do conhecimento. Assim, segundo Kautsky (1979: 37), é necessário que “a revolução
social se submeta aos princípios de ação da democracia; isto é, que a revolução social não
vá além do ponto a que a maioria da massa do povo está determinada a ir”.
Bernstein (1997: 114), por sua vez, como não tinha as certezas de Kautsky acerca de
um triunfo socialista, valorizava mais a experimentação, fundamental em função das
incertezas da política, e, para ele, o ambiente democrático é o mais propício para ela, por
meio do conflito de ideias e de interesses.
Bernstein observa que o sufrágio universal é “útil aos exploradores, como Bismarck”,
quando os trabalhadores não têm discernimento, mas, quando têm, ele é “seu terror”,
concordando com Kautsky que, a partir da organização deles, o sistema representativo com
sufrágio universal mudou seu caráter. Se, inicialmente, “o direito geral a voto pode
parecer-se muito com o direito de escolher ‘o carrasco’; com o número crescente e o maior
discernimento dos trabalhadores, a situação mudou”.
Como Kautsky, Bernstein também vê a democracia como um termômetro pelo qual os
partidos e classes sabem até onde ir sem correr maiores riscos. Ele diz que a democracia é
a “escola superior do compromisso”, e que os partidos e as classes sociais que estão por
trás deles conhecem seus limites, sabem até onde ir de acordo com as circunstâncias do
momento, moderam-se, mesmo que, às vezes, façam exigências superiores ao que
seriamente pensam.
Bernstein (1997: 125) dá o importante passo de explicitar que as instituições liberais
não são contrárias ao socialismo, bastando que elas sofram ajustes para que os
trabalhadores sejam beneficiados: “As organizações liberais da sociedade moderna
distinguem-se daquelas [das organizações feudais] precisamente pela sua flexibilidade e
sua capacidade de transformação e desenvolvimento. Não precisam ser destruídas, mas
apenas ser desenvolvidas.”
Em síntese, ambos enfatizam a necessidade de aceitar e participar da democracia
representativa, inclusive admitindo a atuação dos partidos burgueses, rejeitam o uso da
9
violência (a não ser para se defender, justamente, de um ataque autoritário das forças
reacionárias), chamam a atenção para a mudança do caráter da democracia liberal a partir
da atuação do partido social-democrata, e reconhecem que há limites para uma
transformação socialista rápida.
4. A dinâmica da social-democracia
Ao invés da adoção da ideia de que a social-democracia é um movimento passivo, é
mais construtivo analiticamente e superior normativamente incorporar como premissa
analítica o comprometimento com a transformação da sociedade, que era um ponto
essencial tanto para Kautsky como para Bernstein. Isso lança luz, inclusive, sobre as
possibilidades
das
instituições
políticas
liberais,
ofuscadas
em
abordagens
procedimentalistas reducionistas como, por exemplo, a de Riker (1982).
Mesmo as diferenças entre o pensamento de Kautsky e o revisionismo de Bernstein
devem ser consideradas nesta abordagem dos partidos social-democratas. Os dois
elementos-chave citados – democracia representativa e reconhecimento de limites –,
comuns a ambos, são características irredutíveis da social-democracia. Os pontos de
antagonismo entre os dois teóricos são refletidos nas alas “purista” e “pragmática” de todos
os partidos social-democratas, e a própria tensão entre elas é importante para o
desenvolvimento da social-democracia.
Essa definição é análoga à tensão entre a lógica da representação das bases eleitorais e
a lógica da competição eleitoral, presente na formulação de Kitschelt (1989) sobre a
formação dos partidos políticos. A lógica da representação das bases eleitorais é inspirada
pela ideologia e pelas práticas políticas de seus apoiadores. A opção pela lógica da
competição eleitoral, por outro lado, implica o ajuste da organização interna, do programa
e das estratégias às condições do “mercado político”, para maximizar o apoio eleitoral.
Quanto mais puro ideologicamente for o programa do partido, mais restrito é seu apelo
eleitoral. Entre as duas opções polares haveria um continuum de possibilidades, da mesma
forma, é claro, que há possibilidades intermediárias entre os tipos ideais “purista” e
“pragmático” na teoria de social-democracia aqui sustentada.
Subjaz a perspectiva adotada neste trabalho a ideia de que há atores dentro dos
partidos que querem que eles deem uma guinada para cada um dos extremos – o do
10
purismo e o do pragmatismo –, e de que é a tensão entre eles que mantém o partido
aproximadamente no meio, podendo tender um pouco para cada um dos lados.
Os dois pólos – purista e pragmático – estão vivos e em permanente disputa dentro dos
partidos. Se um dos dois se enfraquecer demais, corre-se o risco de que o partido deixe de
ser efetivamente social-democrata e se torne meramente office-seeking (interessado em
postos de poder como fim último e não como meio de implementar determinadas
políticas), ou de se isolar como um partido de gueto, que não é capaz de vencer eleições e,
por isso, tem dificuldades ou mesmo a impossibilidade de influenciar a decisão acerca das
políticas a serem adotadas.
Obviamente também podem levar a uma mudança de rumo dos partidos seus
integrantes não classificáveis como social-democratas, como liberais, puros office-seekers
não-ideológicos, ou comunistas, por exemplo. A entrada deles é freqüentemente admitida,
dada a frouxidão de critérios comumente empregada para as filiações e a maior liberdade
interna, uma marcada diferença em relação aos partidos comunistas (Esping-Andersen,
1985). Isso também é um entrave à plataforma social-democrática e complexifica uma
análise dos atores no interior do partido.
Este conceito tem como pontos essenciais a insubstituível opção pela via democrática
das reformas e a compreensão de que estas são realizadas dentro das limitações existentes
no país, com o intuito de transformar o capitalismo de modo a tornar o sistema produtivo
mais favorável aos trabalhadores e excluídos. O foco é, idealmente, sempre a melhoria das
condições de vida e de trabalho dos assalariados e dos desfavorecidos em geral, que
formam sua base eleitoral prioritária (core constituency). As limitações são de vários tipos:
correlação de forças entre os partidos políticos, heranças teóricas tradicionais específicas
de cada partido social-democrata, necessidade ou não de formar coalizões com outros
partidos, capacidade de intervir na legislação, poder econômico do país e sua inserção na
economia internacional, grau de competências atribuídas ao Estado, proporção de clientes
e potenciais apoiadores de políticas públicas social-democráticas etc.
O conceito de social-democracia aqui desenvolvido implica a transformação da
sociedade dentro do que é aceito por ela, necessariamente – mas não unicamente – por
meio da democracia eleitoral e parlamentar, na velocidade em que as condições
possibilitem. Tal interpretação se identifica tanto com o revisionismo de Bernstein como
com o que defendia Kautsky, para quem a “ditadura do proletariado” não significaria um
11
governo autoritário e sim o resultado de uma vitória esmagadora nas urnas (Kautsky,
1979).
5. O foco da análise: moderação ou limites?
Moderação e pouca profundidade das reformas não seriam características da socialdemocracia em si, como supõe o senso comum, e sim resultados condicionados por uma
determinada conjuntura. Como observa Esping-Andersen (1990:44), o que separa as alas
reformista e revolucionária do socialismo é muito mais a questão da estratégia a se adotar
do que seus objetivos.
A premissa das melhorias gradativas e cumulativas é fundamental para um conceito de
social-democracia, mas não se pode ignorar o aspecto das limitações. Assim, uma redução
na velocidade das reformas não significa necessariamente que elas se tornaram menos
relevantes ou que foram abandonadas, como sugere Przeworski; elas simplesmente podem
não ter condições conjunturais de avançar. Entretanto, é fundamental destacar: a
conjuntura é, ela também, alterável pela ação dos diferentes atores em disputa. Conforme
observa Esping-Andersen (1990:32), reformas ocorridas no passado contribuem para o
enraizamento de preferências de classe e de comportamentos políticos.
Conforme o observado na primeira seção, a existência de uma hegemonia prómercado, cuja ideologia apresenta os interesses do grupo dominante como coordenados
com os interesses dos grupos subordinados, representa tanto um perigo como uma missão
para a social-democracia. O perigo é o de que jogos de soma positiva, isto é, situações
favoráveis em que todos são beneficiados, camuflem uma situação de manutenção de
privilégios e das condições para a máxima expansão do grupo dominante, que permite um
relativo atendimento dos interesses dos grupos subordinados, mas apenas até o ponto em
que não haja transformações estruturais profundas e de natureza desmercantilizadora.
É missão do investigador, portanto, identificar, nos contextos em que chega ao limite o
atendimento simultâneo aos interesses de grupos ligados ao mundo do trabalho e aos de
grupos ligados ao mercado, para que lado pende a balança; se pender para o empresariado,
contra os trabalhadores, mesmo que as condições econômicas viabilizem uma estratégia
inversa, então a política não deve ser vista como social-democrática. Ao mesmo tempo, no
interior dos partidos social-democratas, podem ser analisadas as disputas entre grupos em
torno do caminho a ser adotado, identificando-se tanto aqueles que buscam uma
12
manutenção do status quo, sem uma transformação favorável aos trabalhadores, como seus
opoentes, os setores social-democratas (separando-se destes, entretanto, os segmentos
dogmáticos presos unicamente ao discurso e distanciados da análise das condições reais
para o avanço social-democrata).
Paralelamente, são objeto de pesquisa as medidas adotadas para, em um novo conflito
de ideologias, deslocar a hegemonia, conquistando corações mentes para uma nova
situação mais favorável aos trabalhadores e para a condenação da exclusão e da
mercantilização. A conquista da opinião pública é fundamental para a social-democracia,
que dela depende para a obtenção de vitórias eleitorais consistentes o suficiente para levar
adiante reformas profundas, que tenham um caráter cumulativo e estejam menos sujeitas a
recuos futuros.
Esclareceria mais para entender os partidos social-democratas, portanto, um estudo
sobre esforços específicos em cada país para se tentar modificar as condições que os
restringem e, assim, poder retomar o avanço reformista. Esping-Andersen (1985) e Manin
(1989) estão mais atentos a essa possibilidade de se adotarem políticas para modificar as
condições existentes.
Lanzaro (2007: 19), apesar de ter realizado uma análise pouco consistente das
esquerdas “populistas” na América Latina5, mostrou-se atento à relevância de se avaliar os
governos social-democratas do ponto de vista de seu avanço no limite das possibilidades:
[...] cabe construir um ranking de alta, média ou baixa inovação, que sirva para avaliar o
aproveitamento do capital político que deriva dessas alternâncias e nos deixe saber se
essas esquerdas governantes estão à altura de suas próprias possibilidades. Por extensão,
a investigação permitiria fazer referência às experiências europeias e, do mesmo modo,
estabelecer comparações com os governos anteriores, que nos três países a que nos
referimos [Brasil, Chile e Uruguai] impulsionaram um reformismo relativamente
importante. Poderíamos saber, então, com certo fundamento empírico, se essas
esquerdas – integradas à democracia política – delineiam efetivamente uma democracia
social.
A questão do abandono ou da adesão ao capitalismo não é tão relevante, visto que
talvez não seja possível determinar a priori se uma transição gradual do capitalismo para o
socialismo, seja lá como este for definido, está ou não ocorrendo quando um governo
realiza reformas pró-trabalho ou de controle e limitação do capital.6 Da mesma forma,
interpretar a perda da ênfase na socialização dos meios de produção como mudança de
5
Para uma crítica a essa abordagem, ver Reis e Vieira (2009).
Esping-Andersen (1985) faz argumento semelhante, ainda que utilizando outra terminologia. Segundo ele,
não se pode prever, no momento da realização de uma reforma, se ela terá ou não um efeito revolucionário.
6
13
objetivo ignora que o ponto central é a mudança da correlação e forças entre trabalho e
capital e que a forma vista como adequada para promovê-la é conjunturalmente
condicionada.
Kautsky e Bernstein, cada um a seu modo, pensaram em políticas específicas para a
conjuntura que observavam. Obviamente, transplantá-las para o presente, ao menos sem
alterações, seria anacrônico. Aos social-democratas de hoje, cabe fazer o mesmo que eles,
analisando as limitações, com atenção às oportunidades de avanço, e sempre com a política
institucional eleitoral e parlamentar como lócus incontestável. A luta para transformar
esses limites, inclusive com o estabelecimento de uma nova hegemonia, tem papel não
menos fundamental. Aos analistas, por sua vez, cabe buscar métodos de avaliar se os
avanços nos projetos social-democratas estão ocorrendo no limite das possibilidades ou se
governos e partidos classificados como social-democratas não fazem jus a esse rótulo.
Referências bibliográficas
ANDREUCCI, Franco (1982). “A difusão e a vulgarização do marxismo”. In: Eric J.
Hobsbawm et alii. História do Marxismo 2: O Marxismo na Época da Segunda
Internacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
BERNSTEIN, Eduard (1997). Socialismo evolucionário. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
COELHO, Roseli Martins (2001). Social-democracia: Formas e reformas. São Paulo,
Humanitas.
ESPING-ANDERSEN, Gøsta (1985). Politics against markets: The social democratic road
to power. Princeton, Princeton University Press.
___ (1990). The three worlds of welfare capitalism. Princeton, Princeton University Press.
FETSCHER, Iring (1982). “Bernstein e o desafio à ortodoxia”. In: Eric J. Hobsbawm et
alii. História do Marxismo 2: O Marxismo na Época da Segunda Internacional. Rio
de Janeiro, Paz e Terra.
KAUTSKY, Karl. 1971. The Class Struggle: Erfurt Program. Nova York, W. W. Norton &
Company.
___ (1979). “A Ditadura do Proletariado”. In: K. Kautsky e V. I. Lenin. Kautsky: a
ditadura do proletariado; Lenin: a revolução proletária e o renegado Kautsky. São
Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas.
KIRCHHEIMER, Otto (1966). “The transformation of Western European party systems.
In: J. La Palombara e M. Weiner (eds.), Political Parties and Political Developments.
Princeton, Princeton University Press.
14
KITSCHELT, Herbert (1989). “Organization, Strategy, and Elections”. In: ___. The Logics
of Party Formation: Ecological Politics in Belgium and West Germany. Ithaca e
Londres, Cornell University Press.
KLOPPENBERG, James T. (1986). Uncertain Victory: Social democracy and
progressivism in European and American thought, 1870-1920. Nova York, Oxford
University Press.
LANZARO, Jorge (2007). “Gobiernos de izquierda en América Latina: entre el populismo
y la social democracia – Uma tipología para avanzar en el análisis comparado”. Análise
de Conjuntura – Observatório Político Sul-americano, 12, dezembro. Disponível em
<http://observatorio.iuperj.br/pdfs/40_analises_AC_n_12_dez_2007.pdf>.
LENIN, Vladimir I. (1979). “A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky”. In: K.
Kautsky e V. I. Lenin. Kautsky: a ditadura do proletariado; Lenin: a revolução
proletária e o renegado Kautsky. São Paulo, Livraria Editora Ciências Humanas.
MANIN, Bernard (1989). “Démocratie, pluralisme, libéralisme”. In: Alain Bergounioux e
___. Le régime social-démocrate. Paris, Presses Universitaires de France.
NETTL, J. P. (1973-74). “Social Democracy in German and Revisionism”. In: Philip P.
Wiener (ed.). The Dictionary of the History of Ideas. Nova York, Charles Scribner’s
Sons.
PANIZZA, Francisco E. (2005). “The Social Democratisation of the Latin American Left”.
Revista Europea de Estudios Latinoamericanos y del Caribe, no 79, outubro, pp. 95103.
PRZEWORSKI, Adam (1989). “A social-democracia como um fenômeno histórico”. In:
___. Capitalismo e Social-democracia. São Paulo, Companhia das Letras.
REIS, Guilherme Simões e VIEIRA, Soraia Marcelino (2009). Left-Wing Populists in
Latin America?: An Analysis of the Chávez and Morales Governments. Trabalho
apresentado no 21o Congresso Mundial de Ciência Política, em Santiago do Chile.
RIKER, William H. (1982), Liberalism against populism: A confrontation between the
theory of democracy and theory of social choice. São Francisco, W. H. Freeman.
SADER, Emir (org.) (2005). Gramsci: poder, política e partido. São Paulo, Expressão
Popular.
SALVADORI, Massimo L. (1982). “Kautsky entre ortodoxia e revisionismo”. In: Eric J.
Hobsbawm et alii. História do Marxismo 2: O Marxismo na Época da Segunda
Internacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
WALDENBERG, Marek (1982). “A estratégia política da social-democracia alemã”. In:
Eric J. Hobsbawm et alii. História do Marxismo 2: O Marxismo na Época da
Segunda Internacional. Rio de Janeiro, Paz e Terra.
15