Vol 2. n. 1. 2021
DOSSIÊ ANTROPOLOGIA NORTE E NORDESTE
Org. Abimael Carneiro- Cristhyan Silva- Deanny LemosJennifer Pereira- Lorrana Lima
EXPEDIENTE
Revista Zabelê
Discentes PPGANT - UFPI
Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal do Piauí
Campus Universitário Ministro Petrônio Portela, Bairro Ininga,
Teresina, Piauí,
CEP 64049-550 - Tel.: (86) 3237-2152
Reitor
Prof. Dr. Gildásio Guedes Fernandes
Revisão
Os autores
Vice-Reitor
Prof Dr Viriato Campelo
Diagramação
Deanny Stacy Sousa Lemos
Conselho Editorial
Abimael Gonçalves Carneiro
Cristhyan Kaline Soares da Silva
Jennifer Maria Gonçalves Pereira
Marcos Paulo Magalhães de Figueiredo
Tamires Eidelwein
Foto da Capa
Kadu Xukuro
Indígena Xukuro, estudante de história, artista visual e produtor cultural
pernambucano.
Editores Chefes
Danilo Barbosa Neves
Deanny Stacy Sousa Lemos
Lorrana Santos Lima
Organização
Abimael Gonçalves Carneiro
Cristhyan Kaline Soare da Silva
Deanny Stacy Sousa Lemos
Jennifer Maria Gonçalves Pereira
Lorrana Santos Lima
SUMÁRIO
DOSSIÊ
Apresentação
Abimael Gonçalves Carneiro/Cristhyan Kaline Soares da
Silva/ Deanny Stacy Sousa Lemos Jennifer Maria Gonçal
ves Pereira/ Lorrana Santos Lima.........................................5
Circulação de intelectuais na Paris N’América: Os legados
de Charles Wagley na Amazônia
Mílton Ribeiro/Aldair Freire..............................................13
Experiências de medo e segurança entre os jovens da cidade de Manus
Victoria Katarina Cardoso Lima........................................33
Para além das prisões: PCC e(m) lócus faccionado
Elton Guilherme dos Santos Silva/Marcondes Brito da
Costa................................................................................48
O toré Kariri-Xocó na aldeia e na cidade:produção e comunicação indígenas em contextos específicos
Manuela Machado Ribeiro Venancio................................64
As identidades negras no discurso curricular da universidade
Jardson Barrinha dos Santos/Emanuel Calebe Araújo
Silva..................................................................................80
SUMÁRIO
Sem lenço, sem documento, sem liberdade: prisões preventivas pela ausencia de identificação civil e os discursos
judiciais de sua validação
Paulo Victor Leôncio Chaves...........................................94
Um arranca-rabo no Brejal dos Guajás: família, vingança e
sacrfício entre a antropologia e literatura
Marcos Nogueira Milner.................................................108
Tráfico internacional de mulheres nas fronteiras Franco-Amapaenses
Ruane Cláudia Queiroz Silva.........................................123
ARTIGO
Estar em campo: nostas etnográficas para um artesanato
pandemico
Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva....................138
ENTREVISTA
Rios de r-existências: diálogos de uma marginalização institucional em contexto de abrigamento
Deanny Stacy Sousa Lemos/Lilian Gabriella Castelo
Branco Alves de Sousa.................................................153
Apresentação
Dossiê Antropologia Norte e Nordeste
Abimael Gonçalves Carneiro1
abimael.94.alves@gmail.com
Cristhyan Kaline Soares da Silva2
cristhyankaline16@gmail.com
Deanny Stacy Sousa Lemos3
deannystacy@gmail.com
Jennifer Maria Gonçalves Pereira4
jennifermaria024@gmail.com
Lorrana Santos Lima5
lorrana.lima66@gmail.com
Publicamos, pois, a segunda edição da Revista Zabelê: Revista de Discentes do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPI. Apresentar o processo em que a mesma foi
concebida se assemelha ao que a própria Antropologia faz, um espiral de si mesma, sendo uma
antropologia que compara outras antropologias.
Foi a partir dessa comparação que estabelecemos que as antropologias realizadas no
1 Graduado em Ciências Sociais (Licenciatura) pela Universidade Federal do Piauí - UFPI e aluno do Programa de Pós-Graduação em Antropologia - PPGANT desta mesma Instituição de Ensino. Desenvolve pesquisa
na área da Antropologia da Educação, com ênfase em Políticas Públicas, Relações Étnico-Raciais na educação
e cultura Afro-brasileira.
2 Graduada em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí. Desenvolve pesquisa com os indígenas Gamelas no Piauí e possui
interesse pela áreas de povos e comunidades tradicionais.
3 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí- UFPI, Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Antropologia-PPGANT desta mesma Instituição de Ensino. Desenvolve pesquisa na átrea da
etnologia indígenas e tem interesse pela área de povos e comunidades tradicionais, natureza-cultura.e conflitos
socioambientais.
4 Graduada em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em Antropológia pela Universidade Federal do Piauí. Desenvolve pesquisas com ênfase nas relações humanos e não
humanos no Antropoceno e possui interesse nos assuntos que diz respeito à agricultura familiar, os impactos
socioambientais dos mega empreendimentos e as organizações sociais campesina.
5 Graduada em Ciências Sociais (Bacharelado) pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em Antropologia pela Universidade Federal do Piauí. Desenvolve pesquisa com agrupamentos políticos antirracistas em
Teresina (PI) e possui interesse pelos processos de racialização e desracialização.
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norte e no nordeste representavam aquilo que se convencionou chamar de epistemologias do
sul ou descolonização epistemológica que se balizam, entre outras coisas, no descentramento
da produção, bem como na suspensão da exotização de indígenas do norte e dos caipiras do
nordeste.
A temática do presente dossiê foi pensada na mesma reunião em que a 12º turma do PPGANT-UFPI ingressou no time de editoração da revista, em que acordamos ser a Antropologia
fruto do encontro colonial e que pode (e deve) ser superado ao serem pluralizadas as interlocuções, abarcando aquelas que ficam à margem do sistema acadêmico; assim como podem ser
diversificadas os modos como se percebem sujeitos nortistas e nordestinos.
Para tanto, não deixamos, o time de editoração, de nos localizar enquanto possíveis
reprodutores dessa lógica e fomentadores de uma necessária superação. Tendo em vista que,
enquanto mestrandos e mestrandas da Antropologia e egressos das Ciências Sociais, somos
nós também quem produzimos uma antropologia do nordeste, nós que o percebemos e complexificamos a partir da sensibilidade etnográfica que a antropologia oferece.
Em “A antropologia como ciência social no Brasil”, Mariza Peirano, enfatiza que no
Brasil é tendência os antropólogos desenvolverem suas pesquisas no próprio país. Assim, “antropólogos brasileiros não andam à procura do exótico” (PEIRANO, 2000, p. 224)6. Quando
a questão é a busca pela alteridade, continua a autora, são as diferenças que roubam a cena.
Nesse sentido, a diversidade de temas alvo de nossas investigações se encaixam nas categorias
de “alteridade próxima” ou mesmo “alteridade em casa” (PEIRANO, 2000)7. Pontuamos, que
a antropologia produzida no Norte e Nordeste tem muito a somar ao campo mais amplo da
“Antropologia no/do Brasil”.
O Dossiê Antropologia Norte e Nordeste é, desse modo, crítico à lógica colonial que
deu luz ao nosso campo de saber antropológico e também movimento contra-colonizador que
6 PEIRANO, Mariza. A antropologia como ciência social no Brasil. Etnográfica, n. 2, v. 4, 2000, p. 219-232.
7PEIRANO, Mariza. A antropologia como ciência social no Brasil. Etnográfica, n. 2, v. 4, 2000, p. 219-232.
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destaca as agências possíveis dos sujeitos que são mais que colonizados, atingidos, são contra-colonizadores, guerreiros e guerreiras que resistem.
Assim, é possível encontrar nos artigos o reconhecimento da colonização nos processos
de identificação e da conversão desse mesmo instrumento de identificação como estratégia política de diferenciação. Os escritos são, pois, potências criativas que descortinam várias faces
de empreendimentos etnográficos na região norte e nordeste.
Destacamos ainda, que se trata de uma proposta interdisciplinar, na qual autores/as com
formações (graduação e/ou pós-graduação) em áreas afins a antropologia, como sociologia,
educação, história e Relações Internacionais, se comprometem com diálogos que ajudam a alimentar os debates atuais, e os já consolidados na ciência antropológica, iluminando questões
temáticas e pondo em relevo reflexões teóricas-metodológicas.
Não podemos esquecer que estamos vivendo uma pandemia, a do novo Coronavírus,
que provoca a doença Covid-19. Diante da situação pandêmica, somos submetidos a novas
configurações. Em várias partes do mundo para tentar diminuir os riscos de contaminação pelo
vírus, protocolos de saúde foram criados, indicando, entre outras coisas, o isolamento social,
distanciamentos. Com vários locais fechados, totalmente ou parcialmente, e muitos destes
sendo lócus de pesquisas (em andamento e das que ainda se encontram limitadas aos projetos),
surgem as angústias diante das dificuldades de se realizar trabalho de campo, um empreendimento que é marca registrada da antropologia.
Daniel Miller (2020)8, antropólogo que é referência no campo da antropologia digital,
leva-nos a refletir sobre as possibilidades de desenvolver pesquisa no universo virtual. Nos fala
de engajamentos on-line e relembra um ponto importante sobre metodologia na antropologia:
8 MILLER, Daniel. Como conduzir uma etnografia durante o isolamento social. Blog do Sociofilo, 2020.
[publicado em 23 de maio de 2020]. Disponível em: https://blogdolabemus.com/2020/05/23/notas-sobre-a-pandemia-como-conduzir-uma-etnografia-durante-o-isolamento-social-por-daniel-miller/. Acesso em: 25
jul. 2021.
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que o método é desenvolvido no curso da pesquisa, não tem como seguir uma receita pronta,
fechada. Somos, então, desafiados/as. Isso nos faz lembrar uma passagem clássica de Edward
Evans-Pritchard, em “Bruxaria, oráculos e magia entre os azande”, quando reflete sobre uma
pergunta que constantemente chegava até ele: Como fazer trabalho de campo? Destacando
que “muito depende do pesquisador, da sociedade que ele estuda e das condições que têm de
fazê-lo” (EVANS-PRITCHARD, 2005, 243)9.
Que condições a pandemia nos impõe? Quais as possibilidades para desenvolvermos
nossas pesquisas, para estabelecermos, enquanto antropólogos/as, uma conversa sobre a vida
humana (INGOLD, 2017)10. Perguntas que ficam para pensarmos. Mas aqui, temos a oportunidade de apreciar uma discussão, por exemplo, que nos informa sobre a experiência de
utilizar as tecnologias digitais como recurso na continuação da pesquisa. Discussão necessária
para o momento.
Na composição “Circulação de Intelectuais na Paris N’América: os legados de
Charles Wagley na Amazônia” os autores Milton Ribeiro e Aldair Freire demonstram-nos,
por meio do exercício etnográfico e memorialístico, a presença de intelectuais na Amazônia no
século XX. Pontuando a presença destes na cidade de Belém do Pará com o objetivo de compreender as motivações que levavam esses intelectuais a terem a capital paraense como um
ponto de partida para suas incursões e investigações. Nos apresenta a importância da chegada
do antropólogo americano Charles Wagley onde este foi o primeiro brasilianista a explorar os
rios paraenses. Assinalando-nos a importância de reconhecer os passos de cientistas, acadêmicos e artistas pela/na Amazônia e, assim, podemos compreender através dessas andanças como
as imagens e memórias sobre esse território são difundidos por esses viajante estrangeiros e
articulados com as práticas, os conhecimentos e os saberes locais.
9 EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 2005.
10 INGOLD, Tim. Antropologia versus etnografia. Cadernos de Campo, São Paulo, n. 26, v. 1, 2017, p. 222228.
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O texto “Experiências de medo e segurança entre jovens na cidade de Manaus”, de
Victoria Catarina Cardoso Lima, relata o andamento de sua pesquisa etnográfica que teve início em uma escola da rede estadual da cidade de Manaus e que devido a situação de pandemia
teve sua continuação por meio de espaços virtuais. Com isso, reflete sobre alguns pontos sobre
o fazer pesquisa durante a pandemia e as interações possíveis com os/as interlocutores/as por
meio de ferramentas digitais. Além disso, somos levados a pensar em outras questões que são
apontadas pelos/as jovens interlocutores/as, como as implicações de marcadores sociais da diferença no processo de evasão escolar, as discriminações e violências de gênero e sexualidade
que são experienciadas no ambiente escolar.
Por sua vez, no artigo “Para além das prisões: PCC e(m) lócus faccionado”, Marcondes Brito da Costa e Elton Guilherme dos Santos Silva partem, substancialmente, de etnografias urbana de Karina Biondi e da ideia de movimento para aperceber como o Primeiro
Comando da Capital, enquanto tal, também se (re)produz nas periferias da capital piauiense.
Para tanto, remontam desde as possíveis narrativas de origem da organização, perpassando por
sua expansão internacional e, traçando, como a estrutura de motivação econômica e as bases
morais - pilares dessa agência reguladora do crime - eram tidas como parâmetro de conduta
pelo movimento de/em Teresina. Assim, fazem-nos acompanhar o trajeto desse movimento
que extrapola os limites carcerários alcançando as sociabilidades cotidianas de sujeitos mesmo
que não-brasileiros e não partícipes intencionais.
“O Toré Kariri-Xocó na aldeia e na cidade: produção e comunicação indígenas
em contextos específicos” é onde Manuela Machado Machado Ribeiro Venancio se dedica, a
partir de dados produzidos em campo para sua pesquisa doutoral (2016 e 2017) , a analisar as
relações sociais entre os indígenas Kariri-Xocó e destes com os não-indígenas (cabeça seca)
no contexto da aldeia e de cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Sua etnografia ressalta o
Toré como importante instrumento de identificação e, portanto, diferenciação étnica - especificamente de indígenas do nordeste -, seja o mesmo produzido e comunicado em espaços
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urbanos de apresentação do mesmo como em processos de retomada de terra dos referidos
povos indígenas.
Em “As identidades negras no discurso curricular da universidade”, os autores,
Jardson Barrinha dos Santos e Emanuel Calebe Araújo Silva, refletem, a partir de uma perspectiva decolonial, sobre os “impactos da colonização do poder-ser-saber na construção de
identidades negras”. Para tanto, apresentam fragmentos de um estudo realizado na Universidade Estadual do Piauí (UESPI), com alunos/as dos cursos de ciências sociais, história e
letras-português, para saber a respeito das disciplinas ofertadas nesses cursos e como estas
afetam a construção de suas identidades. Assim, discutindo sobre educação e currículo, somos
instigados a pensar em possibilidades outras de educação, como a decolonial e a intercultural
Paulo Victor Leôncio Chaves, em seu escrito “Sem lenço, sem documento, sem liberdade: prisões preventivas pela ausência de identificação civil e os discursos judiciais de
sua validação” debruçou-se em descrever sobre as decisões judiciais em que se decreta prisões preventivas nas audiências de custódia realizadas em Teresina – PI. Em um trabalho denso de anos de pesquisa, o autor sublinha como se dão as análises das decisões que partem como
fundamento para a prisão a ausência de documentos de identificação pelas pessoas aprisionadas e partir disso se aprofunda em compreender como os discursos em torno dos documentos
públicos de identificação civil e seu uso para validar as prisões provisórias são produzidos.
Suas análises ressaltam as fragilidades do sistema de encarceramento e abre caminhos para
reflexões, por meio de uma antropologia política, acerca das estruturas de poder e os impactos
dessas execuções na vida real dos indivíduos.
O escrito “Um arranca-rabo no brejal dos guajás: família, vingança e sacrifício entre a antropologia e a literatura” de Marcos Nogueira Milner traz uma reflexão antropológica sobre o conto “Brejal dos Guajás” de José Sarney. Partindo do conteúdo descritivo da narrativa literária o autor empreende comparações entre o conto e outras descrições da realidade
social do nordeste brasileiro. O rendimento etnográfico vem pois, do conto e do contexto em
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que se passa os acontecimentos do mesmo no nordeste brasileiro, Em suma o artigo apresenta
as categorias antropológicas de honra, família sacrifício, ritual e prestígio chamando atenção
para as possibilidades de intersecção entre antropologia e literatura.
Ruane Cláudia Queiroz Silva, em seu artigo “Tráfico internacional de mulheres nas
fronteiras franco-amapaenses”, informa-nos sobre a dinâmica do tráfico de mulheres no estado do Amapá – uma área de trânsito, na qual os principais destinos das vítimas são a Guiana
Francesa e o Suriname. Refletindo com uma perspectiva feminista das Relações Internacionais, a autora aponta aspectos do tráfico de pessoas que estão imbricadas com as relações de
gênero, traçando, desta forma, as modalidades do fenômeno presentes no contexto amapaense,
como por exemplo, a exploração sexual, a servidão doméstica, casamento servil e exploração
para a prática de delitos.
Temos o artigo de Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva, “Estar em campo:
notas etnográficas para um artesanato pandêmico”. Sensível a situação de pandemia, Mariana reaviva o processo de sua pesquisa – no mestrado, junto ao pessoal do Movimento Sem Teto do Centro (MSTC), na cidade de São Paulo, entre 2018 e 2019 – para
apontar a dificuldade de se realizar trabalho de campo diante de novas configurações. A
autora apresenta um relato da vivência em uma ocupação durante a pesquisa e informa
como esta foi se modificando devido a alguns percalços que atravessaram o período de
investigação, tendo, desta forma, que prosseguir adequando-se às situações vigentes
naquele momento. Ela se apoia em Charles Wright Mills, e na ideia de “reflexão sociológica” para construir sua dissertação, que entre coisas, nos convida a conhecer mais sobre
os movimentos de luta por moradia e as ocupações como espaços políticos, de luta e de
buscas por transformações sociais.
Também contamos com uma entrevista realizada com Pedro, Paulo, João e Marcos, todos indígenas Warao que estão morando na capital piauiense desde 2019. Nessa
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conversa intensa, relatam como se sentem com a tutela extrema do estado, ao passo que
são deixados ao descaso pelas instituições públicas e sofrendo uma série de violações
de direito.
Desejamos a todas e todos uma boa leitura.
Teresina (PI), 28 de julho de 2021
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CIRCULAÇÃO DE INTELECTUAIS NA PARIS N’AMÉRICA
OS LEGADOS DE CHARLES WAGLEY NA AMAZÔNIA
Milton Ribeiro1
milton.ribeiro@uepa.br
Aldair Freire2
aldairclktec@gmail.com
RESUMO: O presente artigo tem como objetivo apresentar a presença de intelectuais na
Amazônia, priorizando o século XX, com a intenção de olhar primeiramente a circulação e os
trânsitos pela cidade de Belém-PA. Em segundo lugar, daremos ênfase à trajetória intelectual
de Charles Wagley, considerado como o primeiro brasilianista. Por fim, destacaremos e os
legados acadêmicos de sua presença na Amazônia.
Palavras-chave: circulação de intelectuais. Charles Wagley. Amazônia.
ABSTRACT: This article aims to present the presence of intellectuals in the Amazon, prioritizing the twentieth century, with the intention of looking first at the circulation and transits through the city of Belém-PA. Secondly, we will emphasize the intellectual trajectory of
Charles Wagley, considered as the first Brazilianist. Finally, we will highlight and the academic legacies of his presence in the Amazon.
Keywords: circulation of intellectuals. Charles Wagley. Amazon.
INTRODUÇÃO
A cidade de Belém possui inúmeras denominações advindas de estrangeiros e viajantes que a desbravam desde o período colonial: “paraíso dos naturalistas”, “paraíso dos
etnógrafos”, “Paris do Sol”, “Paris n’América” e “cidade das mangueiras”. Ela pertence à
Amazônia, o “inferno verde”, e aparece na história do Brasil como parte do outro brasil colonial, o Estado do Grão-Pará e Maranhão, em 1616, com o nome de Santa Maria de Belém do
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Grão-Pará. O estado encontrou seu fim em 1774, na sua unificação ao Estado do Brasil, mas
a cidade manteve-se como capital do Estado do Pará, após a Província do Pará reconfigurar-se pós-Proclamação da República, em 1889 (COSTA, 2009, p. 736; MAUÉS, 2011, p. 81;
SCHWARCZ, 1993, p. 84; SILVA, 2014; PEDROSA, 2013).
A região e a cidade, que neste ano completou 400 anos, são frutos de movimentos
políticos que resultaram na divisão geopolítica da região como produtora de matéria-prima e
da cidade como a principal sede político-administrativa dos ciclos econômicos amazônicos,
como o ciclo da borracha e sua Belle Époque, nos meados do século XIX, e os grandes projetos, do século XX. Nesta constelação de referências, ambas entram para a história como um
lugar idílico, mágico, um verdadeiro eldorado; sobretudo a partir da leitura territorial como
vasto e abundante em riquezas naturais.
A era de ouro trazida pela economia gomífera permitiu que a cidade se transformasse num centro dinâmico e ativo na economia da região, de onde derivam grande parte das
construções arquitetônicas do centro antigo da cidade, como os palacetes, casarões, sobrados,
mercados e o Theatro da Paz; fruto do investimento urbanístico que tentava imitar as capitais europeias, como Paris, e não obstante a criação da sua própria boulevard – a Boulevard
Castilho França, no centro da cidade – articulando a sanitarização e higienização à ideia de
urbanização. E que depois sofreu o impacto violento do final do período dourado, que teve
seu apogeu entre os anos de 1890 e 1911, com o deslocamento do centro gomífero para outra
região do planeta.3
Portanto, o presente artigo tem como objetivo apresentar a presença de intelectuais
na Amazônia, priorizando o século XX, com a intenção de olhar primeiramente a circulação e
os trânsitos de intelectuais pela cidade de Belém-PA. A ideia aqui não é a de se ater às obras,
produtos e resultados dessas pesquisas, viagens e interpretações, mas entender as motivações
que permitiram com que essas/es intelectuais escolhessem a capital paraense como ponto de
partida e chegada dando ênfase à figura do antropólogo americano Charles Wagley, o primeiro
brasilianista a desbravar os rios paraenses.
A CIRCULAÇÃO DE INTELECTUAIS NA AMAZÔNIA
Durante os séculos XVIII e XIX, a Amazônia, e Belém especialmente, foram alvos
de várias expedições científicas interessadas nas suas riquezas naturais, na fauna e flora ama3 Oliveira, Trindade e Machado (2012) apresentam um interessante cenário deste ciclo econômico fundamental para o desenvolvimento urbano na Amazônia, principalmente para Belém e Manaus, e os impactos causados pela decadência pós-ciclo.
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zônicas. Uma das mais famosas expedições foi encabeçada pelo naturalista francês Charles-Marie de la Condamine (1701-1774), que narrou, em 1745, à Academia de Ciências de Paris,
sua descida pelo rio Amazonas e as visões sobre os indígenas da Amazônia; suas formas de
ser e viver e a luta pela sobrevivência foram alvo das especulações deste viajante (SAFIER,
2009).
Juntaram-se, a esta primeira grande experiência na região, em momentos posteriores: o geógrafo alemão Alexander von Humboldt (1769-1859), em expedição pela América
do Sul, na foz do Rio Amazonas (QUADROS, 2003); os bávaros Johann Baptist von Spix
(1781-1826), zoólogo, e Carl Fiedrich Philipp von Martius (1794-1868), botânico, em 1819,
na missão da Real Academia de Munique (Lisboa, 1995, p. 76); o zoólogo suíço Jean Louis
Rodolphe Agassiz (1807-1873), na Expedição Thayner, em 1865 (KURY, 2001); além de outros naturalistas e viajantes (COSTA, 2009; SCHARWCZ, 1993; SILVA, 2010).
Ademais, é interessante perceber como o trânsito de intelectuais se mantém, com
forte presença de acadêmicos, cientistas, cronistas da vida social e poetas interessados nos
aspectos idiossincráticos das comunidades amazônicas no século XX. Na década de 1910,
desde 1913 aproximadamente, Curt “Nimuendajú” Unckel (1883-1945), etnólogo alemão,
mantém residência no Pará, onde foi chefe da Seção Etnográfica do Museu Paraense Emílio
Goeldi, a partir de 1920; realizando concurso novamente entre 1940 e 1945, quando faleceu
entre os Tükuna (FIGUEIREDO, 2009, p. 214; MAUÉS, 2011, p. 77; SCHADEN, 1967-1968).
Na década de 1920, mais especificamente em 19 de maio de 1927, chega à Belém o
poeta Mário de Andrade (1893-1945), autor de Macunaíma e criador do Serviço do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (SPHAN). Ele atravessa o país com a Missão de Pesquisas
Folclóricas, de São Paulo, inventariando a cultura popular amazônica (FIGUEIREDO, 2009;
LEAL, 2011). Nomeia a empreitada de “Viagem pelo Amazonas até o Peru, pelo Madeira até
a Bolívia e por Marajó até dizer chega” e chega até a Amazônia peruana e boliviana a bordo
dos S. Salvador e Vitória (FIRMO, 2015, p. 11 e 12).
A década de 1940 conta com a presença do brasilianista Charles “Chuck” Wagley
(1913-1991), antropólogo americano, na Amazônia. Ele conhecia o Brasil desde 1938, trazido
por Alfred Metraux, que o incentivou a estudar os Tapirapé, e, entre 1941 e 1945, na companhia de Eduardo Galvão faz pesquisa de campo entre os Tenetehara do Maranhão. Posteriormente, a partir de 1948, passa a residir em Gurupá (Itá), no Pará (FIGUEIREDO, 2009, p. 286;
COSTA, 2009; MAUÉS, 2011; SÁ, 1998).
Durante a década de 1940, a partir de janeiro até julho de 1944, residiu em Belém a
escritora Clarice Lispector (1920-1977), autora de Perto do Coração Selvagem. Ela acompanha o marido diplomata encarregado por intermediar relações do Itamaraty com as autoridades
estrangeiras residentes em Belém, ou de trânsito pela capital paraense via Base Aérea de Belém; base militar criada no bairro de Val-de-Cans pelos aliados durante a II Guerra Mundial
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(GOTLIB, 2009, p. 202).
Na década de 1960, o casal de filósofos Simone de Beauvoir (1908-1986) e Jean-Paul Sartre (1905-1980) passa por Belém no início de outubro. Indo em direção à Cuba,
convidados por Fidel Castro, ele lança livro sobre aquele país no dia 2 de outubro em livraria
da cidade (FRAGMENTOS, 2016a e 2016b; SIMONE, 2016). Ainda em 1960, o casal de antropólogos norte-americanos Ruth e Seth Leacock estiveram em Belém por sete meses, entre
1962 e 1963, e posteriormente, em 1965, por mais dois meses, estudando os batuques, as práticas afro-religiosas nos terreiros belemenses (LEAL, 2011, p. 21).
Durante o Carnaval de 1960, a poeta americana Elizabeth Bishop (1911-1979) esteve em Belém. Em carta datada de 15 de fevereiro de 1960, e endereçada ao poeta Robert
Lowell (1917-1977), que morava em Nova York, a poetisa avisa que sairá do Rio de Janeiro
em direção à “boca do Amazonas” para um pequena temporada (PIAUÍ, 2009); inspirada pela
obra de C. Wagley (Amazon Town), e pela vida na Amazônia, escreveu o poema The Riverman
(COSTA; NENEVÉ, 2013).
Na década de 1970, dois importantes personagens para os estudos de sexualidade na
área das Ciências Humanas aportam em Belém: Peter Fry (1931- ) e Michel Foucault (19261984) . O antropólogo inglês vem à Belém interessado na articulação entre cultos afro-brasileiros e homossexualidade masculina nos terreiros da periferia da cidade; em 1974, passa quatro
semanas e meia acompanhando as movimentações destas casas de santos. A partir desta breve
passagem, orientado pelas observações sobre os batuques realizadas por Anaíza Vergolino e
Napoleão Figueiredo, e a acolhida em Belém por ambos, ele conseguiu estabelecer conexões
locais e escrever dois textos referenciais nos estudos das sexualidades no Brasil (PUCCINELLI; RIBEIRO; REIS; SOLIVA, 2014; SILVA, 2015).
O filósofo francês aportou no Brasil pela primeira vez em 1965, e mantém visita
anual entre 1973 e 1976. No entanto, vem à Belém apenas em 1975; visita o arquipélago Marajó e a ilha de Mosqueiro, distrito de Belém. No ano seguinte, em 1976, a convite de Benedito
Nunes, retorna para ministrar uma série de conferências e cursos na Universidade Federal do
Pará (FRAGMENTOS, 2016c; GUIMARÃES; CASTRO, 2011; RODRIGUES, 2011).
CHARLES WAGLEY E A AMAZÔNIA
O antropólogo americano Charles Walter Wagley (1913-1991)4, de acordo com Richard Pace (2013), seu orientando, foi: “a Boasian-trained American anthropologist, Indigenist,
and Brazilianist, is considered a pioneer in Amazonian ethnology and race/ethnic studies in
the Americas5”. Porém, apesar da orientação direta do pai da antropologia americana, Franz
4 Ele era chamado de “Wagley” pelas/os colegas brasileiras/os (DAMATTA, 2014, p. 620) e de “Chuck” por
outras/os em correspondências ou em relações pessoais (PACE, 2014, p. 597).
5 Um antropólogo americano com treinamento boasiano, indigenista e brasilianista, é considerado um pioneiro em etnologia amazônica e nos estudos étnicorraciais nas Américas.
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Boas (1858-1942), foi sob influência de Ruth Benedict (1887-1948) e Ralph Linton (18931953), mas principalmente de Ruth Bunzel (1898-1990), que ele desenvolveu sua pesquisa de
doutorado na Guatemala a partir de 1937.
Ele graduou-se em 1936 e obteve o título de doutor em 1941, ambos em Columbia
University, com dissertação intitulada Economics of a Guatemalan Village. E seus escritos foram marcados sobretudo pela perspectiva do particularismo histórico, de Boas, e da ecologia
cultural, de Julian Steward (1902-1972). 6Porém, é forte a marca dos estudos sobre aculturação
e os chamados estudos de comunidades em voga à época.
No entanto, antes do término da pesquisa doutoral, ainda em 1939, com o apoio de
Heloísa Alberto Torres (1895-1977)7, do Museu Nacional-RJ, e com o auxílio de Alfred Métraux (1902-1963), Wagley chega ao Brasil, indo à região do rio Araguaia estudar os Tapirapé,
no Mato Grosso, durante 15 meses. Durante este período de campo, ele adquiriu malária. E,
após perder contato com o brasilianista, o Museu Nacional resolveu enviar uma equipe para
encontra-lo (PACE, 2014).
6 Cf. Agra (2015, p. 33).
7 Cf. Corrêa (2003) – especialmente o Capítulo IV “Dona Heloisa & A pesquisa de campo”.
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Nesta equipe estava Eduardo Galvão (1921-1976), de quem se tornou amigo pessoal
e parceiro profissional até a morte deste em 1976, e sob o qual pesa o título de primeiro doutor
brasileiro em Antropologia; tendo estudado em Columbia sob orientação de C. Wagley.
Charles Wagley visitou pela primeira vez Gurupá em 1942, durante os esforços
em levar orientações sobre educação e saúde para os habitantes do Vale Amazônico, “dentro do chamado ‘esforço de guerra’” (SÁ, 2011, p. 111). Em 1948,
regressa à Itá acompanhado de sua esposa Cecília Roxo, de seu orientando e
amigo Eduardo Galvão, juntamente acompanhado de sua esposa Clara Galvão,
para realizarem a pesquisa de campo que possibilitou a construção dos livros:
Uma comunidade amazônica: um estudo do homem nos trópicos, publicado originalmente em inglês, em 1953, de C. Wagley; e Santos e Visagens: um estudo
da vida religiosa de Itá, tese de doutorado, publicada em português em 1976, de
Eduardo Galvão. Em ambas as publicações é possível observamos a descrição
da vivência do homem amazônico, os problemas enfrentados em seu cotidiano
e as relações sociais estabelecidas na comunidade de Itá (LEITÃO, RIBEIRO
et al, 2016, p. 289).
As relações de troca, de contato e a formação de redes pessoais e profissionais podem ser avaliadas a partir da imagem acima, na qual podemos ver, da esquerda para a direita:
Édison Carneiro (1912-1972), Raimundo Lopes (1899-1941), Charles Wagley, Heloisa Alberto Torres, Claude Lévi-Strauss, Ruth Landes (1908-1991) e Luís de Castro Faria (1913-2004),
no Museu Nacional, em 1939 (CORRÊA, 2003, p. 55; CORRÊA, 2013, p. 38).
De acordo com Pace (2014, p. 599): “Apesar de Lévi-Strauss ter dado crédito a
Lowie para o conhecimento crítico que dirigiu suas futuras pesquisas sobre parentesco, foi
Wagley, na verdade, quem explicou a Lévi-Strauss, no Brasil, os detalhes sobre os diferentes
sistemas terminológicos e de descendência”. Possivelmente, à época desta fotografia, ainda
em 1939.
Em 1940, casa-se com Cecília Roxo. E a partir de 1941, já na companhia de E. Galvão, desenvolve sua segunda pesquisa com os Tenetehara, no Maranhão.
With the entry of the US into World War II, Wagley was recruited to join SESP
(the newly formed Brazilian public health organization) to aid efforts to improve health of rural workers for the purpose of increasing the extraction of key
war-time resources. Wagley worked in the Amazon with rubber tappers – setting up health posts and producing culturally appropriate educational materials
on health and malaria prevention. His work – one of the earliest examples of
applied medical anthropology – proved of such value that the Brazilian governRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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ment presented him with the prestigious Medal of War and named him to the
National Order of the Southern Cross (an honor given to foreigners in recognition of significant service to the nation)8 (PACE, 2013).
Essas honrarias foram dadas em 1945 e 1946 e, de acordo com Isabel (Betty) Wagley Kottak, sua filha, ele “tinha muito orgulho disso, e sempre dizia que foi nesse tempo que
ele conheceu muitos brasileiros de todas as profissões: acadêmicos, jornalistas, médicos...”
(2007, p. 76). A partir de 1948, os casais de amigos, Wagley e Cecília/Galvão e Clara, iniciaram pesquisa de campo em Gurupá, no Pará – a famosa Itá nos textos de ambos.
Charles Wagley visitou pela primeira vez Gurupá em 1942, durante as atividades
desenvolvidas com base nas orientações sobre educação e saúde para os habitantes do Vale
Amazônico, “dentro do chamado ‘esforço de guerra’” (SÁ, 2011, p. 111).
Em 1948, regressa à Itá acompanhado de sua esposa Cecília Roxo, de seu orientando
e amigo Eduardo Galvão, juntamente acompanhado de sua esposa Clara Galvão, para realizarem a pesquisa de campo que possibilitou a construção dos livros: Uma comunidade amazônica: um estudo do homem nos trópicos, publicado originalmente em inglês, em 1953, de C.
Wagley; e Santos e Visagens: um estudo da vida religiosa de Itá, tese de doutorado, publicada
em português em 1976, de Eduardo Galvão.
Em ambas as publicações é possível observamos a descrição das vivências e modos
de vida do homem amazônico, os problemas enfrentados em seu cotidiano e as relações sociais
estabelecidas na comunidade, principalmente no que dizia respeito às práticas de cura, a relação entre saúde e doença e sobre a alimentação de ribeirinhos.
Na imagem abaixo, Charles Wagley e o jornalista e escritor paraense Dalcídio Jurandir aparecem a bordo do embarcação chamada Paraguassú, rumo às expedições do Serviço
Especial de Saúde Pública (SESP), por meio da Divisão de Educação Sanitária, no vale amazônico (PACE, 2014, p. 690).
As expedições tinham como objetivo construir bases profiláticas entre os habitantes
da região. E contava, dentre as diversas modalidades de aplicação de uma antropologia prática,
com o projeto de slide sounds para orientar a população sobre as doenças locais, principalmen8 Com a entrada dos EUA na II Guerra Mundial, Wagley foi recrutado para se juntar ao SESP [Serviço Especial de Saúde Pública] (organização de saúde pública brasileira recém-criada) para auxiliar nos esforços em
melhoria da saúde dos trabalhadores rurais com a finalidade de aumentar a extração de recursos-chave em
tempos de guerra. Wagley trabalhou na Amazônia com os seringueiros – na criação de postos de saúde e produção de materiais educativos culturalmente apropriados sobre saúde e prevenção de malária. Sua obra – um
dos primeiros exemplos aplicados de antropologia médica – provou ser de tal valor que o governo brasileiro
condecorou-o com a prestigiosa Medalha de Guerra e nomeou-o à Ordem Nacional do Cruzeiro do Sul (uma
honraria concedida aos estrangeiros em reconhecimento ao significativo serviço à nação).
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te a malária. Desenvolveram assim um amplo trabalho de sensibilização das autoridades locais
sobre as doenças que acometiam a população à época.
E, para resolvê-las, seu ponto de partida era o diálogo intenso com a população
local, numa tentativa de traduzir o saber local a partir das categorias nativas; assim como do
entendimento sobre saúde e doença e uso de conhecimentos tradicionais sobre as plantas medicinais da região.
A partir de um verdadeiro esforço internacional, como parte da campanha iniciada
nos EUA para erradicação de doenças na Amazônia, como a malária, e parte de um contexto
político de bloqueio de ideais comunistas na Latino-América, e no respeito às premissas antropológicas indicadas acima, contado para isso com a parceria de Walt Disney (1901-1966),
contratado via Instituto de Assuntos Interamericanos – do qual Wagley foi representante a
partir de 1941 –, foram realizados filmes educativos sobre prevenção e combate às doenças
tropicais, como Guerra de mosquitos e Sementes de ouro, que eram animações descontraídas,
com a missão de entreter e orientar a população (SESP, 1941; LEITÃO; RIBEIRO et al, 2016).
As primeiras cidades que receberam o projeto foram Breves, Cametá, Abaetetuba
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e Gurupá e Wagley sempre demostrou entusiasmo ao conhecer as populações que viviam ao
redor do vale amazônico – na região do Baixo Tocantins e na região do Baixo Amazonas –
de acordo com a imagem abaixo. A cada experiência, ele demostrava um grande interesse de
conviver com a população, principalmente na cidade de Gurupá (SESP, 1945; LEITÃO; RIBEIRO et al, 2016).
Passados os anos, e mantendo ainda um intenso intercâmbio entre o Brasil e os
EUA, Charles Wagley atuou como interlocutor da cooperação técnico-científico desenvolvida
entre a University of Florida e a Universidade Federal do Pará, no ano de 1974. Este acordo
contribuiu para o fortalecimento do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos (NAEA), da UFPA.
E ajudou na formação de antropólogos brasileiros, orientados por ele, naquela universidade.
Este núcleo, inaugurado em 1973, nasce como uma unidade acadêmica instituída
para o ensino de pós-graduação, via Curso de Formação de Especialistas em Desenvolvimento de Áreas Amazônicas (FIPAM), com o objetivo de analisar as perspectivas econômicas e
sociais do território amazônico. Este núcleo continua como um polo importante de pesquisas
direcionadas principalmente para o planejamento e desenvolvimento local; ainda importante
na análise e construção de políticas públicas para a região.
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Neste período, embora estivesse já de volta aos EUA, Wagley continua a observar
as formas de desenvolvimento da região impostas pelo Governo Federal – que após o Gole de
1964 era chefiado por militares – e faz uma crítica à construção da Rodovia Transamazônica9,
publicada em 1975, no prefácio à segunda edição d’Uma comunidade amazônica, afirmando
os riscos e danos socioambientais causados pelo empreendimento às populações locais – depois desenvolveu pesquisa sobre esta questão com seu orientando Emílio Mouran.
As parceiras desenvolvidas entre Charles Wagley e seus orientandos, e principalmente com Eduardo Galvão, foram frutíferas por vários motivos: 1) a presença de ambos em
Itá possibilitou a elaboração das duas monografias sobre as práticas e modos de vida ribeirinho
citadas acima; 2) a experiência de antropologia aplicada trazida por C. Wagley ajudou no fortalecimento da ciência antropológica no Museu Paraense Emílio Goeldi, e posteriormente na
Universidade Federal do Pará, com a presença de Arthur Napoleão Figueiredo à frente – que
dá nome ao Laboratório de Antropologia desta IES; 3) a construção dos seminários de formação em antropologia continuados por Eduardo Galvão no MPEG; 4) a construção do Centro
de Estudos Sociais e Culturais da Amazônia (CESCA) no âmbito do MPEG, coordenado por
E. Galvão e Oracy Nogueira, que contou com C. Wagley como professor-visitante; 5) a orientação de estudantes da Amazônia em programas de pós-graduação nos EUA, como E. Galvão;
6) a construção de centros e projetos voltados para a Amazônia nos EUA, inclusive com estudantes americanos estudando a região.
OS LEGADOS DE “CHUCK” WAGLEY
Em reunião na Áustria, em 1967, no Burg Wartenstein, intitulada “Reunião para a
Integração do Ensino com as Pesquisas Antropológicas”, da qual participaram Egon Schaden
e Roberto Cardoso de Oliveira apresentando os centros antropológicos do país – notoriamente
os do sul-sudeste, particularmente os da USP e do Museu Nacional –, na ocasião, intrigado
com a ausências de centros importantes no N/NE, E. Galvão acaba por criar o Centro de Estudos Sociais e Culturais da Amazônia (CESCA), que atuaria na área correspondente à Amazônia Legal, no ano seguinte, em 1968.
Como antecedentes importantes para a criação do CESCA é necessário fazer referência aos cursos ministrados de 1942 a 1968 no Museu Paraense Emílio Goeldi por Curt
Nimuendaju. Assim, os primeiros três cursos de etnologia aconteceram entre os anos de 19421943.
No entanto, depois desse período, houve uma pausa nas organizações de cursos
porque o Museu passou por uma crise, que sairia apenas em 1954. Neste período, o Instituto
9 É a BR 230, inaugurada em 1972, que liga a cidade de Cabedelo, na Paraíba, à Lábrea, no Amazonas –
cortando sete estados brasileiros.
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Nacional de Pesquisa da Amazônia (INPA) firmou um acordo com o governo do Estado do
Pará e a partir daí o Museu Goeldi seria administrado e recuperado pelo INPA durante 20 anos
(FURTADO, 2015).
No final da década de 1950, E. Galvão começou a atrair etnólogos, arqueólogos e
técnicos para compor a Divisão de Antropologia, atual Coordenação de Ciências Humanas
(CCH). Com um número crescente de profissionais, Galvão começou a pensar em cursos regulares no MPEG. E a partir de 1957, quando Eduardo Galvão já estava na coordenação da
Divisão de Antropologia, os cursos voltariam, porém de maneira esporádica. A DA, ainda em
1957, sistematizou uma exposição temporária sobre “usos e processos de fabricação de curare”10 (GALVÃO, p. 6, 1957).
Em 1962, em colaboração com a cadeira de “Etnografia do Brasil” – da Faculdade
de Filosofia da Universidade do Pará –, técnicos da Divisão de Antropologia participam do
“Curso de Extensão Universitária” tendo como temática a “arqueologia e etnologia na Amazônia” (GALVÃO, 1962, p. 1-2).
Então, o Centro surgiu em 1968 mediante convênio entre o MPEG e a Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM), com apoio logístico oferecido pelo
primeiro, sob a coordenação do antropólogo Eduardo Galvão e do sociólogo Oracy Nogueira
(FURTADO, 2016)11.
Este foi um desdobramento e uma ampliação da antiga Divisão de Antropologia,
coordenado por E. Galvão, que tradicionalmente tinha áreas como a Etnologia, Arqueologia,
Linguística e a Antropologia Física – esta última cogitada a desaparecer por falta de especialista.
Com o Centro de Estudos surgiu um novo setor, o de sociologia, uma vez que o
Centro visava a formação de técnicos, professores universitários, bolsista do Museu Goeldi
e funcionários de várias instituições ligadas ao desenvolvimento da Amazônia (ARNAUD,
1981). Assim como, a ativação de pesquisas socioculturais, para estudarem e pesquisarem “as
mudanças amazônicas” (FURTADO, 2016) e o “homem da Amazônia: índios, caboclos e urbanistas” (GALVÃO, 1968). O Centro, em alguma medida, servia para atender programas desenvolvimentistas na região amazônica e os cursos eram baseados em “seminário-pesquisa”.
No início da década 1960, no Museu Goeldi, na área da antropologia, por meio de
ensino e orientação, aconteciam os cursos-base, estágios, supervisão e/ou assessoramento, justamente como solução para a formação de técnicos e profissionais das/em ciências humanas.
Contando com as experiências anteriores de seminários e cursos, E. Galvão e O. Nogueira, no
10 É uma mistura de várias plantas que paralisa o sistema nervoso, utilizada por indígenas na ponta da flecha, que se encontra principalmente na América do Sul, também servindo como anestésico
11 Entrevista com a professora Lourdes Furtado, em 20 de junho de 2016.
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primeiro momento, visaram criar um curso intensivo de pós-graduação (especialização) com
duração de cinco meses, de julho a novembro do ano de 1968, intitulado “Pesquisa Social na
Amazônia”.
Para a administração das aulas e as pesquisas foram contratados, por rodízio, professores do sul-sudeste do país, principalmente de São Paulo: Eva Blay, Cândido Procópio
Camargo, George Fukui, Léa Rocha, Lia Fukui, Mário Wagner, May Souza Rubião, Paulo
Sadroni, Paulo Singer, Aparecida Gouveia, Suarez Lopes e Mário Carneiro Leão (FURTADO,
2016; ARNAUD, 1981).
Expedito Arnaud (1981) afirma que foram 42 alunos inscritos, sendo que 30 concluíram o curso. Segundo Galvão (1969) participaram deste pessoas ligadas à Universidade
Federal do Pará, IBGE, SESC, Secretária de Saúde, Instituto do Desenvolvimento Econômico
e Social do Pará (IDESP) e outras instituições; das mais variadas áreas do conhecimento. E
nesta fase alguns dos alunos eram: Samuel Spener, Isolda Maciel Silveira, Pedro Salles, Isidoro Alves, Roberto Cortez, Padre Lisbino Garcia, Zulima Dias, Samuel Sá e outras/os.
Os cursos que o CESCA organizava, de acordo com Orlando Sampaio Silva (2007),
tiveram desdobramento imediato: novos pesquisadores para a instituição e a ampliação da
quantidade de projetos voltados para pesquisas de áreas rurais da região amazônica – campo
de interesse de E. Galvão.
Assim, o CESCA estabeleceu um marco na história das Ciências Humanas no MPEG,
e na região amazônica, exatamente por ampliar os horizontes dos estudos antropológicos, passando a pesquisar o meio rural e urbano. Desde então pescadores, agricultores e logicamente
as populações indígenas começaram a fazer parte das preocupações científicas do Museu.
O grupo de pesquisa RENAS12 é um exemplo que se originou por meio da ideologia do CESCA, com um forte legado de professores como: Expedito Arnaud, Mario Simões,
Edson Dinis, Protásio Frikel, Roberto de Las Casas, Ruth Wallace, Frederico Barata, Ivelise
Rodrigues, Napoleão Figueiredo e E. Galvão. Contando também com pesquisadores visitantes, dentre eles: Charles Wagley, Judith Shapiro, Roberto Cardoso de Oliveira, Darcy Ribeiro,
Noel Nutels, Eduardo Viveiros de Castro, Eunice Durham, Paulo Vanzolini, Roberto DaMatta,
Otávio Velho, Luís de Castro Farias, Lux Vidal, Klaas Woortman, Carlos Moreira Neto e outras/os (FURTADO, 2015).
É notório que E. Galvão foi responsável pela formação de vários pesquisadores do
Museu Goeldi, seguindo o legado de Charles Wagley, mantendo a preocupação com a formação, principalmente de amazônidas; intercâmbio cultural para aprimoramento de seus bolsistas
e estagiários; lembrando também da renovação dos estudos antropológicos na/em Amazônia.
12 Recursos Naturais e Antropologia das Sociedades Marítimas, Ribeirinhas e Estuarinas da Amazônia: Relações do Homem com o seu Meio Ambiente.
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O interesse de Galvão foi proporcionar “[...] programas de preparação de pesquisa
em antropologia [...]”, análogos aos que Wagley fundou nos Estados Unidos – programas
focados na América Tropical13 (SILVA, 2007, p. 49). Galvão percebeu que havia necessidade
de unir ensino e pesquisa para potencializar os alunos, se possível por meios de bolsas e/ou
auxílios, e encaminhar a centros nacionais ou internacionais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exercício etnográfico e memorialístico aqui apresentado tem como objetivo reconstruir os passos e andanças destes intelectuais na/pela Amazônia durante o século XX, direcionando um olhar para a produção antropológica e os legados deixado por Charles Wagley,
seja na elaboração de políticas para a população ribeirinha, seja na articulação institucional
com órgãos brasileiros e estrangeiros, e na formação de profissionais e técnicos conhecedores
da vida amazônica. A apresentação de um panorama de circulação evidencia uma das peculiaridades da região: o fascínio exercido pela exuberância de seu território e de sua floresta, da
fauna e flora, e um lugar especificamente construído no imaginário social a partir do exótico,
do não-familiar, e até mesmo do idílico. Com isto posto, (re)conhecer o trânsito de artistas,
acadêmicos e cientistas pela/na Amazônia é entender como as imagens e memórias sobre a
região são disseminadas pelos viajantes estrangeiros e são articuladas aos saberes, práticas e
culturas vividos in loco.
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***
Este artigo é um produto da equipe do projeto de pesquisa “Charles Wagley como
articulador institucional”, coordenado pela Profa. Dra. Wilma Leitão da Universidade Federal
do Pará (UFPA), iniciado em 2015, e em atividade. A pesquisa principal tem por objetivo entender este antropólogo como “articulador entre diferentes instituições, brasileiras e estrangeiras e como agente fundamental na formação de pesquisadores voltados aos temas importantes
para compreensão da região amazônica” (Leitão, 2015). O projeto conta com o apoio de três
bolsistas de iniciação científica financiados pelo CNPq e UFPA e uma bolsista voluntária pesquisando: no Museu da UFPA, na Biblioteca do Museu Paraense Emílio Goeldi, no Arquivo
Geral do Instituto Evandro Chagas e na Biblioteca do Núcleo de Altos Estudos da Amazônia
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da UFPA. A pesquisa é basicamente documental, bibliográfica e arquivística com vistas a uma
reflexão etnográfica dos documentos e imagens, das passagens de C. Wagley pela Amazônia,
numa tentativa de preencher as lacunas nas relações construídas entre o antropólogo e as instituições nacionais e estrangeiras e os modos de viver na região.
***
As imagens exibidas no presente texto encontram-se disponíveis em University of
Florida Digital Collections, nos livros de Mariza Corrêa e no Dossiê “Um tributo a Charles
Wagley” do Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, devidamente citados, e constantes nas
referências.
***
As imagens tratam de um plano de curso básico de 196414 organizado por Arthur
Napoleão Figueiredo, exatamente voltado para estagiários. Este curso é um dos predecessores
do CESCA. E como estamos trabalhando com a questão do legado de Charles Wagley podemos perceber uma citação de Napoleão ao antropólogo americano como referência ao trabalho
de campo e à pesquisa sistemática, concomitantemente, com outras/os estudiosas/os.
14
Momento em que a Divisão de Antropologia estava sobre a coordenação de Mario Ferreira Simões,
pois Galvão estava na Universidade de Brasília (1963-1965); retornando apenas em fevereiro de 1966 ao
MPEG.
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EXPERIÊNCIAS DE MEDO E SEGURANÇA ENTRE JOVENS NA CIDADE DE
MANAUS
Victoria Katarina Cardoso Lima1
victoria_katarina@hotmail.com
RESUMO: Este artigo relata o andamento de pesquisa etnográfica realizada desde 2019,
que acompanha jovens de minorias sociais na cidade de Manaus (AM). Veremos uma breve
discussão a respeito do fazer etnográfico na cidade, da multiplicidade de juventudes possíveis,
e da influência dos marcadores sociais sobre a evasão escolar. Buscando, conjuntamente, expor as aproximações de campo feitas até então. A partir das noções de violência, educação
e família são construídos sentidos e afetos, que definem o que é a casa, a escola e a “rua”.
Formando-se, assim, o que é e o que deve ser a relação entre esses espaços. Conclui-se que,
o racismo, o machismo, a LGBTfobia e diversas outras discriminações afastam alguns indivíduos de suas casas, escolas ou dos espaços de lazer e circulação, muitas vezes permeados por
sensações de medo e/ou insegurança.
Palavras chave: Juventude. Violência. Escola. Cidade.
ABSTRACT: This article reports on the progress of ethnographic research carried out since
2019, which follows young people from social minorities in the city of Manaus (AM). We will
see a brief discussion about the ethnographic work in the city, the multiplicity of possible young people, and the influence of social markers on school dropout. Jointly seeking to expose the
field approaches made so far. From notions of violence, education, and family, meanings and
affections are built, which define what the home, school, and “street” are. Thus forming what
is and what should be a relationship between these spaces. It concludes that racism, sexism,
LGBT phobia, and several other discriminations exclude some of their homes, schools, or leisure and circulation spaces, often permeated by feelings of fear and insecurity.
Keywords: Youth. Violence. School. City.
1 Graduanda em licenciatura plena em História (UFAM) e Graduando em licenciatura plena em sociologia
na modalidade EAD (Anhanguera). Desenvolve PIBIC em Antropologia Urbana. Membra do Grupo de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidades e Interseccionalidades (GESECS/UFAM) e do Grupo de Pesquisa
ILHARGAS - cidades, políticas e saberes na Amazônia (UFAM).
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INTRODUÇÃO: APRESENTANDO A PESQUISA
Violência, educação e família são, atualmente, três noções com grande presença no cotidiano brasileiro. De maneira muito geral, nos discursos de circulação mais ampla, via grandes
mídias e conversas cotidianas, a violência aparece como uma personagem negativa, de papel
destrutivo, enquanto a educação e a família teriam papeis positivos. Deste modo, é comum que
uma das soluções mais corriqueiras contra a violência, sobretudo quando ela tem como protagonistas pessoas jovens, seja justamente a educação. Sendo sua efetividade atribuída à família
e/ou à instituição educacional que é, principalmente, a escola.
Nesse esquema de relações entre essas noções, são construídos os sentidos e os afetos
– a legitimidade, as finalidades, as expectativas, os medos etc. – que definem o que é a casa,
a escola e a “rua”. Esta última, que inclui muitos espaços distintos, abertos e fechados, de
praças a shoppings, aparece como o lugar por excelência da violência – não por acaso, tantas
vezes adjetivada de “urbana” – que às vezes “atinge”, vinda de fora, as casas e as escolas. Isto
posto, “afastar das ruas” é, há cerca de duzentos anos e por razões semelhantes, uma das preocupações e finalidades mais importantes da educação escolar e da casa familiar (CANDOTTI,
2011). Constrói-se, então, o que é e o que deve ser a relação entre esses espaços.
Esta pesquisa visa aprofundar investigação iniciada em 2019. Naquele ano, iniciou-se a
prática de campo em uma escola2 pública do governo do estado do Amazonas, no bairro Nova
Cidade, Zona Norte de Manaus – uma das mais populosas da cidade. A etnografia, feita a partir de visitas à Escola durante os meses de setembro e novembro, se deu através de atividades
como mapeamento da estrutura física, conversas com estudantes, professores e coordenadores escolares, assistência de aulas e participação em atividades extraclasse. Esta que buscou
acompanhar, à princípio, jovens do terceiro ano do ensino médio nesse espaço, mas também,
considerou discursos e movimentos em relação a outros espaços da cidade. Partindo da escola,
observou-se uma enorme heterogeneidade no grupo de interlocutoras/es. À vista disso, esse
local se mostrou propício para entender tais questões.
Contudo, no início do ano de 2020 ocorreu a paralisação das aulas em decorrência da
pandemia de Covid-19. Isso dificultou a continuação presencial da pesquisa de campo, pois
o Decreto 42.061, de 16 de março, suspendeu as aulas da rede pública em Manaus, recomendando o isolamento social. A Covid-19, causada pelo novo Coronavírus, é uma doença que
apresenta sintomas variados, de infecções assintomáticas a quadros graves, e é transmitida
facilmente entre pessoas através de espirros, tosse ou até mesmo a fala (BRASIL, 2020).
Por conseguinte, buscou-se manter contato com as/os jovens por meio de mídias virtuais, aplicativos de mensagens e redes sociais – usados aqui como ferramentas para realiza2 Aqui referida apenas como Escola.
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ção da pesquisa etnográfica. Desde então, até o envio deste artigo, continuamos em situação
de pandemia. Consequentemente, optou-se por manter a utilização de tais instrumentos para
desenvolvimento do estudo, visando a segurança da pesquisadora e das/dos envolvidas na
pesquisa. Assim, as atividades têm consistido, sobretudo, em trocas de mensagens, áudios e
elementos audiovisuais, e vídeo-chamadas para realização de entrevistas e conversas por meio
do WhatsApp.3
Dessa forma, deu-se continuidade à investigação e à problematização da relação entre
as noções associadas aos espaços, apresentadas por jovens pertencentes a minorias sociais –
neste caso, estudantes de escolas públicas em Manaus ou que tenham evadido por quaisquer
motivos – buscando-se entender atividades e eventos ordinários e extraordinários (DAS, 1999)
que causam medo e/ou segurança nesses interlocutores. Mantém-se também a observação de
práticas discursivas e não discursivas, como a própria mobilidade pelos espaços da cidade.
Logo, pondera-se sobre um cenário interseccional, discutindo-se diferenças como de gênero,
sexualidade, raça/etnia, classe social e também de território, religião e outras práticas sociais.
O recorte em torno de tão variado grupo se justifica pelas comprovadas violências sofridas por tais atores em diversos ambientes urbanos, inclusive a escola. Ademais, a pesquisa
busca também contribuir com a compreensão sobre a evasão escolar que permeia os jovens de
minorias sociais (DE AQUINO, NASCIMENTO JÚNIOR, 2016; BRASIL, 2016; FERREIRA, CESTARI, 2015; MORAES, SILVEIRA, LUCKOW, 2017; WAISELFISZ, 2015; MACEDO, 2019; SANTOS, 2014; VARGAS, 2018). Visto que, esta insere-se no projeto “Educação
e diversidades no Amazonas: gênero, sexualidades e direitos humanos em Manaus” (CNPq/
Universal/2018), coordenado pela Profa. Dra. Márcia Regina Calderipe Farias Rufino. Projeto
que visa compreender as concepções de alunas/os, professoras/es e demais profissionais da
educação acerca das desigualdades e diversidades sexuais e de gênero nos diferentes níveis de
ensino de Manaus. Frente a isso, considera-se a importância de um estudo sobre a relação entre
evasão escolar, violência e “marcadores sociais da diferença” (MOUTINHO, 2014).
Com isso, este texto objetiva apresentar o andamento da pesquisa. Assim, veremos uma
breve discussão a respeito do fazer etnográfico na cidade, da multiplicidade de juventudes
possíveis, e da influência dos marcadores sociais sobre a evasão escolar. Buscando, conjuntamente, expor as aproximações de campo feitas até então.
ANTROPOLOGIA NA CIDADE
3 É um aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. Além de
mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e documentos, e fazer ligações por meio de
uma conexão com a internet.
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A partir de tal proposta, buscou-se compreender primeiramente os próprios métodos
e conceitos que giram em torno da pesquisa etnográfica nas cidades. Agier (2011) articula a
perspectiva antropológica sobre a cidade denominando-a “cidade bis”. Seria aquela “produzida pelo antropólogo a partir do ponto de vista das práticas, relações e representações dos
citadinos que ele próprio observa diretamente e em situação” (p. 32). Assim, a partir de uma
perspectiva “de perto e dentro” (MAGNANI, 2016), que lida com relações cotidianas e significações subjetivas, que variam a depender do/a interlocutor/a, de seu contexto e de situações, é
possível apreender os mais diversos comportamentos e práticas. Por isso, Magnani estabelece
a cidade
[...] não mais como uma unidade circunscrita – deixa de ser o ponto de partida
para a análise, para ser, no limite, o de chegada, como uma determinada modalidade de assentamento humano e de agenciamento de relações, com uma forma
estrutural especifica. (MAGNANI, p. 196, 2016)
Os limites e fronteiras geográficas são menos consideráveis do que as pessoas e as relações entre si, que ocorrem em torno da estrutura cidade. Agier (2011) classifica a cidade como
um “processo vivo”, e não algo palpável. Por isso, considera-se a heterogeneidade multicultural possível nas cidades. Há uma diversidade de infinitas logísticas possíveis nas urbes. São
“múltiplas formas de agir que se encontram em certos lugares da cidade” (AGIER, 2011, p.
42).
Magnani (2016) e Agier (2011), também ao tratarem da antropologia urbana, fazem
diferenciação entre a “antropologia na cidade” e a “antropologia da cidade”. A primeira se
preocupa em registrar e analisar as práticas e significações de atores sociais em diversos espaços físicos e simbólicos. A outra busca identificar permanências, continuidades que vão para
além de escolhas e disposições. Dessa maneira, o fazer etnográfico na cidade é uma espécie de
sobreposição de recortes – por exemplo, a escola, a casa e a rua – que permite compreender o
todo, baseado na antropologia da cidade. Por isso, buscou-se invocar tais espaços para entender a relação e o ponto de vista de jovens sobre diversos recortes. Segundo Agier,
[...] não é a partir da própria cidade que emergem os conhecimentos da antropologia urbana, mas a partir de uma montagem de sequência da vida urbana retiradas de uma ínfima parte do curso real do mundo (AGIER, 2011, p. 59).
Dessa maneira, a “cidade bis” é o conjunto de informações e conhecimentos. Resultado
dos procedimentos de coleta – através da etnografia, por exemplo – e da organização desses
dados. Para Agier (2011), ainda, haveria uma diferença de escala entre a abordagem antropológica e outras, mostra a antropologia como a ciência que investiga a nível microssocial.
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Pois analisa metáforas, subjetividades, comparações e diálogos interdisciplinares. Além disso, a pesquisa empírica se caracteriza pelas informações colhidas “cara a cara”. “Essas duas
características fazem com que seja através de uma sequência de operações indutivas que o
antropólogo ‘eleva’ as informações urbanas a construções teóricas da (ou à escala da) cidade”
(AGIER, 2011, p. 60).
Com isso, a pesquisa de campo revelou a multiplicidade possível dos espaços e momentos de investigação. Àquela altura, a etnografia se pretendia apenas no ambiente escolar.
Contudo, situações outras, em lugares diversos, se revelaram de suma importância para analisar noções do ponto de vista das/dos interlocutores. Ressalta-se, ainda, a importância de não
apreender a escola como um espaço fechado, sem interferência exterior; mas sim pretendê-las
a partir de relações estabelecidas pelos interlocutores dentro e fora dela. Sobre essa questão,
Vargas (2017) propõe:
Encontramos, na contemporaneidade, juventudes que constroem seus saberes em
lugares diversificados: nas ruas, nas mídias, nas redes sociais, entre outros. Ou
seja, os saberes constituídos pelos jovens, em especial, por aqueles que estão
situados em espaços urbanos, não ocorre somente na família ou na escola [...]
(VARGAS, 2017, p. 196).
Tal como em outubro daquele ano, quando fui à uma parada LGBTQI+ no Centro de
Manaus. Lá conheci Wiliam, um rapaz gay. Tinha 16 anos e estudava na Escola, além de ser
morador da comunidade próxima. Ali, comportamentos que não são possíveis ou esperados
na escola são manifestados, observáveis desde as roupas à linguagem descontraída e informal.
Oposto das formas de se comportar no espaço escolar, marcadas fortemente pelo disciplinamento dos corpos. Dessa maneira, a partir do conceito de “cidade bis”, de Agier (2011), considerei os diversos recortes possíveis na experiência dos jovens; desprendendo-me da noção de
limite espacial para realizar a investigação.
Ainda, a escola pesquisada, mesmo que endereçada fixamente, a depender da ocasião,
apresentava funções diferentes em eventos extraordinários, como foi o caso de apresentações
culturais, jogos extraclasses ou a execução do Exame Nacional Para Certificação de Competências de Jovens e Adultos – ENCCEJA.
ETNOGRAFIA NA PANDEMIA: GIFS, MEMES, EMOJIS E STICKERS
A partir de tais pressupostos, e usando de observação, conversas informais, participação
e “descrição densa” (GEERTZ, 1989), a pesquisa etnográfica teve início no ano de 2019 na Escola. Porém, com a decorrência da pandemia de Covid-19, que suspendeu as aulas e requereu
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isolamento social, as mídias digitais passaram a mediar as comunicações com as interlocutoras. Isto não quer dizer que antes tais interações eram descartadas. Contudo, os novos desafios
impostos pela pandemia trouxeram à luz problematizações a respeito da etnografia em espaços
digitais.
Iniciado o projeto de pesquisa corrente, no mês de setembro de 2020 fui à busca de
novos interlocutores. Agora o desafio seria fazer o campo majoritariamente de forma online,
em vista de manter a segurança da pesquisadora e das colaboradoras. Desta forma, por meio
do WhatsApp, do Facebook e do Instagram (redes sociais digitais) encaminhei um texto para
convidar jovens estudantes da rede pública e professores em Manaus que estivessem dispostos
a participar da investigação. Cinco jovens e dois professores deram retorno positivo. Os contatos com estes, todos através do WhatsApp, até então, consistiram em explicação às interlocutoras sobre a pesquisa, seus objetivos, métodos e questões éticas, e conversas informais a fim
de estabelecer aproximações.
Comparando os registros dessa fase da pesquisa com os da etnografia realizada em
2019, em contexto escolar, alguns elementos chamam atenção. Primeiramente, as interações
por meios digitais costumam ter durações mais curtas e momentâneas. Por outro lado, a fluidez
dos contatos também tem permitido relações flexíveis e duradouras. Já na Escola, as interações
sofriam influência do ambiente escolar, institucionalmente formal. E estavam, de maneira geral, fadadas ao fim ao bater da “campa” de saída.
Conteúdos postados nas redes sociais têm se revelado como importantes oportunidades
de perceber o que é relevante para as jovens, e mesmo incitar conversas sobre temas variados.
Elementos gráficos também aparecem fortemente. Fotos, vídeos, textos e gifs4 podem ser compartilhados no status do WhatsApp – uma aba do aplicativo no qual as postagens desaparecem
após 24 horas. Em diversas ocasiões estabeleci diálogos a partir de conteúdo exibido pelas interlocutoras. São formas diversas de capturar conversas, opiniões, atitudes e experiências (DA
SILVA; COELHO, 2019).
4 São imagens animadas que se reproduzem em looping.
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Outros componentes gráficos como memes5, emojis6 e stickers7 são largamente utilizados
pelas jovens nas trocas de mensagens. Isto me fez repensar a forma de ordenar esses registros,
antes majoritariamente escritos, anotados no caderno de campo (físico) e no diário de campo
em aplicativos de edição de texto. Contudo, a organização dos backups e abas de conversa do
aplicativo têm se mostrado como a melhor forma de sistematizá-los. Visto que, esses dados
já são registros. Pois plataformas digitais, como o WhatsApp, nos permitem acessar diversos
tipos de mídias ao mesmo tempo.
Isto me levou a ponderar toda a agenda de estratégias da pesquisa – desde a elaboração
do projeto até a ordenação de materiais em suportes variados. Inclusive, em se tratando de uma
etnografia feita por meios digitais, implica estranhar o habitual, os meios de comunicação que
corriqueiramente usamos - sobretudo pela população mais jovem - e que possuem linguagem
e temporalidade específicas. Ressalta-se, contudo, a não universalidade do acesso à tecnologia
por jovens, visto a profusão de diferenças e desigualdades possíveis, em uma análise antropo5 A expressão “meme” é usada para descrever um conceito de imagem, vídeos, gifs e/ou relacionados ao
humor, que se espalha via Internet.
6 Emoji é uma palavra derivada da junção dos seguintes termos em japonês: e + moji. Com origem no Japão,
os emojis são ideogramas e smileys (carinhas) usados em mensagens eletrônicas.
7 Stickers, também conhecidos como “figurinhas”, têm função parecida com a dos emojis e podem ser enviados pelo WhatsApp.
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lógica, a depender dos marcadores sociais e suas interseccionalidades. Questão a ser problematizada no tópico seguinte.
Destaca-se também a figura da pesquisadora. A etnografia mediada por ferramentas digitais não é neutra. Ao contrário, ela borra o que se espera dos estabelecidos “lugares” da pesquisadora e da pesquisada. Esse modelo de contanto – aqui, o aplicativo WhatsApp - demanda
trocas mútuas e cotidianas, nas quais a investigadora também se expõe, se move.
JUVENTUDES: MÚLTIPLAS EXPERIÊNCIAS
Primeiramente, o uso do termo “juventudes”, por si só, denota heterogeneidade. A noção
de juventude não é inerte. Portanto, depende de contextos e relações. Na sociedade medieval,
por exemplo, o mundo infantil não existia como conhecemos hoje (PEREIRA, 2010). Sobre
isso, Vargas (2017) formula:
A mudança na descrição – de juventude para o seu plural – abrange também a
transformação nas “formas de olhar”. Desta forma, as manifestações de determinados grupos de sujeitos consideradas como não relevantes ou inadequadas à
vida em sociedade sob determinadas perspectivas analíticas, sejam compreendidas, a partir do conceito de juventudes, como expressões identitárias de grupos
associados à cultura juvenil. (VARGAS, 2017, p. 188).
Através desse cenário, a etnografia busca entender a noção de juventude para os/as próprios/as interlocutores/as. Pois, ser jovem não tem a ver somente com a idade, mas implica
questões referentes a um quadro sociocultural amplo. Mesmo assim características tidas como
juvenis são também relevantes, pois
[...] na atualidade, certas características tais como beleza, espontaneidade, vitalidade e versatilidade acabam por ser naturalmente associadas à condição juvenil e
são exaltadas por diversos discursos circulantes em nossa sociedade, a exemplo
do discurso midiático e do discurso médico (VARGAS, 2017, p. 189).
Sobre isto, também, Sarlo (2006) aponta que “a juventude não é uma idade e sim uma
estética da vida cotidiana” (p.36). Tal categoria constituiria a maioria dos mitos do mercado,
cujas necessidades estariam perfeitamente alinhadas ao imaginário dos consumidores. A autora também aponta a influência dos meios de comunicação no reforço de uma ideia de igualdade
na liberdade, correspondente às ideologias juvenis. No entanto, os limites de tal concepção
seriam os preconceitos sociais e raciais, sexuais e morais.
Outrossim, nem todos os jovens vivenciam as mesmas experiências. Há uma infinidade
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de fatores que podem influenciar o entendimento das juventudes. Pereira (2010) ressalta os
marcadores sociais de classe, de raça ou etnia, de gênero, bem como, múltiplas experiências
juvenis a partir das perspectivas escolar e não escolar. “Desse modo, se as experiências juvenis e estudantis são construídas mutuamente, há que se refletir sobre como outras experiências
afetam as anteriores, tais como as de gênero, de raça ou etnia, de morador de determinada
localidade etc.” (PEREIRA, 2010, p. 21).
Simões, França e Macedo (2010) afirmam que categorias associadas a tais marcadores
da diferença são produtos culturais e históricos. Elas articulam-se em sistemas classificatórios com dimensões pragmáticas e semânticas, ou seja, no sentido de analisar a linguagem no
contexto de seu uso e de explorar o significado usado pelas pessoas para se expressar. “Desse
modo, pessoas, objetos e comportamentos ganham sentido – vale dizer, são socialmente produzidos – por meio da atribuição de diferentes posições em um sistema classificatório” (SIMÕES; FRANÇA; MACEDO, 2010, p. 40).
Os autores ressaltam, ainda, a distinção entre a lógica que articula essas categorias em
sistemas classificatórios e os processos de classificação em si. As categorias definem-se umas
em relação às outras, atravessam e circulam diferentes relações – as chamadas interseccionalidades (MOUTINHO, 2014). Já a classificação ocorre quando os indivíduos se tornam atores
sociais, isto é, apropriam-se de determinadas identidades que abrem caminho para determinadas ações. Assim, investigar a relação entre atores e esses sistemas classificatórios na escola,
em casa ou na rua pode ajudar a compreender as constantes mudanças em tais classificações.
Simões, França e Macedo (2010) também chamam atenção para a forma em que a aplicação de categorias classificatórias relacionadas aos marcadores sociais pode depender de
contextos específicos. Portanto, é importante atentar para quais marcadores se sobressaem
em determinadas conjunturas (MOUTINHO, 2014), privilegiando, dessa forma, uma análise
em escala microssocial para que se entenda também configurações em escala macrossocial. A
interseccionalidade, então, pode ser tida como uma categoria que busca refletir sobre as multiplicidades de diferenciações no meio social (HENNING, 2015).
Por fim, discute-se a “agência interseccional”, ao atentar para como os/as sujeitos/as
potencializam e utilizam suas marcas identitárias interseccionais; como lidam com a criação,
o questionamento e a desconstrução social de desigualdades. Para além de meros indivíduos
apáticos frente às estruturas sociais e suas influências na formação de identidades, “ou seja,
espaços de ação calcados em marcadores sociais da diferença e que se dão em resposta aos
cenários potenciais de desigualdades com as quais os sujeitos se confrontam” (HENNING,
2015, p. 117).
EVASÃO ESCOLAR E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA
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Nas últimas décadas, políticas educacionais voltadas para a materialização do direito à
educação mudaram a estrutura do sistema educacional brasileiro desde o início do século XX,
ganhando força com a democratização do acesso à escola nos anos 1980. Por conseguinte, o
acesso à escolarização melhorou. Contudo, os índices de repetência, evasão, defasagem idade-série e baixo aprendizado são preocupantes (SANTOS, 2014). Os desafios para uma escolarização eficaz agora são outros. Dessa forma, compreende-se a importância de reconhecer o
perfil socioeducacional de estudantes em situação do chamado “fracasso escolar”.
Santos (2014), afirma também:
Com base nas formulações teóricas antepostas, é possível considerar que,
quanto maior a trajetória escolar, menores serão as chances de se encontrar quadros de alunos com desempenho escolar distinto, uma vez que os
alunos com resultado abaixo do esperado muitas vezes são convencidos
pelas sucessivas reprovações a abandonarem a escola. (SANTOS, 2014,
p. 5)
Isto seria um sintoma da exclusão social vivida por determinados grupos da população.
Posto que, o “fracasso” não diz respeito somente ao ambiente escolar, mas a toda uma rede
de relações, significações e hierarquias estabelecidas socialmente. Estas estão intrinsecamente
ligadas a determinados marcadores sociais da diferença que atingem sobretudo a população
jovem negra e indígena, a LGBTQI+, às mulheres, e aos imigrantes.
[...] a integração de estudantes com distinto capital familiar, capital social,
capital cultural, gênero, raça/cor, expectativas e interesses, exposto num
mesmo sistema de ensino. Onde os métodos de avaliação e ritos pedagógicos se pautam em padrões homogeneizantes, contribui para o surgimento
de uma competição injusta [...] (SANTOS, 2014, p. 6).
Ferreira e Cestari (2015) analisam as violências na escola com foco em questões de
gênero e no racismo. Questionam a forma como a escola trabalha com as linguagens do corpo
com os alunos; como e se há reação a estereótipos, (pre)conceitos, discriminação, racismo,
violências verbais, simbólicas, diversidade de gênero e diferentes marcos de identidade. Isto
porque, considera a linguagem como instrumento poderoso sobre o corpo.
Porém, apesar dos avanços sobre essas questões, pouco se fala sobre as linguagens do
corpo e discursos aplicados na sala de aula, na relação professor-aluno, sobre as muitas formas
de se fazer mulher ou homem, inclusive sobre a discriminação contra as relações de gênero
e diferentes marcos identitários – raça, etnia. (FERREIRA; CESTARI, 2015, p. 25952). Para
os autores, ainda, palavra e silêncio manifestam produções e reproduções de significados de
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gênero, ou seja, instituem modos de ser menino e menina. Além disso, a articulação entre linguagem, cultura e violências de gênero e de cor/raça revelam contradições entre as práticas
escolares.
Desse modo, as desigualdades de gênero são silenciadas na escola e se alargam
com os estereótipos e (pre)conceitos de raça, etnia, idade, religião, classe social,
fomentando atos de violências e estas questões estão sempre presentes nos espaços sociais, inclusive na escola e fragmentam e abalam outras questões cultuais,
como de classe, sexualidade, etnia, raça, religião etc. (FERREIRA; CESTARI,
2015, p. 25959).
Destarte, o conhecimento sobre as formas como os preconceitos, discriminações e desigualdades de gênero e raça se produzem e reproduzem na escola é uma condição inicial para
que tais práticas possam ser enfrentadas em diversos espaços sociais. Esta busca pode ser feita
por meio de etnografia, como na presente pesquisa, por exemplo.
Em campo, as questões de gênero e sexualidade se apresentaram fortemente entre as
interlocutoras. Resgato uma conversa que tive com Marina, de 16 anos. A jovem, estudante
de escola pública, compartilhou comigo, por áudios no WhatsApp, sua dificuldade em manter
as atividades escolares. Ao contar sua experiência no 1⁰ ano do ensino médio, relatou, em tom
de desabafo, que “queria desistir porque tinha muitos problemas dentro de casa. E tinha irmã
pra cuidar, tinha atividades pra fazer”. Isto revela as desigualdades de gênero que permeiam a
vida escolar. Visto que, tarefas associadas ao cuidado de outras pessoas, à reprodução social,
são delegadas às mulheres.
Ainda, resgato o caso de Lucas, de 20 anos, já egresso do ensino médio público. Ao
relatar sua experiência escolar revelou, ao mesmo tempo, um sentimento de acolhimento e de
insegurança no ambiente escolar. Por um lado, a experiência era positiva por conviver com
outros como ele, gays. Por outro, era negativa porque “a diretora e algumas professoras eram
evangélicas”. Quando lhe indaguei o que isso significava, me disse que “elas faziam piadas
também”. De acordo com Lucas, a gestão da escola participava, em conjunto como outros estudantes, de “piadas” LGBTfóbicas.
Desta maneira, refletindo gênero e sexualidade como composições sócio históricas nos
espaços educativos, há formas estabelecidas de significação da existência sexual e reprodutiva
de crianças e adolescentes. Isso faz com que a escola seja estranha para alguns indivíduos,
que se sentem também estranhos nesse lugar. De acordo com Santos et al (2017), “há corpos
que desassossegam os direitos sexuais e reprodutivos, que são abafados/reprimidos” (p. 222).
Estes sendo controlados não por leis, castigo ou proibição, mas sim através de uma verdadeira tecnologia do sexo. Para Foucault (1998), tal tecnologia não seria exatamente excludente,
sendo muito mais complexa que a simples repressão (FOUCAULT, 1988); se ela afasta corpos
de determinados espaços, logo os implanta em outros, dedicando-se a governá-los através de
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saberes especializados.
Considerando, assim, os jogos de poder que se instituem nos corpos, onde a vida de
determinados sujeitos é hierarquizada, a escola se mostra como um local onde as pessoas frequentemente têm que se esconder. É aí que tal ambiente se torna agente de violências e correções. Não obstante, é onde muitos requerem direitos sociais, reprodutores, de existência e de
acesso à educação ainda não amplamente difundidos para todos, como meninas e adolescentes
do sexo feminino, por exemplo. Além disso, há concepções sobre o feminino e o masculino
que podem ser observadas através de discursos e expressões que “explicam” o gênero, reproduzindo estereótipos no espaço escolar. “Em outras palavras, estamos pensando que as diferenças biológicas entre pessoas do sexo feminino e do sexo masculino explicam e justificam
diferenças de comportamento na sociedade” (LINS, MACHADO, ESCOURA, 2016, p. 15).
Essa concepção também desconsidera as diferenças individuais de cada um, a partir de normas
de gênero restritivas que limitam as possibilidades de existir dos sujeitos.
De Aquino e Nascimento Júnior (2017) também trazem luz à questão racial na escola.
Os autores discutem principalmente a baixa produção de pesquisas voltadas para tal temática,
o que leva a um apagamento sistemático de populações marginalizadas, como negros e pardos.
Além disso, o racismo institucional afeta a experiência escolar negra, pois causa altas taxas de
analfabetismo, atraso e retenção escolar. As desigualdades escolares “indicam que a variável
raça/cor é fundamental para o reconhecimento dos estudantes em situação de fracasso escolar,
sobretudo num contexto de pluralidade racial no qual nós estamos situados” (SANTOS, 2014,
p. 17).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como apontado anteriormente, trate-se de pesquisa em andamento – que partiu da Escola, localizada em um bairro periférico de Manaus, e tem se desenrolado por outros espaços,
sobretudo os virtuais – permitindo refletir a antropologia na cidade, revelando pontos que dizem respeito não somente a espaços geográficos delimitados, mas também a partir de relações
que ultrapassaram fronteiras. Ao investigar interlocutores jovens pertencentes a minorias sociais, objetiva-se compreender como se dão discriminações de diferentes naturezas em vários
espaços. A discriminação se revela a partir de elementos culturais ou não, que diferenciam as
minorias dos grupos de dominância no corpo social.
Tendo em vista a realização da investigação em meio a uma população bastante heterogênea, fez-se necessário contemplar estudos que abrangessem a multiplicidade de diferenciações do meio social. O que significa pensar como os marcadores de diferença (cor/raça,
classe, gênero e sexualidade, etc.) classificam esses jovens; ponderar padrões de interação, nos
campos de possibilidades e ações, a partir dessas diferenças. E também, investigar qual o lugar
dessas diferenças nas percepções dos/as interlocutores/as sobre medo e segurança em diversos
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espaços da cidade de Manaus.
Ressalta-se, sobretudo, o vigor que diferenças sociais - constantemente transformadas
em desigualdades - têm sobre a permanência e o acesso à escola, ou não, de determinados
grupos sociais. Situação que se agrava nos últimos anos da vida escolar, no ensino médio. O
racismo, o machismo, a LGBTfobia e diversas outras discriminações afastam alguns indivíduos de suas casas, escolas ou dos espaços de lazer e circulação.
Estes ambientes, que permeiam a vivência das juventudes urbanas, muitas vezes causam
a sensação de medo e/ou insegurança, desencadeadas por violências diversas. Estas vão para
além do nível da ação e da linguagem, estão no dito e no não dito. Se expressam por meio de
complexas relações, que continuarão a ser analisadas no decorrer desta pesquisa. As próximas
etapas do projeto destinam-se a investigar mais a fundo a relação das interlocutoras com seus
locais de residência, suas casas.
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PARA ALÉM DAS PRISÕES: PCC E(M) LÓCUS FACCIONADO
Elton Guilherme Dos santos Silva1
eltonguilherme56@gmail.com
Marcondes Brito da Costa2
marcondes.brito@ifpi.edu.br
RESUMO: O presente trabalho busca evidenciar os processos que compõem o contexto histórico e social de uma das principais organizações criminosas do Brasil e da América do Sul:
o Primeiro Comando da Capital. A partir de sua origem e expansão na unidade prisional
paulista, à sua consolidação dentro das periferias do Brasil e dos países que com ele dividem
fronteiras – partindo referencialmente da primeira etnografia sobre o tema, elaborada por
(BIONDI, 2010). Nesta primeira análise buscamos olhar para Teresina, capital do Piauí, que
vem recebendo o impacto da formação desse coletivo nas relações do dia-a-dia, sobretudo,
percebendo a atuação e recepção desse coletivo nas comunidades. Apontamos às prisões;
mas, sobretudo, as periferias, como unidades sociais mais amplas na qual o PCC estende suas
influências e ideias. Dessa forma, o presente trabalho surge como uma introdução ao fenômeno que agora se engendra no cotidiano teresinense e que precisa ser melhor compreendido.
Palavras-chave: PCC. Sistema prisional. Segurança pública.
ABSTRACT: This paper seeks to highlight the processes that make up the historical and
social context of one of the main criminal organizations in Brazil and South America: the
First Command of the Capital. From its origin and expansion in the São Paulo prison unit,
to its consolidation within the peripheries of Brazil and the countries that share borders with
it – referring to the first ethnography on the subject, prepared by (BIONDI, 2010). In this first
analysis, we seek to look at Teresina, capital of Piauí, which has been receiving the impact of
the formation of this collective in day-to-day relations, above all, realizing the performance
1 bacharelando em ciências sociais pela Universidade Federal do Piauí UFPI
2 Professor do Instituto Federal do Piauí-IFPI .Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí (2005). Mestrado em Políticas Públicas pela Universidade Federal do Piauí (2011). Doutorando
em Sociologia na Universidade Estadual do Ceará--UECE.
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and reception of this collective in the communities. We point to prisons; but, above all, the
peripheries, as broader social units in which the CCP extends its influences and ideas. Thus,
this work appears as an introduction to the phenomenon that is now engendered in everyday
life in Teresina and that needs to be better understood.
Keywords: PCC. Prison system. Public security.
INTRODUÇÃO
No início da década de 90, no interior do Anexo da Casa de Custódia de Taubaté conhecida como “Piranhão” surge o que viria a se tornar uma das principais organizações criminosas
da América do Sul: o Primeiro Comando da Capital ou como é popularmente conhecido: PCC,
Comando, Partido, Quinze, Família (BIONDI, 2010, p. 25). Não há um fator determinante
para o surgimento desse grupo, porém, um dos fatores que concorre para o surgimento e crescimento de forma silenciosa dessa organização, foi o crescimento vertiginoso da população
carcerária do Estado de São Paulo, que em 1992 totalizava cerca de 52 mil presos distribuídos
em 43 unidades prisionais e que ao final de 2002, subiu para 110 mil encarcerados em oitenta
unidades, bem como na maior parte das zonas urbanas e periféricas do país – embora a presença do partido na maioria das comunidades não sejam confirmadas oficialmente pelos órgãos de
segurança, entendemos que o mesmo exerce influência dentro e fora das unidades prisionais.
Gostaríamos de frisar que o PCC não foi o primeiro grupo criminoso surgido no Brasil,
antes dele surgiu o Comando Vermelho, no final da década de 70 e depois dele vários outros coexistindo e disputando poder entre si. À medida que iam se espalhando pelos Estados
brasileiros em busca de consolidação e difusão de suas ideias, seu poder aumentava, mas
aumentavam também os conflitos por respeito, reconhecimento e pertencimento que acabara
por promover uma guerra desenfreada com outros grupos criminais locais que se insurgiam às
ramificações do PCC.
Biondi (2010) evidencia que o exponencial número de vagas das novas prisões possibilitava reunir uma maior quantidade de presos3, o que contribuía para a diversificação dos egressos e suas localizações. Com o aumento gradativo de pessoas sob custódia de uma direção que
3 O estado de São Paulo conta atualmente com 147 unidades prisionais, vinculadas à secretaria de Administração Penitenciária, que abrigam cerca de 150 mil presos (fonte: www.sap.sp.gov.br). A presença do PCC nessas
unidades não é confirmada oficialmente pelo Governo do Estado de São Paulo. O número apontado acima é
fruto de estimativas elaboradas por prisioneiros, ex-prisioneiros, visitantes, alguns jornalistas e operadores do
Direito. (BIONDI, 2010, p. 25).
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reproduzia os mesmos mecanismos de repressão tal qual do “Massacre do Carandiru”4, com
ataques bárbaros, cruéis e covardes para presos indisciplinados, com visitas e banho de sol
restrito, possibilitou que os mesmos se organizassem a fim de reivindicar o cumprimento legal
das Leis de Execuções Penais.
Além de determinadas restrições, os egressos do sistema prisional eram sistematicamente espancados e expostos a toda sorte de crueldades e arbitrariedades – o local em si já era
conhecido pelos maus tratos. Dessa forma, consegue-se definir as condições sociais e políticas
que possibilitaram o surgimento e consolidação desse fenômeno nas unidades prisionais paulistas e que depois se estendeu para os demais territórios nacionais e alguns países da América
do Sul.
Podemos assim perceber, que nas fissuras do cumprimento básico das diretrizes legais,
os presos se insurgem e se organizam. De início, solicitando apenas o cumprimento da lei de
execuções penais, que num sistema permeado por abuso de autoridades por parte dos policias e
policiais penais e de violências perpetrada por outros presos; o discurso de organização e união
ganha força e envergadura.
Não é possível afirmar com precisão a data do surgimento do PCC; são algumas possibilidades que não devem ser descartadas, mas, que têm que ser analisadas a fim de tecermos
sua origem, em Junto e Misturado: Uma etnografia do PCC a autora expõe algumas das versões que coletou no decorrer da sua pesquisa. Explicitou que o grupo teria surgido em 1989,
na casa de Detenção do Carandiru; em 1991, em Araraquara, que se originou de outros grupos
prisionais; ou que sua gênese se deu numa partida de futebol. Uma dessas versões, contudo,
consolidou-se no meio carcerário, em detrimento das demais e, nesse sentido a autora trabalha
com um conceito de sua criação chamado “amnésia coletiva” onde se refere às ocasiões em
que debates intensos, de uma hora pra outra, por motivos diversos eram encerrados, ou melhor,
eram como se nunca tivessem existido (BIONDI, 2010, p. 69).
Tal reação perpassa por aquilo que a autora chama de Movimento; que de início se opõe
a uma forma abstrata, embora seja ideia, mas, que também é ação concreta, pois, é construído
e conduzido, ao mesmo tempo em que carrega consigo pessoas, telefones, ações práticas, relações efetivas, dinheiro, vida, morte, ruas, quebradas, vilas e territórios em geral:
4 Uma intervenção policial na Casa de Detenção do Carandiru em São Paulo com propósito de findar uma
rebelião resultou num quantitativo de 111 detentos mortos, muito embora, presos que sobreviveram ao “Massacre” relatam um número bem maior, cujos corpos teriam sido retirados por caminhões destinados à coleta
de lixo, antes mesmo da contagem que determinam os números oficiais. Esse fato está diretamente ligado à
origem do PCC, pois o mesmo insurge para vingar as mortes praticadas pelos agentes do Estado. (BIONDE,
2010, p. 66-68).
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Ele [o movimento] não se conforma a espaços ou intervalos de tempo,
pois não tem origem, nem fim definido [...] ele não se limita às trajetórias
dos irmãos embora tenha foco [...] por fim, ele, é formado por vários movimentos simultâneos, todos atravessando e deixando-se atravessar seus
rastros em territórios, tempos e pessoas. (BIONDI, 2018. p, 46).
Carrega também a composição de inúmeros movimentos que entrecruzam e não obedecem aos limites territoriais de sua existência, processos esses que visam o embate pela manutenção, fortalecimento e transformação da estrutura que molda as relações de onde os irmãos
e primos5 estão inseridos, a partir de como convivem, despeitam, se acoplam e se entendem.
Questionar como a formação dessa organização contribuiu para mudança social do meio
que as pessoas em condição de cárcere viviam e vivem, de que forma os ideiais da organização
que surgiu dentro de uma unidade prisional, atravessam os muros, consolidam-se nas ruas e
se difundem no imaginário social são questionamentos que o presente trabalho visa responder.
Como também, evidenciar as dinâmicas de expansão da organização em países circunvizinhos
que dividem fronteiras com Estados brasileiros a tratar dos conflitos e tensões entre interesses
individuais e coletivos dos integrantes e fornecedores. Pontuando os processos de mudanças
entre um PCC idealista para um PCC empresa, em suma, o trabalho pretende compreender as
mudanças de lá pra cá.
VOCÊ SABE O QUE É FRUSTRAÇÃO? É MÁQUINA DE FAZER VILÃO!6
Em Estudos Sobre Ruínas, Marildo Menegat (2012) avalia o capitalismo como uma estrutura que tende a homogeneizar o mundo, tudo é mercadoria e tudo está a serviço do capital
e dentro das suas contradições encontram-se consequências devastadoras, como o crescimento
mundial da pobreza, o desemprego e a infinita e monótona infelicidade existencial desses tempos.
Dessa forma, o autor aponta a criminalização dos membros das classes populares como
um fator agravante que sempre existiu numa sociedade forjada nas desigualdades. Que utiliza como estratégia, a máquina do Estado que engole a tudo e todos numa lógica de controle.
A novidade nesse sentido é a política de tolerância zero, ou de acordo o autor: “aparatos de
exceção da intolerância total” que contribui unanimemente para o encarceramento em massa
5 “Irmão” é um membro ‘batizado’ no PCC. Enquanto “Primo” são presos que residem no convívio de cadeias
comandadas pelo PCC, mas que não são membros batizados.
6 Mano Brown (2002) integrante do grupo de rap Racionais Mc’s; que mesmo com suas contradições e incongruências vociferam no movimento Hip-Hop um olhar crítico da realidade na qual estão inseridos, possibilitando visibilidade social às demandas e, no limite, evitando que os demais não adentrem no mundo do crime.
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desses sujeitos em detrimento dos pertencentes às classes dominantes.
Para as pessoas excluídas da sociedade do consumo, o estado de exceção é permanente,
pois, quando há uma suspensão dos direitos básicos – aqueles que são inegociáveis e irrevogáveis, do direito de ir e vir, da lei de execuções penais, esse modelo acaba convergindo para
um fenômeno que chamamos de Estado de Exceção, que por consequência, legítima uma interrupção, um vazio do direito, logo, “o estado de exceção [...] torna-se regra”. (AGAMBEN,
2004, p. 12).
Esse estado permanente de violações é vivenciado pincipalmente por quem está em cárcere, um lugar que, abriga uma espécie de relutância social. Em geral, sobre as razões que nos
envolvem, não precisa medo em saber o que acontece dentro delas, precisa coragem. Um fato
inevitável, tão intrínseco a realidade humana quanto vida e morte, é a pretensa seletividade
penal que instituições de segurança pública utilizam para julgar, sentenciar e condenar – sem
direito a defesa, pessoas das camadas mais populares. (ADORNO, 1996, p. 5).
As relações capitalistas contemporâneas reproduzem um discurso assimétrico, em que
todo mundo pode ser vencedor, porém que só produzem vencidos. Um debate importante a se
fazer é: como as drogas se tornaram um expediente necessário para amplas camadas suportarem esta sociedade? O resultado disso é visível nos índices de encarceramento e o lugar reservado para os sujeitos que estão inseridos nas relações comerciante-consumidor.
Menegat (2012, p. 182) pondera:
(...) isso não é propriamente a negação de um necessário princípio de realidade,
mas a compreensão de umas das potências do capitalismo que é a afirmação da
sua estrutura do real como abrasadora e única, e, para tal, faz-se determinante a
colonização dos sujeitos, das subjetividades; [...] o capitalismo perverte as equações mais caras da existência, onde tudo se resume a mais um dia de trabalho (...).
E nas periferias isso soa como requinte de opressão; a ausência de condições de educação e trabalho digna que fomente no imaginário juvenil aspirações de um futuro promissor no
mercado de trabalho formal, obviamente não acontece, então, o desejo de fugir desta situação
só pode se fazer intenso. Nesse sentido, várias formas legais e ilegais aparecem como aspecto
de inserção nesse sonho capitalista, entre eles o tráfico de drogas, e assim:
(...) O tráfico de droga se apresenta como um dos negócios mais lucrativos mundialmente, que emprega um contingente considerável de pessoas e, assim, depende
de processos de trabalho para sua produção, distribuição e circulação, explorando
a mais-valia do trabalho humano. O tráfico afeta, ao mesmo tempo, as esferas econômica, social, política e cultural e, assim, varia significativamente dependendo do
contexto nacional. O tráfico de drogas é um protótipo da sociedade de consumo, exRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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pressa toda a violência nela embutida e produz mais violência (...). (FEFFERMANN,
2017, p. 19-20).
Nessa perspectiva os indivíduos que são distanciados e excluídos da lógica do consumo
convencional, enxergam no tráfico a possibilidade de acesso a bens econômicos e fins lucrativos – majoritariamente jovens e adolescentes, que são cooptados nas periferias ou dentro do
sistema prisional, partem de um duplo movimento: uma socialização diferenciada da adotada
pelas instituições formais hegemônicas e poucas oportunidades de integração no mercado de
trabalho formal, esses e outros aspectos reforçados pela baixa escolaridade e pelo modelo de
sociedade capitalista, intensifica riscos reais e concretos na vida desses sujeitos.
Enquanto buscam por possibilidades de trabalho com intenção célebre de sobreviver
e se inserirem na sociedade do consumo, jovens/ adolescentes “trabalhadores” do tráfico de
drogas se veem na condição de produzirem sua vida material a fim de, por consequência determinar um conjunto de normas dentro da realidade que está inserido, pois, quando (MARX;
ENGELS, 2002, p.524) afirmam: “É o mundo material que determina a forma do homem
pensar, agir e sentir”. Contribui para a lógica que entende o tráfico de drogas como forma de
trabalho e inserção no mundo do consumo.
Dessa forma, evidenciando o capitalismo enquanto uma estrutura de dominação e da
reprodução das desigualdades, mas que também, constrói subjetividades que se apropria de
mecanismos que tendem a ser não capitalista, a exemplo, a venda de substancias como um
meio para se inserir na sociedade do consumo e não somente como intenção de fazer parte do
oligopólio do mercado mundial de drogas e de seus excedentes.
Nesse interim, interessa notar como a disciplina7 vigora nos ambientes atravessados pelo
movimento, seja nas cadeias do comando, seja nas quebradas8. O crescimento exacerbado do
comércio ilegal de drogas, alimentado pela proibição e pelas políticas vazias de criminalização
contribuem com a manutenção das redes nacionais e internacionais do fluxo das drogas ilícitas
e a conquista de territórios. Marisa Feffermann (2017, p. 158) aponta como o escoamento desses produtos ilegais contribui para as áreas de influência das organizações à confecção de suas
condutas e a forma que se dividem em posições hierárquicas para o enfrentamento violento de
disputas por influência e contra o aparelho estatal.
Os jovens trabalhadores do tráfico de drogas são considerados, com empenho da
indústria cultural, os responsáveis pela violência, embora sejam, a um só tempo, as principais vítimas das mortes violentas nas estatísticas policias [...] esses
jovens são um apêndice, ora indispensáveis, ora descartáveis [...] a realidade do
7 Condutas recomendadas aos participantes do PCC. Ver (BIONDI, 2010).
8 Local de moradia atual ou passada, com a qual se estabeleceu uma relação afetiva.
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tráfico de drogas tem os adolescentes e jovens como os principais protagonistas,
tanto como vítimas, quanto como algozes (FEFFERMANN, 2017, p. 158-161).
Dessa forma, compreendemos o tráfico, enquanto uma indústria de drogas ilícitas e
como um mercado clássico que agencia fortunas desmedidas anualmente, sendo o crime que
mais cresceu no sistema prisional brasileiro nos últimos anos e que funciona como forma de
inserção ilegal de uma parcela crescente da população brasileira, sobretudo os segmentos juvenis.
Frente a um desemprego estruturado, acirrado pelo processo de “globalização” que dificulta o ingresso de jovens no mundo do trabalho e das violências a que são submetidos – que
diga-se, não são poucas; esses jovens, sobretudo, os que residem em ambientes faccionado9
são cooptados há desempenharem funções para o gerenciamento do tráfico, ocupando a linha
de frente e sendo os que mais morrem, bem como, os que majoritariamente ocupam os sistemas prisionais.
Ou seja, a hostilidade tanto por parte do Estado e o ímpeto de sobreviver nesses ambientes não se resumam necessariamente ao distanciamento da sociedade do consumo convencional ou da ausência de condições materiais; muito embora esses diagnósticos sejam de grande
relevância, se faz necessário entender as variadas formas de violência simbólicas que atravessam esses sujeitos e os processos massivos de construção de suas identidades que envolvem a
busca por pertença e reconhecimento, status, e uma das lógicas trazidas pelo tráfico também
do ponto de vista subjetivo, a de autoafirmação; como também, a crucial dinâmica de entender
como a disciplina e a correria10 se estabelecem e se reproduzem nessas relações.
A violência contra juventude, particularmente periférica e marginalizada no Brasil, se
expressa de várias formas, algumas representadas de forma quantificada em documentos oficiais e outras não. Dessa forma, compreendemos que as juventudes não sejam percursoras de
tais violências, mas que a mesma colhe o fruto das gerações passadas. Ou seja, a exclusão social e a inclusão marginal são combustíveis que movimentam ânimos e subjetividades dos que
vivem à margem – dos que são cooptados nas penitenciárias e periferias a troco de se manter
vivo.
“FECHADÃO NO QUINZE”11
9 Extensão territorial dominada por facções, grupos e organizações criminosas que disputam e rivalizam
com os outros por ponto de venda de drogas e domínio hierárquico.
10 Atividade e/ou forma de ganhar dinheiro.
11 Expressão utilizada por um primo em uma conversa sobre o movimento do PCC nas periferias de Teresina.
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As ações do PCC não se restringem tão somente ao contexto prisional. A partir do movimento, suas orientações atravessam os muros e grades do cárcere e adentram o contexto
periférico e as relações sociais dos indivíduos que as compõe. Pois, o movimento não aceita
limitações e demarcações espaciais, o foco do PCC nesse sentindo é de manter suas dinâmicas
de funcionamento nas ruas, muito embora haja relações entre esses dois ambientes. Jovens/
adolescentes em contato com o tráfico ou com outras obras da criminalidade terminam por serem obstruídos de suas respectivas quebradas e cumprindo pena nas mais variadas e distantes
prisões. O que, decerto, facilita a reprodução e continuidade de dinâmicas de comportamentos
instituídos pela organização criminal.
Desse modo, ao término da pena ou por motivos diversos, ao se verem libertos das grades,
é possível que esses sujeitos reproduzam os ideais do PCC num movimento de reciprocidade.
Em Proibido roubar na quebrada: Território, hierarquia e lei no PCC, Biondi (2018. p, 35), expõe a prisão, como algo que está sempre no horizonte desses sujeitos, que não só orienta suas
vidas como também muitas vezes chega a ser vista como inevitável.
Então a prisão tenciona a forma como o PCC atua na quebrada e lida com os problemas
cotidianos. Os indivíduos que ao serem “acolhidos” pela organização dentro das prisões, saem,
e reproduzem as noções de disciplina, correria e sintonia fora das prisões, numa lógica de reciprocidade; à rigor, “se paz, justiça, liberdade, igualdade e união não nos estão dados, só nos
resta lutar também por elas”.
Dessa forma, em uma quebrada é possível ver efeitos do PCC em todos os lados, ainda
que o movimento não se mostre nítido ou explícito nesses efeitos – eles podem ser vistos, por
exemplo, no vocabulário utilizado pelos moradores da quebrada ou até mesmo na relação de
proteção e segurança da comunidade.
Foto retirada pelo autor em periferia da zona sul de Teresina 2019.
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Biondi (2018, p. 69) evidencia que o PCC que corre nas ruas, nesse sentido, não pode
ser desvinculado daquele que existe nas prisões. Isso porque, embora o PCC apareça como
autônomo e independente dos que participam, podendo estar presente mesmo onde não há
irmãos, sua existência é sustentada por eles. Logo:
(...) eles são voz do comando, que fala por meio deles e, por isso, dependem deles
para se fazer ouvir. São instrumentos que o colocam em ação e que firmam a sua
presença nos territórios. Em outras palavras, não existe PCC sem a existência dos
irmãos (BIONDI, 2010, p. 207).
São responsáveis por consolidar e imperar a disciplina, que constituída pelo movimento
vem de outros lugares, que perpassam por eles e seguem seus rumos. Nesse sentido, assim
como o movimento, a disciplina não se limita às trajetórias das pessoas, mesmo às dos irmãos,
pois a mesma é formada por vários movimentos simultâneos, todos atravessados – e deixando
para trás ao mesmo tempo em que marcam seus rastros, territórios, tempos e pessoas.
De certo, como afirma a autora, ser irmão também consiste em ser o PCC na quebrada. No entanto, há lugares onde não se tem nenhum irmão e, ainda sim, a presença do PCC é
garantida; muito evidente. Ações nas ruas trazem implicações dentro das cadeias, é possível
afirmar que as cadeias não só interagem com as ruas (e vice-versa) como constituem condições
de possibilidade de existência do PCC nas quebradas. Dessa forma, nota-se a presença de condutas que nascem nas prisões expandindo-se para ruas e sendo reproduzidas por aqueles que
desconhecem a disciplina; esse movimento possibilita uma troca de informação que servem, a
depender, como mecanismo de mediação de conflitos.
Um caso emblemático se tratando do PCC, é que, ironicamente, a partir de tréguas, pactos e outros acordos, utilizando do movimento, disciplina e sintonia tem se conjecturado que
a efetivação de uma drástica redução nas taxas de homicídios nas periferias paulistas. Entretanto, as autoridades e instituições de segurança negaram e negam veementemente a atuação e
influência dessa organização no que diz respeito aos redutos e mediação de conflitos12.
Ou seja, notam-se nas periferias, movimentos que atravessam diferentes cadeias, conectam diversas quebradas e fazem-se pertencer-se umas às outras (BIONDI, 2018). Num duplo
movimento que domina territórios e práticas morais, sobretudo de violência.
Afinal, a pacificação dependeu da capacidade do PCC em construir um discurso de união
do crime e organizar o interesse dos empreendedores de drogas numa mesma direção (PAES
MANSO; NUNES DIAS, 2018, p. 177) como também, de acordo, (WILLIS, 2015, p. 2-57) o
12 Queda de homicídios em São Paulo é obra do PCC, e não da polícia, diz pesquisador. BBC News, Brasil. Disponível: https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/02/160210_homicidios_pcc_tg. Acesso:
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PCC, ao atuar dentro das comunidades e regular relações sociais é, ao mesmo tempo, produto,
produtor e regulador da violência. A facção consegue funcionar a partir da regulamentação do
comércio de drogas e das relações de punição dentro das periferias e prisões, evidenciando que
quanto mais crimes violentos e agitação, assaltos e conflitos maiores serão a probabilidade da
presença policial, o que de certo implicaria nas relações de compra e venda do tráfico.
Seria ingênuo, no entanto, acreditar que essa paz é fruto de algum humanismo por parte das facções. A ideia é reproduzir o modelo empresarial adotado pelo PCC em São Paulo,
deixando antigas desavenças de lado e focando no comércio da droga e no enfrentamento à
polícia. A lógica é simples: homicídios e outros crimes chamam a atenção das autoridades, e
roubos geram mal-estar na comunidade, incentivando que os moradores delatem os traficantes
que não conseguem “manter a ordem”13. A ordem da cadeia foi clara: paz!14.
EXPANSÃO FRONTEIRIÇA E MONETÁRIA
A partir da consolidação ideológica da organização que fazia ecoar pelas prisões e periferias locais os ideais de paz, justiça, liberdade e igualdade para todos, o PCC passou a planejar a ampliação de sua presença e controle para além dos Estados brasileiros. De dentro das
prisões, as lideranças haviam percebido a importância de reduzir ou eliminar os intermediários
do comércio de drogas e controlar todas as suas etapas.
Nessa época, o salve15 que tratava desse respectivo assunto foi intensamente discutido
entre as lideranças do PCC que estavam confinados nas penitenciarias brasileiras. “Se os produtos tinham origem nos países vizinhos, era necessário, portanto, estar presente nesses locais,
especialmente no Paraguai” (PAES MANSO; NUNES DIAS, 2018, p. 10-15). País que além
de ser maior produtor de maconha do mundo, é também rota de outras substâncias provenientes dos demais países que compõem o cenário latino americano.
A partir de documentos produzidos pelos próprios irmãos do partido, estava clara a relação com os sujeitos que atuavam na Bolívia e no Paraguai. A novidade, nesse sentido, era a
13 Acordo pela paz entre PCC e Comando Vermelho derruba homicídios em Fortaleza. In.: Facções dominam periferias de uma das capitais mais violentas do Brasil e proíbem ciclo de vingança das gangues locais.
EL PAÍS. Disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471617200_201985.html. Acesso:
16/06/2021.
14 Pacificação das periferias da cidade pelo crime organizado foi comemorada em marcha pelo município.
EL PAÍS. Disponível: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/08/19/politica/1471636285_536064.html. Acesso:
16/06/2021.
15 (1) Forma de chamar alguém; (2) Comunicado; (3) Recado; (4) Saudação; para mais informações, ver:
Glossário de Termos Nativos (BIONDI, 2010, p. 237).
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tentativa estratégica de estabelecer um canal direto dos integrantes do PCC com fornecedores
dos países vizinhos. Entre contatos e viagens, um tesoureiro do partido foi preso enquanto
trazia consigo um relatório que descrevia sua viagem à Bolívia para tratar de relações estritamente comerciais, bem como, estabelecer um fluxo contínuo com fornecedores de armas
e cocaína, regular o transporte e abastecimento de cargas e definir preços (PAES MANSO;
NUDES DIAS, 2018. p, 26).
A esse respeito, o relatório que foi apreendido deixava transparecer certa tensão entre os
negócios individuais e coletivos do partido para com seus respectivos fornecedores, ou seja,
negociações institucionais do PCC que iam desde interesses pessoais: “irmão pessoa física” a
interesses “da Família”: “PCC pessoa jurídica”. Nesse processo de arranjos entre lideranças
brasileiras, paraguaias, colombianas e bolivianas houve uma série de conflitos, traições e desarranjos que fizeram as relações de compra, venda e distribuição estremecer; essas tensões
seriam consequências do próprio projeto de expansão da organização brasileira que não “considerava” suficientemente os “estrangeiros”16.
As desconfianças se deram, sobretudo, porque os “estrangeiros” não recebiam confiança
suficiente dos irmãos e lideranças paulistas,
‘era uma relação de cunho comercial que não envolvia os elementos ideológicos
do partido, como a luta contra a opressão na prisão, o compartilhamento do sofrimento de estar encarcerado e a bandeira pela união e pela paz e também a pacificação das relações do crime’ – muito importantes na dinâmica do PCC (PAES
MANSO; NUNES DIAS, 2018, p. 51).
No fim, suspeitavam que os mesmos quisessem lucrar em cima da família17, o que iria
extremamente contra a lógica dos irmãos, uma vez que um dos conceitos que logra os ideais
da organização é o de igualdade para todos:
(...) por um lado, o PCC não pode ser visto como fonte de lucros ou ganhos
financeiros para líderes, nem pode privilegiar pessoalmente seus participantes
conforme a posição ocupada ou o pertencimento ao seleto grupo da Sintonia Geral Final18 (BIONDI, 2018, p. 174).
16 Para detalhes sobre os vínculos que se construíram a partir das relações comercias entre integrantes da
organização, paraguaios e bolivianos ver: (MANSO; DIAS, 2018, p.10-55).
17 (1) Moradores de uma mesma cela; (2) irmão batizado no PCC ou familiar sanguíneo; ver (BIONDI, 2010,
p. 240)
18 Integrantes que mantinham o controle das atividades do grupo a partir da rua para não depender dos integrantes presos. Definem missões complicadas e mediam conflitos nas “quebradas” a partir dos “debates”,
funcionam como uma equipe de “administradores”.
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Pois em suma, são atividades que exijam transparência, debates19 e responsabilidades
já que, de toda forma, “os particulares poderiam usufruir “apenas” se todos estivessem de comum acordo” (PAES MANSO; NUNES DIAS, 2018, p. 53).
Dessa forma, a sintonia poderia ter controle das atividades do grupo dentro das prisões
e nas ruas, pois, não dependem diretamente dos integrantes presos, porque ao consolidar-se
nas periferias tendem a movimentarem-se praticamente sozinhos entre periferias e prisões,
mas com propósito único de estruturar cada vez mais as famílias a fim de fortalecer a base de
estrutura financeira para lidar com as sintonias, com os fluxos de dinheiro, de mercadoria e de
informações.
Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias (2018) apontam que entre os anos de 2014 e
2015, o PCC efetivamente intensificou sua presença nos territórios paraguaio, colombiano e
boliviano, sobretudo nas cidades próximas às fronteiras brasileiras. O foco principal da organização era apropriar-se dos processos de produção, comércio e distribuição internacional de
determinadas substâncias ilícitas. Entretanto, esse processo expansionista e monopolista do
PCC foram regidos por uma série de fatalidades, tanto para membros da organização quanto
para lideranças dos respectivos países, pois, de acordo os autores:
(...) o lugar do poder não fica vazio no milionário mundo das fronteiras [...] assim
como em outras cidades que fazem fronteira com o Brasil e são utilizados como rota
de distribuição é difícil estabelecer onde a violência começa ou termina [...] matava-se lá e desova cá e vice-versa (2018, p. 68 – 158).
Transformando assim, as zonas fronteiriças em territórios de exceção, onde matar ou
morrer era o preço a ser pago pelo monopólio hierárquico da produção e distribuição das drogas. Tal distribuição, caracterizada enquanto um mercado clássico e ilegal que está estruturada
à maneira do tráfico, onde seus membros disputam territórios, preços e estratégias de sobrevivência. Numa dinâmica de violência que ecoa no Brasil e estende-se aos países vizinhos, produzindo uma nova configuração ao partido, não somente ideológica e diplomática, mas adepta
há um mercado extremamente perigoso e praticamente suicida. De acordo (PAES MANSO;
NUNES DIAS, 2018, p. 67 – 166).
(...) os presídios ajudam a aliciar mão de obra barata para a facção, mas esse domínio também empurra para a rede do Partido os grandes empresários da droga,
que passam a acatar as regras de mercado do PCC [...] e nos países onde estão
presentes (Paraguai e Bolívia, principalmente), foi preciso trilhar um longo e
19 Na língua nativa significa: discursão.
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conflituoso caminho, pavimentado por discursos e narrativas que propunham a
paz, mas, paradoxalmente, tinha na guerra uma via sempre possível [...] o Partido do crime priorizava convencimento como forma de cooptação e, portanto,
estratégia de expansão, diplomacia em primeiro lugar, mas quando não há espaço para diplomacia, resta à guerra (...).
A chegada do PCC às fronteiras marca essa nova etapa as relações empresariais do crime. O PCC transforma o cenário ao avançar como grupo disposto a organizar a cena criminal
e atuar como agência reguladora de tal atividade, a questão nesse sentido é a instabilidade que
caracteriza essas relações comerciais, em que uma nova guerra está sempre na iminência de
eclodir.
Essas regiões já habitadas por lideranças produtoras e exportadoras do mercado da droga já eram o destino das facções, pois, depois de organizar agências do crime nas cidades paulistas e nos demais Estados brasileiros, ambicionavam maiores alcances e influências, dessa
forma, partindo para outros países; à luz do dia: “Mais uma ironia nessa história toda, talvez
a maior de todas: de dentro das prisões, criadas para confinar e conter o crime, o PCC seguia
firme no caminho de alcançar os quatros cantos do mundo (PAES MANSO; NUNES DIAS,
2018. p. 173)”. Evidenciando na prática os erros das quais o Estado penal e suas repartições
institucionais de segurança pública falharam ferozmente, negando a ascensão da organização
ao passo que a mesma aparelhava presídios do norte a sul do país, bem como, as principais
fronteiras que constituem as principais portas de entrada de drogas ilícitas em Território brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
De certo, ao mencionar o PCC enquanto um “Partido”, “Comando” ou “Quinze” entende-se um tensionamento pela totalidade. Muito embora, o presente trabalho busca construir
uma imagem multifacetada do que é essa organização, quando surgiu, expandiu-se e como se
consolida para além dos muros das prisões: nas ruas, periferias, quebradas e regiões fronteiriças.
Busca de certo modo, evidenciar como o sistema penal olha prioritariamente para as
classes populares criando condutas criminalizantes e como o mesmo contribuiu para o surgimento desta organização dentro do sistema prisional e até mesmo em países da América do
Sul. Buscou, também, evidenciar de que forma a disciplina e ética do PCC transcendem as
grades e aquele se consolida nas periferias mesmo não havendo um representante legal para
determinada ação, como também, entender essa organização como um mecanismo de mediação de conflitos dentro e fora do sistema carcerário.
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Longe de construir uma unidade monolítica, o movimento não só comporta como
também é constituído por vários movimentos, de diversas formas, calibres, velocidades e que
seguem diferentes direções. Criando todo um fluxo, que perpassa circunstâncias, situações,
pessoas e territórios, produzindo alterações nos modos de viver de determinadas comunidades.
O Primeiro Comando da Capital nasce dentro de uma unidade prisional paulista e já faz parte
do cotidiano de inúmeros brasileiros e não-brasileiros. Tal acontecimento merece compreensão para maximizar caminhos de análises sobre a relação periferia-prisão e vice versa, como
também possibilitar noções outras que não seja a criminalização de jovens para a potencialização de uma organização criminal produtora de subjetividades assujeitadas. Esse trabalho é
fruto de vários esforços, mas que não param por aqui.
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Conselho de Direitos Humanos recebeu de familiares relatos de agressões físicas e uso de
cachorros em incursões das forças de segurança dentro de prisão; vídeo mostra colchões, rouRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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pas e alimentos dados pelas famílias no lixo. EL PAÍS. Disponível: https://brasil.elpais.com/
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O TORÉ KARIRI-XOCÓ NA ALDEIA E NA CIDADE: PRODUÇÃO E COMUNICAÇÃO INDÍGENAS EM CONTEXTOS ESPECÍFICOS.
Manuela Machado Ribeiro Venancio1
manumrv5@gmail.com
RESUMO: O presente artigo é resultado de pesquisa etnográfica desenvolvida na aldeia
Kariri-Xocó e em cidades dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. No trabalho de
campo, realizaram-se observação participante, entrevista, anotação em diário de campo e
registro audiovisual. O foco da pesquisa foi as relações sociais entre os Kariri-Xocó e aquelas
estabelecidas no contato interétnico. O Toré se apresentou como um importante marcador da
diferença comunicado pelos Kariri-Xocó nas retomadas de suas terras e em espaços urbanos.
A base teórica do texto são os estudos sobre povos indígenas do Nordeste: Grünewald (2005);
Mata (2014) e Oliveira (2005); etnicidade (BARTH, 2000) e formas de resistência indígena
(ALARCON, 2013; SANTOS, 2009).
Palavras-chave: Indígenas do Nordeste. Toré. Etnicidade. Resistência indígena.
ABSTRACT: This article is a result of an ethnographic research, which was developed in
the Kariri-Xocó village and in the cities of the state of São Paulo and Rio de Janeiro. During
the fieldwork, participant observation, interviews, diary annotation and audiovisual recording
were carried out. The focus of the research was the social relations among the Kariri-Xocó
and those in interethnic contact established. The Toré presented itself as an important marker
of difference communicated by the Kariri-Xocó in the retaking of their lands and in urban spaces. The theoretical basis of the text are the studies about indigenous peoples of the Northeast:
Grünewald (2005); Mata (2014) and Oliveira (2005); ethnicity (BARTH, 2000) and forms of
indigenous resistance (ALARCON, 2013; SANTOS, 2009).
1 Graduação em Ciências Sociais (Universidade Federal de Santa Catarina), mestrado em Antropologia
(Universidade Federal da Bahia) e doutorado em Antropologia (Universidade Federal Fluminense)
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Keywords: Indigenous people of the Northeast. Toré. Ethnicity. Indigenous resistance.
Figura 1 - Toré na interdição da AL 225.
fonte: VENANCIO (2018, p. 214).
INTRODUÇÃO
Pesquisadora: Agora o Toré é um ritual?
Pajé Júlio Queiroz Suíra: [...]. Ele é o ritual também, porque o Toré, nós temos o
Toré, a dança do Toré para muitos fins, compreende. Temos para apresentar para
o branco, dança; temos para chamar chuva, temos para a guerra, temos para
decidir alguma determinação nossa. O Toré ele representa tudo isso. Agora, no
momento que a gente esteja precisando, sabemos definir: canto, dança e tudo.
[...]. [O Toré] é o que nós podemos apresentar. Agora, o ritual da gente mesmo
[praticado no Ouricuri], não podemos apresentar nada. Nem dar nome de nada.
[...]. Isso é para nosso conhecimento. (VENANCIO, 2018, p. 123).
Neste artigo, procura-se discorrer sobre as relações sociais dos Kariri-Xocó no âmbito
da aldeia e no contato interétnico com o não indígena, seja durante uma retomada de terra,
seja quando fora da aldeia para apresentar o Toré em escolas, universidades e/ou em centros
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culturais urbanos. São apresentados no artigo a seguir, dados etnográficos elaborados com
base em trabalhado de campo de doutorado realizado em 2016 e 2017, na aldeia Kariri-Xocó,
município de Porto Real do Colégio e em cidades do interior de São Paulo e no estado do Rio
de Janeiro, onde alguns Kariri-Xocó se fazem presentes, morando na “cidade grande” ou por
motivos de viagens anuais a trabalho, em que permanecem um período distante da aldeia.
No desenvolvimento do campo, é que se deram as observações participantes e os registros em diários de campo, aqueles gravados em entrevistas e os fotografados pela pesquisadora.
Destaca-se o Toré como especificidade cultural central na comunicação e produção da
diferença entre Kariri-Xocó e não indígenas. Autores afirmam, a exemplo de Oliveira, que:
“Como uma performance política, é no toré que se realiza mais plenamente uma demarcação
identitária [...]” (2005, p. 10). Grünewald considera que: “Como sinal diacrítico, o toré já
manifesta, em sua existência, a oposição [...]” (2005, p. 25). E Nascimento afirma:
Assim, de fato, o toré, como um todo, funciona como um sinal diacrítico, na
qualidade de um ritual indígena – todavia reduzido, na “representação”, a uma
dança – que, se apresenta aos não-índios, os quais costumam exigir de índios
que estes apresentem seus rituais tradicionais, de acordo com seu próprio imaginário do que deva ser um índio. (NASCIMENTO, 2005, p. 48, grifos do autor).
Desse modo, o Toré é visto enquanto uma especificidade cultural dos indígenas do Nordeste , definido como um sinal diacrítico (BARTH, 2000, p. 32), comunicado em diferentes
contextos, como se verá mais adiante. Por ora, será contextualizado o cenário etnográfico da
pesquisa.
Às margens do Rio São Francisco e entrecortado pelas estradas BR 101 e AL 225, está
localizado o Território Indígena Kariri-Xocó, município de Porto Real do Colégio (Alagoas).
Em 2016, foi dado início ao trabalho de campo de doutorado na aldeia Kariri-Xocó3, onde a
pesquisadora Manuela Venancio permaneceu por alguns meses na residência do casal indígena: Dona Carminha e Seu Antônio4. A circulação de pessoas na casa era frequente: netos/as,
2
2 Ver Toré: regime encantado do índio do Nordeste, organizado por Rodrigo Azeredo Grünewald (2005)
3 Resultou na tese de doutorado Os Kariri-Xocó do Baixo Rio São Francisco: organização social, variações
culturais e retomadas das terras do território de ocupação tradicional, defendida em 2018, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense. Bolsista CAPES. Cabe dizer
que o presente artigo apresenta dados e análises etnográficas da Tese, de modo mais específico, do capítulo 3
Ouricuri e Toré Kariri-Xocó.
4 A pesquisadora também realizou observação participante com alguns Kariri-Xocó residentes na cidade de
São Paulo. Estava interessada em estudar as interações sociais entre os próprios Kariri-Xocó no âmbito da
aldeia e as relações sociais provindas do contato desses indígenas com os não indígenas fora da aldeia. Em
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filhos/as, sobrinhos/as e demais crianças visitavam diariamente o casal. Uma vez, apareceu um
grupo de meninas e meninos que correu para o quintal, acendeu uma fogueira, fez tinta com
carvão para se pintar e começar a dançar Toré. Cabe dizer que na presença da pesquisadora,
essas crianças transmitiam conhecimento indígena apreendido e ensinado entre gerações (VENANCIO, 2018, p. 23).
Tal cena indicava a relevância do Toré, não somente dentro da aldeia, mas na relação
interétnica dessas crianças com a pesquisadora “cabeça seca”, ou seja, uma mulher não indígena e não conhecedora dos saberes rituais Kariri-Xocó.5 Desse dia em diante, a pesquisadora
observou e participou do Toré em diversas outras situações: 1) no sepultamento de indígenas
na aldeia; 2) nas noites no terreiro da Fazenda, pedaço de terra indígena retomado pelos Kariri-Xocó; 3) nos resultados das eleições municipais de 2016 em que dois Kariri-Xocó foram
eleitos6; 4) em contextos urbanos nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo.
Os exemplos referem-se ao Toré realizado na contemporaneidade, todavia, a datação
desses cantos e danças Kariri-Xocó é secular7: no contato com os jesuítas; com o Imperador
de Portugal; com os agentes do Serviço de Proteção aos Índios (SPI); entre outros. A citação a
seguir apresenta esses momentos:
[...] Conta o cacique Cícero Irecê Kariri-Xocó que os índios de Colégio fizeram
sua primeira apresentação aos jesuítas no século dezesseis. Uma outra apresentação de que se tem notícia se deu em 16 de outubro de 1859, por ocasião
da chegada do Imperador D. Pedro II à aldeia de Colégio, com cantos e danças
conduzidos pelo chefe tribal Manoel Baltazar. Contam os mais velhos que o
toré foi tão comovente que emocionou o Imperador, que passava pelo rio São
Francisco, em visita à cachoeira de Paulo Afonso. Em outra ocasião, os indígenas de Colégio fizeram uma apresentação do toré para o antropólogo Carlos
Estevão de Oliveira, em 7 de abril de 1935, na Rua dos Índios. No período
da criação do posto indígena, em 1944, os índios de Porto Real do Colégio
fizeram uma apresentação do toré na presença do agente Cícero Cavalcante de
Albuquerque do SPI [...]. Uma coisa inédita entre os Kariri-Xocó foi a viagem
a Aracaju, em 1973, para fazer uma apresentação do toré, registrada pela TV
Sergipe. (NHENETY KARIRI-XOCÓ, 2013, p. 64-65).
outras palavras: pesquisaram as relações intra-aldeia e interétnica, sendo que o Toré se apresentou como uma
especificidade cultural de extrema relevância nos contextos de dentro e de fora da aldeia.
5 De modo mais específico: o Ouricuri realizado secretamente em uma mata do território indígena, espaço
restrito aos indígenas.
6 Ver Venancio (2018; 2019).
7 O vocábulo “Toré” quer dizer “canto sagrado.” Conforme Pawanã: to=canto + ré=sagrado. Acompanhado
do canto há as danças. Desse modo, canto e dança formam o Toré.
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Nas narrativas e nos depoimentos indígenas ouvidos durante o trabalho de campo, bem
como nas fontes bibliográficas consultadas (MATA, 2014, p. 172 - 199; MOTA, 2005, p. 180184; HOHENTHAL, 1960, p. 63-65), os rituais do Toré e do Ouricuri são primordiais à vida
social, política e cultural Kariri-Xocó (VENANCIO, 2018, p. 101). Enquanto o Ouricuri é
limitado ao espaço sagrado da aldeia e aos indígenas, já que é proibida a presença do “cabeça
seca”, o Toré é realizado dentro e fora da aldeia em que pode haver ou não a autorização dos
Kariri-Xocó para o não indígena participar. Desse modo, o Toré pode ser classificado em “público” e “privado” (GRÜNEWALD, 2005, p.16)8. Todavia, a pesquisadora opta por recorrer a
um termo nativo ouvido em uma entrevista de campo: “Toré oculto” que, consequentemente,
desencadeou em sua oposição, denominado de Toré não oculto:
Lulu Taruanã: O Toré são cantos que a gente canta. Têm cantos que podem você
vê e outros que não.
Pesquisadora: E esses cantos são sagrados?
Lulu Taruanã: Sagrados.
Pesquisadora: Mesmo os abertos?
Lulu Taruanã: É oculto, é oculto. Os abertos a gente canta, por exemplo, chega
[em] uma escola pública ou particular, a gente canta esses cantos. Agora existem outros cantos que são bem profundos que nem você vê, Manuela! [...]
Lulu Taruanã: [O sagrado] é coisa oculta. Só pode receber, só entre nós. Não
pode ser revelado.
(VENANCIO, 2018, p. 122)
Assim, conforme o trecho acima, o Toré oculto é restringido ao espaço sagrado do Ouricuri em que se fala um “idioma fechado”: “palavras e cantos falados só entre nós. Só ocorre
no Ouricuri, não pode ser em outro canto de jeito nenhum”, segundo pajé Júlio. 9 Em contrapartida, há o idioma aberto em que são cantadas letras que comunicam ao não indígena acontecimentos históricos marcantes para o povo Kariri-Xocó. Um exemplo é o canto do Maruanda:
Maruanda foi um cara, que na época dos jesuítas, importantíssimo. Na época
dos jesuítas, Maruanda, ele ficava de vigilante. Os índios iam praticar o ritual,
Maruanda ficava vigiando os jesuítas, se eles vinham para o ritual. Quando os
jesuítas vinham para cá para o ritual, sempre Maruanda assobiava, fazia alguma
coisa para os índios pararem, para os jesuítas não verem. Aí, quando foi um dia,
aí Maruanda estava debaixo de um pé de Juazeiro, ali olhando... os índios dançando, fazendo o ritual deles, né, e o Maruanda olhando para o horizonte, aí foi
8 Para fazer essa consideração, Grünewald menciona Hohenthal Jr. (1954).
9 Ver Venancio (2018, p. 122).
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embora dormir. Aí, os jesuítas chegaram, pegaram os índios: “desça tudo para
o Colégio”. Aí, foram, apanharam. Aí, os índios tiraram esse toré: “Vadiemos
Maruanda”. Maruanda estava vadiando, brincando, brincou [de] dormir”, disse
Nhenety. 10
Os Kariri-Xocó definem o Toré de maneira “multissemântica” (GRÜNEWALD, 2005,
p. 13), pois, quando conversaram com a pesquisadora, esses indígenas o definiram como: (i)
“tradição”; (ii) “cultura”; (iii) “canto sagrado”; (iv) “dança”; (v) “identificação do povo”; (vi)
“resistência”; (vii) “união”. Vejamos algumas frases que ilustram tais noções:
(i)
(ii)
(iii)
No “Toré está o nosso tempo de existência. [...]. O canto pode nascer agora, como
pode ter nascido há anos. Ele já nasce desde o começo do mundo”, disse Pawanã;
O “mais importante da nossa cultura é o Toré. O mais importante! Porque são
cantos e danças. É de onde nasce toda a cultura indígena: é dos cantos e das danças”, falou Wyray;
“Deus já deixou essa inteligência [o Toré] para a gente”, afirmou a indígena Maria
do Carmo. (VENANCIO, 2018, p. 120-121).
Portanto, o Toré comunica a diferença entre os Kariri-Xocó e os “cabeça-seca” e, consequentemente, o configura enquanto um “regime de índio” em que há a afirmação da identidade
étnica. Grünewald ao se referir ao Toré e, especificamente, aos Atikum considera:
E foi justamente no entorno de uma teoria da prática, que elegi a noção nativa
Atikum de regime de índio como operador conceitual para a atualização prática da cultura nativa, ou mais especificamente, de suas tradições étnicas – é a
instância prática que vai recodificar (traduzir) a autoctonia para a indianidade
na medida em que ser índio é um movimento pós-contato colonial (2005, p. 24,
grifo do autor).
O autor segue em sua consideração: “os regimes de índio criados em torno dos torés são próprios a cada um dos grupos e carregam sentidos intrínsecos, exclusivos alguns e
compartilhados outros [...]” (2005, p. 24).
GRUPOS DE APRESENTAÇÃO RITUAL KARIRI-XOCÓ
Os contextos mobilizadores do Toré Kariri-Xocó são diversos, bem como suas plateias
são distintas (PEREIRA, 2011, p. 583): há situações socioeducativas em que esses indígenas
10 Ver Venancio (2018, p. 122).
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se apresentam em universidades e escolas; em outras, o Toré se faz presente em espaços culturais dos grandes centros urbanos, a exemplo dos SESCs de São Paulo e do interior do Estado.
Em cada um desses contextos, diversos indígenas Kariri-Xocó realizam o Toré por meio da
formação de “grupos de apresentação ritual” (VENANCIO, 2018, p.129-130).
O Toré Kariri-Xocó fora da aldeia é apresentado sobretudo no denominado “Dia do Índio”. Nesse mês (abril) muitos Kariri-Xocó se preparam para viajar, pois há bastante procura
das escolas por esses grupos. Assim, é um momento único para falarem da cultura Kariri-Xocó:
Quando a gente apresenta o nosso canto lá fora, a gente apresenta de uma forma
conscientizando o não índio, ver e sentir que nós fazemos parte de uma cultura,
né, por ser índio. Que essa cultura ela é antiga, ela vem de geração em geração.
(RYAKONÃ, citado por VENANCIO, 2018, p. 137).
Hoje em dia, muitos Kariri-Xocó deixam permanentemente a aldeia para se apresentarem na “cidade grande”: São Paulo, Rio de Janeiro, Campinas, entre outras, e até mesmo fora
do país. Há ainda aqueles/as indígenas que passam a morar nos grandes centros urbanos para
trabalhar ou estudar. Seja para uma permanência de um mês ou por anos, os Kariri-Xocó formam grupos de apresentação ritual do Toré por meio de laços de parentesco: filiação unilinear
(matrilinear ou patrilinear) composta por irmãos/as, primos/as, tios/as, sobrinhos/as, pais e
filhos/as. São inúmeros os grupos de apresentação ritual do Toré. Procurou-se fazer o levantamento de alguns grupos. A tabela a seguir ilustra:
Grupos de apresentação ritual do Toré
Caça-feita
Dikanguiqueré
Dzubukuá
Kaxagó
Paratinga
Sabuká
Subatekié
Significado dos nomes dos grupos
Pessoa adulta com conhecimento espiritual e medicinal Kariri-Xocó.
Cantigas mágicas.
Os Kariri da Ribeira, isto é, do Baixo
São Francisco.
Nome de uma etnia indígena.
Para = rio; tinga = sobrenome do cacique do grupo.
Galinha ou galo.
Conhecimento.
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Povo de tradição: cantos, rezas e artesanato.
Fonte: VENANCIO (2018, p. 130).
Soyré
Segundo os Kariri-Xocó, cada grupo de apresentação tem um “cacique” e um “pajé”,
contudo esse não anula o papel espiritual do “pajé geral”, muito menos o papel político do “cacique geral” do povo Kariri-Xocó. Conforme explicaram, é necessário “ter cacique de grupo
[para haver] uma hierarquia cultural. Tem que ter alguém responsável”. Desse modo:
Esses caciques são caciques de grupo para viajar, não são reconhecidos aqui
[na aldeia] como cacique. São reconhecidos como índio. Agora lá fora [é] para
poder o branco entender que o cacique é aquele que está ali. 11
Os caciques dos grupos de apresentação ritual do Toré são os líderes na comunicação
com o não indígena. Para os Kariri-Xocó, o cacique do grupo é “aquela pessoa inteligente que
leva o grupo com êxito em alguma coisa.” Uma de suas funções é a de conseguir recursos para
seu povo indígena, como alimentos e roupas para a aldeia. Pawanã, líder do grupo Sabuká, explica que, em tempos remotos, os Kariri-Xocó formavam grupos para caça e pescaria em que
cada indígena assumia um papel: “o que escutava melhor, o que percebia melhor, o que atirava
mais ligeiro, o que podia se defender, entendeu?”.
Pawanã afirma que a escolha de indígenas para participar de cada grupo de apresentação ritual do Toré “ainda é como nossos antepassados”, portanto, de acordo com as demandas
sociais e os seus contextos atuais. No caso de Pawanã, ao selecionar pessoas de seu tronco
familiar para compor o Sabuká, leva em consideração a percepção desse indivíduo, porque
conforme ele: “a cidade grande é muito perigosa… que consiga perceber que ali pode [acontecer] algo ruim com a gente”. Ou ainda, algum indígena que tenha conhecimento de ervas
medicinais, pois esses grupos realizam curas espirituais e/ou pajelanças.
O NORDESTE INDÍGENA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO
Dos grupos de apresentação ritual do Toré, a pesquisadora acompanhou de perto o Caça-Feita no Rio de Janeiro e o Sabuká em Campinas. Cabe considerar que tais grupos apresentam
diferenças entre si: enquanto o Caça Feita foca mais na venda dos “artesanatos” indígenas e
no Toré, o Sabuká, ao estar em universidades e escolas, transmite um discurso étnico-político
11
Ver Venancio (2018, p. 132-134).
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para reivindicar o direito às retomadas das terras Kariri-Xocó.12 A seguir será discorrido sobre
o grupo Caça Feita em sua ida à “cidade maravilhosa”, pois o trabalho de campo com este
grupo nessa localidade possibilitou observações relevantes em relação ao Toré e às interações
sociais entre indígenas do Nordeste e “cabeças secas”.
O Caça Feita é liderado por Kayrrá que há muitos anos pediu licença ao pajé do povo
Kariri-Xocó – Júlio Queiroz Suíra – para deixar a aldeia e ir morar em São Paulo com o objetivo de “melhorar de vida” e “ajudar sua família”. 13 A figura do pajé é demasiadamente importante:
O pajé é o pai de nós todos. O pajé está aqui para orientar, indicar nós para o
bem. O pajé libera, explica como é, como andar no meio do mundo, né?! Tem
o apoio dele. Porque ele [“índio”] chega lá [na cidade], ele vai trabalhar, né, em
benefício da nossa [aldeia]. (VENANCIO, 2018, p. 129).
Dentre os diversos lugares pelos quais Kayrrá andou no “meio do mundo” está a cidade
do Rio de Janeiro, em 2016 - período do Jogos Olímpicos. Esse indígena mantém laços de
amizade com Tamikuã Pataxó que, assim como ele, mora no estado de São Paulo. Alguns parentes indígenas de Tamikuã vivem no Rio de Janeiro, mais especificamente em uma “aldeia
vertical”14, em que receberam a pesquisadora e os indígenas Kariri-Xocó por alguns dias em
seus apartamentos. Durante a hospedagem, a pesquisadora observou e participou de situações
etnográficas:
1) Todos os dias e à noite, quando alguns indígenas de etnias diferentes se reuniam no
apartamento de Pacari Pataxó ou no do Arassari Pataxó para conversarem, jantarem
ou assistirem à televisão;
2) Quando os Kariri-Xocó: Kayrrá, Tawy e Wiryçar15 reuniram-se no apartamento de
Pacari Pataxó e começaram a cantar e dançar o Toré. O som se propagou pelos andares da “aldeia vertical”. Eram audíveis os maracás, o imitar dos cantos dos pássaros
12 Para maiores informações ver “Discurso de Pawanã a alunos de uma escola no estado de São Paulo” (VENANCIO, 2018, p. 234-237).
13 Ver Venancio (2018, p. 129).
14 Dentre os diversos prédios construídos por meio do Programa Minha Casa Minha Vida, no antigo Presídio Frei Caneca, bairro Estácio, condomínio Zé Keti, há o bloco quinze destinado aos indígenas da Aldeia
Maracanã. Nesse bloco há diversas etnias que moram ali, entre elas, a Pataxó. Por morarem em um conjunto
habitacional, recorrem ao emprego da palavra “aldeia vertical”, como uma “alusão à vida vivida em um prédio” (VENANCIO, 2018, p. 141). A pesquisadora ouviu este termo “aldeia vertical” em uma conversa entre
dois indígenas.
15 Nessa ocasião o grupo Caça Feita era formado por esses três homens da etnia Kariri-Xocó.
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e os pés batidos no chão para dançarem e ritmarem o Toré. Os cantos eram tanto os
compostos pelos Pataxó como os de autoria Kariri-Xocó;
3) Além do Toré, esses indígenas conversavam entre si, sempre fumando o paewí e/ou
timbeiro.16
Ao estarem no Rio de Janeiro, esses Kariri-Xocó, em companhia das indígenas Tamikuã
e Aroeira Pataxó, trabalharam bastante na venda dos “artesanatos” indígenas: colares, brincos,
cocares, arco e flecha, pulseiras, maracás, lanças, apito, cachimbos, etc. Os locais de venda
foram o Calçadão de Copacabana, a cidade de Lumiar, na região serrana do Rio de Janeiro e
na Fundição Progresso. Nesse último espaço ocorreu o “Festival de Cultura Indígena”17, em
que houve o encontro de diversos grupos indígenas do Brasil.
Ao chegar ao Festival, Kayrrá cumprimentou e conversou com outros indígenas que o
conhecia por participar de eventos semelhantes. No Festival, havia a venda de produtos indígenas e aqueles que quisessem se apresentar ao grande público (formado por indígenas e não
indígenas) poderiam fazê-lo. Foi então que os Kariri-Xocó (Alagoas), os Pataxó (Bahia) e os
Fulni-ô (Pernambuco) apresentaram o Toré.
Figura 2 - Toré no Festival de Cultura Indígena.
Fonte: arquivo da pesquisadora.
A presença desses indígenas nordestinos, em um espaço urbano importante na cidade
16 Os Kariri-Xocó utilizam o termo paewí e os Pataxó denominam timbeiro. Ambos se referem ao cachimbo
que pode ser fumado com as ervas: Mescla, Velandinho e Imburana.
17 Organizado em parceria com a “Associação Indígena Aldeia Maracanã” e por demais instituições.
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do Rio de Janeiro, possibilita algumas considerações: 1) por meio do Toré, os Kariri-Xocó,
Fulni-ô e Pataxó sinalizaram e comunicaram aos “cabeças secas” um importante marcador da
diferença étnico-cultural; (2) a afirmação da indianidade nordestina aos demais indígenas ali
presentes que, porventura, questionem tal identidade étnica. Essa proposição é feita devido
ao relato de Tawanã Kariri-Xocó que afirma que há muitos anos já ocorreu de os “índios do
Nordeste” não serem aceitos pelos demais indígenas por existir “uma diferença” entre eles.
Tawanã se refere ao termo “diferença” para correlacioná-lo à ideia de “mistura” atribuída aos
índios do Nordeste (OLIVEIRA, 1998, p. 52). Desse modo, conforme Tawanã: “a pessoa é
uma loira, né, mas é uma loira que tem a mistura com um negro e índio. Aí, é onde o índio
canta, dança [o Toré] que desperta aquilo [na pessoa que tem “sangue indígena”].
Por fim, uma cena chamou a atenção da pesquisadora durante o Festival: ao andar pela
Fundição Progresso, viu Kayrrá, Tawy e Wiryçar conversarem com uma jovem que afirmava
ser Kariri-Xocó. A questão é que esses indígenas não a conheciam. Assim, para tentarem identificar se essa moça era ou não Kariri-Xocó, indagaram-na sobre: (i) o nome do seu pai e de sua
mãe; (ii) se ela sabia a língua indígena; (iii) e se conhecia um dos cantos Kariri-Xocó. Logo,
para esses indígenas existem critérios de pertencimento étnico pautados no: (i) parentesco; (i)
Ouricuri e (iii) Toré. Afirmam que “criança até adulto sabe cantar o Toré. Pode ficar dez anos
longe da aldeia que sabe cantar o Toré”.18
O TORÉ NAS RETOMADAS DE TERRAS KARIRI-XOCÓ
À época do trabalho de campo da pesquisadora, algumas áreas do Território Indígena
eram ocupadas por não indígenas. Por isso, os Kariri-Xocó se mobilizaram para retomá-las.
Para tanto e de modo prévio, os Kariri-Xocó recorreram ao Ouricuri por ser um espaço sagrado, longe dos olhares dos “cabeças secas” e ao Toré.
Pode-se, por meio das falas nativas, conceituar “retomada” como uma ação de recuperação do território de ocupação tradicional Kariri-Xocó. (VENANCIO, 2018, p. 168). Desse
modo, a indígena Josete afirma que retomada “é pegar o território tradicional”. Para a indígena
Valdete: “Nós estamos retomando o que é nosso”. Ou ainda, segundo o indígena Manuel: “Nós
não tomamos nada de ninguém. Nós entramos numa área que é nossa. Agora como foi ocupada
muito tempo, muitos anos pelo branco, [...] aí ficou o branco usando”. Portanto, as retomadas
fazem parte do processo de territorialização desse povo indígena nordestino (VENANCIO,
2018, p. 165)19.
18 Para mais referências de situações etnográficas do grupo Caça Feita no estado do Rio de Janeiro ver Venancio (2018, p. 140-152).
19 Ver Venancio (2018, capítulo 4) para entender o processo de territorialização Kariri-Xocó e saber a respeito
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A definição Kariri-Xocó de retomada assemelha-se àquela dos povos indígenas nordestinos Xukuru (SANTOS, 2009) e Tupinambá de Olivença (ALARCON, 2013): “[...] a ação
de ocupar terras tradicionais, ou seja, que pertenciam a seus antepassados e que foram expropriadas por fazendeiros.” (SANTOS, 2009, p. 23). Entende-se a retomada Xukuru como “uma
estratégia política [...] para solucionar os conflitos relativos à posse da terra”. (SANTOS, 2009,
p. 57).
Segundo Daniela Alarcon (2013, p. 1): “em uma definição preliminar, pode-se afirmar
que as retomadas consistem em processos de recuperação, pelos indígenas, de áreas por eles
tradicionalmente ocupadas e que se encontravam em posse de não-índios”. Assim, as retomadas de terras devem ser vistas dentro de “um quadro da resistência indígena [...] como formas de ação específicas” (grifo da autora, ibidem, p.16) frente “à expropriação fundiária e de
recuperação territorial” (ibidem. p. 1).
Será relatada, de modo breve, uma retomada de terra, observada pela pesquisadora em
2017. O local a ser retomado pelos indígenas era a chácara Menina do Rio e propriedades
contíguas20. Assim, no dia 05 de junho de 2017, logo cedo, cerca de seis homens começaram a
entoar o Toré. Aos poucos, outros indígenas se juntavam. Um dos homens preparou tinta que
seria utilizada em seus corpos. Dentre as justificativas para a pintura corporal estava a de que
simboliza o momento de guerrear, além de comunicar e afirmar a identidade étnica coletiva.
De corpos pintados, um grupo formado por dez a quinze homens saiu da Fazenda e seguiu para a “pista21” AL 225 para interditá-la por volta das oito horas. A altura para o bloqueio
foi estratégica, isto é, ocupada da altura do portão de entrada da chácara até a casa de uma
família Kariri-Xocó que fica na beira da “pista” AL. Essa casa serviu de base de apoio ao movimento da retomada. Para o bloqueio da “pista”, os homens fizeram uso de toras de madeira
e arbustos de árvores. Em cada ponta da área interditada, havia homens indígenas como vigias
para impedirem a passagem dos “cabeças secas”. Enquanto um grupo de homens Kariri-Xocó
controlava a circulação de não indígenas no perímetro interditado, outro grupo formado por
homens começou a dançar e cantar o Toré. Deslocavam de uma ponta a outra da “pista” fechada por eles. Muitos cantos do Toré foram entoados, entre eles: “Kariri-Xocó Sabuká”, “Urubu
de Serra Negra”, “Piriquitinho”, “Dança-boi”; “Guerreiro índio”.
Ao longo do dia, mais Kariri-Xocó apareceram para apoiar o movimento formado por
homens, mulheres, crianças e adolescentes.
Em um determinado horário foi preparado o almoço por algumas mulheres. Aqueles que
das diversas retomadas Kariri-Xocó.
20 Os Kariri-Xocó reclamavam da morosidade da justiça em marcar uma audiência para decidir a homologação da Terra Indígena Kariri-Xocó.
21 Termo nativo.
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estavam horas na reivindicação de seus direitos constitucionais em relação à Terra Indígena,
puderam comer e repor as energias para continuarem firmes na luta da retomada.
Ao entardecer, os homens se reuniram para decidir se haveria mesmo a retomada da
Menina do Rio e como iriam proceder para efetuarem tal ação. Mas antes, às 17h38min, liberaram a “pista”. As mulheres se retiraram da estrada e um grupo formado apenas por homens
entoou mais um Toré para fortalecê-los e protegê-los. À noite, a chácara Menina do Rio estava
finalmente retomada pelos Kariri-Xocó.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nos parágrafos anteriores foram evidenciados os contextos sociais e políticos em que o
Toré Kariri-Xocó é produzido e comunicado na relação para com o não indígena. No contexto
das retomadas de terras, o Toré é “como uma performance política, [...] que se realiza mais
plenamente uma demarcação identitária” (OLIVEIRA, 2005, p. 10). Além disso, assume uma
condição ritual em que pelo canto e pela dança há uma comunicação com o sagrado em que
pedem a Warakidzã (Deus) e às demais entidades sagradas proteção, força e resistência nas retomadas das terras, sobretudo, se considerarmos que pode haver conflitos, inclusive armados,
entre os indígenas e os “cabeças secas”, como já ocorreu na retomada do Cercado Grande.
Ao retomarem um pedaço de terra, os Kariri-Xocó mantêm-se firmes na entoada da
tradição do cantar e do dançar. Em uma noite, na Fazenda retomada, a pesquisadora observou
o Toré durante horas e foi convidada para dançar22. Descreve-se a seguir o que denominamos
como “cenas rituais” no contexto da retomada23:
Cena 1:
A maraca anuncia que o Toré irá começar24. Dois círculos são formados: o primeiro,
22 Na segunda etapa do trabalho de campo em 2017, a pesquisadora dormiu algumas noites em uma fazenda
retomada pelos Kariri-Xocó. O Território Indígena é oficialmente demarcado, contudo, não homologado, favorecendo a presença de ocupantes não indígenas que constroem propriedades em tal área. Com o objetivo de
retirarem os “cabeças secas” da Terra Indígena e na tentativa de pressionarem a esfera judiciária para a homologação da T.I, os Kariri-Xocó retomaram um pedaço de terra denominado por eles de Fazenda.
23 Conforme descrito em Venancio (2018, p. 124-125).
24 Segundo Nascimento (2005, p. 40, grifo do autor), a maraca ou o maracá “trata-se de um objeto ritual cercado de reverências e que simboliza a sua indianidade”. Para os Kariri-Xocó: “O instrumento musical maracá
é tocado de acordo com os batimentos cardíacos do coração, respeitando e seguindo o ritmo da vida. Quem
traz a maracá na mão está com o planeta Terra em miniatura [...]. Girar esse instrumento na mão é movimentar
o mundo, trazendo o dia, a noite, a mudança das estações. Os círculos dos movimentos da dança representam
a circunferência da Terra, do Sol e da Lua, a aldeia, a maloca, o círculo da vida” (NHENETY KARIRI-XOCÓ,
2013, p. 65, livro organizado por Ulysses Fernandes).
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só por homens; o segundo, por mulheres que circundam o grupo masculino. Dois homens
se posicionam, são os puxadores que comandam o canto que será respondido em coro pelos
demais índios na roda. O toque da maraca, as vozes e os pés batidos no chão do terreiro é que
dão o ritmo. Os puxadores é que guiam a dança: os círculos são desfeitos e forma-se uma fila
em que homens e mulheres seguem em direção a uma fogueira. Ao redor do fogo formam um
novo círculo, em seguida desfazem o movimento para em fila retornarem ao ponto em que o
iniciaram. Um novo círculo é formado. Minutos depois, finalizam.
Cena 2:
A formação vista na cena anterior é desfeita, isto é, mudam-se os puxadores e o tocador
da maraca, mas o movimento circular é mantido, sempre com os homens no círculo interno
(isto é, de dentro da roda) e as mulheres e as crianças no círculo externo (isto é, de fora da
roda). Não são todos os Kariri-Xocó que nesse momento querem participar do Toré, portanto,
ficam sentados contemplando a apresentação. Aqueles que estão cantando e dançando formam
uma fila em direção às pessoas sentadas em frente aos barracos da retomada. Os anciãos são
cumprimentados, alguns se levantam em forma de respeito.
O grupo que dança e canta se concentra por alguns segundos ao redor ou à frente dos
antigos. Após a reverência aos mais velhos, seguem em fila em direção a outros barracos para
cumprimentar os demais Kariri-Xocó. Posteriormente vão em direção à fogueira, circundam-na. Em seguida, desfazem o círculo para formarem outra vez uma fila que seguirá em direção
ao ponto em que foi iniciado o Toré. Novamente dançam em círculo. Minutos depois, encerram.
Já no contexto urbano, ou seja, sobre os grupos de apresentação ritual do Toré, mobilizam “marcadores diacríticos que os diferenciem dos não índios em termos de pertencimento
étnico: pinturas corporais, cocares, vestimentas, cantos, danças” (VENANCIO, 2018, p. 134).
Nessas situações de contato com o “cabeça seca” na cidade, o Toré é o principal conteúdo cultural transmitido aos não indígenas. Os Kariri-Xocó consideram que, por meio da apresentação
ritual do Toré, é possível ensinar aos “cabeças secas” sobre essa cultura autóctone nordestina
e sensibilizá-los para a causa indígena. Por exemplo: o grupo Caça Feita, sob a liderança de
Kayrrá, na cidade de Lumiar (Rio de Janeiro), abordou a temática do preconceito contra indígenas, de que o “Brasil não foi descoberto, o Brasil foi invadido” e, por isso, os indígenas são
os habitantes originários do país.
Outro exemplo é que, um dia, Kayrrá ao falar sobre sua trajetória de vida que está relacionada com sua ida para morar em São Paulo, recorreu a um canto indígena: “quando saí da
minha tribo pedi licença para meu pajé. Nesse mundo de Deus, aprendi e ensinei, mostrando a
tradição e fazendo a união. Canta índio, eu sou um índio Kariri-Xocó”25.
25 Para ler a respeito da história de vida de Kayrrá ver Venancio (2018, p. 138-140).
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Por fim, o fazer dessa “união” é viabilizado justamente pelo Toré em que os Kariri-Xocó convidam os não indígenas a dançarem e cantarem com eles, seja em uma escola, em
uma universidade, em feiras culturais e agroecológicas. Como diz uma letra Kariri-Xocó: “Tô
cantando o meu Toré, porque gosto de cantar. E quem gosta do Toré, faça o favor de entrar”.
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AS IDENTIDADES NEGRAS NO DISCURSO CURRICULAR DA
UNIVERSIDADE
Jardson Barrinha dos Santos1
jbarrinha15@gmail.com
Emanuel Calebe Araújo Silva2
emanuelcalebearaujo@gmail.com
RESUMO: O presente estudo ocorreu na Universidade Estadual do Piauí (UESPI) com estudantes do Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL) ocupou-se em verificar os impactos
do processo de colonização do poder-saber-ser na construção de identidades negras. Foi um
estudo qualitativo (MINAYO, 1994) de tipo estudo de caso (GOLDENBERG, 2004) cuja técnica de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada (MINAYO, 2006). A análise de dados
ocorreu mediante análise de conteúdo (MINAYO, 1994). O estudo possibilitou compreender
os impactos de currículos decoloniais no processo de construção de identidades negras. Em
suma, os discursos coloniais precisam abrir espaço para debates decoloniais amplificadores
dos debates.
Palavras-chave: Identidade. Currículo. Decolonialidade. Tradição.
ABSTRACT: The present study took place at the Universidade Estadual do Piauí (UESPI)
with students from the Center for Humanities and Letters (CCHL) concerned with verifying
the impacts of the colonization process of power-knowing-being in the construction of black
identities. It was a qualitative study (MINAYO, 1994) of a case study type (GOLDENBERG,
2004) whose data collection technique was the semi-structured interview (MINAYO, 2006).
Data analysis occurred through content analysis (MINAYO, 1994). The study made it possible
to understand the impacts of decolonial curricula on the process of building black identities.
In short, colonial discourses need to make room for decolonial debates that amplify debates.
Keywords: Identify; Curriculum; Decoloniality; Tradition.
INTRODUÇÃO
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O presente estudo é síntese de uma investigação sobre o processo de construção de identidades negras de estudantes do Centro de Ciências Humanas e Letras (CCHL) da Universidade Estadual do Piauí (UESPI). Pretendeu-se compreender as formas as quais os (as) estudantes
localizam suas identificações e fatores que contribuíram para construção de identidades negras. Tal proposta possibilitou conexões com uma diversidade de abordagens que auxiliaram
a construção da análise. Nesse sentido, buscou-se investigar os impactos da colonização do
poder-ser-saber na construção de identidades negras, a partir de leituras orientadas pela perspectiva decolonial e a produção da verdade de si.
Dessa forma, com a invasão europeia à América Latina, iniciou-se conflitos que tencionam até os dias de hoje relações de dominação nos campos de poder-saber-ser, produzindo
cada vez mais, contrastes sociais, raciais e étnicos. Implicando o controle e manutenção
de poder à uma minoria, nos âmbitos educacionais, trabalho, moradia, recursos em geral, entre
outros. Portanto, a insurgência de epistemologias decoloniais contribui para desvelar alguns
padrões hegemônicos, especialmente, à lógica de produção do conhecimento, a qual, Quijano
(1992), Mignolo (2008) e Walsh (2008) apontam caminhos necessários para descortinar a teia
de significados construídos dentro da lógica do conhecimento ocidental. A fim de propor resistências e saídas para uma educação emancipatória e intercultural.
Nesse seguimento, o estudo possui caráter qualitativo: ressalta a subjetividade dos discursos, bem como a interação entre significados e contextos (MINAYO, 1994). O método
utilizado para o desenvolvimento da pesquisa foi o estudo de caso (GOLDENBERG, 2004). A
técnica de coleta de dados foi a entrevista semiestruturada (MINAYO, 2006) com os estudantes do CCHL que facultou a compreensão dos processos de construções de identidades negras.
O estudo deu-se com cinco estudantes do Centro de Ciências Humanas e Letras – CCHL, três
estudantes do curso de licenciatura plena em ciências sociais, uma/a estudante do curso de
licenciatura plena em história, e, por fim, uma/a estudante do curso de licenciatura plena em
letras-português. A análise dos dados ocorreu mediante análise de conteúdo: transcrição das
falas, sistematização de falas significativas, interpretação dos discursos (MINAYO, 1994).
POR UMA PERSPECTIVA RACIAL E DECOLONIAL
A reconfiguração do colonialismo: a colonialidade. Manifesta-se de várias formas no
sistema-mundo. Evidenciando cada vez mais relações desiguais de poder nas formas de conhecer, ser e compreender estruturas que reproduzem sistemas de classificação. Assim, Aníbal
Quijano (1992) ressalta tensões e conflitos produzidos pela colonialidade, apoiados pela classificação social, sendo raça e etnia marcadores sociais sistematizados à lógica de estruturação
e dominação de poder, baseadas nas relações de classe. Dessa forma, os contrastes ultrapassam
os campos da precarização e relações de trabalho, atuam também: “nos modos de conhecer,
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de produzir conhecimento, sistemas de imagens, símbolos, modos de significação, recursos”
(ibdem, p. 2). À vista disso, a cultura ocidental operou (e ainda opera) como modelo de cultura
universal. Partindo dessa reflexão, a educação não está isenta do processo de ocidentalização,
sendo possível identificar lacunas na estruturação da produção do conhecimento. Nesse sentido, é visível na historiografia da produção de conhecimento, uma demarcação de homens,
brancos e europeus, os indivíduos que não compartilham os mesmos marcadores, não possuía
(e ainda há uma grande lacuna) legitimidade ou não eram (são) dignos de contribuir para
pensar epistemologias. Para tanto, esta sistematização produziu (e produz) separações, vez
têm gerado discursos de validação, que produzem o racismo/sexismo epistêmico (GROSFOGUEL, 2016).
Portanto, o eurocentrismo se estabelece como perspectiva única, descartando, negligenciando, quaisquer outras compreensões do sistema-mundo. Tal reflexão, remete à crítica de
Grosfoguel ao salientar que há diversidades epistêmicas no mundo, ou seja, outras formas de
expressar saberes, conhecimentos. Porém, continua-se a privilegiar e manter epistemologias
provincianas nas formas de produzir e validar conhecimento. Por outro lado, Catherine Walsh
(2008) problematiza a hierarquização dos saberes e evidencia os tensionamentos e conflitos
entre essas validações, ao tempo, que propõe caminhos de insurgência político-epistêmica
com intuito de construir e pensar mundos possíveis, a fim de tecer redes de trocas e diálogos.
Dessa forma, é importante compreender que não é fácil romper totalmente com à lógica
de produção de conhecimento, subjetividades e formas de conhecer o mundo a partir do eurocentrismo. É ainda um pensamento hegemônico e muitas vezes naturalizado, principalmente
nas academias e escolas. Outro ponto relevante, a ser desenvolvido, é sobre sua validação. É
um conhecimento relevante? Sim, mas a problemática em questão é sobre o discurso universalizante que essa forma de produzir conhecimento propõe. Talvez, esse seja o ponto principal
para construir mecanismos de desobediências político-epistêmicas para pensar epistemologias
“outras”, com intuito de se sobrepor à colonialidade do poder-ser-saber (GROSFOGUEL,
2016).
Nelson Maldonado Torres (2019, p. 36) acentua: “[...] A decolonialidade refere-se à luta
contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos”. Desse
modo, compreende-se a decolonialidade como projeto-político em negociação, uma vez que,
inicialmente, pretende-se esclarecer e sistematizar relações de poder imbricadas nas formas de
conhecer, de situar-se e estabelecer relações, e, posteriormente construir maneiras de promover rupturas à ressignificação do colonialismo – colonialidade.
Nessa perspectiva, nas últimas décadas, estudos descoloniais/ decoloniais têm sido
tendência no que se refere a epistemologias “outras”, assumindo cada vez mais compromisso
com a luta e resistência à colonialidade do poder, do ser e do saber, a fim de construir caminhos
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e saídas para superar à lógica de dominação sobre o “outro” (BALLESTRIN, 2013).
Nesse seguimento, faz-se necessário enfatizar que no Brasil o movimento de descolonização do padrão racista e ocidental na academia começou na Universidade de Brasília (UNB)
e estendeu-se para as demais universidades (CARVALHO, 2019). Tendo, como primeira reinvindicação, cotas para negros/as e indígenas em universidades e institutos federais, sendo
aprovada em 2012, pela Lei Federal 12.711. Posto isso, segundo José Jorge de Carvalho (2019)
iniciou-se um processo de alteração na dinâmica desses espaços ocidentalizados e majoritariamente brancos. Por conseguinte, mesmo de forma tardia, pessoas pretas começaram ocupar
os espaços acadêmicos e levantar pautas, antes, negligenciadas ou não pensadas. Assim, o
debate sobre políticas de ações afirmativas estimulou outras problematizações, bem como a
modificação de currículos eurocentrados, formação continuada para professores/as em relação
às temáticas étnico-raciais e identitárias, construção de linhas de pesquisas na graduação e
pós-graduação no que se refere aos estudos das relações raciais, luta antirracista, entre outros.
Nesse contexto, torna-se oportuno localizar as contribuições de pensar e construir coletivamente uma educação decolonial/ descolonial, intercultural e antirracista, para além dos
muros da academia. É importante ressaltar que a universidade não está isolada de outras instituições, uma vez que, reproduz os mesmos desafios do sistema-mundo que se pretende superar
– racismo, LGBTfobia, machismo, intolerância religiosa, entre outros.
Por outro lado, Nilma Lino Gomes (2019) ao refletir decolonialidade e pensamento
pedagógico emancipatório acentua que os impactos da colonialidade alcança vários campos
da vida social dos indivíduos – constituição de subjetividades, identificações, construções de
conhecimento, entre outros. Para tanto, nesse jogo de poder, há disputas e tensões, significantes ao processo de construção do conhecimento. No campo educacional, a colonialidade atua
entre outros mecanismos, por intermédio do currículo. O currículo não se esgota à sistematização de assuntos, autores(as), é um discurso. Nessa perspectiva, é pensado e constituído por
pessoas muitas vezes imersas em relações de poder e que de certa formam não questionam,
e naturalizam a forma como a ciência é construída. A problemática em questão, é justamente
em relação as narrativas presentes nos currículos, uma vez que há saberes que se sobrepõe a
outros (SILVA, 1995).
Partindo dessa observação provocadora, é possível identificar estruturas de poder que
atuam no sentido de reforçar e enaltecer produções de conhecimento de uma única forma. Na
educação, aplica-se na forma como professores/as, gestores educacionais, pensam e organizam
o Projeto Político Pedagógico (PPP), regimento do curso, ementa e disciplina. Dessa forma,
é importante enfatizar que as Leis 10.639/2003 e 11.645/2008 e resoluções do Conselho Nacional de Educação (CNE), respectivamente, operam justamente no sentido de inserir debates
identitários e culturais nos currículos da Educação Básica e Ensino Superior, a fim de promoRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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ver uma educação intercultural, através de diálogos entre saberes e culturas (GOMES, 2019).
Por outro lado, um dos desafios das leis e resoluções é a efetivação. Silva (1995, p.136) ao
enfatizar que currículo é um discurso, evidencia o campo de conflito. Há conhecimentos que
se sobrepõem a outros e organizam-se para legitimar e manter-se como conhecimento válido.
Walter Mignolo (2008) compreende a atuação da ocidentalização do conhecimento na
América-Latina e propõe a desobediência epistêmica como mecanismo político-epistêmico
de desvinculação à lógica de produção do conhecimento ocidental. Faz-se necessário ressaltar que esta desvinculação não se faz mediante a negação do conhecimento ocidental, mas a
construção de diálogos entre os conhecimentos. Pretende-se construir e validar epistemologias
outras, e não somente o conhecimento ocidental. Para tal, conhecimentos e saberes não ocidentais, têm sido práticas periféricas em todo ocidente e atuam como epistemologias de fronteira (NASCIMENTO, 2016).
Deste modo, como apontado por Silva (1995), a validação de determinado saber afeta,
de certa forma, os modos como os sujeitos compreendem a si e se situam no sistema-mundo. Portanto, marcadores sociais da diferença, tais como, gênero, sexualidade, religiosidade,
etnicidade e raça nos orientam e localizam enquanto sujeitos históricos e dignos de produzir
conhecimento.
Nessa perspectiva, Kabengele Munanga (1988) destaca que para compreender a diversidade de construções de identidades negras, faz-se necessário, pontuar três fatores: histórico,
linguístico e psicológico. O primeiro refere-se à memória de um povo, considerando aspectos
do passado, da ancestralidade, como fio condutor de conscientização e pertencimento. Por outro lado, o segundo diz respeito às performances, comunicação, expressões, no que se refere à
estética dos cabelos, penteados, música, como marcadores identitários. Por fim, o terceiro está
relacionado ao modo de ser e estar no mundo, e, as diferenças entre o “eu” e os “outros”. Além
das tensões que são atravessados (as) cotidianamente por diversas violências – simbólicas,
epistêmicas, psicológicas e estruturais.
As identidades não são construídas e pensadas de forma isolada, pelo contrário, são
negociadas através dos conflitos, tensões e diferenças. Ao assumir determinadas identidades,
coletivas ou individuais, os sujeitos assumem diferenças diante os outros. Porém, voltando-se
especificamente para identidades negras, pontuam-se alguns desafios em vinculação com as
relações raciais no Brasil. Entende-se a estrutura sócio histórica, a qual, se pretende superar,
como mecanismo de reprodução de desigualdades de classe, etnia, raça, sexualidade e gênero.
No entanto, estas disparidades, reverberam por vários contextos, muitas vezes, afetando nas
formas que os indivíduos constroem suas identificações e reconhecimentos (GOMES, 2003).
ALGUMAS IMBRICAÇÕES ENTRE COLONIALIDADE E CONHECIMENTO
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A partir dessas considerações sobre o currículo, podemos perceber a construção de identidades não coloniais, no entanto, tendo muitos desafios na sua construção. Um eurocentrismo dos currículos e das identidades têm sido fator importante para dificultar a construção de
identidades periféricas a esse sistema-mundo ocidental. Nesse sentido, o eurocentrismo não é
apenas uma perspectiva cognitiva dos europeus, mas daquelas pessoas que são educadas nessa
hegemonia. A consequente naturalização das formas de vida e conhecimento eurocentradas
faz entender as dominações como naturais e cujas práticas não são questionadas (QUIJANO,
2009). Essa produção de conhecimentos pode ser prejudicial pois as ideias e simbolismos
europeus não conseguem abarcar o amplo ambiente de construções epistêmicas do mundo
inteiro.
Dado esse contexto, é preciso compreender como as identidades são construídas a partir
de um parâmetro colonial. As identidades dos jovens são construídas a partir de “práticas de
aprendizagem” (CARRANO, 2008, p. 191). O conhecimento, principalmente aquele produzido na escola, pode ser fonte do poder eurocentrado. A identificação com o espaço escolar e
universitário é importante para sua localização como sujeito não só de direitos, mas de significações; ou seja, que constrói vínculos, desenhos corporais e formas de criar amizades.
É, a partir da forma de produzir conhecimentos, que o eurocentrismo busca estabilizar
as identidades e produzir efeitos sobre as formas de subjetividade. O poder é um espaço de
relações sociais de exploração, dominação e conflitos que objetivam o controle dos meios de
existência social (QUIJANO, 2009). A subjetividade é um tipo de existência social cujo poder
colonial exerce controle. É nela e seus produtos que podemos encontrar a formação da identidade dos jovens, é um tipo de existência social cujo poder colonial exerce controle.
Um sujeito que vive segundo a formação de conhecimentos eurocentrados está acostumado aos currículos cujas ideias não traduzem suas formas de pensar, ser, viver. É um conjunto de conteúdos que não atribuem a importância equivalente das várias sociedades em torno do
mundo. Os jovens têm suas marcas identitárias excluídas, rejeitas ou proibidas. Estes sujeitos
constroem diferentes territórios que são lugares simbólicos para a construção de sua identidade (CARRANO, 2008). Os currículos não abarcam essas identidades periféricas juvenis.
Esse pensamento colonial constrói formas de identificação que excluem boa parte dos sujeitos não europeus. Os sujeitos constroem a verdade sobre si em seus discursos (FOUCAULT,
1988) de modo a “confessarem” os aspectos de sua identidade. É nesse aspecto da produção de
conhecimentos de si que podemos perceber como os sujeitos são direcionados coercitivamente
a reconhecer-se a partir de um parâmetro europeu. O não reconhecimento direto das origens
da própria identidade é produto da colonialidade do conhecimento que pode gerar identidades
não localizadas, mas que buscam pertencer aos povos europeus de certa forma. No entanto, há
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uma saída para essa colonialidade das identidades? Existem formas identitárias dialógicas?
O pensamento eurocêntrico que levou o mundo “a admitir que numa totalidade o todo
tem absoluta primazia determinante sobre todas e cada uma das partes e que, portanto, há uma
e só uma lógica que governa o comportamento do todo e de todas” (QUIJANO, 2009, p. 83)
considera que as experiências do todo são sempre aquelas europeias. No entanto, precisa haver
um diálogo entre as várias experiências da modernidade, que não podem ser traduzidas pelo
eurocentrismo.
As “novas identidades societais da colonialidade” foram configurando-se em fusão com
um “novo universo de relações intersubjectivas de dominação sob hegemonia eurocentrada”.
Esse universo foi denominado modernidade. No entanto, não é apenas a essa dominação eurocentrada que faz parte do mundo moderno, mas as variadas formas de vivência de outras
regiões. A produção de saberes diversos daqueles coloniais podem dialogar com os pensamentos eurocentrados para a construção de epistemologias capazes de entender o mundo moderno
como ele é: múltiplo (QUIJANO, 2009, p. 74).
Na academia, podemos construir um ambiente com leituras diversas a partir de ideias
europeias, norte-americanas, sul-americanas etc. Esse diálogo pode contribuir para uma melhor localização dos jovens. Esse processo de interculturalidade precisa ser social, político
voltado para a construção de sociedades, relações e condições novas de vida. A autora ressalta
não apenas as condições econômicas, mas de conhecimento e saberes e memória ancestral.
Todos esses conhecimentos fazem parte da produção de sentido sobre o próprio ser. Buscar
sentidos para a existência3 é necessário para o bem-estar, para construir identidades dialógicas,
consoantes aos demais processos sociais pelas quais os indivíduos passam em sua própria comunidade podem proteger o sentido de existência das pessoas (WALSH, 2008, p. 140).
É preciso que se pense “as possíveis reorganizações curriculares não apenas como estratégias funcionais de favorecer o ensino-aprendizagem, mas como políticas educativas e culturais que permitam reorganizar espaços e tempos de compartilhamento de saberes” (CARRANO, 2008, p. 206). Assim, o currículo pode tornar-se um discurso múltiplo que produz várias
formas de pensar os espaços e os saberes e que constrói espaços, práticas e subjetividades nas
quais os alunos se reconheçam. Esse caminho precisa ser feito a partir da construção de estruturas que colocam em situação de equidade as lógicas e práticas culturais diversas de pensar,
ser e viver, como entende Walsh (2008, p. 141).
3 O self é uma defesa que ajuda para que o sujeito deforme ou rejeite “a consciência daquelas experiências
que não se adequam à concepção prévia de si”. Portanto, experiências que constroem a partir dos sentidos
mais familiares podem ser mais bem aproveitadas e produtoras de bem-estar para os indivíduos (PACHECO,
SILVA e RIB-EIRO, 2007, p. 54).
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UM OLHAR DECOLONIAL À UNIVERSIDADE OCIDENTALIZADA: IDENTIDADES, CURRÍCULO E DECOLONIALIDADE
O cenário das relações assimétricas, no que se refere à colonização do poder-ser-saber,
influencia fortemente na forma como os grupos e indivíduos pensam a si e suas identificações.
Não é à toa, que o Brasil um país majoritariamente composto por pessoas negras, tenha ainda
diversas dificuldades de compreender e localizar identidades negras. Assim, pode-se direcionar
que o processo de colonização contribui para o desalinhamento e não-entendimento dos processos estruturais que estruturam corpos, identidades e formas de situar-se no sistema-mundo.
Nesse seguimento, sabe-se que a educação não está fora do processo de colonização,
pelo contrário, talvez um dos seguimentos mais afetados. Portanto, pensa-se o currículo
como: “território em disputa” (ARROYO, 2011). Uma vez que, a produção de conhecimento
é norteada pelos cânones europeus, lidos e compreendidos como universais. Têm-se ainda a
classificação do que pode ou não estar nos currículos. Acompanha-se na arena político-social,
programas educacionais retrógrados à liberdade de expressão e direitos por uma educação
livre, democrática e emancipatória. Pensar-construir currículos decoloniais é o caminho não
apenas para produção de identidades coletivas e individuais, mas de almejar epistemologias
que dialoguem com saberes diversos.
Assim, os (as) interlocutores (as) foram questionados(as) sobre as disciplinas ofertadas
nos seus respectivos cursos e que contribuições estas exercem na formação e construção de
suas identidades. Para tanto, afirmam a relevância das disciplinas que abordam a temática
racial e identitária como necessárias para o entendimento dos processos sociais, raciais e identitários. Dessa forma, pontuam desconfortos referentes às visões eurocêntricas da academia:
[...] Poderia haver uma mudança e de certa forma colocar mais autores/as negros/as e indígenas porque é colocado de forma mais acentuada autores europeus. Então a gente acaba que tendo uma visão muito eurocêntrica (INTERLOCUTOR 3).
O interlocutor 3 destaca a importância de construir espaços e troca de diálogos entre epistemologias, a fim de fraturar a lógica de produção de conhecimento eurocêntrica que
muitas vezes é compreendida como única. A intervenção que o interlocutor propõe é uma
forma de desvincular-se parcialmente de referências eurocêntricas – autores/as brancos/as e
perspectivas coloniais – abrindo espaços para literatura negra, quilombola e indígena, como
mecanismo de disseminar outras referências (CARVALHO, 2019). Também ressalta que se
faz necessário descolonizar os currículos e os espaços da universidade. De outro modo, pontua
que academia se “blinda” de pessoas essenciais para compreendermos as relações sociais e
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raciais. Contudo, devem-se buscar outros meios, além da inserção de conteúdos e disciplinas:
Para promover um impacto deveríamos estar chamando pessoas da periferia
que de certa forma nunca teve acesso realmente para estar presente no meio universitário. Percebo que a universidade se blinda muito à linguagem acadêmica e
acaba esquecendo que essas pessoas que a gente estuda também precisam estar
no foco e unidos juntos com a gente nessas atividades (INTERLOCUTOR 3).
Além de enfatizar mudanças no currículo, o interlocutor 3 acrescenta que a universidade se protege com a linguagem acadêmica. Muitas vezes utilizam essas pessoas e suas vivências em sala, mas não abrem espaços para adentrarem para diálogos e socializações. Diante
disso, acredita que, alterando esses espaços, tornando-os mais inclusivos, é possível promover
impactos necessários de integração universidade-comunidade. Porém, apresenta também algumas insatisfações a respeito das disciplinas. De forma geral, todos os cursos (história, letras-português e ciências sociais) dos(as) interlocutores(as) pesquisados, possuem uma ou duas
disciplinas referentes à estudos com temática racial e identitária. Desse modo, a interlocutora
1 ressalta:
A gente paga duas disciplinas [...] senti falta na verdade foi na disciplina de literatura afrodescendente e indígena porque a carga horária foi bem pouca (30h) e
tive pouquíssimas aulas sobre. Então mesmo tendo no currículo do meu curso,
senti falta em relação ao empenho do professor em suscitar e debater o assunto
da literatura afrodescendente, porque a gente sabe que a literatura está cheia de
homens brancos e de classe média, a gente não vai ver muito mulheres negras
produzindo... Vamos ver recentemente com Conceição Evaristo e outras mulheres que adentraram (visibilidade) agora (INTERLOCUTORA 1).
A interlocutora 1 ressalta que existem duas disciplinas no curso, mas que sente falta
de um aprofundamento, sendo a carga horária insatisfatória. Também aponta o incômodo no
desempenho do professor. Uma vez que, além de ser um professor autodeclarado negro, atua
na universidade com pautas referentes à disciplina. Assim, a interlocutora 1 anuncia relações
de poder que está inserido na grade curricular do curso. Nesse sentido, de acordo com José
Jorge de Carvalho (2019), descolonizar nessa perspectiva refere-se a intervir na constituição
desses espaços universitários em todos os níveis: corpo discente, corpo docente, no formato
institucional e na conformação epistêmica geral (cursos, ementas, teorias, pedagogias, etc.).
Dessa forma, os cincos interlocutores(as) acentuam que modificar o currículo e inserir
disciplinas que construam diálogos que promovam identificações e sentimento de pertencimento entre os estudantes é o caminho correto. Os cincos entrevistados também, mesmo com
algumas insatisfações referentes ao desempenho, carga horária, entre outros, acreditam que
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essas disciplinas são relevantes para suas construções identitárias negras.
TRADIÇÃO E SOCIABILIDADES
Os jovens universitários estabelecem laços em diversas áreas de sua vida e os utilizam
como forma de construção de suas identidades. Os jovens constroem suas identidades nos
vários ambientes de sociabilidades. Buscaremos organizar a discussão dos nossos achados a
partir de dois eixos direcionados pelos próprios entrevistados a partir de suas respostas: tradição e vínculos amplos.
A tradição está imbricada em três, dos 5 entrevistados. O primeiro interlocutor associa a
sua construção e afirmação identitárias ligadas à sociedade. Entende que “a gente se identifica
dentro da nossa sociedade. De como a gente está inserido no nosso país, como a gente vai se
enxergar diante dos outros” (INTERLOCUTOR 1). Esse posicionamento requer que tenhamos
uma relação com os outros para a formação das nossas identidades. O interlocutor 3 também
pensa na construção da sua identidade a partir da sociedade. Os outros três interlocutores da
nossa pesquisa falam em tradição.
No meu ponto de vista, minhas origens, gênese da minha história a partir dos
meus ancestrais até chegar a mim, se perdurando a linhagem da minha família.
Então, está relacionada com essa construção da minha história como indivíduo,
alguém que veio oriundo de algum lugar, no meu caso, meus ancestrais vieram
da África (INTERLOCUTOR 2).
Os ancestrais e a história desse interlocutor estão no início da sua construção e afirmação identitárias. O interlocutor 2 pensa a si mesmo como parte da construção de séculos, que se
amarra à sua origem na África. Há diálogo entre as ideias do interlocutor 2 e as interlocutoras
4 e 5. No que diz respeito ao processo de construção identitária, a interlocutora 4 afirma:
Para mim, é aceitação da minha ancestralidade, me reconhecer enquanto mulher e negra. É um ato de resistir, a partir do momento que você se reconhece
como negra diante um contexto social perverso das relações raciais (INTERLOCUTORA 4).
Reconhecer-se enquanto mulher negra conduz a uma ancestralidade. O interesse em
reconhecer-se é importante para a interlocutora, o que conduz a uma busca da sua história,
do seu passado que pode ser importante para o fortalecimento do self. A interlocutora 5 compreende, como a anterior, que entende sua negritude através da sua ancestralidade. Além de
entender sua identidade a partir da sua história, a interlocutora 5 atribui outros traços de ancesRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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tralidade, reiterando a miscigenação do nosso país. A ancestralidade, que aparece em três das
cinco interlocuções desta pesquisa, é fator importante para a construção da visão de si e pode
ser uma proteção do sujeito em meio à modernidade.
O ser humano precisa manter seu self organizado e protegido, para isso, existe um “processo defensivo” em que a pessoa se mantem enrijecida em suas concepções de si do mundo
para não se perder existencialmente. Esse processo protetivo não acontece nos casos dos interlocutores 1 e 3. Para esses sujeitos, foi importante sua inserção em setores de sociabilidade
mais ampla, sejam as universidades, sejam os coletivos estudantes, movimentos sociais.
O interlocutor 2 conta que, quando começou a estudar no Instituto Federal do Maranhão
(IFMA) assistiu à palestra de uma senhora moradora de comunidade quilombola que provocou
inquietações sobre a identidade do sujeito. A interlocutora 4 afirma que deixou de se ver como
“morena clara” ao conhecer o coletivo RUA, que fez parte de debates e questionou a si mesma
sobre questões ligadas à negritude.
Um outro fator pertencente aos vínculos amplos diz respeito ao cabelo. A interlocutora
4 afirma que após conhecer o coletivo RUA cortou o cabelo, que era alisado, o que consistiu
em um processo de autodescobrimento.
Por fim, podemos perceber a partir das falas dos entrevistados como a socialização é
parte importante para a construção das identidades. Seja a socialização na família, por meio
das histórias e da ancestralidade reconhecida pelos próprios sujeitos, seja em coletivos que
ajudem a fortalecer identidades consideradas à margem das identidades eurocêntricas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, pudemos perceber o impacto da colonização e da colonialidade na construção de identidades negras no contexto da Universidade Estadual do Piauí. Percebemos que a
educação está dentro desse processo de colonização que influencia a construção das identidades dos estudantes. A formação discursiva dos currículos envolve relações de poder que nos
fazem perceber o universo desse colonialismo e da colonialidade do saber. Esses currículos
servem a um propósito eurocêntrico colonizador.
Buscamos, portanto, responder a um questionamento geral: Quais os impactos do processo de colonização do poder-saber-ser na construção de identidades negras? Para isso, direcionamo-nos por três desígnios específicos: Compreender a construção identitária de graduandos de cursos de humanas em universidade de Teresina-PI; verificar através de discursos
dos estudantes como a academia contribui para pensar a construção de identidades negras;
entender as produções identitárias a partir da construção de verdade nos discursos curriculares
da universidade.
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Compreendemos que a construção identitária dos estudantes entrevistados percorre caminhos que podem ser generalizados pela tradição, família e vínculos mais amplos. No contexto da tradição, vimos que as histórias de seus antepassados foram narrativas importantes
para sua compreensão de si. Os entrevistados que reconheceram que as histórias do passado
fazem parte da construção da sua identidade demonstraram conhecer bem os desafios que seus
parentes passaram por serem negros. Dos grupos sociais mais amplos, aqueles que percebemos
serem importantes na construção dessas identidades são as instituições de ensino e o coletivo
RUA. Ambos contribuíram no debate e questionamento sobre identidades para a construção de
um maior respeito.
Os interlocutores afirmam que as disciplinas que abordam temática racial e identitária
são necessárias para estimular o entendimento dos processos raciais. Entorno dessas disciplinas pudemos perceber que a academia contribui para a construção das identidades negras,
principalmente pelo debate. No entanto, esse debate está, de acordo com os discursos dos estudantes, enfraquecido, sem uma construção ampla, com ausência de leituras importantes de
autores negros e com disciplinas cujas cargas horárias são reduzidas.
Por último, percebemos a construção dos currículos disciplinares como formas de discurso que contribuem na construção de verdades sobre os indivíduos. Esses currículos, por
serem ainda eurocentrados, não estimulam os debates decoloniais e descoloniais com um olhar
múltiplo voltados para autores além-Europa. Nesse sentido, é importante uma aplicação de
currículos e debates mais abrangentes com maior presença de autores (as) negros (as), quilombolas, indígenas.
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SEM LENÇO, SEM DOCUMENTO, SEM LIBERDADE: PRISÕES
PREVENTIVAS PELA AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO CIVIL E OS
DISCURSOS JUDICIAIS DE SUA VALIDAÇÃO
Paulo Victor Leôncio Chaves1
paulovchaves_1@hotmail.com
RESUMO: O presente artigo é resultado parcial de uma extensa pesquisa que se debruçou
sobre decisões judiciais em que se decretaram prisões preventivas nas audiências de custódia
realizadas em Teresina entre agosto/2017 e julho/2018. Aqui, privilegia-se a análise específica
de decisões que adotaram como fundamento para a prisão a ausência ou a não apresentação
de documentos de identificação civil pelas pessoas presas e em como os discursos judiciais
produzidos em torno dos documentos públicos de identificação são manejados e modulados
para validar o ato de encarceramento provisório. A pesquisa, de natureza interpretativa, mesclou abordagens qualitativa e quantitativa, prevalecendo aquela, diante do método etnográfico enfocado sobre os documentos judiciais. As decisões judiciais analisadas foram proferidas
em processos públicos e de livre acesso por todo cidadão interessado.
Palavras-chave: Etnografia de documentos. Decisões judiciais. Documentos de identificação
civil.
ABSTRACT: This paper is the partial result of an extensive empirical research that aimed to
identify, through an ethnographic study on documents, applied on provisional detention judicial acts pronounced during “custody hearings” that took place in Teresina from August/2017
to July/2018. Here we present a specific approach on the judicial that were based on the absence of civil ID with the arrested people and on how the judicial discourses that filled written
those acts were used to validate the provisional imprisonment. This research mixed qualitative
and quantitative approaches, focusing on to interpret the judicial acts through the ethnographic method. The judicial acts that were analyzed were pronounced in public persecutions and
1 Mestrando em Sociologia - PPGS/UFPI. Especialista em Direito Penal e Criminologia - ICPC/UNINTER.
Bacharel em Direito - UFPI. Membro da Coordenação Regional do Laboratório de Ciências Criminais IBCCRIM
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are totally available to anyone who’s interested.
Keywords: ethnography on documents. Judicial decision acts. Civil ID.
INTRODUÇÃO
O famoso verso da canção-manifesto “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso, ilustra um
período de luta política e resistência na história social do Brasil ao mesmo tempo em que abre
a possibilidade para pensar um caminho de libertação pela desobediência civil: o andar sem
documento era direito, mas também estratégia de defesa diante da repressão, pois quem não é
identificado não é reconhecido.
O fim do regime militar, consagrado no plano jurídico-político pela promulgação da
Constituição Federal – CF (BRASIL, 1988), assinalou uma resposta à repressão. Tudo (ou
quase tudo) o que era objeto de expressiva violação de direitos passou a ser destinatário de
proteção fundamental (MENDES; BRANCO, 2012), daí a imutabilidade do rol previsto no art.
5º da CF (BRASIL, 1988).
O regime das liberdades públicas, aí incluído o que diz respeito sobre a prisão preventiva,
passou a prevalecer pela preservação do interesse do indivíduo, somente cedendo diante
de relevante fator social efetivamente demonstrado e que torne inviável o gozo do direito
pelo indivíduo (MENDES, 1997). Nesse contexto desponta a discussão sobre a validade
das hipóteses permissivas de prisão preventiva no Brasil, travada entre os mais diversos
processualistas penais, cuja citação seria meramente exemplificativa, mas jamais exaustiva
diante da abrangência do debate2.
Trata-se de matéria objeto de previsão legal cuja constitucionalidade ou discussão sobre
técnica jurídica não cabem neste texto. É relevante frisar, no entanto, que há lei vigente no
Brasil que autoriza a prisão preventiva pela ausência ou não apresentação de identificação
civil, o que nos termos da lei se materializa pela dúvida sobre a identidade3.
Neste artigo, pretendo explorar, a partir de uma revisão bibliográfica não exaustiva e da
2 Por todos, destaco Sanguiné, 2010, Cordeiro e Linhares, 2017, e Lopes Júnior, 2018.
3 Trata-se da previsão constante do art. 313, parágrafo 1º do Código de Processo Penal – CPP, cujo teor encerra
“§ 1º Também será admitida a prisão preventiva quando houver dúvida sobre a identidade civil da pessoa ou
quando esta não fornecer elementos suficientes para esclarecê-la, devendo o preso ser colocado imediatamente
em liberdade após a identificação, salvo se outra hipótese recomendar a manutenção da medida.” (BRASIL,
1941). Como antes mencionado, aqui não se discute a constitucionalidade desta previsão; ela é utilizada apenas como ponto de partida para as análises à frente expostas.
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exposição dos resultados parciais de uma pesquisa empírica, os discursos judiciais produzidos
em torno de decisões judiciais em que se decretaram prisões preventivas com fundamento
na ausência ou não apresentação de documentos de identificação civil. Para tanto, utilizei
as decisões que proferidas nas audiências de custódia realizadas na cidade de Teresina entre
agosto/2017 e julho/2018. O período escolhido é o correspondente a exatamente um ano
anterior ao início da pesquisa e o local selecionado justifica-se por ser a cidade onde resido,
considerando a acessibilidade de dados.
Requeri os dados iniciais, os quais me foram disponibilizados pela Central de Inquéritos
do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí – TJPI, e consistiam em uma listagem com a
numeração de todos os processos em que haviam sido realizadas audiências de custódia no
período indicado. A partir daí, identifiquei as decisões com decretação de prisão preventiva,
a partir das quais conduzi diversas análises sobre as que adotaram como fundamento para a
decretação da prisão preventiva a ausência ou não apresentação de identificação civil. Todos
os processos mencionados neste texto são públicos e de livre acesso a toda pessoa interessada.
Aliada à pesquisa documental, esteve a pesquisa de campo em alguns momentos do
desenvolvimento da pesquisa e ela consistia na ida ao Fórum Cível e Criminal de Teresina,
nos dias de domingo, e, portanto, plantão judiciário, para assistir às audiências de custódia que
lá tomavam lugar, em perspectiva semelhante à que desenvolvida por Carolina Costa Ferreira
(2017), isto é, a de observação não participante.
O marco teórico que embasa esta pesquisa parte da compreensão dos documentos públicos
como campo (MUZZOPAPPA; VILLALTA, 2011) para o trabalho etnográfico (PEIRANO,
1992; 2014) e da apreensão de sentidos por si produzidos a partir da técnica de análise crítica
do discurso jurídico (COLARES; COSTA, 2018).
Proponho uma conversa com Peirano (1986, 2011), que categoriza os documentos de
identificação civil como exteriorizadores de validação da autoafirmação de identidade perante
terceiros, dentre eles o Estado, e, nesse sentido, condição para o exercício da cidadania e acesso
a direitos. De outro lado, trago DaMatta (2002) para aferir a obrigatoriedade dos documentos
nas relações travadas no cotidiano e os efeitos que sua ausência provoca.
Devo advertir, como condição metodológica, que as análises aqui apresentadas levam em
consideração, exclusivamente, o texto contido nas decisões judiciais lidas e as interpretações
possíveis desde o aporte teórico referenciado, sem se preocupar, ao menos no limite do que
está aqui proposto, em identificar as motivações latentes eventualmente acobertadas pelos
textos das decisões. O foco está mais sobre os documentos estatais e no que veiculam e menos
sobre quem os produz e por que o fazem dessa forma.
O texto está dividido em três seções, que contêm, respectivamente, uma breve discussão
sobre as interpelações entre antropologia e o direito, o fazer judiciário e os documentos
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produzidos; em seguida apresento os dados prévios à pesquisa e que servem como base para
as análises realizadas neste texto, as quais vêm apresentadas na última seção.
DECISÕES JUDICIAIS COMO CAMPO DE UMA ETNOGRAFIA DE DOCUMENTOS
O fazer antropológico, que tem como base instrumental (mas também de construção
de referencial teórico) a etnografia, ensaiou início de crise em meados do século XX. Dado
o advento do que aqui em nossa margem fomos ensinados a chamar de globalização, os
antropólogos passaram a se questionar se ainda haveria culturas a serem estudadas, isto é,
se o exotismo permaneceria. Como acentua Peirano (1992), não demorou para que o fazer
antropológico se reinventasse, sem abandonar, contudo, a etnografia.
As práticas de pesquisa neste campo das ciências sociais, que antes se “limitavam” a
expedições para conhecimento do cotidiano e modos de vida nativa de comunidades tradicionais,
geralmente em territórios distantes e desconhecidos dos pesquisadores, passaram a identificar
possibilidades nas proximidades, isto é, o cotidiano passou a ser referência e campo para
análise.
Peirano (2014, p. 379) destaca que fazer etnografia é, em essência, documentar/registrar
o “estranhamento”, e é essa a pretensão que tenho aqui, afinal uma decisão judicial não é uma
reunião aleatória de palavras/frases desconexas, e, a priori, também não é uma obra literária
de ficção em que o plano fático se distancia, propositadamente, na perspectiva de permitir
ao leitor uma imersão em fantasias. É, na verdade, um registro documental que reconta as
narrativas levadas a conhecimento do Estado-juiz (TRINDADE; KARAM, 2018) de modo
a permitir que este, que não sabe, mas precisa saber (COUTINHO, 1999; LOPES JR, 2018),
diga o direito aplicável ao caso concreto.
As decisões judiciais objeto desta análise trouxeram questionamentos e reflexões sobre a
produção dos discursos judiciais e em como o seu manejo e modulação revelam validações ou
invalidações de aspectos específicos inerentes aos sujeitos envolvidos, em específico no que
diz respeito à apresentação ou ao teor de seus documentos de identificação civil.
Diz-se tratar-se de etnografia, originariamente, por conta do método escolhido, mas
também por conta da dimensão teórica possível de extração a partir desta perspectiva.
Analisar um ano de decisões judiciais não deixa de ser uma análise documental, no entanto,
ganha contornos etnográficos na medida em que extraímos aspectos que informam a lógica
de funcionamento e estruturação do próprio objeto, bem como noções a respeito de cultura
institucional, posturas decisórias e construção e atribuição de sentidos a situações do mundo
das coisas e palavras colhidas de textos de lei, permitindo, assim, a identificação do objeto
como um elemento representativo de situação concreta, historicizada, material, isto é, cada
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decisão analisada não significava apenas um repositório de palavras que instrumentalizava a
violência institucionalizada (BOURDIEU, 1991), mas o recolhimento de uma pessoa à prisão,
o encarceramento de um ser humano, segundo as razões ali escritas.
Desse modo, é possível extrair interpretações a respeito dos sentidos produzidos pelos
magistrados a partir do posicionamento por si adotado, se pela liberdade ou se pela prisão de
uma pessoa, a partir de elementos concretos ou imaginários por si levantados e valorados.
Tomar o sistema penal como objeto próprio da pesquisa é empreitada já assumida pela
criminologia crítica, ramo cuja linha de pensamento é a que orienta esta análise, mas fazêlo a partir da análise dos discursos reproduzidos judicialmente e categorizados segundo a
etnografia documental pretende conduzir à análise do empírico aos pontos concretos, eis que
o colossal número de pessoas encarceradas muitas vezes é tratado como (apenas) uma cifra
elevada, esquecendo-se a academia de que os milhares de aprisionados não são um bloco
fechado, mas milhares de uns, individuais e subjetivos a sua maneira.
A burocracia estatal se materializa pela documentação e registro dos atos praticados
pelo e em nome do Estado. Os documentos, em sentido amplo, podem ser divididos em
duas categorias: os documentos pessoais, que são os que informam o sujeito (pessoa) e lhe
atribuem a condição de existência no mundo jurídico e perante o Estado (DAMATTA, 2002),
isto é, representam a condição de cidadania dos sujeitos (PEIRANO, 2014); e os documentos
públicos, que até podem versar sobre sujeitos específicos, mas que estão sob a custódia do
Estado e são marcados pela sua representação burocrática (FERREIRA, 2013).
Nos processos judiciais, as funções desempenhadas pelos documentos que os compõem
são as mesmas que os demais com um detalhe a mais: a vinculação de alguns documentos, a
saber, os pronunciamentos judiciais (decisões, despachos, sentenças, etc.). Comandos judiciais
são instrumentalizados por decisões, atos de poder, todavia, as razões insertas em cada ato
decisório não são inatas, eis que são resultado da valoração específica de uma situação concreta,
a partir do convencimento formado em um julgador.
Este convencimento expressa subjetividades, impressões do julgador que verbaliza o
controle do Estado por intermédio de sua vontade própria. O efeito é não a confusão entre a
vontade estatal (do ente) e a vontade do juiz (humano), mas a transformação da vontade do juiz
em vontade estatal. Como destaca Graziano (2018), as decisões judiciais revelam mais sobre
quem as profere do que sobre os fatos a respeito dos quais elas versam, e, complemento, outros
meios tornam possível o conhecimento dos fatos, especialmente para as partes envolvidas,
mas o único meio de se conhecer as impressões do juiz é por meio da forma como este decide.
Como destaca a autora:
[…] considero […] que se pueden abordar los documentos estatales desde una
perspectiva antropológica y como un campo de indagación en si mismos, dado
Revista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
99
que, si se los sitúa en las dinámicas y lógicas institucionales que les dieron
origen, se pueden explorar, a partir de ellos, los sentidos con los que fueron
dotados (2018, p. 537)4
Na perspectiva de Muzzopappa & Villalta. (2011), sob o ponto de vista da antropologia
política, o Estado pode ser compreendido como uma organização de pessoas que desempenham
diferentes papéis, em que algumas possuem determinado poder/autoridade, e outras, não. Este
“poder” é desigualmente distribuído, também segundo aspectos sociopolítico-econômicos,
mas no contexto de decisões judiciais, ele é a base de legitimação dos discursos veiculados nas
decisões.
Dessa forma, optou-se por categorizar as decisões judiciais como documentos estatais
(porque o são, sem que isso seja necessariamente uma obviedade), e, assim, utilizá-las como
pistas das relações de poder nelas inscritas (MUZZOPAPPA; VILLALTA, 2011; GRAZIANO,
2018). Considerar as decisões judiciais como documentos da burocracia estatal não as afasta
da análise de seu conteúdo ideológico, isto porque não são categorias excludentes. Pesquisas
etnográficas com foco em documentos os apresentam-nos como marcados invariavelmente por
conteúdo moralizador, a exemplo do que foi demonstrado por Campos (2011), Ferreira (2013)
e Nelvo (2017)5, e esses aspectos serão mais a frente retomados quando me debruçar sobre os
resultados em específico, porém, previamente, apresentarei os dados prévios que me foram
disponibilizados e algumas interpretações iniciais.
DOS DADOS PRÉVIOS AOS RESULTADOS DA PESQUISA
A listagem fornecida pela Central de Inquéritos do TJPI foi bastante elucidativa na
medida em que já apresentava muitos dados importantes para a pesquisa, pois identificava,
em cada processo, o resultado advindo da realização da audiência de custódia (relaxamento
do flagrante, conversão em preventiva, liberdade provisória com ou sem medida cautelar,
quais cautelares foram aplicadas), além de trazer a indicação do crime pelo que foi autuada a
pessoa submetida à audiência, bem assim, a indicação de seu gênero (com menções restritas a
masculino e feminino).
4 Em tradução livre: […] considero […] que é possível abordar os documentos estatais em uma perspectiva
antropológica e como campo de indagação em si mesmos, eis que, uma vez situadas na perspectiva das dinâmicas e lógicas institucionais que os deram origem, é possível explorar, a partir deles, os sentidos com os
quais foram dotados.
5 Nas palavras do autor: “… há certas normativas sociais operacionalizadas nos autos de seus processos,
evidenciando-nos que o exercício das instituições estatais e ‘mundo dos papéis’ é também um mundo de
apagamentos, opressões e relações de poder.” (2017, p. 103).
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100
Os dados iniciais comunicam a realização, no período integral analisado, de 2.196
audiências de custódia em Teresina. Dentre estas, em 1.119 ocorrências, a prisão em flagrante
fora convertida em prisão preventiva, o que representa 50,96% de ocorrência de prisões
provisórias decretadas em decorrência da comunicação de prisão em flagrante.
O tratamento dos dados originariamente fornecidos resultou em restrições ao campo da
pesquisa, isto porque as 1.119 prisões preventivas decretadas (conforme informa o relatório
da Central de Inquéritos do TJPI) foram instrumentalizadas, na verdade, em 914 decisões6,
além de 03 decisões constantes do relatório do mês agosto/2017 que aparecem indicadas como
“conversão em preventiva”, mas que resultaram em concessões de liberdade com imposição
de medidas cautelares.
Os resultados iniciais evidenciam prevalência do fundamento da “garantia da ordem
pública” para a decretação da prisão preventiva. Em números relativos, o menor percentual
encontrado foi o do mês agosto/2017, em 75,96% das decisões apresentaram a garantia da
ordem pública como fundamento exclusivo7 para a decretação da prisão preventiva, ao passo
em que o mês junho/2018 apresentou o maior percentual de prisões exclusivamente com o
aludido fundamento, representando 92%.
Em números absolutos, considerando todo o período analisado, o decreto prisional
fundamento exclusivamente na garantia da ordem pública apareceu em 753 decisões, o que
corresponde a 82,38% dos atos judiciais decisórios.
Em outras 127 decisões (13,89%), o fundamento da garantia da ordem pública apareceu
ao menos mencionado, mas cumulado com outros fundamentos (do art. 312, ou nas hipóteses
do art. 313 do Código de Processo Penal – BRASIL, 1941), os quais, segundo os fundamentos
expostos na decisão judicial, justificariam a prisão preventiva. Somando-se, mês a mês,
as decisões exclusivas com as decisões cumuladas chegamos ao dado mínimo de 93,88%
registrado no mês novembro/2017 e ao alarmante máximo de 98,89% identificado no mês
março/2018.
Para além das hipóteses previstas no já multicitado artigo da lei processual penal, outros
6 Em algumas decisões, identificou-se o nome de mais de um autuado, especialmente naquelas que indicavam
como crimes presentes na hipótese de flagrante o de associação criminosa (art. 288 do CP), associação para o
tráfico (art. 35 da Lei nº 11.303/2006), organização criminosa (art. 2º da Lei nº 12.850/2013), além das hipóteses indicativas de concurso de pessoas.
7 O art. 312 do CPP indica quatro hipóteses/fundamentos que justificam a decretação de prisão preventiva, a
saber, garantia da ordem pública, garantia da ordem econômica, conveniência da instrução criminal e garantia
da aplicação da lei penal; ao mencionar que se trata de “fundamento exclusivo” quero dizer que, na decisão,
este foi o único fundamento indicado pelo juiz para motivar a prisão, sem mencionar, como fundamento concreto, qualquer das outras hipóteses.
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fundamentos foram utilizados e identificados como justificantes à prisão provisional. Foram
eles:
I) o cumprimento de mandado de prisão – em 01 decisão (0,11%), os fundamentos
expostos mencionavam tão somente que a prisão do autuado teria ocorrido em decorrência de
cumprimento de mandado de prisão preventiva expedido nos autos de processo-crime já em
andamento, razão pela que não se tratava de “conversão de flagrante em preventiva”;
II) pena máxima – em 01 decisão (0,11%), a prisão preventiva foi decretada considerando
exclusivamente que o crime que pelo que havia sido autuada a pessoa presa possuía pena
máxima abstrata em quantum superior a quatro anos, sem, no entanto, indicar outro elemento
a fundamentar a prisão;
III) existência de outros processos – em muitos casos, conforme será analisado mais
adiante, a existência de outros processos ou mesmo inquéritos policiais contra o autuado
conduziu à decretação da prisão preventiva com fundamento na garantia da ordem pública,
todavia, em 01 caso (0,11%), a decisão limitou-se a mencionar a existência de processos sem
indicar que isto se enquadraria em alguma das hipóteses do art. 312 do CPP, seja ela qual for;
IV) sem fundamento – em 01 decisão (0,11%), não foi possível identificar nem qualificar
em nenhuma das hipóteses previstas em lei, a razão que se prestou a fundamentar a prisão.
Diferentemente da situação encontrada na decisão com fundamento no “cumprimento de
mandado de prisão preventiva”, parece-me que esta decisão, sim, teria infringido o dever
constitucional de motivação das decisões judiciais (art. 93, IX da Constituição Federal);
V) prisões de ofício – em 03 casos (0,33%) foi possível constatar que a decretação da
prisão preventiva, na audiência de custódia, teria ocorrido de ofício pelo magistrado, inclusive
em situações contrárias à manifestação do representante do Ministério Público, pelo que se
depreende do teor das decisões;
VI) ausência de identificação civil – fora das hipóteses previstas no art. 312 do CPP, o
disposto no art. 313, parágrafo único da mesma lei é a principal razão do encarceramento
provisório verificado na capital piauiense. Em 21 decisões (2,3%), este fundamento apareceu
como exclusiva justificante para o cerceamento cautelar, enquanto em outras 71 decisões
(7,77%), ele apareceu como fundamento cumulado com algum dos previstos no caput do art.
312 (majoritariamente garantia da ordem pública).
Os principais dados colhidos no âmbito da pesquisa e que importam ao desenvolvimento
do presente trabalho são estes aqui apresentados em perspectiva qualitativa, com algumas
menções a traços quantitativos. A seguir, dedicarei atenção aos textos decisórios que registraram
a decretação de prisões preventivas com fundamento na ausência ou não apresentação de
identificação civil, fazendo-o pela verificação entre a necessidade de segregação cautelar e a
validade atribuída ao documento de identificação.
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PRENDA-SE O AUTUADO ATÉ QUE ELE CONSIGA PROVAR QUE É QUEM
DIZ SER: A PRISÃO POR AUSÊNCIA DE IDENTIFICAÇÃO CIVIL
A prisão preventiva motivada pela ausência de identificação civil despertou atenção da
pesquisa, mormente porque traz à luz a significativa relevância atribuível aos documentos
públicos de identificação pessoal. Roberto DaMatta (2002, p. 38) tece considerações a respeito
dos documentos pessoais de natureza pública na medida em que os considera como exigência
da cidadania moderna, porquanto os cidadãos somos obrigados por lei “a ter vários registros
escritos de seus direitos e deveres, das suas habilidades profissionais, de sua credibilidade
financeira e de sua capacidade política e jurídica junto ao Estado”.
Este autor discute a existência dos documentos (públicos de identificação pessoal) como
uma característica das sociedades ditas modernas (desde o paradigma ocidental-civilizatório)
que as distingue das sociedades/comunidades tradicionais, na medida em que nestas os
documentos são desnecessários, pois a prevalência das relações interpessoais e familiares
obstaculiza o anonimato e a manutenção dos vínculos familiares e comunitários/tribais
demarca a pessoa não enquanto indivíduo isolado, mas como parte integrante do contexto
social (DAMATTA, 2002).
DaMatta, no entanto, para explicar, recorre àquilo que chama de “dilema brasileiro” que
“de um lado amplia a anonimato que iguala e exige ‘documentos’ e, do outro, sustenta e faz
renascer a pessoalidade que hierarquiza e dispensa os papéis pelo uso do ‘você sabe com quem
está falando?’” (2002, p. 43). Nesta lógica, segundo as “características do Brasil”, ao tempo
em que se exigem os documentos como forma de distanciamento e preservação do anonimato
que só se quebra por prova produzida pelo próprio Estado (em regra), e que esta não é exigida
quando relações pessoais fundadas em poder, influência, amizade e outras questões, é de se
questionar a “autorização” conferida pelo legislador brasileiro ao permitir a prisão preventiva
daqueles que não possuem identificação civil.
Segundo dados do Censo Demográfico 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística – IBGE, quase 600 mil crianças não possuíam registro de nascimento no país (MPPR,
2013); de acordo com o Conselho Nacional de Justiça – CNJ, amparado em levantamento
do Departamento Penitenciário Nacional, cerca de 80% das pessoas presas não possuem
documentos básicos (BRASIL, 2019). O Estado “autoriza” a prisão daqueles por si mesmo
desassistidos e, por que não dizer, esquecidos.
Para além da autorização para prender, conferida pelo texto da lei processual penal, a
ausência eventual de documento de identificação civil no momento da prisão em flagrante
redunda na própria “ausência” de identificação civil, o que, pela leitura que faço com DaMatta
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(2002), nega cidadania, e, assim, o direito à liberdade, afinal, “no Brasil, é a posse do documento
que confere cidadania, não o contrário” (2002, p. 60).
Em reforço ao argumento de que a compreensão da liberdade no cotidiano judiciário é
de que ela precisa ser conquistada pelo autuado, com muito esforço, exsurgem outras barreiras
que tornam ainda mais dificultosa (ou emocionante para o outro lado) esta conquista, e,
como já explicitado anteriormente, uma delas é a não apresentação de documentos oficiais de
identificação no momento da prisão.
Com estas considerações, pretendo apresentar casos específicos que chamaram a atenção
pelas leituras atribuídas à falta de documento civil8. A primeira delas, aparecida no processo de
nº 0011811-54.2017.8.18.0140, em que identifiquei o seguinte trecho:
Analisando os autos de maneira rigorosa, vislumbro o autuado apresentou
informações distorcidas da realidade no que tange a sua identificação, tendo
informado o seu nome como CARLO SOUSA no intuito de obter vantagem
para si, contudo, em pesquisa ao Sistema Themis pode-se concluir a existência
de várias Ações Penais em face de CARLOS SOUZA, detendo a mesma filiação
apresentada pelo autuado.
Constatada a má-fé do autuado em ludibriar a justiça com informações
duvidosas, apresentando seu nome de forma errada e ainda, sustentando
inexistirem documentos de identificação consigo, portanto, concluindo-se que
os argumentos apresentados pelo Ministério Público são de alta relevância.
A má-fé constatada parece consistir em não se fazer entender pelos órgãos de controle e
exercício do poder, afinal, tão similares são os nomes confundidos que causa real estranheza que
esta tenha sido a justificativa concreta para a prisão preventiva. A declaração do próprio nome,
como mecanismo de identificação, não é suficiente quando desacompanhada do documento
que prova isso (PEIRANO, 1986), assim, é possível argumentar: de todo modo, não havia
documentação para assegurar o nome correto. Mas e quando, mesmo com documento, este é
rejeitado? Situação deste tipo ocorreu no processo de nº 0000832-96.2018.8.18.0140, em que
se extrai da decisão analisada o seguinte trecho:
No tocante ao PAULO CEZAR DOS SANTOS, além da periculosidade e
gravidade concreta da conduta, restou dúvida acerca da real identificação dele
já que nos autos não se sabe se ele é PABLO CESAR ou PAULO CEZAR,
sendo que em audiência de custódia ele afirmou que é o PAULO CEZAR e que
8 Nos casos a seguir, substituirei o nome das partes indicadas por nomes fictícios para preservação de sua
identidade. Todos os processos são públicos e as decisões analisadas são de livre acesso na página eletrônica
do Tribunal de Justiça do Estado do Piauí.
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PABLO CESAR é seu irmão e que os antecedentes de fls. 38 e 39 é referente ao
seu irmão. Foi apresentada nos autos bem como na própria audiência a carteira
de trabalho identificando-o como Paulo Cezar, diante disso, ainda resta dúvida
sobre a real identificação do autuado e que os antecedentes criminais de fls.39 e
39 são dele ou do seu irmão.
Ora os documentos são condição para o exercício dos direitos e garantia da cidadania,
mas mesmo com documentos que comprovem o que se diz, nem todos acessam a cidadania
e os direitos de forma plena. Também não são todos os documentos os que asseguram a
cidadania como condição para exercício de direitos, mas somente aqueles que permitem o
reconhecimento por terceiros, aí notadamente inscritos os documentos públicos em oposição
aos documentos de origem privada (PEIRANO, 2011).
Parece ser do autuado o dever de provar a própria identidade, mesmo diante da posse de
documentos, pois suas declarações são presumidas como não verdadeiras, a exemplo do que
se extrai de trecho da decisão proferida no processo nº 0000482-11.2018.8.18.0140:
Ainda mais porque o autuado não apresentou nenhum documento de
identificação civil o que gera uma dúvida acerca da real identidade do autuado
e que a referida certidão negativa de antecedentes baseia-se no que ele disse
perante a autoridade policial e não no documento apresentado por ele e levando
em consideração que é muito comum o fato de autuados, nesta audiência de
Custódia, utilizarem-se disso para se esquivar da aplicação da lei penal, também
entendo por bem converter a prisão em flagrante em preventiva com fulcro no
Art. 313, § Único do CPP.
No desafio de provar que é quem diz ser, combatendo contra as impressões do julgador,
é irrelevante se o autuado possui ou não, se apresenta ou não os documentos de identificação
civil; o argumento de sua ausência ou de sua insuficiência tende a bastar por si mesmo como
meio estável de manutenção de prisão.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Retomando o célebre verso de Caetano Veloso que abre este texto, o que outrora, em
contexto político de ausência de liberdades públicas e perseguição de inimigos declarados de
forma oficial, poderia despontar como libertação, ainda que como estratégia potencial, em
contexto declaradamente democrático pode assumir contornos que prejudicam a cidadania.
Estar e andar sem documento não são ilícito, mas pode constituir fundamento para
agravar a situação problemática em que esteja envolvida a pessoa destinatária do controle
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social institucionalizado. Diz-se que pode, pois, como visto, nem mesmo sua presença significa
a garantia dos direitos.
A leitura das decisões judiciais, documentos que veiculam o poder de mando do Estado,
e que devem ser, em tese, marcados pela imparcialidade, em geral, revela o uso de expressões,
marcas léxicas, contextos e construções frasais que revelam um campo de análise na medida
em que desvelam voluntarismos, representações, preconceitos, rigores, valores e muitos outros
elementos preenchidos de carga emocional e valor normativo, cuja compreensão, em ponto
específico, é objeto desta pesquisa.
O conteúdo das decisões judiciais permite supor sentidos produzidos pelos magistrados,
notadamente em relação a suas impressões quanto aos processos de criminalização e suas
funções na engrenagem punitiva, mas também quando a questões de validação de sujeitos
e suas relações institucionais, tudo isso apenas a partir dos textos escritos. É uma conclusão
incompleta, obviamente, pois não se deita sobre os motivos latentes que se acobertam nos
textos, seja porque irrelevantes do ponto de vista técnico-jurídico ou porque incompatíveis
com o pudor exigido em um texto judicial, mas sem dúvida do maior interesse em perspectiva
antropológica.
A palavra do sujeito posto diante do poder punitivo do Estado está cotidianamente sob
suspeita, não apenas sobre os fatos que lhe são imputados, mas também sobre quem seja a
pessoa a quem os fatos são imputados. A hipótese legal que autoriza a prisão com base em
dúvida permite a invalidação da essência declarada, mas também não proíbe que essa dúvida
deixe de cair mesmo diante da prova documental.
Os resultados aqui apresentados, que são parciais de pesquisa maior, indicam o manejo
de artifício formal para a autorização do encarceramento, sempre seletivo, provisório dos
sujeitos escolhidos, perseguidos e alcançados pelo Estado, que não explica o sentido da prisão,
senão o de controlar o desconhecido (ou o que não se quer conhecer).
As estratégias discursivas de validação e invalidação manejadas e moduladas pelos
julgadores, no entanto, abrem caminhos e proporcionam agendas de pesquisa para a compreensão
das estruturas de funcionamento do poder, desde o aporte da antropologia política, bem como
de suas escolhas e impactos na vida real das pessoas sobre as quais o poder é exercido.
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UM ARRANCA-RABO NO BREJAL DOS GUAJÁS:
FAMÍLIA, VINGANÇA E SACRIFÍCIO ENTRE A ANTROPOLOGIA E A LITERATURA1
Marcos Nogueira Milner2
marcosmilner@gmail.com
RESUMO: Conflitos familiares motivados por questões políticas são recorrentes no interior
do país. Em alguns casos históricos, graças à hipertrofia do poder privado em detrimento da
capacidade administrativa do Estado, as lutas de família praticamente atingiram o patamar
de guerras civis. Esses conflitos, recorrentes, estão bem cobertos por representações literárias, mas pouco estudados em âmbito antropológico. Limitadas as referências acadêmicas,
portanto, pretende-se considerar, a partir de uma antropologia da literatura, uma destas representações, o conto “Brejal dos Guajás” escrito por José Sarney, à procura de elementos
plausíveis para a identificação e estruturação dessas vinditas como fenômenos socioculturais
relevantes para a tradição sertaneja.
Palavras-chave: Lutas de família. Vingança. Sacrifício. Literatura.
ABSTRACT: Family feuds, motivated by political divergences, are recurring in Brazilian
backlands. Some historical conflicts, due the hypertrophy of the private power before the administrative capacity of the state, almost reached the level of civil wars. These conflicts are
recurring and well covered by literary representations but remains poorly studied in anthropological context. Thanks to the few academic references, therefore, one of these literary
representations, a short story, “Brejal dos Guajás”, written by José Sarney, is taken
here as a starting point, in search of a coherent analysis on the identification and
structuring of these feuds as sociocultural phenomena relevant to the understanding
of the backland’s traditions.
Keywords: Family feuds. Vengeance. Sacrifice. Literature.
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ABERTURA DO TANTO-FAZ
Examinando superficialmente o resumo ou as linhas gerais deste trabalho, um nome
saltará às vistas do leitor: José Sarney. Certamente personagem mais recorrente nas páginas
afeitas à Ciência Política ou à Historiografia, é atípica a referência teórico-antropológica à sua
obra criativa. A explicação para o possível estranhamento é óbvia: tradicionalmente, os feitos administrativos do maranhense, outrora Governador, Senador e Presidente da República,
diminuíram a dimensão artística (e, defende-se, “antropológica”) do escritor José Sarney. O
relativo esquecimento de sua obra literária pode ser considerado a consequência ingrata de
uma vida intensamente dedicada à carreira política.
Sarney, no entanto, publicou romances, contos e poesias. Foi eleito, em 1980, para a
cadeira número 38 da Academia Brasileira de Letras, ocupando o lugar de um outro político
e escritor regionalista, José Américo de Almeida. Entre críticas e elogios, o escritor foi bem
recebido por nomes de peso: Norte das Águas [1980] — que tomo como objeto de análise a
partir do conto “Brejal dos Guajás” — chamou a atenção do romancista Jorge Amado e do
antropólogo Claude Lévi-Strauss. Para Jorge Amado, trata-se da “revelação de um grande
contista, de um grande ficcionista brasileiro”. Lévi-Strauss, mais incisivo, afirmou ter “amado
e admirado” o livro3.
A declaração de apoio do antropólogo serve como pedra-fundamental para as minhas
pretensões analíticas: reconhecida a relevância da escrita de José Sarney, pretendo tratá-la com
a dimensão de uma referência quase etnográfica. Em outras palavras, tomando como ponto focal o conto supracitado, “O Brejal dos Guajás”, pretende-se levar em consideração elementos
culturais influentes na sociedade rural maranhense, articulando-os com tópicos razoavelmente
trabalhados pela literatura acadêmica dedicada à sociedade brasileira — a família, a honra, a
rivalidade política, a disputa por terras.
As páginas a seguir estão divididas em duas partes. Na primeira, empreende-se breve
revisão bibliográfica sobre as lutas de família, posicionando “O Brejal dos Guajás” em relação
às tradições nordestinas (ou sertanejas) e confrontando-o sobretudo com autores clássicos do
nosso pensamento social4. Na segunda, trabalha-se mais diretamente o sacrifício, a reciproci3 VILAVERDE, R. “A redescoberta de um clássico improvável”. In. Estado da Arte. São Paulo, 5 de dezembro de 2020. Disponível em <https://estadodaarte.estadao.com.br/redescoberta-classico-improvavel/>. Consultado em 25 de fev. de 2021.
4 A dicotomia entre “sertão” e “litoral” é recorrente entre os clássicos do nosso pensamento social. Está,
por exemplo e entre outros, nos relatos de viagens de Henry Koster, n’Os Sertões de Euclides da Cunha e na
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dade e violência a partir da teoria antropológica.
AS LUTAS DE FAMÍLIAS E O CONFRONTO PELO BREJAL
Surte efeito resumir o enredo. Fazendo jus à experiência de vida do autor, a narrativa é
desencadeada a partir de uma rivalidade política: dois coronéis, primos-irmãos e membros de
um mesmo partido, disputam um arraial no interior do Maranhão, o Brejal dos Guajás.
O coronel Francelino dos Santos, o Javali, está por cima, controla a Câmara de Vereadores e a Prefeitura; trata-se de uma raposa política, de fala mansa e conspiratória. O coronel Né
Guiné, por outro lado, é um sujeito enérgico, sanguíneo e impetuoso. Netos e únicos herdeiros
de um antigo patriarca, os dois coronéis se afastaram quando começaram a disputar entre si
o controle do lugar. O conflito entre os primos divide quase totalmente o arraial, cada qual
angariando parcela expressiva de apoio. A situação se torna tão polarizada que apenas dois
habitantes mantêm trânsito livre em ambas as casas: o cônego João e a menina Rosa.
O problema se intensifica conforme as eleições se aproximam. Ambos disputam palmo
a palmo a preferência do senador Clementino Guerra, o chefe do partido. Interessado em eleger o filho deputado federal, Guerra manipula os dois coronéis com o intuito de maximizar
os seus próprios votos. Para tal, faz cada um acreditar que um bom desempenho nas eleições
garantiria o posto definitivo como “cabeça de chapa” do partido.
Centralizada a disputa nos dois coronéis, o autor compõe o cenário desenvolvendo os
respectivos aliados. Ao lado do coronel Javali está o notário Zebedeu, um tipo matreiro – famoso pelos “golpes de esperteza”, com uma “cara de edital ou de reconhecimento de firma”
(SARNEY, 1980, p. 32) – especialista em adulterar resultados de eleições, e D. Matildes, mulher autoritária, que atua como autêntica eminência parda para os assuntos mais diretamente
relacionados à rivalidade entre os primos. Ao lado de Né Guiné, por sua vez, encontra-se o
feirante Zezinho e D. Gertrudes, esposa tímida e devota.
Marcha para Oeste de Cassiano Ricardo. Apesar das generalizações em geral preponderarem, é importante
reconhecer que (geograficamente, culturalmente, politicamente) não há um único sertão, da mesma forma que
não há um único Brasil. Para todos os efeitos, no entanto, utiliza-se a definição aqui em sentido amplo para facilitar o diálogo com obras clássicas. Assim, se o leitor julgar necessário adotar uma definição fechada, sugiro
a leitura do verbete “Sertão” no Dicionário do Folclore Brasileiro de Luís da Câmara Cascudo: “É o interior.
[…] As tentativas para caracterizá-lo têm sido mais convencionais que reais. Sua fauna e flora existem noutras
paragens do mundo que em nada semelham o sertão. Melhor, e folcloricamente, é dizer anterior, mais ligado
ao ciclo do gado e com permanência de costumes e tradições antigas. O nome fixou-se no Nordeste e Norte,
muito mais que no Sul. O interior do Rio Grande do Sul não é sertão, mas poder-se-ia dizer que sertão era o
interior de Goiás e de Mato Grosso, na fórmula portuguesa do séc. XVI.” (CASCUDO, 2010?, p. 821-822)
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Zebedeu e Zezinho são dois personagens fundamentais para o endurecimento da disputa. Entre as inúmeras ofensas praticadas por ambos os lados, Zezinho batiza um cachorro
de rua, que vive nas imediações do mercado municipal, de “Javali”. É claro que o cachorro
Javali, jocosamente nomeado, se torna uma representação do coronel Francelino e, consequentemente, alvo preferencial de deboches e gozações provenientes dos partidários do coronel Né
Guiné. Zebedeu, por sua vez, proprietário de uma jumenta, retribui a ofensa batizando-a de
“Né Guiné”. Logicamente, desenvolve-se em relação à jumenta Né Guiné o mesmo comportamento jocoso dedicado ao cachorro Javali...
Os animais em questão também são importantes para a análise antropológica. Retomarei
a questão futuramente. Por hora, basta assinalar que, instalada e acirrada a rivalidade em âmbito
político graças às eleições, a primeira atitude objetiva será a prisão, a mando do coronel Javali, do irmão do feirante Zezinho – visto que o próprio, principal responsável pelo batismo
do cachorro, encontrava-se foragido. Dado o estopim, a rivalidade latente se transformará em
prática escalar e deflagrará uma contenda real entre os dois grupos. Como não há espaço, no
âmbito deste artigo, para detalhar todas estas passagens, basta sinalizar que a prisão do irmão
do feirante é sucedida por agressões, mutilações, tiroteios e manobras políticas — culminando, por exemplo, com a divisão do Brejal em duas prefeituras, cada qual com o seu respectivo
prefeito subordinado a um dos coronéis.
***
O “Brejal dos Guajás” aparece como uma representação satírica de um aspecto tradicionalmente presente na cultura sertaneja: a rivalidade política e/ou violenta entre famílias, grupos
ou clãs. Em alguns casos, há um forte crescimento das disposições violentas e são deflagradas
autênticas guerras privadas que, nas palavras de Euclides da Cunha, “surgem, intermináveis,
comprometendo as próprias descendências que esposam as desavenças dos avós, criando uma
quase predisposição fisiológica e tornando hereditários os rancores e as vinganças.” (CUNHA
2001, p. 259).
O fenômeno, recorrente em âmbito histórico, encontra-se pouco trabalhado academicamente; são incomuns as referências diretas às lutas de família, algumas mencionando-as
apenas de passagem, [1] como um pano de fundo na história de algum personagem sertanejo
notável, por exemplo Lampião (ver MELLO, 2011 e BARROS, 2007); [2] com o intuito de
traçar uma espécie de panorama geral da realidade sócio-política nordestina, como o fizeram
Henry Koster (1942), Gilberto Freyre (2006) e o supracitado Euclides da Cunha (2001) ou [3]
em estudos criminológicos levando em consideração, entre outras ocorrências, os crimes de
pistolagem (BARREIRA, 1998).
Neste sentido, o mérito de trabalhar as lutas de família brasileiras como fenômeno soRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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ciológico protagonista recai diretamente sobre Luiz de Aguiar Costa Pinto. Ocorre, no entanto,
que o seu Lutas de Família no Brasil foi originalmente publicado em 1949 e que, desde então,
foi revisado e reeditado apenas uma única vez, em 1980. Como o próprio autor reconhece,
trata-se de um esforço muitíssimo limitado porque se concentra principalmente em dois casos
ocorridos durante o período colonial, desconsiderando os séculos XIX e XX. Costa Pinto sugere, no prefácio à edição de 1949, que o tema merece um trabalho amplo, incorporando outros
casos e metodologias, os quais ele próprio pretendia reunir. No entanto, não só nunca o fez,
como admitiria em nota para a edição de 1980 que dava o trabalho por encerrado, relegando
atualizações às gerações futuras.
As rivalidades ocorrem motivadas graças a uma complexa conformidade política —
afirmam autores como Nestor Duarte (1966) e Sérgio Buarque de Holanda (1995) — entre o
Estado e a família. Há, no período colonial, um desinteresse em estimular o desenvolvimento
do aparato burocrático na colônia, caracterizando a ausência de controle metropolitano direto
sobre o território brasileiro, abandonando os colonos ao próprio movimento.
Em outras palavras, durante praticamente todo o período, a Coroa relegou ao particular
todos os movimentos estratégicos para a fiscalização e a ocupação do território. Por fim, protegeu a unidade familiar por meio de códigos e decretos (cf. DUARTE, 1966) — incluindo a
adoção do sistema praticamente feudal de capitânias hereditárias e a instituição, fomento e manutenção de linhagens patriarcais até o início do século XIX, via regime de morgadio. Segundo Gilberto Freyre, o processo em curso revelava uma “sociedade que se desenvolveria menos
[...] pela ação oficial do que pelo braço e pela espada do particular” (FREYRE, 2006, p. 65).
Observando mais especificamente a aplicação da vontade do particular como uma forma
de punição, ao contrário do que normalmente acontece em um Estado democrático moderno,
com jurisdições bem definidas e o monopólio da força conservado pelas instituições governamentais, nas colônias portuguesas a fronteira entre ação violenta do indivíduo e a atuação
do Estado não eram plenamente discerníveis. Para melhor ilustrar, tomando como referência
as Ordenações Filipinas — ratificadas no início do século XVII e responsáveis por ordenar
juridicamente metrópole e colônias durante os três séculos posteriores —, o caput do artigo
XXXVIII, que dispõe sobre o adultério feminino e os direitos de compensação do marido, é
revelador: “Achando o homem casado sua mulher em adultério, licitamente poderá matar assim a ela, como o adúltero, salvo se o marido for peão, e o adúltero, fidalgo, desembargador,
ou pessoa de maior qualidade”5. Assim, dois elementos merecem reflexão; [1] legitimava-se
juridicamente a estratificação social, dividindo os homens em “qualidades” — as mulheres,
notadamente, ocupam o mais baixo dos patamares — e [2] a transferência de prerrogativas do
5 ORDENAÇÕES FILIPINAS, Livro V. / Org.: Silvia H. Lara. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. p.
151-154.
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Estado para o indivíduo no que diz respeito à punição de um outro sujeito. Ao contrário dos
códigos penais modernos, a Coroa portuguesa não monopoliza a aplicação da pena; pelo contrário, terceiriza a ação e opta apenas por normatizar o processo.
A estratégia colonial também pode ser explicada amparada na enorme extensão dos
domínios portugueses, tornando uma eventual ação centralizadora, nos primeiros séculos de
domínio, tarefa dificílima, praticamente irrealizável. As precárias instituições que respondiam
diretamente à Metrópole, com os seus poucos funcionários, estavam concentradas no litoral,
em cidades como Salvador e, posteriormente, Rio de Janeiro (cf. DUARTE, 1966). O interesse do Estado no interior cresce parcialmente somente após as bandeiras, no chamado ciclo do
ouro, durante o século XVIII, em um interesse geograficamente restrito, contudo, ao território
hoje correspondente ao Estado de Minas Gerais. O sertão nordestino, com seus engenhos e
grandes latifúndios permaneceu — e, em certo grau, permanece — gerido essencialmente pela
família, pelo clã, pelo poder que emana do patriarca: o senhor de engenho nos séculos XVIII
e XIX e o coronel nos séculos XIX e XX.
O tecido social desenvolveu-se culturalmente, portanto, amparado nas ações dos particulares, respaldadas por garantias metropolitanas primárias (outrora fornecidas e ainda hoje
razoavelmente aplicadas) graças à insuficiência ou ausência do Estado. O interior do país
ainda é um local privilegiado para observar a ação do particular, as disputas por terra e influência política, retomando e refinando todas as subjetividades amparadas na distinção entre um
mundo personalizado — marcado pela honra da família — e a impessoalidade das leis que, em
tese, deveriam cobrir todo o país6.
Segundo o sociólogo português João Fatela (1989, p. 66), ainda hoje as disputas entre
famílias são fundamentalmente motivadas por três fatores: a mulher, a terra e a partilha. Amparado no histórico brasileiro, levando em consideração as referências anteriormente apresentadas, acrescento um quarto fator: a influência política. Estes elementos parecem nortear
praticamente todas as disputas entre indivíduos e/ou famílias nas sociedades mediterrâneas
6 A importância das guerras particulares para a identidade sertaneja, por exemplo, se faz presente, inclusive,
quando mencionamos aqueles que provavelmente são os seus dois mais emblemáticos personagens históricos: Lampião e Antônio Conselheiro estiveram diretamente envolvidos em conflitos de família. Lampião, um
Ferreira, somente após confrontar uma família rival, os Nogueira, mergulhou no banditismo social — para
Hobsbawm, “passar da rixa de sangue ao banditismo era um passo lógico” (1970, p. 56) — e adotou a nova
identidade pela qual ficaria historicamente conhecido, “em uma mudança radical de status corresponde uma
mudança de posição na hierarquia social” (DAMATTA, 1997, p. 336). Antônio Maciel, por sua vez, também
foi expulso “da ordem social por eventos terríveis: uma luta de família, na versão histórica; o assassinato da
mulher e da mãe, depois uma intriga engendrada pela própria mãe contra a mulher, no mito do povo do sertão”
(DAMATTA, 1997, p. 343), e se reposiciona no mundo não a partir do banditismo, mas em outra forma de
marginalidade marcada pela peregrinação e pela renúncia, quando ressurge como Antônio Conselheiro.
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(cf. PERISTIANY, 1988). Assim, é razoável sugerir que os estudos sobre parentesco e honra
estão concentrados no campo porque, em âmbito rural, a família é a instituição predominante.
Em âmbito urbano conta-se com a presença consolidada do Estado e há uma individualização
do mundo da vida que diminui consideravelmente a estrutura familiar como fonte primária de
poder.
***
Retornando à disputa pelo Brejal dos Guajás, interessante reparar que Né Guiné e Javali
são primos-irmãos. A rivalidade entre ambos é fruto da partição de uma família a qual, no caso,
deve ser compreendida como unidade política, a partir da morte do patriarca centralizador (o
avô). Este antecedente encontra correspondência histórica em uma vindita ocorrida no século
XVII, na Bahia, entre dois grupos pela herança de um certo José Alves Brandão, mencionada
de passagem por Luís de Aguiar da Costa Pinto (1980, p. 102-103). No caso de Javali e Né
Guiné, a herança relevante em jogo é estritamente política: fragmentado o patrimônio ou o
núcleo do parentesco em forças similares ou iguais, aliado a disposições culturais que determinam o prestígio de uma família, grupo ou indivíduo baseado em questões fundiárias ou força
política, há uma tendência histórica à emergência de um conflito7.
Neste sentido, a leitura antropológica de José Sarney demonstra-se precisa. O autor
compreende o que está em jogo, afinal, amparado na honra ou no prestígio, é a sobrevivência
estrutural do grupo. Reconhecidos nestes limites as configurações geopolíticas locais, torna-se
impossível separar em duas esferas os interesses particulares da família e a coisa pública. Em
outras palavras, a hipertrofia das estruturas familiares aliada à ausência de um tecido burocrático normalmente encontrada apenas nos grandes centros urbanos condiciona a sobrevivência
do núcleo familiar, em âmbito social, à particularização da gestão pública. Em bom português:
estar por baixo na política é situação análoga a uma sentença de morte.
Não sem motivo, o autor sugere, a partir de uma fala do senador Clemente Guerra,
poucas palavras que resumem perfeitamente a dinâmica entre o público e o privado: “O nosso
partido, compadre, foi feito para servir os amigos. A lei é dura para quem é mole. O Governo
7 Entre outros motivos, disputas por heranças no mundo Ibérico eram recorrentes em parte graças ao sistema
de morgadio (ou morgado), previsto nas Ordenações Filipinas que, grosso modo, concentrava em um único
herdeiro todo o patrimônio familiar, proibindo a partilha. Tratava-se de uma tentativa de evitar o empobrecimento de uma família a partir de sucessivas divisões patrimoniais. No Brasil, o morgadio mais importante foi
provavelmente o da Casa da Torre, na Bahia, referente aos Garcia d’Ávila e extinto junto com a lei que o embasava, no século XIX. Segundo Costa Pinto, “o ‘morgado’, existente no Brasil até ser extinto pela lei n.º 56,
de 5 de outubro de 1835, fazia da herança um problema de significação social relevante e causa, entre outras
coisas, de conflitos de família” (PINTO, 1980, p. 102).
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não conhece decreto quando o interesse do amigo está em jogo e inimigo aqui não tem bandeira” (SARNEY, 1980, p. 25-26). Interessante ressaltar que não há diferença substancial entre
a fala do senador Guerra e a constatação do antropólogo Roberto DaMatta, no que se refere à
definição relacional da nossa matriz cultural:
Como diz o velho e querido ditado brasileiro: “Aos inimigos, a lei, aos amigos
tudo!” Ou seja, para os adversários, basta o tratamento generalizante e impessoal da lei, a eles aplicada sem nenhuma distinção ou consideração, isto é, sem
atenuantes. Mas, para os amigos, tudo, inclusive a possibilidade de tornar a lei
irracional por não se aplicar evidentemente a eles. A lógica de uma sociedade
formada por “panelinhas” e “cabides” e de buscar projeção social […] jaz na
possibilidade de se ter um código duplo relacionado aos valores da igualdade e
da hierarquia. (DAMATTA, 1997, p. 225)
Ora, o que está em jogo na luta pelo Brejal é um caso radical da divisão entre nós e os
outros. Esticada a corda ao extremo, divididos os grupos em amigos e inimigos, e alçada a
política a uma espécie de condição desesperada para a própria sobrevivência, estrutural ou
física, estão bem justificadas todas as atividades perniciosas oriundas da disputa: as falsificações eleitorais, os caxixes, os aliciamentos, as traições, as emboscadas, invasões, atentados e
tiroteios; os ferimentos, mutilações e assassinatos. A honra e o prestígio são os elementos que
garantem a sobrevivência da família ou do clã, aceitar de bom grado uma afronta significa renunciar à própria existência.
O provável recrudescimento da contenda, no entanto, ameaça a existência não só dos
grupos envolvidos, mas da comunidade como um todo (cf. GIRARD, 1990). Trata-se de um
local isolado, com população pequena, estável e permanente. Assim, razoável inferir que, ao
contrário do que ocorre em médias e grandes cidades, não há relação impessoal entre os habitantes, todos estão mais ou menos interligados por vínculos sociais, relações de parentesco e
de afinidade.
A polarização violenta é crítica porque gera uma teia de obrigações e contraprestações
que cedo ou tarde atingirá todos os habitantes do Brejal. Em outras palavras, uma ofensa cometida contra um indivíduo (a prisão do irmão do feirante Zezinho, por exemplo) movimenta
uma rede de engrenagens que atira sucessivamente um grupo contra o outro, em um processo
contínuo de ações e reações: [1] o irmão do feirante é detido; [2] o grupo do coronel Né Guiné
pretende invadir a carceragem; [3] o grupo do coronel Javali planeja a resistência e a expulsão
dos invasores; [4] impedidos de prosseguir, os aliados do coronel Né Guiné decepam o rabo e
as orelhas da jumenta de Zebedeu e abandonam as partes amputadas na porta do notário; [5]
D. Matildes estimula os partidários do coronel Javali a atirarem as partes da jumenta na casa
de Né Guiné e, assim, sucessivamente.
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Esse tipo de relação escalar encontra correspondência histórica em vários eventos. Ganhou contornos de guerra civil, por exemplo, a célebre disputa entre os Montes e Feitosas,
motivada pela posse de terras devolutas no sertão cearense durante quase todo o século XVIII,
conforme recordam Gilberto Freyre (2006) e Costa Pinto (1980). Ou então, a briga entre os
Ferreiras e os Nogueiras, nas imediações de Serra Talhada, cuja violência transformou Virgulino Ferreira no cangaceiro Lampião8 (cf. BARROS, 2007 e MELLO, 2011). No mais, para
citar um exemplo mais recente, vale mencionar também a disputa entre as famílias Sampaio
e Alencar, em Exu, pequena cidade pernambucana, quase na divisa com o Ceará: fartamente
documentada pela imprensa regional graças principalmente às tentativas de pacificação estimuladas pelo famoso músico exuense Luiz Gonzaga, a vindita ceifou vidas de ambos os lados
e resistiu por quase trinta anos, entre as décadas de 1950 e 1980.
Sem entrar no mérito determinista de Euclides da Cunha — as tais predisposições “quase fisiológicas” por ele sugeridas em relação às lutas de família —, necessário concordar, no
entanto, que o fenômeno é recorrente e relevante para o entendimento do processo identitário, dos padrões de sociabilidade presentes no interior do país, sobretudo nas regiões mais
diretamente associadas à ideia de “sertão”. Neste sentido, o conto de José Sarney esclarece e
enumera vários elementos comumente diagnosticados por historiadores e cientistas sociais:
[1] hipertrofia do poder familiar e ênfase na honra do grupo como um aspecto estrutural prioritário; [2] ausência de limites bem marcados entre o que é público e o que é privado; [3]
violência escalar ou mimética (cf. GIRARD, 1990), que mobiliza toda a comunidade local,
arriscando gravemente as estruturas sociais. Como vimos, todos estes elementos estão presentes, em maior ou menor escala, no enredo de “Brejal dos Guajás”, garantindo à narrativa um
claro potencial antropológico ou etnográfico.
De resto, uma última pergunta merece atenção: agravado o ciclo vicioso, portanto, como
encerrá-lo? Assinala-se quatro possibilidades mais nítidas. A primeira diz respeito ao consumo
violento de ambos ou de um dos grupos envolvidos, como aconteceu no caso entre os Ferreira
8 Virgulino Ferreira provocou um ataque fulminante à fazenda dos Nogueiras e dizimou o núcleo que mais
diretamente o ameaçava. Devido a um intrincado mecanismo de alianças consanguíneas e por afinidade, no
entanto, os Nogueiras cedo ou tarde seriam vingados por seus aliados. Virgulino é um homem marcado e
é este, afinal, o principal motivo, segundo Frederico Pernambucano de Mello (2011), que o conduz, agora
transformado em Lampião, ao banditismo. A chacina dos Nogueiras virou literatura de cordel: “Teve a família
Ferreira / vitória tão expressiva, / tão esmagadora e tão / convincente e decisiva, / a quem a testemunhou /
pareceu definitiva / Mas o ódio não se apaga / no selvagem coração, / confrontos entre as famílias / nos dão a
comprovação / de que a paz não seria / mais possível no sertão.” (ver SILVA, Gonçalo Ferreira da. Lampião,
O Capitão do Cangaço. Cordel digitalizado pela ABLC. Disponível em <http://www.ablc.com.br/lampiao-o-capitao-do-cangaco/>. Acesso em 28 de fevereiro de 2021.)
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e os Nogueira, marcando a ascensão de Lampião (BARROS, 2007). A segunda possibilidade
remete à renúncia, à desistência de uma das partes ao dever de retribuir e que, para todos os
efeitos, encontra correspondência na trajetória de Antônio Conselheiro (DAMATTA, 1997). A
terceira possibilidade sugere a interrupção do problema a partir da atuação diplomática de um
moderador externo, considerado imparcial (a Igreja, por exemplo), como parece ter sido o caso
da contenda entre as famílias exuenses. Por último, há a possibilidade girardiana, a escolha e
o sacrifício comunitário de um bode expiatório capaz de apaziguar os ânimos (ver GIRARD,
1990 e 2012). Político hábil, o contista José Sarney optou por uma dupla saída, envolvendo
moderação externa imparcial e sacrifício de bodes expiatórios, como veremos a seguir.
O RABO DE NÉ GUINÉ E O FUZILAMENTO DE JAVALI
Indicou-se anteriormente que os animais provocativamente batizados “em homenagem”
aos respectivos chefes desempenhariam papéis importantes no desenrolar dos fatos. Foi o
ultraje gerado pelo renomeado cachorro Javali — originalmente “Mandi” — que motivou
o coronel Francelino Javali a emitir ordem de prisão contra o feirante Zezinho, foragido, e
cumpri-la, afinal, prendendo “por tabela” o irmão do feirante. Este evento marca o início das
agressões objetivas e da escalada violenta no Brejal dos Guajás.
Com o aliado detido, o coronel Né Guiné pretende tomar a delegacia à força, mas encontra a resistência dos homens de Javali. Dá-se por satisfeito mutilando as orelhas e o rabo da
jumenta de Zebedeu, batizada pejorativamente de Né Guiné, e despejando as partes amputadas
na porta da casa do notário9. Ofende-se, portanto, Zebedeu e, consequentemente, o seu chefe
político, o coronel Francelino Javali: simbolicamente, “eles não toraram” a jumenta; “eles cortaram foi o rabo do Francelino” (SARNEY, 1980: 46).
Evitando uma desmoralização ainda maior, Zebedeu e Javali decidem sacrificar a jumenta, cotó e cabana, na beira da estrada. Para retribuir a ofensa, monta-se uma autêntica
operação de guerra entre os partidários do coronel Javali: o objetivo da campanha é devolver
o rabo decepado, atirando-o dentro da residência do coronel Né Guiné, sequestrar e matar com
requintes de crueldade o cachorro de Zezinho, apelidado Javali, também em posse de Né Guiné. Com a casa bem protegida, Né Guiné aguarda.
9 A título de curiosidade, vale destacar que, segundo Câmara Cascudo, a expressão “arranca-rabo” tem origem portuguesa, mas foi reavivada, no Brasil, pelos cangaceiros: “Arrancar o rabo ao cavalo de sela do chefe
adversário era proeza comentada. Os velhos cangaceiros, antigos e recentes, Jesuíno Brilhante, Adolfo Meia-Noite, Antônio Silvino, Lampião, pelo Nordeste, não esqueciam de infligir ao gado das fazendas depredadas
o bárbaro suplício, humilhando os proprietários.” (CASCUDO, L. da C. Locuções tradicionais no Brasil:
coisas que o povo diz. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986. p. 193).
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Tudo indica que finalmente os grupos entrarão em conflito aberto e sangrento. Destacam-se, no entanto, as duas únicas pessoas com trânsito livre entre os dois grupos, o cônego
João e a menina Rosa, para costurar um acordo, evitando a tragédia. O cônego convence o
coronel Javali a desistir de atirar o rabo da jumenta na casa de Né Guiné; em contrapartida,
exige de Né Guiné o cachorro Javali, entregando-o ao rival, com a exigência de uma morte
limpa, sem facas e à bala. O acordo é momentaneamente cumprido e o nervosismo da disputa
diminui, sem, contudo, encerrá-la.
Existe um elemento antropológico relevante em relação ao sacrifício dos animais. O
cachorro Javali e a jumenta Né Guiné simbolizam, cada um, a dívida da contraparte; o derramamento de sangue significa uma espécie de quitação. Isto é, os animais são eleitos bodes
expiatórios do conflito, sacrificados com o intuito de apaziguar os ânimos:
A violência contra o animal também funciona como um dispositivo expiatório.
Frazer (1990), por exemplo, trabalha o sacrifício animal no judaísmo; para Robertson Smith (1956), relacionando a raiz do sacrifício ao totemismo, a morte
e a absorção das qualidades de um animal sagrado através do consumo restabelecia a aliança rompida “e o sacrifício totêmico tinha justamente todos os
efeitos de um rito expiatório” (MAUSS & HUBERT, 2013, p. 11). [Há, ainda,]
o simbolismo que envolve o cordeiro entre os católicos, a relação que o público
estabelece com o touro em uma tourada ou a tradição de “perdoar o peru” celebrada todos os anos pelo presidente dos Estados Unidos. Em todos os casos, a
hostilidade inicial dirigida ao animal é substituída no fim por um tipo de veneração. No que diz respeito especificamente ao boi pragmaticamente sacrificado
para proteger o rebanho, as suas características (velho, doente), simbolizam,
justamente, os aspectos desta situação específica que exige um sacrifício: a sua
carne é consumida pelo predador e consagrada, afinal, através da proteção que
ela oferece; é o oposto, por exemplo, dos animais oferecidos em sacrifício a
divindades nos templos, que segundo Mary Douglas (1976, p. 41) não podem
ter deformidades (MILNER, 2019, p. 74).
No caso do Brejal, cada animal personifica, a partir do apelido, a ofensa cometida pelo
rival. Assim, o sacrifício confirma as premissas descritas por René Girard (1990), à medida
que o autor elabora o mecanismo do bode expiatório: os animais estão simbolicamente afastados do grupo porque não são humanos: não possuem família, condições individuais ou coletivas para responder à ofensa. Abandonados pelos donos, são alçados à categoria de oblação e,
como tal, se tornam potencialmente úteis para quebrar o processo mimético10.
10 De acordo com René Girard, uma vítima expiatória ideal precisa estar afastada do grupo hierarquicamente e/ou possuir defeitos físicos, tal como um órfão, um deficiente ou, eventualmente, um animal. A escolha
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Conforme afirmei anteriormente, a morte dos animais ameniza, mas não encerra a disputa entre os coronéis do Brejal. Isto ocorre porque os limites impostos pelo trâmite ritual
não são totalmente cumpridos. Via de regra, a oferta de uma oblação tem como objetivo a
reunificação de uma comunidade fragmentada; para o apaziguamento, a morte da vítima e as
condições do sacrifício precisam de aprovação unânime. Há a necessidade, portanto, de uma
distribuição equilibrada de responsabilidades (ver GIRARD, 2011, p. 87).
Contrariando as regras estritas do ritual expiatório, a morte do cachorro Javali foi considerada desproporcional pela maioria da população: o animal foi fuzilado pelos comparsas
do coronel Francelino Javali nos muros do cemitério e os seus despojos foram expostos para
servir de exemplo:
Ele [o coronel Francelino Javali] ainda era o homem forte do Brejal. Mas havia
no ar, no rosto da população, uma desaprovação muito grande pelo fuzilamento
do Mandi. No mercado, todos comentavam a coisa, bem baixo, de mansinho,
para que ninguém levasse aos ouvidos dele, mas a verdade é que o povo do
Brejal não gostou dessa atitude. (SARNEY, 1980, p. 54)
O sacrifício do cachorro garante uma trégua apenas superficial. Na verdade, ela conduz
a opinião pública contra um dos grupos, fortalecendo a preferência pelo rival, o coronel Né
Guiné. Sem um veredito, a reciprocidade violenta é reinaugurada e, mais uma vez, escalar,
ressurgindo a partir dos mesmos elementos: manobras políticas, traições, ofensas, caxixes,
falcatruas e, finalmente, uma troca de tiros entre representantes de ambos os grupos nos momentos que antecedem o prélio.
Novamente o cônego João e a menina Rosa costuraram acordos. O cônego, invocando
Santa Rita de Cássia11, embala as negociações em forte aparato simbólico: convida os coronéis
à Igreja, negocia ao pé da Cruz, cobrando promessas de paz aos olhos de Cristo. Sem saída, os
coronéis vergam sob a pressão de um poder maior e, seguindo as ordens do padre, legítimo repor um indivíduo sem vínculos e/ou marginal, indesejável, é oportuna porque, escolhendo um membro direto,
plenamente inserido no grupo, se torna “impossível recorrer à violência contra um indivíduo sem expor-se a
represálias de outros indivíduos, seus próximos, que considerariam seu dever vingá-lo” (GIRARD, 1990, p.
25).
11 É significativa a interseção de Santa Rita de Cássia, padroeira das causas impossíveis. A hagiografia da
santa italiana revela que, ela própria, esteve envolvida em um conflito entre famílias. Para encerrá-lo, para
proteger os filhos do estigma e do pecado, entregou a Deus a vida dos próprios, que pretendiam vingar a morte
do pai. Paga, no entanto, um preço alto: internados em um convento, ambos contraem lepra e morrem, arrependidos das violências cometidas. Pouco depois Rita de Cássia escuta o chamado Divino e passa o resto da
vida cuidando de doentes em uma ordem religiosa.
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presentante de Deus, os dois homens decidem o resultado das eleições: não haveria votação, o
resultado seria decidido a bico de pena e terminaria rigorosamente empatada. Dos 2.053 votos
do Brejal dos Guajás, 1.026 entram nas contas do grupo do coronel Javali, 1.026 para as hostes
de Né Guiné e o voto restante, computado em branco — “os coronéis saíram satisfeitos. Iriam
tranquilizar os amigos. […] Ali estava aberto o domingo das eleições. Todos foram avisados
do acordo e assim não haveria votação. Só festa, comida e bebida à vontade.” (SARNEY,
1980, p. 92).
FINALMENTES
Em linhas gerais, tentei compreender aspectos culturais sertanejos a partir da interpretação do conto “Brejal dos Guajás”, à luz do pensamento social e da teoria antropológica.
Aponta-se, concordando com o antropólogo Roberto DaMatta (1993, p. 45) que, na literatura
ocidental, os indivíduos (e não uma humanidade ou uma totalidade) constituem, geralmente, o
centro do drama; nas etnografias, contudo, o elemento humano está circunscrito a um conjunto
de regras e a uma certa configuração ou problema que se busca esclarecer.
Assim, a opção por uma obra literária reivindica ênfase no encadeamento dos fatos, na
visão dos personagens e no desdobramento de suas ações. Mais do que estabelecer uma “problemática geral” sobre as lutas de família, portanto, tentou-se compreender, a partir de uma
representação, como as dinâmicas sociais, como o complicado processo de ofender e retribuir
uma ofensa estão inseridos no cotidiano sertanejo.
Trata-se de um movimento “de fora pra dentro”. Há o fato histórico, o documento, a
análise direta e o método científico provenientes das ciências sociais. Demonstrou-se, afinal,
que lutas de famílias são esporadicamente cobertas pelo nosso pensamento social e como a reciprocidade violenta que as fundamenta é elemento presente na teoria antropológica; todavia,
o movimento dos atores envolvidos, os seus dramas e pensamentos, não são perceptíveis pelas
lentes sociológicas. Para melhor entendê-los, torna-se necessário recorrer às representações
artísticas, literárias, com pendores etnográficos, afinal, como ocorre no “Brejal dos Guajás”.
Em outras palavras, não se trata, evidentemente, de um documento certificado ou uma
verdade inconteste, mas de uma interpretação transdisciplinar que adequa os dispositivos científicos às representações artísticas. No fundo, propor uma antropologia da literatura é propor
um experimento e, como tal, realizar um esforço de resultado incerto. Neste caso, defende-se
que a experiência maranhense do escritor José Sarney, transformada em expressão artística,
exemplifica bem aspectos culturais diagnosticados pelo pensamento social e pela teoria antropológica. Mesmo sem rigor científico, o “Brejal dos Guajás” pode ser considerado uma fonte
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importante para a compreensão da rivalidade enquanto dispositivo cultural sertanejo relevante,
propondo uma leitura particular do comportamento dos atores e, consequentemente, invocando camadas ou dimensões específicas que escapam ao tradicional processo etnográfico.
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TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES NAS FRONTEIRAS FRANCO-AMAPAENSES
Ruane Cláudia Queiroz Silva1
ruane.claudia@hotmail.com
RESUMO: A presente pesquisa tem o objetivo de analisar as dinâmicas do tráfico internacional de mulheres nas fronteiras franco-amapaenses, a mesma foi desenvolvida no Amapá,
estado brasileiro que faz divisa com a Guiana Francesa (departamento ultramarino da França) e com a República do Suriname. Para a análise do tema, foram realizadas em Macapá
entrevistas semiestruturadas com profissionais de órgãos estaduais e municipal de atenção à
mulher, além de pesquisa bibliográfica buscando compreender o fenômeno sob a perspectiva
das concepções feministas das relações internacionais.
Palavras-chave: Tráfico internacional de mulheres. Feminismos. Amapá. Guiana Francesa.
ABSTRACT: This research aims to analyze the dynamics of international trafficking in women on the Franco-Amapá borders, it was developed in Amapá, a Brazilian state that shares a
border with French Guiana (overseas department of France) and the Republic of Suriname.
For the analysis of the theme, semi-structured interviews were carried out in Macapá with
professionals from state and municipal agencies for the care of women, in addition to bibliographic research seeking to understand the phenomenon from the perspective of feminist
conceptions of international relations.
Keywords: International trafficking in women. Feminisms. Amapá. French Guiana.
1 Possui graduação em Relações Internacionais pela Universidade Federal do Amapá (2018) e graduação
em Letras Tradutor - Francês pelo Instituto de Ensino Superior do Amapá (2011). Atualmente é mestranda
do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Fronteira (UNIFAP). Principais áreas de estudo: fronteiras,
migração e gênero.
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I NTRODUÇÃO
O tráfico internacional de mulheres é um fenômeno em expansão no mundo, por possuir caráter eminentemente velado torna-se difícil saber exatamente o real número de pessoas
envolvidas nesta prática, grande parte das mulheres podem ter medo ou vergonha de relatar o
crime e as redes de exploração agem de forma extremamente organizada e sigilosa.
O debate sobre o tráfico de pessoas nas relações internacionais nos permite uma análise
mais abrangente do fenômeno, dando maior destaque a temas sociais envolvendo as questões
de gênero e direitos humanos. Sendo mulheres e meninas2 os principais alvos das redes de exploração, o presente estudo busca nas concepções feministas das relações internacionais base
para a compreensão dessa realidade.
Anualmente é realizada no estado do Amapá, na última semana de julho, a campanha
internacional de conscientização na luta contra o tráfico de pessoas, denominada “Coração
Azul”, durante o período vê-se entrevistas concedidas por representantes do poder público os
quais afirmam a incidência do tráfico de pessoas nas fronteiras franco-amapaenses e que as
mulheres são os principais alvos das redes de exploração, no entanto, após pesquisa exploratória através de levantamento bibliográfico, pouco se encontram literaturas que tratem do fenômeno especificamente nesta área de fronteira. Assim, surgiram os seguintes questionamentos:
por que mulheres são a maioria das pessoas traficadas e de que forma este fenômeno se estrutura nas fronteiras franco-amapaenses?
Diante do exposto, o presente artigo é um recorte do Trabalho de Conclusão de Curso
que foi desenvolvido em Macapá, capital do estado do Amapá, estado brasileiro que faz divisa com a Guiana Francesa (departamento ultramarino da França), e onde, segundo os dados
coletados através de entrevistas e bibliografias, detectou-se entre 2002 e 2017, diversos casos
de tráfico internacional de mulheres. Isto posto, tem-se o objetivo de analisar as dinâmicas do
tráfico internacional de mulheres nas fronteiras franco-amapaenses.
O texto se estrutura em quatro partes: a primeira aborda o marco teórico-metodológico
do trabalho, apresentando o método utilizado na realização da pesquisa e posteriormente fundamenta a análise do objeto de estudo de forma crítica, através de concepções feministas das
Relações Internacionais, onde se questiona a supervalorização do papel do Estado na sociedade e dá enfoque às questões relacionadas à mulher no contexto internacional. A segunda parte
aborda o conceito de tráfico internacional de mulheres e sua relação com questões de gênero.
Na terceira, são tratadas as modalidades de tráficos de mulheres nas fronteiras franco-ama2 Segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas (2018), da United Nations Office on Drugs and Crime,
mulheres adultas representam 49% e meninas 23% das vítimas de tráfico de pessoas. Com isso, mulheres e
meninas, em conjunto, representam mais de 70% das vítimas detectadas globalmente. (UNODC, 2018).
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paenses. A quarta, discorre sobre a dinâmica em que ocorre tráfico de mulheres, ou seja, as
rotas mais utilizadas pelas redes de exploração, principais locais de origem, trânsito e destino.
CONSIDERAÇÕES TEÓRICO-METODOLÓGICAS
Com uma área de 707 quilômetros de fronteira, o Amapá está localizado na região Norte
do Brasil, limitando-se ao norte com a Guiana Francesa, a nordeste com o Suriname, a leste
com o oceano Atlântico e ao sul e oeste com o Estado do Pará, do qual está separado pelo rio
Amazonas. A capital Macapá é o principal centro econômico, político e cultural do Estado, e
o município de Oiapoque, se configura como principal rota de passagem do estado à Guiana
Francesa, sendo também um espaço de defesa militar.
De acordo com Silva (2005, p.278), a área fronteiriça entre o estado do Amapá e o Departamento Ultramarino da Guiana Francesa apresenta um fenômeno de migração constante,
diariamente carros, vans, caminhões e ônibus partem da capital em direção à fronteira, levam
migrantes em grande parte do Pará e Amapá. Os brasileiros conseguem entrar na Guiana mesmo com a vigilância policial na entrada de Saint-Georges, isso se dá através de tentativas de
passagem pelo rio através de catraias, normalmente à noite e na madrugada, para que o risco
de serem vistos pelos policiais do lado francês seja menor.
O Amapá possui profundas semelhanças sociais, econômicas e políticas com os demais
estados da Amazônia Legal, a região fronteiriça que a envolve é vagamente habitada e vigiada,
a grande margem aberta nessa região ocasiona diversos problemas; dentre eles destaca-se o
fenômeno do tráfico de pessoas. (SILVA, 2016, p.17).
Considerando o tráfico internacional de mulheres como um fenômeno que envolve os
seres humanos e suas entrelaçadas relações sociais, a pesquisa desenvolveu-se a partir de uma
abordagem qualitativa.
Para compreensão do fenômeno do tráfico internacional de mulheres nas fronteiras franco-amapaenses, pretendia-se, a princípio, realizar 11 entrevistas com gestores públicos e pesquisadores da área de migração e tráfico de pessoas das universidades públicas do Amapá,
porém, alguns fatores impossibilitaram a realização de todas as entrevistas planejadas, entre
eles, o desconhecimento de alguns quanto a ocorrência do fenômeno nas fronteiras franco-amapaenses, impossibilidade de agenda, ou como justificado por 2 profissionais da gestão
pública, o receio em falar sobre um assunto que envolve “gente grande”3. Pretendia-se também
realizar entrevistas com as próprias mulheres que foram traficadas, porém, o único órgão que
trabalha diretamente com as mesmas não pode passar informações, por questões de sigilo e
3 Pessoas que possuem cargos e funções estratégicas nos órgãos públicos jurídicos e securitários como, por
exemplo, juízes e policiais.
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preservação da identidade da mulher. Também não foi localizada nenhuma ONG no Amapá
que trabalhe com mulheres em condições de tráfico de pessoas.
Sendo assim, foram realizadas em Macapá, capital do Amapá, 04 entrevistas semiestruturadas, 02 com profissionais dos órgãos públicos da rede de atenção à mulher e 02 com
profissionais do órgão de atenção às pessoas traficadas, sendo 3 mulheres e 1 homem. As entrevistas foram realizadas na Coordenadoria Municipal de Políticas Públicas para as Mulheres
(CMPPM); no Centro de Atendimento à Mulher e à Família (CAMUF); no Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas do Amapá (NEPT-AP); e na Universidade Estadual do Amapá
(UEAP). Para preservar a identidade dos entrevistados todos os nomes citados no presente artigo são fictícios. As entrevistas foram realizadas com objetivo de coletar dados, compreender
experiências e analisar as informações narradas.
A pesquisa desenvolveu-se, ainda, através de revisão bibliográfica que embasou a fundamentação teórica referente ao tema, através de livros, artigos científicos, dissertações, e
teses, para aprofundar os conceitos importantes à análise, tais como: tráfico internacional de
mulheres, teorias feministas das relações internacionais e fronteira.
Um tema como o tráfico internacional de mulheres necessita de uma análise centrada
não apenas nos Estados, mas em diferentes atores internacionais (Estados, Organizações Internacionais, ONGs) e nacionais (igrejas, partidos políticos, prefeituras), e que analise questões
políticas, econômicas, sociais e culturais envolvidas. As Teorias das Relações Internacionais,
em especial as Teorias Feministas, proporcionam importantes ferramentas de análise crítica e
aprofundada sobre este problema social.
De acordo com Tickner (1997, p. 615), no final de 1980 que se deu início ao debate a
respeito de como a realidade internacional se construía e para quem era destinada, passou-se a
pensar de forma aprofundada a condição da mulher no cenário internacional, de modo a se ter
uma melhor compreensão das históricas desigualdades existentes.
A visão feminista das Relações Internacionais (RI’s) critica a dominante Teoria Realista
que supervaloriza o papel do Estado e não questiona a forma como o próprio Estado é estruturado política e socialmente. As críticas em relação ao Liberalismo voltam-se para questões
de desigualdades econômicas que afetam diretamente a mulher, para as feministas, a estrutura
capitalista acaba marginalizando o papel da mulher na economia, instituições liberalistas como
a OMC e empresas multinacionais criam acordos que enfraquecem a proteção do Estado na
Economia e afeta negativamente os direitos sociais trabalhistas, o que tem servido para afetar
negativamente uma grande proporção de mulheres na força de trabalho, e isso acaba camuflando questões de exploração feminina, como a divisão sexual do trabalho e o aumento do tráfico
sexual em todo mundo. É notável que a maioria das pessoas traficadas para o exterior é do sexo
feminino. (RUIZ, 2004, p.5).
Segundo Safarti (2005, p.297), é nas teorias feminista das Relações Internacionais que
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a mulher ganha destaque. Diferentes vertentes do feminismo colaboraram para que o debate
feminista nas RI’s se desenvolvesse, e ajudaram a expor e analisar as variadas formas diretas
e estruturais em que as mulheres sofrem com as violências internacionais, como no caso do
tráfico internacional de mulheres. Dentre elas estão: o Feminismo Liberal, Radical, Marxista
e Interseccional.
No Feminismo liberal, a questão central para eliminar todas as desigualdades se norteia na conquista dos direitos civis. De acordo com Tega (2010, p.42), é um movimento de
reivindicação de igualdade de direito e de fato para todas as mulheres com base no direito inalienável de todo indivíduo a igualdade. Em relação ao corpo da mulher, as feministas liberais
acreditam que cabe à mulher a escolha do que fazer com o mesmo, o que inclui vender serviços sexuais, e diferentemente do feminismo radical, costumam defender que a prostituição é
como qualquer outro trabalho. Assim, ligam o tráfico de mulheres as consequências de uma
sociedade baseada nas desigualdades entre homens e mulheres, nos resquícios de condições
socioculturais anacrônicas
Para Silva (2008, p.4), o Feminismo Radical é uma corrente feminista que afirma que a
origem da desigualdade social é o patriarcado, a dominação do homem sobre a mulher. Segundo a Teoria do Patriarcado, os responsáveis pela opressão feminina são os homens, que para
se manterem no sistema de poder, necessitam da diferenciação sexual baseada em diferenças
entre homem e mulher. Conforme as primícias dessa corrente, o tráfico de mulheres está ligado à prostituição, “visto por sua vez como a pior forma de opressão patriarcal e a forma mais
intensa de vitimização de mulheres”. (KEMPADOO, 2005, p.59).
As contribuições marxistas, por sua vez, irão aparecer em grande parte da literatura que
discute as relações internacionais. A relação entre feminismo e marxismo tem grande importância na trajetória do movimento feminista, na teoria ou, na prática, trata-se de movimentos
sociais por mudanças. Em suma, através de uma visão dialética de transformação social e
interpretação materialista de desenvolvimento histórico, o marxismo constrói uma análise socioeconômica sobre as relações de classe e conflito social. (CASTRO, 2000, p.100). Seguindo
essa relação, para Madeira et. al. (2020, p.206), o tráfico de mulheres está relacionado ao capitalismo e ao patriarcado inseridos na sociedade, haja vista que a violência de gênero é algo
sistêmico associado às relações sociais do capitalismo que leva mulheres a sofrerem consequências catastróficas de exploração devido ao sistema de poder que hierarquiza homens em
relação às mesmas.
Outra vertente é o Feminismo Interseccional, o qual agrega as questões de gênero com
outros marcadores sociais das diferenças, considerando raça, classe social, sexualidade, entre
outros. O Termo interseccional foi evidenciado em 1989 pela teórica feminista estadunidense
Kimberlé Crenshaw, e faz alusão às reflexões e teorizações sobre a “multiplicidade de diferenciações que, articulando-se a gênero, permeiam o social”. (PISCITELLI, 2008, p. 263).
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Sendo assim, o feminismo interseccional abre espaço para uma ampla análise dos contextos
específicos de desigualdades sociais e também oferece potencial para que se possa analisar os
marcadores sociais das mulheres em situação de tráfico de pessoas, considerando questões que
lhes são específicas e particulares, relacionadas à sua raça, classe social, sexualidade, religião,
entre outras. (HENNING, 2015, p.118).
Em resumo, essas vertentes feministas, através das análises das relações de gênero,
tornaram possível identificar formas epistêmicas de injustiça e opressão que determinam os
pontos cegos dos paradigmas dominantes das Relações Internacionais, e propiciaram compreensões mais aprofundadas sobre as condições de vida e formas de violência relacionadas às
mulheres ao nível internacional.
TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES
A lei 13.344 de 6 de outubro de 2016 que dispõe sobre prevenção e repressão ao tráfico
interno e internacional de pessoas e sobre medidas de atenção às vítimas, em conformidade
com os termos da Convenção de Palermo ratificado pelo Brasil em 2013, define tráfico internacional de pessoa como o ato de:
Agenciar, aliciar, recrutar, transportar, transferir, comprar, alojar ou acolher pessoa, mediante grave ameaça, violência, coação, fraude ou abuso, com a finalidade de remover-lhe órgãos, tecidos ou partes do corpo; submetê-la a trabalho em
condições análogas à de escravo; submetê-la a qualquer tipo de servidão; adoção ilegal; ou exploração sexual. (BRASIL, 2016, on-line).
O tráfico de pessoas possui forte implicação com a questão de gênero, há uma percepção comum de que mulheres e crianças são mais vulneráveis do que os homens adultos a se
tornarem alvos do tráfico de pessoas. As mulheres compreendem a maior parte das vítimas
detectadas globalmente4, percebe-se então que ser mulher em diversas regiões do mundo está
conectado a vulnerabilidades que levam ao tráfico de pessoas. (GUESSER, 2017, p.43). No
Brasil a realidade é similar, de acordo com dados5 publicados na pesquisa Enafron (2012,
p.93), as pessoas traficadas no Brasil, continuam sendo em sua maioria mulheres, crianças e
adolescentes, e quanto à finalidade, a mais identificada é a exploração sexual.
4 Segundo o Relatório Global sobre Tráfico de Pessoas (2018), da United Nations Office on Drugs and Crime, mulheres adultas e meninas, em conjunto, representam mais de 70% das vítimas detectadas globalmente.
(UNODC, 2018).
5 No ano de 2011 foram identificadas no Brasil um total de 65 vítimas do sexo feminino e 15 do sexo masculino, e a faixa etária de maior incidência é entre os 10 e 29 anos. (ENAFRON, 2012).
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O tráfico de mulheres começa com o aliciamento, não há um modelo de aliciamento
único, a tendência mais observada durante a pesquisa se dá através do engano ou coerção, pode
envolver uma pessoa ou grupo, os agenciadores cruzam as fronteiras entre países, e quando as
mulheres chegam ao país de destino, são informadas de dívidas impagáveis relacionadas ao
custo de sua viagem, e então são forçadas a trabalhar na prostituição, assim segue uma série
de explorações, de direitos limitados ou cessados, que viola de todas as formas a dignidade
humana.
Um dos fatores determinantes na ocorrência do fenômeno em estudo, é o fator econômico, geralmente são mulheres que vivem em estado de vulnerabilidade social, ou seja, possuem baixa escolaridade, estão desempregadas, habitam áreas urbanas periféricas e possuem
pouca expectativa de melhora na situação em que se encontram. (LEAL; LEAL, 2002, p.57).
De acordo com João6 (setembro de 2017, Macapá), as condições socioeconômicas da mulher
aliciada têm grande influência na ocorrência do fenômeno, para o entrevistado as pessoas mais
vulneráveis “são as pessoas mais pobres”.
Todos os entrevistados afirmaram que mulheres de baixa condição socioeconômica são
os maiores alvos das redes de tráfico de mulheres nas fronteiras franco-amapaenses. Sendo
assim, se vê na pobreza e na exclusão social um dos fatores para essa situação de vulnerabilidade à violação de direitos fundamentais, são mulheres que possuem sonhos e necessidades e
diante disso aliciadores das redes de exploração aproveitam-se de suas fragilidades para agir
por meio do engano ou coerção.
Além do fator econômico, é importante ressaltar o estereótipo físico que a mulher possui em determinadas regiões do mundo, um exemplo é a imagem sexualizada da mulher da
Amazônia em relação à de outros estados e regiões do Brasil e de outros países:
A de “mulher exótica” de “sexo forte e selvagem” que, trocando em miú-
dos, significa diferente e excêntrica. Na verdade, este estereótipo nada mais é
do que a justificativa para a legitimação da sevícia e da exploração da condição feminina vendida pelos marqueteiros do “turismo” sexual aos estrangeiros.
(...) As maiores festas “temáticas” da Amazônia, onde ocorre a maior parte dos
aliciamentos de mulheres e meninas, são totalmente financiadas pelo governo
estadual juntamente com as grandes empresas patrocinadoras dos eventos. Nessas ocasiões, tanto ocorre exploração sexual com a prostituição de mulheres e
meninas nos locais das festas, como também, ocorre o aliciamento para o tráfico
internacional, dissimulados por propostas de trabalho, de melhores condições
de vida e, o mais absurdo de todos, casamento rápido consequência de “amor
à primeira vista”. [...] Há situações de aliciamento em comunidades indígenas
e ribeirinhas, especialmente aquelas que se localizam nas proximidades de
garimpos ou de fronteiras internacionais: Colômbia, Peru, Guiana Francesa e
Venezuela. (OLIVEIRA, 2010, p.3-5).
6
Zabelê
– PPGANT
- Teresina-PI
Funcionário do NúcleoRevista
de Enfrentamento
ao Tráfico
de pessoas-UFPI
no Amapá.
• Vol. 2, n. 1 (2021)
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Outro fator importante no entendimento do fenômeno de tráfico de mulheres é o regime patriarcal, onde mulheres são consideradas inferiores e de domínio masculino, incluindo
o domínio do corpo da mulher. Neste contexto, Hazel (et... al, 2008, p.73) afirma que essas
mulheres são subordinadas aos prazeres e interesses dos homens que se sentem no domínio e
controle da sexualidade feminina.
Se a relação sexual se mostra como uma relação social de dominação, é porque
ela está construída através do princípio de divisão fundamental entre o masculino, ativo, e o feminino, passivo, e porque este princípio cria, organiza, expressa
e dirige o desejo – o desejo masculino como desejo de posse, como dominação
erotizada. (BOURDIEU, 2002, p. 30).
Diversas sociedades, incluindo a ocidental, ainda hoje vivem baseadas em regimes patriarcais onde existe sentimento de posse e dominação por parte do homem e faz com que a
mulher possa ser considerada “objeto de mercadoria” para o mesmo. A coisificação da mulher,
ou seja, o ato de trata-la como um objeto, uma mercadoria, remete aos tempos de escravidão
no mundo, quando a venda de seres humanos era considerada um ato legal e normal. Passados
mais de um século do fim da escravidão, ainda hoje acontece, de forma velada, a venda de
seres humanos através do tráfico de pessoas.
Em suma, percebe-se diferentes intersecções no tráfico internacional de mulheres, trata-se de um fenômeno que envolve questões muito além de socioeconômicas, as relações de
gênero e a forma como elas se desenvolvem no mundo também têm um peso grande na ocorrência do mesmo, como pudemos ver ao tratar da estereotipização da mulher da Amazônia e
do regime patriarcal.
MODALIDADES DE TRÁFICO INTERNACIONAL DE MULHERES
Segundo as entrevistas realizadas em 2017 durante a presente pesquisa, as mulheres em
situação de tráfico internacional de pessoas, cuja rota ao local de destino se deu nas fronteiras
franco-amapaenses, são em sua maioria brasileiras, adultas com idade entre 18 e 35 anos, pardas e negras, possuem baixa escolaridade e baixa condição socioeconômica. A modalidade de
tráfico de mulheres de maior incidência detectada foi para exploração sexual.
Entende-se por modalidade a finalidade para qual determinada pessoa será traficada. No
Brasil e no mundo, pesquisas (AMAURY, 2016; HAZEU, 2008; UNODC, 2018) demonstram
que, dentre outras, o tráfico de mulheres para fins de exploração sexual é a modalidade mais
incidente, no entanto, não é a única, existem também outras modalidades identificadas, entre
elas, as que se têm relatos no Estado do Amapá é a exploração para a prática de delitos, serviRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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dão doméstica e o tráfico de mulheres para fins de casamento servil; modalidade ainda pouco
conhecida, cujo estado do Amapá, dentre os estados brasileiros fronteiriços, é um dos poucos
a ter casos relatados. (ENAFRON, 2012, p.157).
EXPLORAÇÃO SEXUAL
Exploração sexual é toda prática pela qual o indivíduo obtém lucro financeiro por conta
da prostituição ou violência sexual cometida contra outra pessoa. (ENAFRON, 2012, p.138).
Há a necessidade de fazer a diferenciação entre exploração sexual e o livre exercício da prostituição.
Muitas mulheres aceitam se deslocarem a outro país através de engano, geralmente através de promessas de emprego, outras migram cientes da finalidade de exercer algum tipo de
atividade sexual. De qualquer forma, “... a ciência do exercício da prostituição não significa
o consentimento para ser submetida à exploração, ao trabalho forçado, à ameaça, à retenção
de documentos e outras formas de violação de direitos” (SOUZA; MACÊDO, 2016, p.70),
quando há qualquer forma de exploração em benefício financeiro de outrem, há violação de
direitos.
A mulher traficada para fim de exploração sexual gera lucro financeiro ao traficante
através de sua prostituição ou de violência sexual cometida por terceiros. Geralmente a prostituição é exercida nas ruas, boates, bares, apartamentos, casas de massagem, hotéis, barcos e
mais especificamente, em áreas de garimpo, como no caso de algumas vítimas que passam ou
saem do Estado do Amapá e cruzam as fronteiras com destino a Guiana Francesa ou Suriname.
Segundo Maria7, as mulheres que chegaram a ir ao NETP estavam muito abaladas emocionalmente, muitas relatavam terem sido enganadas por pessoas muito próximas, e até mesmo para os profissionais era difícil estabelecer uma relação de confiança, a pessoa acabava
se tornando muito desconfiada, pois os traumas emocionais são profundos. (agosto de 2017,
Macapá).
No estado do Amapá, não diferente da realidade mundial, o tráfico de pessoas, especialmente mulheres, para fins de exploração sexual destaca-se, apesar da irrisória estatística
oficial sobre este dado, é o que se conclui através de casos relatados nas entrevistas e revisão
bibliográfica. De acordo com Silva (2016, p.37), após realizar o diagnóstico dos processos de
tráfico de pessoas, o mesmo registrou o total de 11 (onze) denúncias compiladas pelo NETP/
AP, de 2012 a 2014, o autor afirma que o Núcleo não dispunha de ferramentas necessárias para
coletar informações relativas a essas ocorrências e, até a conclusão de sua pesquisa, em 2016,
não as possuía, pois, o enfrentamento do tráfico de pessoas no Amapá se dá de forma precária
7
Ex-funcionária do Núcleo de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Amapá.
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e fragmentada, devido à falta de estruturação de um sistema para monitorar, identificar e integrar pessoas relacionadas a esse fenômeno na região. Segundo Maria e João, há uma grande
rotatividade de funcionários no NEPT/AP, haja vista que todos os cargos são ocupados através
de contrato administrativo, isso contribuiria para a descontinuidade dos trabalhos iniciados em
cada gestão.
CASAMENTO SERVIL E SERVIDÃO DOMÉSTICA
Servidão doméstica significa submeter a mulher a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva e sujeitá-la a condições degradantes de trabalho no âmbito doméstico. Segundo Maria, a
servidão doméstica ocorre quando uma pessoa “contrata” alguém para trabalhar na sua casa,
não paga salário, não assina carteira, a pessoa trabalha o dia todo por um prato de comida, e
mora na casa de quem a “contratou”, segundo a mesma, no Brasil é algo comum, principalmente nas regiões amazônicas, há relatos de casos no Amapá, mas não oficiais. (agosto de
2017, Macapá).
O casamento servil ocorre quando a mulher traficada se casa com alguém que promete
uma relação conjugal saudável, mas que acaba por obrigá-la realizar as tarefas domésticas e/
ou a ter relações sexuais com o mesmo, ainda que contra a sua vontade. Enquanto trabalhava
no NETP-AP, Maria ouviu relatos de casos em que a mulher “muitas vezes é obrigada a se
prostituir”, para que a pessoa com quem casou lucre financeiramente com ela.
No Amapá há registro de tráfico de mulheres para fins de casamento servil, “num primeiro instante, a intenção da mulher é a de se casar com o ‘francês de olhos azuis’ e usufruir
de uma vida confortável, teoricamente proporcionada pelos franceses da Guiana Francesa”.
(ENAFRON, 2012, p. 157). O casamento servil é corroborado por um imaginário coletivo
onde muitas meninas crescem vendo o casamento com o homem estrangeiro como uma forma
de “ganho de capital”, com a ideia de que “o gringo” pode oferecer grande qualidade de vida
às mesmas, lhes proporcionando uma vida economicamente confortável.
As mulheres geralmente são de famílias com baixa condição socioeconômica, vivem
num contexto social de poucas oportunidades de crescimento profissional e com a dinâmica
familiar em que o pai é o provedor financeiro e a mãe dedicasse exclusivamente aos cuidados
do lar e criação dos filhos, isso contribui também para que as mesmas vejam somente na figura
masculina a possibilidade de uma vida melhor.
EXPLORAÇÃO NA PRÁTICA DE DELITOS
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O tráfico de mulheres para prática de delitos ocorre quando ela é coagida ou forçada a
cometer práticas criminosas para benefício financeiro de outrem. Geralmente são mulheres
com altas dívidas; com traficante de drogas, por exemplo, ou estão em situação socioeconômica precária, sem perspectiva de melhora.
De acordo com a pesquisa Enafron (2012, p.153), quando as mulheres são recrutadas
para esta modalidade de tráfico de pessoas, o contato com as mesmas geralmente é realizado
pelo traficante de drogas, as profissionais do sexo que contraem dívidas para o consumo de
drogas são os principais alvos, algumas delas são aliciadas a “tentar a vida” no Suriname ou
Guiana Francesa, onde, segundo os aliciadores, elas vão ganhar em ouro ou em euro. Para
“pagar” o transporte, elas são obrigadas a levar alguma quantidade de substância ilícita. Foram
relatados na pesquisa casos de tráfico de mulheres brasileiras para fins de prática de delitos na
Guiana Francesa e Suriname.
ROTAS DO TRÁFICO DE MULHERES NA REGIÃO FRONTEIRIÇA FRANCO-AMAPAENSE
Como foi dito no início deste trabalho, o estado do Amapá possui uma privilegiada posição geográfica, sempre que os aliciadores que vêm de outras partes do Brasil, principalmente
do Pará, e buscam fazer o transporte por via terrestre, optam pela fronteira norte do país, ou
seja, o fazem através do município de Oiapoque para chegar até a Guiana Francesa e Suriname.
Algumas mulheres chegam ao local de destino onde serão exploradas de forma documentada8, ou seja, possuem passaporte e visto. Muitas vezes entram como turistas, fazendo
com que assim não se tenha grande possibilidade de serem barradas na entrada de determinado
país ou corram os riscos de uma entrada indocumentada, como a deportação ou expulsão, da
mesma forma que, caso acompanhada de alguma pessoa ligada à rede de exploração, a mesma
não se exponha de forma a ser interceptada pelas autoridades policiais. No quadro abaixo se vê
alguns locais de origem, trânsito e destino onde se detectou o fenômeno de tráfico de mulheres
para fins de exploração sexual:
8 “Vale destacar que, muitas vezes, o deslocamento das pessoas, seja entre regiões ou países, ainda que para
fins do tráfico de pessoas, acontece de forma legalizada e livre, não existindo nenhuma forma explícita de
coerção. Nessas circunstâncias, a configuração enquanto crime de tráfico somente ocorre pela identificação da
finalidade do deslocamento, no caso, para fins de exploração ou a escravidão”. (SOUSA; MACÊDO, 2016 p.
72).
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Quadro 1: Rotas e Modalidade do Tráfico Internacional de Mulheres
Grupo
Local de Origem
Macapá (AP)
Mulheres Costa do Maranhão, Arquipélago do
Marajó (PA)
Bragança
Trânsito
Oiapoque (AP)
Local de
Destino
Porto de Santana
(AP),
Oiapoque (AP)
Guiana
Francesa
Guiana
Francesa/
Suriname
Macapá/Oiapoque
Guiana
Francesa
Modalidade de
Tráfico de Pessoas
Exploração
sexual
Fonte: ENAFRON (2012)
Como se observa, há registro de casos de pessoas que saíram do Nordeste (Maranhão),
passaram pelo município de Oiapoque e foram levadas para a Guiana Francesa e Suriname.
No que diz respeito especificamente ao tráfico de mulheres para fins de exploração sexual, há
a rota Bragança – Macapá – Oiapoque – Guiana Francesa (cujo trânsito se dá no Amapá) e
causa grande preocupação nos órgãos públicos de segurança do Pará. Rotas fluviais também
são utilizadas, são mais complexas por terem vários fluxos, há as que partem do Arquipélago
do Marajó, em embarcações clandestinas, dirigem-se ao Porto de Santana, e de lá continuam
a rota por via terrestre.
Segundo relatado por João, o Amapá é geralmente rota de passagem do tráfico de pessoas, a maioria vem do Estado do Pará, Maranhão, Piauí, São Paulo, passam pelo Amapá e vão
diretamente ao país em que serão destinadas à exploração, em sua maioria Guiana Francesa e
Suriname (setembro de 2017, Macapá).
Há de se destacar também casos relatados de tráfico de mulheres para exploração sexual
nas áreas de garimpo da Guiana Francesa. Foi relatado por Maria o caso de uma mulher em
2014 que foi “comprada” no município de Oiapoque por alguns garimpeiros, por um grama de
ouro cada um, e levada para ser explorada sexualmente em determinado garimpo da Guiana
Francesa. Chegando ao local, como a mesma tentou fugir, acabou sendo amarrada em uma
árvore, pois os garimpeiros precisavam trabalhar e não podiam ficar a vigiando, e ali ela ficava
constantemente. A mulher era abusada sexualmente por vários homens diariamente. O caso
chegou ao conhecimento do NETP-AP através do relato de um homem que foi traficado para
trabalho escravo no garimpo e conseguiu fugir.
De fato, o tráfico internacional de mulheres é um fenômeno complexo, grande parte da
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população e até mesmo profissionais dos diversos setores públicos e redes de atendimento à
mulher têm dificuldade na caracterização do fenômeno, pois ele se relaciona com migração,
ingresso irregular, propostas de casamento, fuga de situações de violência, entre outras pautas.
Em decorrência desse emaranhado de questões, o mesmo acaba sendo confundido muitas vezes com outras situações como a migração indocumentada, livre exercício da prostituição, ou
violação de direitos como maus tratos e cárcere privado. (SOUSA; MACÊDO, 2016, p.70).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao tratar o fenômeno do tráfico internacional de mulheres sob concepções feministas,
fez-se notável que a questão de gênero está intimamente ligada ao problema em questão, trata-se de uma das diversas formas diretas e estruturais em que a mulher é submetida a violências
internacionais, e isso é constituído através de uma sociedade ainda em grande parte patriarcal,
que subjuga e objetifica o corpo mulher, tornando-o passível de exploração, como pode-se verificar nas modalidades de tráfico de mulheres identificadas nas fronteiras franco-amapaenses:
exploração sexual e, na prática de delitos, servidão doméstica e casamento servil.
Destaca-se também, na ocorrência do fenômeno em estudo, as desigualdades entre homens e mulheres nas diferentes áreas da sociedade, principalmente socioeconômica, como
no caso das brasileiras que buscam migrar de suas cidades de origem em busca de melhores
condições de vida e acabam sendo aliciadas pelas redes de exploração que atuam no Brasil e
Guiana Francesa; geralmente são mulheres habitantes de interiores menos desenvolvidos das
regiões norte e nordeste, negras, com baixa escolaridade e dispostas a migrar, geralmente, de
forma indocumentada.
Ressalta-se ainda a importância do treinamento de profissionais que atuam em situações
de tráfico de mulheres, para que conheçam o fenômeno profundamente e lidem com este problema considerando suas imbricações com questões de gênero, socioeconômicas e culturais,
e assim, possam conscientizar a sociedade civil quanto à existência do mesmo na fronteira
franco-amapaense.
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ESTAR EM CAMPO: NOTAS ETNOGRÁFICAS PARA UM ARTESANATO
PANDÊMICO
Mariana Amalia de Carvalho Castro e Silva1
mari_amaliacs@hotmail.com
RESUMO: Os movimentos sociais são organizações que se constroem historicamente, suas
especificidades dialogam com as questões sociais e políticas da sociedade. Entre os anos de
2018 e 2019, pesquisei o Movimento Sem Teto do Centro na cidade de São Paulo. Durante
meu trabalho de campo o movimento atravessou rupturas e processos de criminalização resultando em reações insurgentes. Tenho objetivo central de discutir o enfrentamento do pesquisador e seus interlocutores diante de processos de transformação. Estes afetam os sujeitos
e hipóteses da pesquisa. Método e abordagem se inscrevem no campo diante de mudanças políticas e sociais imediatas como as que os integrantes do MSTC atravessaram. O movimento
dos interlocutores, impulsionam abordagens subjetivas, estas são uma junção de adaptações e
afetações do cientista social: Traduções de ações intuitivas constituídas entre teoria e prática.
Palavras-chave: Artesanato intelectual. Movimento Sem Teto do Centro. Perspectiva antropológica. Movimentos sociais.
ABSTRACT: Social movements are organizations that are built historically, their specificities dialogue with the social and political issues of society. Between the years of 2018 and
2019, I researched the Center’s Homeless Movement in the city of São Paulo. During my fieldwork, the movement went through ruptures and criminalization processes resulting in insurgent reactions. I have a central objective of discussing the confrontation of the researcher and
his interlocutors in the face of transformation processes. These affect the research subjects
and hypotheses. Method and approach are inscribed in the field in the face of immediate political and social changes such as those experienced by MSTC members. The movement of the intelocutors drives subjective approaches, these are a combination of adaptations and affects of
the social scientist: Translations of intuitive actions constituted between theory and practice.
Keywords: Intellectual crafts. Movimento Sem Teto do Centro. Anthropological perspective.
Social movements.
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APRESENTAÇÃO: IMAGINAÇÃO SOCIOLÓGICA – UM GUIA
Os movimentos sociais são organizações que se constroem historicamente, suas especificidades dialogam com as questões sociais e políticas da sociedade. Este processo é composto
em uma troca subjetiva: entre sujeito e movimento, movimento e sociedade. Portanto, estes
não são grupos homogêneos com estratégias engessadas. As reivindicações dos movimentos
sociais têm como diretriz comum a universalização dos direitos políticos e sociais ou seriam
“simplesmente criadores de comunidades auto referenciadas” (GOHN, 2008, p.14-15). Entre
os anos de 2018 e 2019 em que elaborei minha dissertação “TRAJETÓRIA DE LUTA DAS
MULHERES DO MSTC: construção da imaginação sociológica” (SILVA, 2020), conheci o
Movimento Sem Teto do Centro – MSTC e sua luta pela moradia na cidade de São Paulo. Suas
ações políticas transformam a biografia de seus integrantes e refletem mudanças nas estruturas
sociais. Ao determinar a liderança Carmen Silva Ferreira, como uma das interlocutoras centrais de minha pesquisa, busquei “capturar” na biografia de Carmen elementos de transformação em contexto histórico e coletivo.
Ao pensar as ações do MSTC e de sua liderança Carmen Silva, tive como guia teórico
central a obra “A imaginação sociológica” de Charles Wright Mills. Escrita em 1959 o texto
é um compilado de conferências e ensaios escritos por Mills ao longo de sua carreira. As reflexões da obra eram direcionadas a estudantes e pesquisadores da área de ciências humanas e
sociais. A proposta de Mills é um estímulo à reflexão dos processos de mudança política, econômica e social que as Ciências Sociais enfrentavam no período pós Segunda Guerra Mundial.
Novos regimes políticos são estabelecidos, aliados a ampliação de fronteiras e o tecnicismo
que incide o pensamento sociológico. Para Mills os sujeitos são socialmente construídos e
agentes de manutenção ou transformação social, afinal se as ações sociais estruturam as performances dos sujeitos, eles a constituem e possuem possibilidades de modificá-las.
O primeiro fruto dessa imaginação – e a primeira lição da ciência social que a
incorpora - é a ideia de que o indivíduo só pode compreender sua própria experiência e avaliar seu próprio destino localizando-se dentro de seu período; só
pode conhecer suas possibilidades na vida tomando-se cônscio das possibilidades de todas as pessoas, nas mesmas circunstâncias em que ele. Sob muitos aspectos, é uma lição terrível; sob muitos outros, magnífica. (MILLS. 1982, p.12).
Ao discutir “perturbações” e “questões” que estão além do âmbito individual, o autor
estabelece um método teórico de análise, em que exercer a Imaginação sociológica, é uma
prática de razão e liberdade ao pesquisador. Para Mills a “ciência social é um ofício artesanal”
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(MILLS, 1982, p. 211), ao definir o artesanato intelectual, o autor apresenta uma série de procedimentos e técnicas, que podem auxiliar a elaboração de uma pesquisa com reflexão. A desnaturalização que a imaginação provoca é um meio de estabelecer novas percepções sociais,
além da racionalidade moderna. Transpor a proposta teórica de Mills para o campo empírico
seria um método para escapar da alienação social? Ela poderia ser utilizada como uma abordagem na observação dos sujeitos?
Os processos de transformação social dos sujeitos é um tema que sempre atraiu minhas
observações de campo. Quais são as pulsões de mudança nas trajetórias individuais? A transformação que apresento está ligada aos processos de consciência e ação em sociedade. Em
sua trajetória em qual momento o sujeito realiza o exercício de reflexão sobre as ações sociais
que afetam suas vidas? Acredito que: compreender como os sujeitos se identificam, incorporam experiências vividas e atribuem a estas significados, é um caminho. Esta reflexão não é
somente direcionada aos interlocutores de minha pesquisa. A trajetória do pesquisador e como
este interpreta suas hipóteses, considero um interessante objeto de análise. Procurei identificar
possíveis processos de imaginação e razão nas ações dos integrantes do movimento MSTC e
refiz o mesmo caminho ao direcionar reflexões a meu trabalho: enquanto pesquisadora onde
minhas experiências compõem as indagações e discussões da pesquisa proposta.
Quais práticas me levariam a uma análise da realidade social? O que seria motivo de
questionamento em temas que já emergiam por décadas nas Ciências Sociais? A princípio,
meu objetivo era compreender possíveis processos de Imaginação Sociológica, enquanto um
exercício de reflexão dos sujeitos para uma prática da razão e liberdade. Decidir em quais espaços isso seria possível e quais sujeitos seriam analisados era o recorte decisivo do trabalho.
Mills (1982) aponta que isolamento cotidiano como um dos fatores alienantes entre sujeito e
sociedade. Onde encontrar sujeitos em processos de transformação? Comecei em busca de um
ambiente não tradicional – onde a lógica racional não impera na totalidade do seu espaço de
ação. Os sujeitos envolvidos neste trabalho pertencem a uma lógica social de constante mudanças e embates políticos, os relatos que deveriam ocorrer de forma tradicional não couberam
a minha pesquisa, neste ponto aproximo o artesanato intelectual e a abordagem etnográfica a
situação “pandêmica”.
Estamos enfrentando desde o final do ano de 2019 e em 2020 uma pandemia mundial,
em que o isolamento social e uso de máscara é a principal proteção para todos os sujeitos circulantes em sociedade. Como estar em campo na situação em que a principal recomendação
de saúde pública é o isolamento social? Ocorre que ao longo de toda a história do campo de
pesquisa das Ciências Sociais, quem se propôs ir a campo enfrentou “percalços pandêmicos”.
Trabalhamos com sujeitos diversos em situações imprevisíveis. Uma pesquisa possui um período de permanência, em que tudo pode ou não acontecer em campo. Hipóteses, premissas
são transformados quando entramos em campo e nos relacionamos com nossos sujeitos, “muiRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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to depende do pesquisador, da sociedade que ele estuda e das condições em que tem de fazê-lo
(PRITCHARD, 2005, P. 243)”.
Acredito ser interessante a descrição do desenho de minha pesquisa com movimento
MSTC e a liderança Carmen Silva que ocorreu em confluência com mudanças sociais e históricas que incidirem diretamente em suas trajetórias e na elaboração de meu trabalho. Não
estabeleci, assim, como Mills, um objetivo engessado, ele não se sustentaria diante dos fatos
que ocorrem, assim o guia essencial do trabalho são as percepções entre teoria, prática e imaginação.
ALCANÇAR O CAMPO: OCUPAÇÃO NOVE DE JULHO
Em uma busca empírica, as técnicas da pesquisa se definiam em: conformidade aos
objetivos do trabalho, em acordo com o campo e as demandas que ali foram apresentadas.
Minha ida ao campo e contato com os sujeitos escapa a ótica tradicional de uma descrição de
“materiais e métodos de trabalho”, os acontecimentos na pesquisa foram vividos em conjunto
com os sujeitos, não tivemos um distanciamento histórico das ações coletivas, assim é a dinâmica que nos leva a uma tática de pesquisa, onde materiais e métodos foram modificados em
acordo com o movimento e mudanças que vivenciamos.
Na madrugada do dia 1 de maio de 2018, ocorre um incêndio, seguido de um desmoronamento no Edifício Wilton Paes de Almeida na região central de São Paulo. A notícia da
queda do Edifício Wilton foi noticiada nas principais mídias nacionais e internacionais, com
destaque no site do jornal “Folha de São Paulo” encontra-se o título: “Prédio invadido desaba
em incêndio no largo do Paiçandu, centro de SP”2. O edifício construído em 1968 destinado a
serviços públicos estava abandonado pelo poder público desde 2003. No incêndio em 2018 o
prédio estava ocupado morando no edifício no momento do incêndio, sete faleceram, diversas
ficaram feridas e sem-abrigo. No incêndio em 2018 o prédio estava ocupado irregularmente,
sete moradores faleceram, diversas pessoas ficaram feridas e sem-abrigo. As lideranças da
ocupação Wilton Paes, foram acusadas de extorsão, segundo denúncia era cobrada uma taxa
dos moradores por um espaço de risco, que estava sem nenhum tipo de manutenção.
As informações que surgiram na época do desabamento na mídia tradicional em um
caso de repercussão mundial, colocou em evidência todos os movimentos sociais de luta pela
moradia na cidade de São Paulo. O poder público após um ano da queda do prédio Wilton,
indiciou lideranças sociais pertencentes a outros movimentos sociais de moradia que não estavam envolvidas com a ocupação do Edifício Wilton Paes de Almeida. Em alternativa as in2 Fonte:<https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2018/05/incendio-de-grandes-proporcoes-atinge-umedificiono largo-do-paissandu.shtml>. Acesso em: 25 de jun. 2018.
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formações que circulavam e não davam voz aos movimentos, um grupo de ativistas aliados ao
movimento social MSTC, realizou no dia 20 de maio de 2018, um evento paralelo a “Virada
Cultural” da cidade de São Paulo, em uma de suas ocupações regularizadas, a Ocupação Nove
de Julho localizada na região central da cidade de São Paulo. Fiquei sabendo do evento através
de um dos organizadores e assim pela primeira vez fui a Ocupação Nove de Julho.
Meu contato com ocupações sempre foi a de quem está circulando, olhando as faixadas. Confesso que a ida ao evento, era a oportunidade de conhecer um espaço desconhecido,
onde um movimento social atuava, sabia que em espaços políticos encontraríamos sujeitos
que lutavam por transformação social. Teria a chance de encontrar um campo para pesquisa.
Quando cheguei na Ocupação Nove de Julho, fiquei impressionada com o espaço, registrei em
meu diário de campo – prática que mantive ao longo de toda a pesquisa – as atividades que
experienciei naquele dia.
Um show musical da cantora Ana Cañas e a exibição do filme “Era um Hotel Cambridge” da diretora Eliane Caffé, que estava presente para discussão do filme. Ali foi a primeira vez
que vi Carmen Silva Ferreira, liderança fundamental do movimento MSTC. Carmen estava
presente para discussão do filme, onde atuou, o longa havia sido feito em uma das antigas ocupações do MSTC, a “Ocupação Cambridge”. Como Carmen naquele momento estava sendo
acusada em um processo criminal anterior, os integrantes do MSTC tinham a percepção de que
as acusações do Edifício Wilton Paes poderiam ser direcionadas a todos os movimentos sociais
que realizavam ocupações na cidade de São Paulo. O primeiro processo de Carmen ocorreu
quando esta ocupava o antigo Hotel Cambridge. No dia que conhecia Carmen sua imagem
estava exposta na mídia nacional, em vídeos gravados de forma oculta, ela discutia sobre a
cobrança da taxa de manutenção na “Ocupação Cambridge”.
Assim a “Virada Cultural” na ocupação era a tentativa do movimento de estabelecer um
diálogo com os moradores da cidade. A Ocupação Nove de Julho estava regularizada, suas
condições eram de uma habitação segura. O MSTC é um movimento regulamentado, que registra todos os seus integrantes filiados. O que encontrei naquele dia foram famílias, trabalhadores, estudantes que não tinham condições de residirem nas áreas centrais da cidade. Durante
o evento observei que, a composição do morar na Ocupação Nove de Julho era diferente.
Os discursos de Carmen e outros integrantes do MSTC, eram de denúncia às decisões do
Estado perante o mercado imobiliário, que inviabilizava o acesso das pessoas as áreas centrais
das cidades. Eram falas que reconheciam a potência de transformação política e social que o
coletivo detinha. Os processos artísticos e políticos, eram difusos na luta social, decidi naquele
dia meu campo de pesquisa. Na Ocupação Nove de Julho, ocorrem diversas atividades culturais. Oficinas são parte do cotidiano, a arte enquanto expressão de luta é uma potente tática cultural e política do MSTC. Na “Ocupação Nove de Julho” observei um exercício de imaginação
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potencializado no coletivo. Iniciei minhas visitas e planejamento de como atuaria no campo,
realizaria atividades para provocar alguns processos de reflexão? Trabalharia com entrevistas?
Todas as atividades que fossem desempenhadas na ocupação, deveriam passar por uma
aprovação do movimento, o trabalho era avaliado no sentido de sua coerência com o movimento e em como a atividade poderia somar ao espaço. Com as questões: “Os sujeitos agem
com razão e liberdade? Quais processos potencializam essas ações?”, estabeleci uma direção
que me acompanhou até o processo de escrita. Marquei um encontro com Carmen Silva e apresentei meus objetivos de pesquisa. Conheci nesse dia outras lideranças e moradoras da Ocupação Nove de Julho. Foi difícil falar meus objetivos de forma explícita, havia ainda muitas
dúvidas de como realizar minha pesquisa, como identificar um ato de imaginação? Analisando
posteriormente meu percurso, percebo a confusão nos propósitos iniciais da pesquisa. O trabalho de campo aliado aos métodos teóricos estudados, foram um exercício de reflexão enquanto
meu papel de pesquisadora diante do campo.
Conheci o prédio e suas estruturas, um grande pátio, muitas árvores, seus espaços administrativos e a cozinha, marcenaria, biblioteca com livros e brinquedos. Durante as visitas,
frequentei todos os espaços de convivência comum, porém não entrei na casa dos moradores
da Ocupação Nove de Julho. O objetivo da pesquisa era apurar processos de transformação e
imaginação sociológica em conjunto aos ocupantes e com quem ali permanecia, os apartamentos em minha visão, eram seus espaços privados que o propósito do trabalho não cabia adentrar. Acredito que os moradores me acolheriam se fosse necessário, porém, nossa convivência
nos espaços comuns foi o suficiente para minha observação participante.
Na dinâmica do cotidiano fui apresentada ao Paulo Santigo, um apoiador do movimento, envolvido com Museu da Cidade e as questões da região do Bixiga, bairro próximo à ocupação. O trabalho de Paulo era com as crianças da ocupação. Todas as atividades eram feitas
com elas, confesso que não tinha experiência com crianças, em trabalhos anteriores realizei
oficinas com adolescentes com propósitos diversos ao que me encontrava. Aceitei observar a
dinâmica das crianças e elaborar atividades com elas no período das férias escolares de julho
de 2018. Fui à ocupação e realizei algumas oficinas, esta prática era uma espécie de contribuição ao coletivo e uma oportunidade de ambientação com os sujeitos em suas dinâmicas
sociais. Os temas foram diversos, sempre pensando em imaginação e sociologia, através de
jogos, em uma prática interdisciplinar com outras áreas de conhecimento, com parcerias com
quem ali se voluntariava. Assim foram as atividades iniciais. Objetivo central das atividades
era criar espaços de curiosidade e reflexão.
Ao final das atividades, circulava pelos espaços de convivência e conhecia os moradores. Na observação participativa, construímos um reconhecimento empático. O que, a princípio, é estranhamento, torna-se familiaridade, e as questões com a dinâmica são aprofundadas
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na captura dos detalhes. Como são as crianças e os pais da ocupação? Observei muitas crianças
e pais refugiados de outros Países, suas vivências familiares eram diferentes. Conheci histórias de pessoas que haviam perdido tudo que tinham em diversas situações, seja por questões
ambientais ou de violência social. Muitos não conseguiam pagar aluguel ou tinham de permanecer em situações precárias e afastados da região central da cidade, onde a maior parte das
vagas de emprego se encontram.
O diálogo com a necessidade de participação política que o movimento social exige de
seus integrantes é delicado. Nos movimentos de moradia, o dilema entre direitos sociais e mercadoria aprofunda-se, afinal, a princípio, moradia está ligado a um bem econômico concreto,
assim muitos procuram no início o movimento com essa percepção individual. Os sujeitos
estão ali pela “necessidade” de morar, porém, a proposta do MSTC é que a moradia não se restrinja ao concreto, como Carmen diz “as paredes e um teto”. O ato de ocupar é um ato político
e a formação que o movimento reivindica a seus integrantes têm como objetivo fundamental
que estes não façam do ocupar um ato alienado, que este seja uma ação de luta e consciência.
Durante as observações, me socializava com todos os elementos da pesquisa, absorver
as subjetividades do campo e seus interlocutores, é um processo de formação ao pesquisador, o
“campo forma” e oferece “corpo” ao trabalho. Tive contato com o estatuto do movimento que
organiza todas as suas ocupações. O viver coletivo nas ocupações do MSTC seguem regras
importantes para a organização do espaço, não é criado ali um “ambiente” opressor, ao contrário, as decisões são feitas no coletivo e são cumpridas no estatuto. O imaginário social acerca
das ocupações é de que são espaços marginalizados, desorganizados, que as pessoas que ali
estão são criminosas, que não existem regras. Carmen revela em seus discursos os estigmas
que os ocupantes enfrentam, estes confrontam a capitalização dos direitos sociais.
Manter o espaço limpo e organizado, com horários estabelecidos para entrar e sair, registros de quem está ali presente, não permitir o uso de drogas e nenhum tipo de violência,
são regras de convivência que existem para preservação dos moradores. Estes vivenciam a
invisibilidade social, onde as diferenças das estruturas e do poder que compõe a sociedade
brasileira delega a estes sujeitos a exclusão social. Na ocupação Nove de Julho, cada andar
do prédio tem um mediador, o prédio possui treze andares, os mediadores “cuidam” de cada
andar, dão suporte aos moradores, mediam os conflitos, estes são eleitos em sistema de rodízio
em que todos os moradores ocuparam por um determinado tempo esta função. Os mediadores
realizam reuniões semanais para discussão de conflitos e formação política, a maior parte das
mediadoras são mulheres, inclusive as lideranças dos movimentos de luta pela moradia na cidade de São Paulo em grande parte são de mulheres.
Observando as mulheres do MSTC na ocupação, início a percepção de que o reconhecimento biográfico proposto por Mills (1982) no ato de imaginar, não era apropriado apenas a
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pesquisadores e cientistas sociais. Estes processos de razão e liberdade estavam presentes nas
falas de Carmen e nas demais mulheres, que transformaram suas trajetórias ao entrarem no
movimento social. O coletivo formado pelo MSTC, possui potência de imaginação e transformação em suas ações. Em minhas reflexões durante as visitas de campo, encontrei os objetivos
que se tornaram posteriormente o norte da pesquisa: identificar as práticas de imaginação sociológica nas reflexões sociais que Carmen Silva realizava em processos de transformação de
sua biografia e nas ações do movimento MSTC na Ocupação Nove de Julho.
ESCUTA, TRAJETÓRIA E MOVIMENTO
Como as mulheres lideranças do MSTC produzem conhecimento e modificam sua realidade? Foram as falas de Carmen Silva que iniciaram o direcionamento do trabalho. Além
das oficinas, a ocupação realizava muitos eventos culturais. As rodas de debate, com temas
diversos atraiam sujeitos que queriam conhecer o espaço. As rodas de debate eram compostas
pelos frequentadores das ocupações do MSTC, os moradores da Ocupação Nove de Julho,
visitantes e parceiros do movimento. Os integrantes do MSTC estão representados em todas
as atividades.
Nos espaços de debate, em uma observação participante, pude notar o impacto de Carmen Silva em todos que ali estavam. Ela era sempre mencionada em depoimentos dos integrantes do MSTC e seus parceiros. Ela estava presente na mídia nacional em entrevistas e
foi ela a primeira pessoa criminalizada no movimento3. As falas de Carmen, são construídas
por situações anteriores e sequências a sua entrada no movimento, uma biografia pública de
atuação transformadora. À medida que Carmen exercitava sua razão buscando mudanças, ela
modificava as táticas de luta do movimento social, era uma relação dialógica, que acontecia
em diversas esferas, não apenas política e econômica, ela estabelecia uma “nova cultura” no
fazer político. Carmen é liderança política, atriz, escritora, planejadora urbana, ela utiliza suas
relações e conhecimento em uma combinação ampla de luta política.
Quanto mais investigava a “identidade” do MSTC e suas frentes de luta diversas, compreendia a transformação biográfica de Carmen, e ao conhecê-la pude escutar uma trajetória de
vida semelhante às diversas mulheres integrantes do movimento MSTC e de muitas brasileiras.
As reflexões de Carmen interseccionam o conhecimento que ela adquire nos processos históricos que presenciou aliados à sua entrada no movimento social. Ao captar as falas públicas de
Carmen, observei sua percepção do que aconteceu em sua trajetória em conformidade aos sig3 Na ocasião foram divulgadas notícias na mídia tradicional brasileira acusando Carmen de extorsão. O movimento cobra uma taxa regulamentada dos moradores totalmente revertida para as melhorias dos prédios e
para manutenção do local.
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nificados que ela atribuía a suas mudanças, cada vez que ela realizava uma discussão algumas
reflexões se repetiam outras se transformavam em acordo com o contexto que vivenciávamos.
Os processos metodológicos iniciais desta pesquisa são de um conhecimento “implícito”, onde
leituras e práticas anteriores ao trabalho, concedem ao pesquisador, uma postura “intuitiva”. A
priori a observação é direcionada a formulação de questões primárias, não tive, inicialmente
um objetivo único. A Imaginação sociológica que buscava identificar, estava presente em meus
processos de reflexão enquanto observação e ação da pesquisadora em campo.
O trabalho inicial definido por Mills (1982) como “artesanato intelectual”, onde o trabalho do pesquisador é manual no sentido de atuação em construção. Nas ações de reflexão
e conhecimento que estabelecemos com tema pesquisado, aprofundamos à medida que estabelecemos os elementos que envolvem os sujeitos pesquisados e dos interesses da pesquisa.
Sendo possível, segundo Mills uma associação teórica com métodos e outros temas diversos.
Esta proposta de contrapor objetivos e tema de pesquisa a trabalhos diversos, é um exercício
de alteridade em que podemos “alcançar” rupturas e possibilidades a princípio não observadas
em reflexões primarias, quando estamos no estágio inicial de pesquisa envoltos em levantamentos bibliográficos relacionados ao tema delineado. Em cada leitura que realizei, encontrei
uma ligação com meu trabalho, essa amplitude nos leva em direções que não estavam pré-determinadas, porém, é um exercício “perigoso”, onde se corre o risco do objetivo norteador se
escape nas inúmeras possibilidades observadas.
O artesanato intelectual é composto por uma série de técnicas de pesquisa em que reflexões impulsionam as motivações do pesquisador. A elaboração de um “arquivo de ideias”,
num misto de caderno de campo e levantamento de diversos materiais teóricos, é a constituição de registros sobre: as experiências entre pesquisador e campo de trabalho, observados e
observador. Foi em meu diário que iniciei por exemplo a ideia de identificar a Ocupação Nove
de Julho como uma Zona Autônoma Temporária (2018), teoria elaborada pelo filosofo anarquista Hakim Bey, em que a definição efêmera da TAZ e suas possibilidades de insurreição
aproximavam-se as ações coletivas do MSTC, como os almoços aos domingos e a diversidade
de sujeitos que circulavam durante os eventos construindo espaços não demarcados dentro da
dinâmica da cidade. Estes foram processos de imersão em questões estruturantes do trabalho.
É nos cadernos de campo que resgatamos detalhes esquecidos ou realizamos reflexões
posteriores em acordo com novas leituras teóricas. Iniciei junto com as observações de campo
e os registros, a busca por tudo que envolvia a Ocupação Nove de Julho e minha interlocutora
Carmen Silva. Descobri a profunda ligação do MSTC com parcerias artísticas e urbanas. As
ações em conjunto com artistas, pesquisadores, arquitetos, produtores culturais, engenheiros
e agentes do poder público, produzem a dinâmica do movimento, as elaborações artísticas
são potências de imaginação em novas formas de atuação política. A tática de luta do movimento extrapolava as lutas políticas tradicionais, para compreender a “produção interativa de
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significados além das intenções” (ROSENTHAL, 2014, p. 22), busquei alternar a abordagem
etnográfica de registro e observação de campo e as reflexões de autores com métodos teóricos
subjetivos e sensíveis à ação política.
Racionalidade em oposição a razão e liberdade, são conceitos relevantes para compreensão da definição de Mills (1982) para a “Imaginação sociológica”. Quando nos utilizamos dos
conceitos, enquanto método teórico no campo empírico da observação, estabelecemos categorias de análise e um recorte de elementos a serão capturados. A biografia é definida na leitura
de Mills (1982), como trajetórias de vida, onde sujeitos combinam processos individuais e sociais, compondo sua “história”, uma combinação de perspectiva individual e ações coletivas.
Uma biografia é passível de ser entendida em seus processos de mudança e transformação:
A vida do indivíduo não pode ser compreendida adequadamente sem referência
as instituições dentro das quais sua biografia se desenrola. Pois esta biografia
registra a aquisição, abandono, modificação e, de forma muito íntima, a passagem de um papel para outro. Para compreender a biografia de um indivíduo,
devemos compreender a significação e o sentido dos papéis que desempenhou
e desempenha; para compreendê-los, devemos compreender as instituições de
que são parte. Mas a visão do homem como uma criatura social nos permite ir
muito mais fundo do que a simples biografia externa, como sequência de papéis
sociais. (MILLS, 1982, p. 175).
A crítica da racionalidade instituída na sociedade moderna de Mills (1982), está conectada a ideia de Estado burocrático e o tecnicismo presente nas reflexões das ciências humanas.
Em oposição à racionalidade, estaria a busca pela razão, que o autor associa à liberdade. Para
Mills a racionalidade estrutura as instituições e a produção do conhecimento moderno, assim
mesmo os intelectuais estariam submetidos a processos burocráticos que cerceiam seu olhar
onde “transcender por sua compreensão uma variedade de ambientes cotidianos, mas não ser
capaz de modificar as forças estruturais de ação dentro e sobre esses ambientes” (MILLS,
2009, p. 89).
Definimos a racionalidade, enquanto a burocracia do Estado que não concede espaços
de diálogo com os movimentos sociais e a sociedade, nas ações da mídia tradicional que busca
constantemente definir um estereótipo, onde o fazer político se apresenta corrompido, clandestino, estelionatário. A racionalidade da sociedade pós-guerra criticada por Mills (1982), cria
embates entre as ações coletivas e a lógica do Estado moderno, estes choques ampliam espaços
de luta. Nos fragmentos da cegueira burocrática os embates insurgentes estabelecem espasmos
de razão.
A distribuição em massa da cultura histórica pode não elevar o nível da sensiRevista Zabelê – PPGANT -UFPI - Teresina-PI • Vol. 2, n. 1 (2021)
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bilidade cultural, mas simplesmente banalizá-la e competir poderosamente com
a oportunidade e inovação criadora. Um alto nível de racionalidade burocrática
e de tecnologia não significa um alto nível de inteligência individual ou social.
Da primeira não é possível deduzir a segunda. Pois a racionalidade social, tecnológica ou, burocrática não é meramente uma soma geral da vontade individual e da capacidade de raciocinar.(MILLS, 1982, p. 182).
A proposta de Mills da busca pela razão e liberdade, são proposições para o empírico,
uma “brecha” para pensarmos em práticas de razão e liberdade. Em quais momentos os sujeitos são impulsionados ao exercício de reflexão e sistematização do pensamento desnaturalizado? Segundo a filósofa Hannah Arendt o espaço público é o lugar da ação:
Ao contrário da fabricação, a ação jamais é possível no isolamento. Estar isolado é estar privado da capacidade de agir. A ação e o discurso necessitam tanto da
circunvizinhança de outros quanto a fabricação necessita da circunvizinhança
da natureza [...]. A fabricação é circundada pelo mundo, e está em permanente
contato com ele; a ação e o discurso são circundados pela teia de atos e palavras
de outros homens, e estão em permanente contato com ela (ARENDT, 2009, p.
201).
Nos movimentos sociais, o fazer político é orgânico e traduzido em táticas de luta. É na
ação do debate coletivo que as experiências dos sujeitos confluem entre si e estabelecem seus
objetivos comuns. Compreender a trajetória de Carmen Silva como liderança social do movimento MSTC, é observar uma narrativa individual e coletiva em conjunto com as mudanças
políticas e sociais do contexto nacional. Os movimentos sociais são grupos fluídos, como a
biografia dos sujeitos, as mudanças históricas impactam em seu conjunto de práticas.
Os relatos de Carmen Silva, foram analisados nesta pesquisa através da abordagem da
história de vida, um recurso que traz a subjetividade e liberdade ao narrador para revelar sua
visão e significados das percepções sobre si e o coletivo, a sociedade e o momento histórico
em que sua biografia está inscrita. Para a antropóloga Ecléa Bosi (1987) narrar é um ato sensível que confronta a racionalidade tecnicista.
Por que decaiu a arte de contar histórias? Talvez porque tenha decaído a arte de
trocar experiencias. A experiência que passa de boca em boca e que o mundo da
técnica desorienta. A Guerra, a Burocracia, a Tecnologia, desmentem cada dia o
bom senso do cidadão: ele se espanta com sua magia negra, mas cala-se porque
lhe é difícil explicar um Todo racional. (BOSI, 1987, p. 42).
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Durante a narrativa o sujeito “revive” a experiência. A história de vida é imaginada e
relembrada, não apenas como fato ocorrido. Ao narrar revivemos emoções, acrescentamos
detalhes, que podem ou não ter ocorrido, passado e presente se interpõe. Nas falas públicas de
Carmen pude observar: Sua biografia, antes de entrar no movimento, situações precárias que
vivenciou, como se envolveu no movimento social em busca de moradia, as transformações
que passou junto com o movimento. Elaborações sobre questões de habitação, movimentos
sociais, políticas públicas, mulheres na política e planejamento urbano, são reflexões centrais
que constroem e sistematizam sua formação política em diálogo com o coletivo.
Carmen Silva tem um acervo interessante de entrevistas registradas na mídia impressa,
jornais eletrônicos e muitos vídeos disponíveis na plataforma YouTube. O movimento MSTC
aliado a seus parceiros, também possui registros relevantes de suas atividades online. A produção artística representa a “entrada” do sensível e da imaginação na trajetória de Carmen. São
eles um filme de ficção “Era um Hotel Cambridge” (2016) da diretoria Eliane Caffé, feito em
conjunto com os integrantes do MSTC onde Carmen atua, uma experiência da “Residência artística Cambridge” onde foram realizadas produções artísticas envolvendo os ocupantes e posteriormente o papel que a arte assume na “Ocupação Nove de Julho” enquanto uma ampliação
da rede de atuação do MSTC. O material coletado e analisado concedeu bases ao trabalho de
campo e aos objetivos da pesquisa, porém, estava planejado entrevistas com algumas mulheres
do MSTC e com Carmen Silva, com a escuta de seus relatos, através de perguntas livres sobre
seus processos de transformação.
PERCALÇOS: PESQUISA EM MOVIMENTO
Como relatei anteriormente quando conheci Carmen, esta passava por um processo criminal, anterior à queda do Edifício Wilton Paes. Neste primeiro processo Carmen foi absolvida em duas instâncias jurídicas. A primeira decisão favorável a Carmen saiu em janeiro de
2019 e depois em 14 de agosto de 2019. Em meio a esta situação ocorreu o acidente no Edifício Wilton, onde diversas lideranças dos movimentos de moradia foram novamente acusadas
de extorsão, e Carmen foi uma delas.
No dia 24 de junho de 2019, uma operação do Departamento Estadual de Investigações
Criminais do Estado de São Paulo (DEIC) pediu a prisão de 17 integrantes dos movimentos
sociais de luta pela moradia da cidade de São Paulo, o juiz Marco Antônio Martins Vargas
autorizou a execução de nove prisões temporárias. Os integrantes dos movimentos sociais
não foram convocados para prestar depoimento sobre um possível envolvimento na queda
do Edifício Wilton, eles foram acusados de extorsão e formação de quadrilha. Entre os nove
mandados de prisão estava o de Carmen Silva e de dois dos seus filhos Preta Ferreira e Sidney
Ferreira.
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Neste momento Carmen passa a viver uma situação de clandestinidade, minha pesquisa
de campo é alterada. Não posso perguntar por Carmen, a situação é delicada e traz lembranças
que não vivenciei, da repressão de uma ditadura militar. Não se podia encontrar Carmen, parte
de sua família estava presa, diversos pedidos de habeas corpus foram negados. Nunca tinha
visto Sidney na Ocupação Nove de Julho, porém Preta Ferreira era uma forte presença. Junto
de sua mãe, Preta atriz, cantora e ativista, abre o diálogo entre luta e arte na ocupação. Sua trajetória era um resultado de transformação entre coletivo e indivíduo. Em 24 de junho de 2019
Preta foi levada junto com Sidney e mais duas lideranças Edinalva Silva Pereira e Angélica
dos Santos Lima ambas do movimento Moradia Para Todos.
Os materiais coletados no campo, aliado a tudo que existia sobre Carmen em acervos
de vídeos e entrevistas se tornaram o centro dessa pesquisa. O trabalho “Alma de bronze” da
artista Virginia Medeiros durante sua participação na “Residência artística Cambridge” guiou
as percepções do diálogo entre Carmen e as mulheres do MSTC, junto da obra literária “A
ocupação” do escritor Julián Fuks lançada no final de 2019 que junto de Virginia integrou a
residência artística. Permaneci frequentando a ocupação, os eventos culturais e os debates políticos se intensificaram. O MSTC fortaleceu abertura da ocupação ao público, era necessário
que as pessoas pudessem estar ali e reconhecer o espaço, o movimento e as narrativas sobre as
ações criminais que enfrentavam. As figuras ausentes de Carmen e Preta são reelaboradas em
uma simbologia de resistência. Aparecem em camisetas, grafites na Nove de Julho, no livro de
Fuks e nas falas das mulheres do MSTC.
No dia 20 de novembro de 2019, após finalmente ter seu habeas corpus concedido, Carmen está livre e lança seu cordel “Cem dias de exílio” (2019) pela editora N-1, onde ela relata
o que aconteceu quando sua prisão foi decretada e como vivenciou seu período de exílio, assim
utilizo a narrativa de Carmen para abordar ao final de meu trabalho o processo de criminalização que Carmen e seus filhos atravessaram. Neste ponto Carmen inicia uma série de participações em eventos públicos, muitos querem escutar sua história e ela retoma sua agenda pública.
Todos os envolvidos no processo incluindo Carmen, não podem mais frequentar a Ocupação
Nove de Julho e possuem horários restritos de saída. O controle ainda é intenso sobre suas
ações, Carmen novamente está “afastada” do seu coletivo. Passo a acompanhar todas as falas
públicas que tenho acesso. Noto algumas mudanças no discurso de Carmen, a reafirmação de
que não calaram sua voz e que “todos possuímos uma mesma origem”.
No momento em que essa dinâmica se altera, outras questões surgem a pesquisa. O discurso de Carmen é porta-voz do movimento MSTC? Esta posição a define enquanto intelectual
política, produtora de um discurso que remeta a um projeto político cultural para seu grupo.
Reconheço que a escuta das falas, as entrevistas midiáticas e os materiais artísticos analisados,
representam uma “parte” da totalidade dos sujeitos participantes, não é possível ter exatidão
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nos sentimentos, sensações ou lembranças durante a escuta. Para o narrador, as experiências
se misturam, são esquecidas ou ressignificadas.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os sujeitos desta pesquisa possuem uma considerável produção de documentos para
análise, com discursos e produções culturais públicas, esta pesquisa não ficou presa ao campo
físico, a permanência aconteceu em todos os meios acessíveis. A pesquisa se constituiu em
uma exploração transversal, em que categorias presentes nas histórias de vida, se interseccionaram e promoveram o debate entre as estruturas sociais e práticas realizadas por Carmen e os
demais sujeitos.
O processo de identificação da reflexão e despertar da consciência num ato imaginativo,
é um trabalho interdisciplinar. A pesquisadora bricoleur, une método e técnica onde elementos
individuais da imaginação capturada, revela traços da estrutura social e fragmentos de mudança. Escutar Carmen é observar a sociedade e seus processos históricos em um recorte temporal.
Constatei que a formação política e histórica do movimento MSTC se intersecciona a biografia
de Carmen Silva. As ações de Carmen e a de seus parceiros impulsionam o MSTC. As definições sociais sobre o MSTC atribuem significados as trajetórias de todos seus componentes.
Apresentar “pulsões de mudanças” insurgentes, em ações de embates políticos e simbólicos em movimentos de transformação social, foi o objetivo principal de minha pesquisa.
Acredito que Mills ao refletir a urgência da “Imaginação sociológica” diante dos processos
de racionalização, procurava lançar questões que atravessam nossa atualidade. As práticas do
MSTC e Carmen Silva traçam planos além do que os controles difusos podem “ver”.
REFERÊNCIAS
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BEY, Hakim. TAZ: zona autônoma temporária. 1. ed. São Paulo: Veneta, 2018.
BOSI, Eclea. Memória e Sociedade: Lembranças de Velhos. 2a ed. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1987.
ERA o Hotel Cambridge. Direção de Eliane Caffé. São Paulo: VITRINE FILMES, 2016. (99
min).
FERREIRA, Carmen da Silva. A terra prometida (Cordel), São Paulo, N-1 Edições, 2019.
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______. Cem dias de exílio (Cordel), São Paulo, N-1 Edições, 2019.
FUKS, Julian. A Ocupação. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
GOHN, Maria da Glória. O protagonismo da sociedade civil: movimentos sociais, ONGs e
redes solidárias. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2008.
______. Teorias dos movimentos sociais. Paradigmas clássicos e contemporâneos. São Paulo:
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JORNALISTAS LIVRES, 31 janeiro 2019. Disponível em: <https://jornalistaslivres. org/dona-carmem-da-luta-por-moradia-e-absolvida-de-acusacao-injusta/>. Acesso em: 25 maio 2019.
MILLS, Charles Wright. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.
EVANS-PRITCHARD, Edward E. Bruxaria, oráculos e magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
“QUEM NÃO LUTA TÁ MORTO”. Autora Virginia Medeiros. Videoinstalação (2018), composta por 12 vídeos que apresentam os depoimentos de mulheres do movimento MSTC. Disponível em: < https://vimeo.com/virginiademedeiros>.
SILVA, M. A. C. C. Trajetória de luta das mulheres do MSTC: construção da imaginação
sociológica. 2020. 162 f. Dissertação (Educação, Arte e História da Cultura) - Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo.
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RIOS DE R-EXISTÊNCIAS: DIÁLOGOS DE UMA MARGINALIZAÇÃO INSTITUCIONAL EM CONTEXTO DE ABRIGAMENTO
Deanny Stacy Sousa Lemos1
deannystacy@gmail.com
Lilian Gabriella Castelo Branco Alves de Sousa2
gabriellaufpi@outlook.com.br
1 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí. Mestranda em antropologia pelo Programa de Pós Graduação em Antropologia- PPGANT/UFPI.
2 Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Piauí. Especializada em Supervisão e Gestão Escolar com Docência Superior pela Faculdade Excelência. Mestra em Antropologia pela Universidade
Federal do Piauí.
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Em 08 de julho de 2021, tivemos a oportunidade de conversar com Paulo, Marcos,
Pedro e João3,todos indígenas da etnia Warao que hoje vivem provisoriamente em um abrigo
cedido pela Prefeitura, localizado em um prédio da Emater. Além deste, há outros dois abrigos
que estão localizados no Centro Social Urbano - CSU e no Piratinga.
O povo Warao chegou em Teresina em meados do início de 2019, uma dinâmica de
mobilidade que tem se intensificado nas capitais nordestinas nos últimos anos. Desde a sua
presença migratória em 2014, vem ocupando algumas cidades brasileiras para fugir da crise
que se instalou na Venezuela e assim buscar melhores condições de vida.
Os Warao, que quer dizer gente de canoa, são falantes de uma língua também chamada
warao, oriundos de uma família linguística isolada e que tradicionalmente estão espalhados em
comunidades da região caribenha no Delta do Rio Orinoco, na República Bolivariana da Venezuela. Algumas dessas comunidades estão localizadas em uma região de terra, com acesso
ao moriche (palma do buriti), aos frutos silvestres, às pequenas roças e vivendo da caça e da
pesca. Há outros subgrupos distribuídos por regiões isoladas, com moradias de palafitas fixadas sobre o mar, para estes a alimentação tem sido baseada na pesca e na coleta do caranguejo
ou nas trocas desses suprimentos por outros.
Apesar de utilizarmos a nomenclatura “entrevista”, acreditamos que essa etapa tenha
sido ultrapassada, já que queríamos desde início que fosse uma conversa fluida e amena. Acreditamos também que toda fala está carregada de um tom político, pois não podemos esquecer
quem somos e os nossos ideais.
A princípio, o objetivo desta entrevista estava voltada para a sua forma organizacional
de vida e o modo de pensar no processo de saúde e doença. No entanto, nossa conversa em um
primeiro momento já foi direcionada à atual conjuntura e as violações que os Warao tem sofrido por parte da má gestão dos abrigos. O que despontou a perspectiva de que não há nenhuma
política pública efetiva para atender as demandas do povo Warao e que estes tem sofrido com
a tutela extrema ao passo que são desassistidos por qualquer projeto que os beneficie.
As violações contra os warao que estão nos abrigos de Teresina tem crescido exponencialmente, contenções já vinham ocorrendo anteriormente sem qualquer aviso prévio às lideranças e famílias Warao. Uma delas foi a redução dos alimentos, como os Warao basicamente
se alimentam de peixe e frango, esses dois itens que são tão primordiais em suas refeições,
foram cortados e os demais produtos, passaram a ser entregues em formato de cesta, cada vez
com menor quantidade. Houve a inserção provisória da guarda municipal e o chamado para
a polícia militar dentro dos espaços, muitas vezes, são acionados para agir com truculência e
autoritarismo contra os Warao.
3 Utilizamos codinomes para preservar a imagem dos entrevistados e evitar futuras perseguições da diretoria
do abrigo.
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Nos últimos cinco meses temos acompanhado novas denúncias de violações. O acompanhamento de saúde foi limitado, hoje, os próprios Warao precisam lutar contra sua dificuldade
de compreensão aos nossos sistemas de serviços. Principalmente, a barreira da comunicação
para conseguir um atendimento de saúde. E ainda precisam lidar contra o preconceito e os
estigmas, não somente da sociedade, mas também das equipes que atuam dentro dos espaços
de acolhimento.
Reiteramos que este momento, inicialmente denominado de entrevista, tomou maior
profundidade no instante em que não foi preciso uma pergunta chave para iniciar o diálogo,
mas apenas o próprio receio dos warao com a divulgação desse material chegar até às mãos da
Prefeitura.
Fonte: Desenho feito durante uma oficina com crianças Waerao. Arquivo pessoal
João: Gabi4… a Prefeitura vai saber que nós estivemos aqui pra fazer entrevista? O que va4 É importante deixar claro que uma das entrevistadoras, Gabriella de Sousa, trabalhou anteriormente em
dois abrigos que o povo Warao vive, por isso o tom é que foi desenvolvida a conversa de pessoas que possuem uma relação de amizade e confiança.
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mos dizer a eles? Porque depois eles vão falar muito [brigar] e nós não queremos isso.
Zabelê: Não. O que vocês vão falar aqui não é sobre a equipe. Outra coisa… se eles estão
questionando, mas o que vocês falam, na verdade, é um direito de vocês falarem o que acham
que devem falar. Vocês têm o direito sobre a escolha do modo de vida que querem manter,
mesmo que seja dentro do espaço da Prefeitura...é obrigação da prefeitura ceder um espaço
para vocês. Agora, a revista onde ela vai aparecer? - Os estudantes querem saber um pouco
mais sobre os Warao, vão ter acesso a essa revista. Mas vocês têm que ter uma ideia de que
isso é um direito de vocês. Ninguém pode dizer o que vocês podem fazer, é um direito de vocês
exigirem melhorias. E o que é que está acontecendo? Eles estão ameaçando vocês?
Paulo: É muita coisa, é muita coisa… Não estamos de acordo com muitas coisas. Está faltando muita coisa… não é como antes. Cada dia vão barrando. Vão barrando. Assim como está
acontecendo, se não falarmos nada só piora.
Zabelê: A tendência é sempre piorar.
Paulo: Um abrigo está muito pior do que o outro abrigo
Zabelê: Só que aí vocês não estão sabendo, porque existe a falta do contato. O Warao que está
aqui não se comunica com o Warao de outra cidade, não sabe o que está acontecendo e vão
ficar enfraquecidos. Vocês são um só, um grupo só, mas estão divididos por questões sociais,
por questões de necessidades…
Paulo: Sim, muita necessidade. Assim como eu ...segunda feira comprei quatro pacotes de
arroz. Eles [Semcaspi] dizem dois frangos, mas não tem…é só um frango completo. Duas
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metades, um frango só.
João: Mandaram...dois pacotinhos [frango] assim… ontem a gente recebeu só um frango.
Falaram que eram dois frangos. Mas é só a metade, dois, duas metades. Agora entregaram
quatro [receberam de doação]. E quando eu falei: “coordenador, a gente precisa de fruta,
melancia.”- O coordenador disse: “você não precisa de melancia, você não precisa de nada”.
Paulo: Não querem saber de tudo que está acontecendo no abrigo. É como se estivesse trancado, não tem saída. Quando um reclama… quando um fala não chega tão longe, fica ali mesmo [refere-se a repercussão da voz diante das reclamaçoes]. Falam assim: “sim sim, tá bom,
tá bom”, depois não falam mais nada do que está acontecendo no abrigo. Por não… isso fala,
fala, fala. Sempre falam a mesma coisa e nunca melhora, nunca melhora... sabem o que está
acontecendo e não querem fazer nada.
Pedro: Agora eu quero perguntar a ti sobre os projetos5. Como fazem esse projeto? O projeto
que eles fazem é para eles ou para nós? Eles não querem conversar comigo… Então não é
pra mim.
Zabelê: Então não é pra você… se eu não sento para conversar com a parte interessada e faço
tudo baseado pela minha cabeça, é pra mim… tiveram muitas denúncias cobrando a morte
desse bebê.. desse que morreu com diarréia. Porque, hoje, uma criança morrer com diarréia
é uma violência, é um tipo de violência… E vocês não vão perder abrigo, ninguém vai botar
pra fora, ninguém vai ousar a amedrontar se vocês estão denunciando com razão. Porque não
é comum ficar sem saúde!
5 Os projetos são formas de assistências que os Warao que estão dentro dos abrigos recebem.
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João: [relata a história de como seu sobrinho Euclide morreu] Assim falo… eu tenho uma
criança, quando levei a criança no hospital… quando entrei lá no hospital, a enfermeira perguntou: “cadê o pessoal que trabalhavam para vocês no abrigo?”. Eu disse “ não, lá não
tem nada”. O primeiro coordenador que trabalhava muito bem, mas saiu. Depois colocaram
outro. Francisco [taxista] falou, “ele saiu muito tempo, agora tem um novo, mas lá não tem
carro, não tem nada”, não tem ninguém para nós. Aí, ela [enfermeira]falou que não podia
trabalhar com o abrigo. Aí criança pega diarreia, de noite também, criança vomita... é muito
difícil pra nós.. Tem que ter uma pessoa que trabalhe bem com a gente. Trabalhar bem quando
é de dia, quando criança pega doença, diarréia, vômito e liga para lá [hospital]. Para falar
de nós… liga para lá para ver como está a criança [em caso de internação]. Eu falei lá no
hospital, falei que não tinha nada. Só nós que ficamos lá. Tem coordenador, mas não ajuda em
nada. Não tem carro. [Quando o carro foi solicitado:] O coordenador disse que só amanhã,
mas amanhã a criança poderia morrer. Meu filho pegou diarreia, eu comprei remédio, comprei tudo. Mas essa criança [referindo-se ao sobrinho, filho de Sofia] estava bem, ela estava
bem, então passou. Não estava vomitando… não estava com diarréia. Fui pra rua e trabalhei,
quando cheguei de novo, Sofia disse que ele estava chorando, tinha diarréia, antes não tinha
nada, mas agora estava chorando e eu falei com o meu pai pra levar pra rezar, levamos e ele
morreu.
Zabelê: Vocês não podem continuar esperando. Você [Guerrero] como aidamo, se Yovine está
bem e pode falar como uma forte liderança também, chama o Yovine, o Jorge Guerreiro pode
ser sua ponte, você [Guerrero] fala em Warao e ele [Jorge] traduz em português. O Roger, na
questão saúde, pode falar. Então vocês devem se montar, é a hora que vocês têm, porque eu
penso no caso do sr. Geronimo que tem tuberculose e está em tratamento…
João: Agora não está mais em tratamento, assim que outro coordenador saiu, ele [Geronimo]
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não fez mais tratamento.
Pedro: Não, não está mais. Acabou tudo.
João: Mecere fazia exame e agora não está mais. Nilselys [adolescente gestante] também não
está fazendo mais exames.
Zabelê: Essas pessoas estão todas sem tratamento?
Paulo: Quando o coordenador saiu, acabou todo o tratamento.
Fonte: Foto tirada durante um ritual no abrigo Emater. Arquivo pessoal
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Pedro: Por isso que estou perguntando. Antônio [coordenador] veio falando para mim, “Guerrero, vamos ter um projeto”. Por isso agora eu estou falando pra quê esse projeto? Para quê?
Ele não perguntou a mim, assim como você estava falando. Porque se fosse “vamos fazer um
projeto para a criança?” Agora sim, vamos fazer um projeto. Agora você quer criar projetos ,
não me pergunta e não avisa. O que é isso? Tem que avisar, assim como o outro coordenador
avisava: “Pedro, vamos fazer um projeto? Como você quer?”, - eu falava: “temos muitas
crianças, muitas doenças, [projeto para] criança para curar rapidamente”.Vamos fazer um
projeto? - Claro”. Agora, e aí cadê? Ontem6 mesmo passaram um projeto para criança brincar, assinou o projeto e não chegou nada, na volta não chegou, depois chegou outro projeto
para ensinar a criança, projeto de escola, que queremos também, mas não chegou nada. O
projeto deve ser pra eles. Porque não chega nada.
Zabelê: Então é agora que vocês não devem esperar mais nada. Se estão tendo dificuldades de
serem ouvidos, liguem para Funai e contem: “olha nós estamos com dificuldades, Gerônimo
está com tuberculose e não está recebendo medicação, e a tuberculose dele vai voltar, vamos
nos contaminar e morrer, porque ninguém aqui vai querer cuidar da gente. Estamos sem atenção e sem assistência.
Pedro: Ontem passei o dia ligando para a Renata [Funai], porém, chamou, chamou e nada.
Mas quem me falou foi Junior “vem, Guerrero, venha falar com a gente...” assim como estou
falando agora para ti. Eu falei para Antônio [coordenador]: “entrega um carrinho de mão
para transportar lixo, me dá dois ou três”, aí ele disse que era para esperar uma semana,
já passou um mês e não entregaram. Ontem também passamos dois dias, estávamos em uma
6 Durante toda a conversa será possível observar que o uso do termo “ontem” para localização temporal
está sendo utilizado para se referir a eventos que aconteceram há dias, semanas, meses e anos anteriores. Ou
seja, o ontem não faz referência a um evento anterior ao dia da conversa, mas em muitos momentos o termo
está sendo utilizado para descrever eventos no passado distante.
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reunião com… como se chama... Sebastián [da Alto Comissariado das Nações Unidas para
Refugiados-Ancur], passamos dois dias com ele…chegou falando bem warao, falando yakerara [está bem], kokotuka [todos]... Passamos dois dias se reunindo com ele. O outro [que veio
junto com Sebastián], compreende um pouco de Warao.. mas nós entendemos. Nos conhecemos e ele perguntou sobre a alimentação “Aí Guerrero, tem frango e peixe?” - Eu disse: “não
tem peixe, somente um frango que entregaram para uma semana”. Nós estávamos falando
todos os dias e nada… Ele [Sebastián] mesmo falou pra mim “Guerrero, fique tranquilo, eu
mesmo vou trazer um pouco.”. Ele trouxe três ou quatro frangos. Antes, a farinha de trigo
entregavam [Semcaspi] cinco pacotes, agora não. Agora só é três, dois de arroz, dois de macarrão, estão diminuindo.
Paulo: Eles acham que dá pra comprar com auxílio. Eu ganhei 150,00 de auxílio [emergencial], paguei 50,00 ao Raimundo [taxista]. Com 100,00 comprei macaxeira, pão e refrigerante, e acabou... Amanhã já não tem.
Pedro: Ontem eu perguntei “Antônio, agora eu quero perguntar pra ti. Agora quero falar
para você sobre o que queremos. Fazer um projeto próprio para o Warao, queremos também
trabalhar na Emater, queremos trabalhar [faz referência ao uso da terra para plantio], podemos limpar tudo lá. Mas toda essa gente está fazendo projetos que não são para nós. Ontem
também queríamos discutir sobre o cemitério, e me falou que iriam fazer em dois meses um
projeto para o cemitério. Mas nós queremos o dinheiro para o cemitério [pagar para fazer a
cova]. O bebê da Nilselys morreu, falaram para pagar... para comprar o terreno, mas tem que
levar um documento do cemitério, aí tem que levar o documento original de quem morreu e
aí faz a cova
Zabelê explicou sobre o processo da compra do terreno e da construção de sepultura, já que
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os warao não sabiam que tinham que pagar pelo terreno.
Pedro: Então queremos também falar com a prefeitura sobre as pessoas que morreram, porque não tem projeto.
Zabelê: Como foi a chegada de vocês no abrigo e o que a prefeitura prometeu?
Pedro: Ontem tínhamos dois abrigos, comíamos bem, entregavam tudo, na semana seguinte
também, muito bem. Porém, agora o que estamos passando... este ano… não tem nada. Já
passamos por três abrigos e não temos nada. Não temos sabão, não temos água sanitária e
nem papel, não entregam nada.
Paulo: Não entregam nada. Não pode, assim como eu que tenho seis, sete filhos...
João completa dizendo: “acaba rapidinho.”
Paulo: confirma: “acaba rapidinho.”
Pedro: Por isso agora eu falei, brigando com o Santiago [coordenador do CSU], “o que se
passa?!” – Santiago respondeu: “não, aí tem pouco, aí tem pouco. Tem pouquinho guardado
para vocês.” – Guerrero em diálogo com Santiago, responde: Então manda, entrega pra eles
aí.
Zabelê: Então vocês precisam registrar isso, tirar foto, fazer vídeo. Porque vocês não podem
ser mantidos nessas condições. A sociedade não sabe dessa realidade que vocês vivem, por
isso o que falam dos Warao são estigmas, de que são alcoólatras, pedintes, mas não entendem
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que o álcool é apenas uma forma que os Warao encontram para continuar existindo, é uma
saída, porque falta expectativa de vida.
Paulo: Ah, sim...sim, é verdade. Agora estamos indo na rua, quarta, quinta, sexta, sábado e
domingo.
João: Não, é quinta, sexta, sábado e domingo.
Paulo: Quinta, sexta, sábado e domingo. Quatro dias! Desses quatros dias que eu saio na rua,
você sabe quanto eu consigo?! -150, 150. Quatro dias! Das 7 às 13 horas, às vezes 12 horas,
150, quatro dias, às vezes que eu consigo. O que dá pra comprar? Quando chego lá [referindo-se ao abrigo] não tem frango, a gente tem que comprar frango. E lá perto não vende. Só
supermercado... como é... a metade. Duas coxas....
João: é 32,00; 36,00
Paulo: 32,00, às vezes, a coxa, às vezes, a asa, depende. Isso a gente compra um dia, dois
dias, e o dinheiro acaba. Na segunda, já não temos mais. Na segunda, chega a cesta básica à
tarde, às 4 horas, o que é que vamos comer pela manhã? - Se não temos mais nada! Às vezes,
chega às 3 horas da tarde. Algumas pessoas não tem dinheiro pra comprar e vai comendo
assim sem nada.
João: Na segunda pela manhã só tem arroz e tem que comer só arroz.
Zabelê questiona sobre a quantidade de famílias na Emater e Paulo responde que são vinte
e sete.
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O taxista que os trouxe para a entrevista, cujo nome é Raimundo, levantou uma outra informação importante, ao dizer que soube através dos Warao que outras famílias estavam
chegando, já estavam no barco.
Paulo: E agora o que vamos fazer? De agora em diante o que vamos fazer... Se comprarmos
frango... vamos gravar, assim, dizendo que esse frango não é o que está entregando a Prefeitura, é do dinheiro que trabalhamos na rua e aqui está. Tudo, tudo que compramos com
dinheiro, nós vamos gravar, vamos tirar foto. Lá fora mesmo, na bodega [referindo-se ao
supermercado], quando estivermos lá dentro do comercial, “ver, estamos comprando isto, ver
aqui , aqui estamos comprando, sim”.
Zabelê: Vocês podem tirar foto daquele papelzinho amarelo, é o comprovante da compra.
João: É... é fazer foto das compras (e pronuncia o restante da frase em warao).
Paulo: Aí o coordenador falou assim “você bebe cachaça, então tem dinheiro para comprar
cachaça e não tem dinheiro pra comprar frango”, o que é isso? Se você não ver todo dia comprando frango, todo dia comprando para a criança, dando biscoito, laranja, manga, assim
compramos e ele não vê. Quando vê uma sacola lá do comercial, ele fecha os olhos para não
vê, “eu não vi nada, não vi venezuelano comprando nada”, mas quando levamos a criança
para rua, aí se vê, todo mundo vê, claro!
Zabelê: Quando leva criança para rua reclama...
Paulo: sim...
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Zabelê pergunta se ainda há pressão para que as crianças não sejam levadas para as ruas?
(Esta pergunta está associada a um acontecimento nos meses anteriores, em que o Direitos
Humanos junto com a Semcaspi acionou a Guarda Municipal e a PM para uma fiscalização às
4h30 da manhã, surpreendendo as venezuelanas que se preparavam para sair para trabalhar
na rua.
Pedro: Agora não. Sebastian [da acnur] falou “deixa tranquilo criança, deixe que saia para
a rua, eles estão passando fome”, assim ele falou.
Zabelê: Isso é uma questão de traço cultural, mas o Conselho Tutelar… pela lei a ECA, a
criança ir para a rua, é considerado uma exploração de trabalho, porém quando a gente
passa nas ruas, o que a gente vê? – que elas estão sentadinhas no chão. Elas não estão trabalhando, elas estão sentadas no chão, tanto é que tem suco do lado, tem biscoito para a criança
ficar comendo, para ficar se alimentando. Quando vocês começaram a vir pra cá, em 2019,
eu sempre via quando tinha uma criança... aqui perto da ufpi, tinha uma mãe com a criança,
mas a criança estava sentadinha e a mãe estava no sinal. Então como podem falar que vocês
estão usando a criança para ganhar dinheiro?
Paulo: Às vezes, motorista não dá, quando motorista dá... ver a criança, chama e dá assim
dinheiro para ajudar, “vem criança toma uma ajuda aí”, aí vê outra pessoa, pensa que está
usando a criança pra pedir. Às vezes, na rua, não dá comida assim, minha criança fica comendo, aí sim, Prefeitura se põe cega, porque não grava? Vê: “criança está comendo na rua,
recebendo ajuda de motorista”. Aí não diz nada e não vê nada tão pouco.
Zabelê: Porque não interessa.
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Paulo: Não interessa
Zabelê: É, ela só quer ver e de fato informar.
Paulo: A Prefeitura fala, fala, fala e nunca escuta o Warao.
Zabelê: Então se a Prefeitura está falando muito e vocês estão cansados de ouvir, pois agora
vocês devem falar e tem muitos órgãos para escutar vocês.
Paulo: Porque não dá trabalho para um, não dá trabalho diretamente, a Prefeitura tem que
entender que a gente também trabalhava. Como a gente comia? Como a gente conseguia dinheiro? como? Não é pedindo como estamos aqui, nós viemos e estamos aqui em outro país,
porque não tivemos saída. Como trabalhar? Se tu ver uma pessoa que ajuda, “ei, venezuelano, vamos trabalhar? – Vamos, porquê não? Vamos trabalhar. Porque quando isso acontecia
na Venezuela, vinha um criolo “ei warao, vamos trabalhar? – Vamos! Sim, vamos trabalhar
para ganhar dinheiro,e com esse dinheiro comprava comida. Agora quando chegamos aqui
não há uma pessoa que chame um venezuelano para trabalhar, “vamos fazer isso! – Vamos,
vamos!”, não temos! E por isso saímos para a rua pedindo dinheiro. Por isso no Brasil, o
Warao venezuelano não sai da rua, é pedindo dinheiro. Não temos como conseguir dinheiro.
Zabelê: Se estão pedindo dinheiro é porque não estão trabalhando.
Paulo: Sim. Não estamos trabalhando. Se estivermos trabalhando, porque vamos sair pra
rua? Porque?
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Zabelê: A Prefeitura está impedindo?
Paulo: Já não quer entender. Um fala, mas como é, falta uma pessoa que apoie. Um fala, fala,
mas não está escutando. Estamos precisando de ajuda somente, ajuda...se alguém não puder
ajudar, não ajuda. Mas nós não estamos brigando, estamos lutando por melhoria de vida. Mas
não conseguimos, por isso estamos na rua... na rua pedindo, por isso saímos na rua pedindo
ajuda. Conseguimos ajuda de cesta básica também, alguma pessoa dá assim, por isso, quando
a mulher está na rua, e o homem não tem trabalho tem que sair pra rua também, se não tem
trabalho não tem como ficar em casa. Os dois trabalhando ganham um pouco mais.
Zabelê: Na comunidade Mariusa, cada homem e mulher tinha atividade para ser feita? O
homem pescava e a mulher, por exemplo, coletava, fazia alguma coleta?
Marcos: Só pesca, só pesca e a mulher fica em casa. E o homem sai pra pescar. Também...
agarramos caranguejo no mangue, fazíamos cinco sacos de caranguejo
Zabelê: E as coletas de frutas?
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Fonte: Desenho feito durante uma oficina com as crianças Warao. Arquivo pessoal.
Paulo: Não tem nada, lá não tinha uma fruta. Lá só tinha fruta quando criolo vinha da cidade,
e quando chegava fruta a gente conseguia.
Zabelê: E quando houve a chegada dos missionários, também chegou em Mariusa?
Paulo: Na comunidade Mariusa nunca chegou. Muito longe, Leva um dia pra chegar.
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Zabelê: Mas tinha comunidade que recebia as visitas das missões?
Fonte: Desenho feito durante uma oficina com as crianças Warao. Arquivo pessoal.
Paulo: Na comunidade Mariusa não estava recebendo não, mas havia outra comunidade,
ainda tem. Que tem a presença da igreja... católica, entra criolo assim, que é católico, não tem
muito tempo, mas que às vezes, fala Warao, fala quatro idiomas, inglês assim, aprende. Tem
alguma comunidade.
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Fonte: Xamã Lauterio rezando. Arquivo pessoal
Zabelê: Existiam atividades de artesanato? Cestaria?
Paulo: Alguma comunidade sim, mas em comunidade Mariusa não tem esse material, não tem
em Mariusa, em comunidade Mariusa não tem a palma de buriti, em outra comunidade sim
que tem a palma de buriti que se faz isto pra fazer cesta, cesta assim. Na comunidade Mariusa
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não existe essa palma, mas em outra comunidade sim, tinha essa palma que dá pra fazer cesta,
rede.
Zabelê: Então vocês viviam basicamente viviam da pesca e do caranguejo?
João: Isso.
Marcos: Município de Tucupita... e três municípios, aí sabe fazer cesta, sabe fazer tudo. O
Município de Tucupita/Mariusa não sabe. Somente pesca e caranguejo.
Paulo: Pesca e caranguejo só em Mariusa. Agora coleta, planta...
Marcos: É na comunidade do Plácido, do Yovini (Araguaia).
Paulo em referência às comunidades dos nomes citados, diz: Lá planta, planta.. banana, macaxeira, a gente chama ocumo...
Zabelê: O que é ocumo?
Paulo: aquele que a gente saca da terra, tira assim já – gestualmente, Roger, mensura o tamanho do que seria ocumo – esse tipo que...
João: É a batata.
Paulo: É batata. A gente chama assim, ocumo. Lá é grande assim – novamente gesticula,
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mostrando o tamanho da batata doce. – Aqui, nós vimos, aqui também é. Aí lá também planta,
aí lá é macaxeira, banana, ocumo, melancia.... outro mais... abóbora, não? Como se chama...
milho! Outra fruta mais que parece macaxeira... melão. Esse melão. Esse também, aí muito
planta.
Zabelê: Seria muito bom se a Emater cedesse esse espaço para plantio.
Paulo retorna a descrição de plantação nas comunidade: e também ajeduzia.. é como alinho
de cebola, tomate, tem outra…. mais… pimentinha, puro pequenininha
Zabelê: Vocês tinham acesso a esses alimentos através da venda dos peixes e caranguejos,
precisavam ir até a cidade para fazer a venda?
Paulo: Não. Chegava um comprador na comunidade. Porque não tínhamos motor para chegar até a cidade.
Zabelê: Os criollos chegavam até a própria comunidade?
Paulo: Chegavam, já desciam, compravam o caranguejo e vendia aí mesmo. Porque não tinha
como chegar até a cidade. Às vezes trocávamos a comida.
Zabelê direciona a pergunta aos quatros se eles nasceram em Mariusa ou foram morar em
Mariusa [como o casamento é matrilocal, o homem deve viver com a família extensa da companheira e isso poderia ser um motivo para terem vivido em Mariusa]?
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João, Marcos e Pedro confirmam, exceto Paulo.
Paulo: Eu não, eu nasci à parte de Mariusa, nasci em Del Pueblo.. Del Pueblo Blanco, é uma
comunidade já, não é uma cidade tão pouco, é uma comunidade, é um caño, já é assim, – pisa
forte no chão – é terra, é terra assim. Quando comecei a estudar, já comecei a trabalhar também. Terminei tudo, terminei o 6 grau, – na Venezuela, esta é a última série escolar – não tinha
mais ninguém que me ajudasse a continuar a estudar, então comecei a trabalhar com bovino,
sabe?! Sacar, ordenhar a vaca, depois eu fui para outra cidade. Aí sim, da comunidade já entrei na cidade, comecei a trabalhar com criollo, eu não falava muito espanhol, só puro Warao.
Não falava muito, mas entendia. Aí já aprendi a falar espanhol. Assim como agora, cheguei
no Brasil, não sabia nada, não entendia quando falavam, agora não.. então é assim que nós
estamos passando aí.
Zabelê: Os Warao são produtores de canoa?
João: Lá tem muita canoa, mas nós não fazemos, mas outros Warao fazem, porque nós não
tínhamos pau pra fazer canoa. Só quando chegava de lá, com o alimento, aí sim.
Marcos: Só em outra comunidade que fazem canoa. – Mostra um vídeo no youtube de como
iniciar o processo de criação da canoa, desde a derrubada da referida árvore, própria para se
fazer a canoa, o processo do corte da madeira, o fogo.
Zabelê: Vocês sabem o nome da árvore?
Paulo: Katikamo... Aipelon
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Logo após falar da árvores nativas, Marcos nos mostrou alguns vídeos no Youtube de como era
feita a derrubada das árvores para produção de canoas, bem como, nos mostrou algumas fotos
das casas em que viviamww. Devido a comunicação ter ocorrido com bastante tranquilidade,
os Warao conduziram a conversa com bastante e leveza e em alguns momentos, fugimos das
questões para assuntos triviais. Agradecemos imensamente ao Pedro, João, Paulo e Marcos por
essa conversa.
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