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APRENDER E
ENSINAR SOB
A ÓTICA DA
TEORIA DA
MODIFICABILIDADE
COGNITIVA
ESTRUTURAL DE
FEUERSTEIN E
DA PEDAGOGIA
FREIREANA
LEARNING AND TEACHING FROM THE PERSPECTIVE OF FEUERSTEIN’S
THEORY OF STRUCTURAL COGNITIVE MODIFIABILITY AND FREIRE’S
PEDAGOGY
APRENDER Y ENSEÑAR DESDE EL PUNTO DE VISTA DE LA TEORÍA DE
LA MODIFICABILIDAD COGNITIVA ESTRUCTURAL DE FEUERSTEIN Y DE LA
PEDAGOGÍA FREIREANA
Arnaldo Nogarol
Roque Strieder2
Rute Rosângela Dalmina3
170
Disponível em: www.univali.br/periodicos
ISSN: 1984-7114
Doutor em Educação pela UFRGS. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação Universidade do Alto Vale do Uruguai (URI) - Frederico Westphalen – RS Brasil.
l
Doutor em Educação pela PUC/SP. Docente do Programa de Pós-Graduação em
Educação da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC) - Joaçaba - SC –
Brasil.
2
3
Mestranda em Educação pela Universidade do Alto Vale do Uruguai (URI) - Frederico
Westphalen – RS - Brasil.
Resumo: A teoria da modificabilidade cognitiva estrutural
se fundamenta na crença de que todo ser humano é
capaz de aprender desde que esteja aberto às mudanças,
independentedesuaidade,condiçãogenéticaouexperiência
de vida. Partindo dessa premissa, este artigo, fruto de
pesquisa teórica, aborda possibilidades de a mudança
cognitiva estrutural dar-se de forma similar ao que ocorre
nas mudanças naturais e contínuas dos aspectos biológicos
cronológicos de uma pessoa, sendo que a diferença entre
ambas estaria no fato da primeira ser opcional; e a segunda,
determinada. A partir desta predisposição do sujeito,
surgem novas formas de aprender e ensinar que podem
ser incorporadas ao exercício cotidiano da prática docente
para que este possa contribuir com sua modificabilidade
cognitiva. Para corroborar com essa perspectiva, buscaramse nos princípios pedagógicos da pedagogia freireana
bases teóricas que fundamentam os saberes necessários à
adoção desta prática. A modificabilidade cognitiva ocorre
quando são criadas as condições adequadas, sejam elas
da parte do professor ou do estudante, para isso se exige
a superação da pedagogia conservadora que impede a
autonomia, o diálogo e a criticidade, princípios basilares da
pedagogia de Freire e considerados elementos essenciais
para gerar a modificabilidade cognitiva estrutural.
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Palavras-chave: Modificabilidade; Formação Docente;
Prática Pedagógica; Ação e Reflexão.
Abstract: The theory of structural cognitive modifiability
is based on the belief that every human being is able to
learn, provided they are open to change, regardless of age,
genetic condition or life experience. Based on this premise,
this article, which is the result of theoretical research,
discusses the idea that structural cognitive change is
similar to the natural biological and continual changes
that occur in a person, over time. The difference between
them lies in the fact that the first is optional, while the
second is predetermined. Based on this predisposition of
the subject, new forms of teaching and learning emerge
that can be incorporated into the daily teaching practice,
so that they can contribute to the student’s cognitive
modifiability. To corroborate this perspective, we looked
to the pedagogical principles of Freire’s, for the theoretical
bases underlying the knowledge necessary for the
adoption of this practice. Cognitive modifiability occurs
when the right conditions are created, whether by the
teacher or student. For this, it is necessary to overcome
the conservative pedagogy, which prevents autonomy,
dialogue and criticism, all of which are basic principles of
Freire’s pedagogy, and are considered essential elements
for generating structural cognitive modifiability.
Keywords: Modifiability; Teacher Training; Pedagogical
Practice; Action and reflection
Resumen: La teoría de la modificabilidad cognitiva
estructural se fundamenta en la creencia de que todo ser
humano es capaz de aprender cuando está abierto a los
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Disponível em: www.univali.br/periodicos
ISSN: 1984-7114
cambios, independientemente de edad, condición genética
o experiencia de vida. Partiendo de esa premisa, este artículo,
fruto de investigación teórica, aborda posibilidades de que
el cambio cognitivo estructural pueda darse de forma similar
a lo que ocurre en los cambios naturales y continuos de los
aspectos biológicos cronológicos de una persona, estando
la diferencia en el hecho de que la primera es opcional y
la segunda determinada. A partir de esta predisposición
del sujeto surgen nuevas formas de aprender y enseñar
que pueden ser incorporadas al ejercicio cotidiano de la
práctica docente para contribuir con su modificabilidad
cognitiva. Para corroborar esa perspectiva, buscamos en
los principios pedagógicos de la pedagogía freireana
bases teóricas que fundamenten los saberes necesarios a
la adopción de esta práctica. La modificabilidad cognitiva
ocurre cuando son creadas condiciones adecuadas, ya sea
por parte del profesor o del estudiante, y para ello se exige
la superación de la pedagogía conservadora que impide la
autonomía, el diálogo y la criticidad, principios basilares de
la pedagogía de Freire y considerados elementos esenciales
para generar la modificabilidad cognitiva estructural.
Palabras clave: Modificabilidad; Formación Docente;
Práctica Pedagógica; Acción y Reflexión.
Introdução
s relações entre formação e trabalho passaram nos últimos 20 anos
por aceleradas mudanças que atingem as atividades econômicas,
sociais, culturais e políticas até os dias atuais. O reflexo dá-se direto
no mundo do trabalho e no contexto educacional. Educar na sociedade da
informação representa o que Lévy (2000) afirma ser o atual momento, a
representação de uma revolução contemporânea das comunicações que teve
origem com o aparecimento do ser humano na face da terra.
A
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No cenário contemporâneo a sociedade é marcada por uma instabilidade de
valores e saberes. Conhecimentos desaparecem, transformam-se e se renovam,
desafiando a capacidade do indivíduo de se adaptar e inovar para garantir seu
espaço como ser humano, sujeito social e trabalhador. Freire (2007) escreve
que uma educação preocupada com a formação do trabalhador perpassa
a formação para um posto de trabalho, mas propõe formação consciente e
crítica, de caráter político, com o intuito de promover novos modos de estar
no mundo, de pensar, de sentir e de agir.
No ideário político, representado pelos segmentos governamentais, algumas
iniciativas têm demonstrado estabelecer as bases nas quais devem ser pensadas
políticas de educação para dar conta da formação para novos espaços e postos
de trabalho. No documento apresentado pela Cepal/ Unesco (1992), fica notória
a combinação entre produção e acumulação de conhecimento como sendo força
que impulsiona e promove o desenvolvimento, gerando uma nova economia da
educação. A partir dessa economia se reconfigura uma nova teoria para o capital
humano, cujo termo “educação” está associado à instrução e à treinamento,
para gerar mais capacidade de produção, e o desenvolvimento de competências
focadas ao saber fazer, o que se considera ser uma parte do trabalho da escola.
A outra está relacionada ao mundo da vida e do seu sentido, o que demanda
uma educação que esteja voltada para aprender a ser.
Contrapondo o modelo de educação voltada para a aplicação de teorias
que orientam a “ensinar a fazer”, que não trabalham a compreensão, e o
entendimento mais profundo em níveis cognitivos mais avançados, “[...] a teoria
da modificabilidade cognitiva estrutural apresenta a modificabilidade como uma
mudança estrutural que se processa na mente de uma pessoa” (FEUERSTEIN,
2013, p. 241), consequentemente mais propícia a ser duradoura e incorporada
à dinâmica da vida pessoal. Pode-se constatar, por meio de alguns conceitos
de inteligência vigentes entre os anos de 1940 a 1950, que consideravam a
inteligência inata e mensurável através de testes padronizados, descartando-se
qualquer tipo de teoria ou crença que sustentasse a inteligência como dinâmica,
modificável e construída a partir de múltiplos fatores que podem ser trabalhados
e desenvolvidos no nível cognitivo.
A partir dessa visão, Feuerstein qualificou a modificabilidade como
cognitiva, considerando aspectos cognitivos, emocionais e motivacionais do
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comportamento humano. A modificação de uma parte implica a mudança
do todo, é uma relação dinâmica, que age e interage com a pessoa no seu
ambiente sociocultural. É uma relação que nunca é neutra, e sim caracterizada
por vários elementos interconectados que se afetam mutuamente (FEUERSTEIN,
R., FEUERSTEIN, R.S. FALIK, L.H., 2014).
A partir deste contexto, descrito por Feuerstein, pretende-se trabalhar o
conceito da teoria descrita pelo próprio autor, em que a Modificabilidade Cognitiva
Estrutural é o conceito central de um esquema teórico cujo propósito é explicar as
diferenças individuais no desenvolvimento cognitivo. Apoiando-se no pressuposto
de que a educação promove o desenvolvimento do indivíduo, por meio do
meio físico e cultural em que está inserido, e que tem efeitos diferenciadores na
constituição física emocional e intelectual de cada um, aportar-se-á nas ideias
de Freire para fundamentar nossa crença em uma prática pedagógica que,
guiada pela problematização, pelo diálogo, pela crítica, pelo olhar aguçado da
esperança, possa contribuir com a mudança necessária na inteligência do sujeito,
possibilitando-lhe novos aprendizados, compreensões do mundo e construções
de sentido (FEUERSTEIN, R., FEUERSTEIN, R.S. FALIK, L.H., 2014).
reflexões acerca das mudanças no ensInar
e no aprender
Historicamente falando, a partir das décadas de 1980 e 1990, ampliaram-se
os debates acadêmicos sobre as implicações da emergência da formação de um
novo trabalhador, incorporando-se ao discurso uma postura de flexibilidade, de
proatividade e de autonomia. Em tempos de mudanças, se o sistema educacional
não reagisse, demonstraria fragilidade, morosidade e omissão. Foi um alerta para
reformular o currículo, repensar a função social da escola e contemplar novas
competências e habilidades comportamentais que poderiam ser desenvolvidas
durante a formação.
Até a década de 1990, o termo Formação de Profissionais da Educação não era
usual para identificar a formação dos agentes que atuavam na educação escolar. O
termo “formação de professores”, em cursos de licenciatura, constava nos diplomas e
nos projetos políticos pedagógicos das instituições, mas estava pouco disseminado
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entre os professores e estudiosos. A partir da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional de 1996, a expressão foi difundida, prova disto é que se dedicou o artigo
62, Título V – com a denominação “Formação de Professores”, ao tema.
A expressão “formação” conduz a discussão para o sujeito da educação,
personifica o que antes era impessoal - “educação”, expressão genérica e
abrangente que abriga inúmeras possibilidades. Freire (2007) destaca que não é
possível fazer uma reflexão sobre o que é a educação sem refletir sobre o próprio
ser humano. Formação pressupõe educar. Na sua visão, a formação é entendida
como uma ação mais profunda e integral da pessoa, levando em consideração
todos os saberes (do saber ser ao saber fazer). A formação é permanente, é
uma extensão da vida porque compreende necessidades sociais e pessoais.
Se o ser humano é um ser que vai fazendo-se, construindo-se ao longo de
sua existência, de suas escolhas, a educação torna possível o esclarecimento
sobre as mesmas e elucida suas possibilidades. Daí a importância de vivenciar
processos educativos, sejam eles formais ou informais, que abram as avenidas
fundamentais da humanização e da contínua aprendizagem. Aprender e viver
possuem a mesma gênese e identidade, estão no mesmo cenário, pois o viver
pressupõe o aprender para não perecer e o aprender devolve ao viver a beleza
de novas descobertas e descortina suas inúmeras possibilidades. Neste contexto,
o professor situa-se como aquele que participa da experiência do viver e do
aprender simultaneamente. Como não se nasce professor, torna-se professor. A
consciência desta tarefa é um processo adquirido durante a formação, seja por
meio da aquisição epistemológica, seja pelas experiências de humanização.
Ainda na visão do autor citado, ensinar exige reflexão crítica sobre a prática,
o exercício da docência envolve movimento dialético entre o fazer e o pensar, o
pensar sobre o fazer. Um modelo pedagógico condizente com o fazer docente
pauta-se na valorização das experiências pessoais dos professores, nas vivências
e na superação da dicotomia de que curiosidade ingênua não pode se tornar
curiosidade epistemológica.
É preciso, por outro lado, admitir que a formação carrega a responsabilidade de
propiciar o desenvolvimento técnico-científico, pedagógico e humano, balizado
por uma postura ética nas relações humanas. Por esse motivo ela não poderá
acontecer de forma isolada, sendo olhada apenas por olhar externo, periférico,
sem levar em consideração a estreita aproximação entre o sujeito e o meio. A
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ISSN: 1984-7114
formação permanente ganha significado quando é reelaborada pelo seu autor e
assumida como indispensável para o crescimento e desenvolvimento humano.
A ação educacional de Freire (2007) – que viveu e lutou por questões
essenciais de maneira simples – estava ancorada na educação do humano, a
qual deve nascer da interrelação de homens e mulheres com a reiterada ideia de
que ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os seres humanos se
libertam em comunhão. Seu objetivo é que os indivíduos tenham consciência do
seu papel, das relações que existem entre o eu e o outro, do viver e do produzir,
das mudanças que surgem a partir da intervenção no mundo.
Ao se considerar este processo de constituição dos sujeitos, reconhecidos
como seres humanos, com identidade, com amor-próprio e em contínuo
construir-se como cidadãos, legitimam-se novas posturas diante do educando,
e assume-se e atribui-se outro sentido às relações entre educador e educando;
adotam-se novas posturas, admitindo que novos saberes e experiências são o
esteio para novas buscas, e um possível encontro de saberes.
O propósito inicial de criar novas formas de aprender e ensinar, a partir da
teoria da modificabilidade cognitiva estrutural, traz Freire (2007) ao cenário de
Feuerstein (2013), cujo processo de aprendizagem humana envolve diálogo,
intenção e amor. Para ambos esses itens têm o mesmo peso e valor e são um
processo que não acontece isolado. Ele se alimenta e sobrevive em uma pedagogia
fundada na reciprocidade, na ética da alteridade, no respeito à dignidade e na
própria autonomia do educando.
A Teoria da Modificabilidade Cognitiva Estrutural fundamenta-se na crença
de que todo o ser humano é capaz de aprender desde que esteja aberto às
mudanças, independente de sua idade, condição genética ou experiência de vida.
Nessa perspectiva, torna-se possível a mudança de pensamento que leva a mudar
atitudes, comportamentos e posturas diante da vida. A partir da incorporação
de novos hábitos e redirecionamento para novos olhares, o professor colocase numa condição de aprendente, reflexivo e autônomo, assumindo o seu fazer
pedagógico como um ato político. Na prática pedagógica ele age embebecido
destes princípios e os dissemina por meio de sua ação no coletivo da sala de aula,
criando condições, instigando e despertando nos estudantes a condição de ser
“aprendente” e “ensinante” a partir da mudança de sua condição em função das
experiências vivenciadas no contato também com o mestre em sala de aula.
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Perante as dificuldades do exercício da docência, Feuerstein (FEUERSTEIN,
R., FEUERSTEIN, R.S. FALIK, L.H., 2014) aponta a necessidade de o professor
conscientizar-se de que ele próprio é modificável e de que a capacidade de
mudança do cérebro é definida como uma opção, ou seja, é sua decisão querer
mudar ou não. Conforme destaca o autor, aceitar a mudança é um atributo
indispensável à transformação do comportamento e das relações que permeiam
o processo ensino-aprendizagem, é um componente essencial rumo à superação
das dificuldades.
Na visão dos autores Feuerstein (2013) e Freire (2007), a pedagogia da
autonomia oferece uma aprendizagem fundida em saberes relacionados ao
humano, às relações, às trocas e ao respeito pela diversidade. É uma prática
necessária ao fazer docente, pois requer não somente o saber fazer, mas,
acima de tudo, uma forma de ser e de agir, com valores éticos e morais. A
identificação do professor com a aprendizagem da pedagogia da autonomia
exigirá mudanças profundas na sua prática, e mudanças direcionadas à sua
prática educacional escolar de todos os níveis em que se pressupõe um novo
modelo de escola. A aceitação desta necessidade passa pela ressignificação
do papel da escola; professores e comunidade escolar trabalhando juntos, em
razão dessas conquistas. Em decorrência disso, as mudanças educacionais serão
estendidas para outros contextos sociais, possibilitando novas formas de ação
social e desempenho de papéis sociais dos egressos da escola. A escola, sabendo
disso, deve precaver-se para o perigo das ideologias e da reprodução social.
Freire (2007) previu na pedagogia da autonomia um critério de aprendizagem
docente, que denominou de: ensinar exige reconhecer que a educação é
ideológica. O autor usou uma analogia comparando a miopia a uma manhã
orvalhada, na qual mal se vê o perfil do cipreste. “A própria miopia que nos
acomete dificulta a percepção mais clara, mais nítida da sombra. Mais séria ainda
é a possibilidade que temos de docilmente aceitar que o que vemos e ouvimos
é o que na verdade é, verdade distorcida” (FREIRE, 2007, p.126).
Nesse critério o autor faz um alerta do quanto a realidade deixa míope o ser
humano, e cuja preocupação com a natureza humana fica desproclamada pela
falta de interesse humano. Argumenta ainda que, diante da realidade em que se
encontra, deve emergir do ser humano o desejo, a intenção e a vontade de mudar,
pois “[...] nenhuma teoria de transformação política social do mundo me comove
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sequer, se não parte de uma compreensão do homem e mulher enquanto seres
fazedores da História e por ela feitos, seres da decisão, da ruptura, da opção”
(FREIRE, 2007, p.129).
Sobre a educação ideológica, até os dias de atuais a instituição escola é
reconhecida pela sociedade como um lócus para a transmissão do conhecimento
acumulado, necessário para a formação do indivíduo como pessoa de relações.
Cabe à escola decidir a direção e a finalidade desta formação. Recai sobre a educação
a incumbência da formação de professores, que são alinhados teoricamente e
politicamente com propostas pedagógicas que podem ser inovadoras e libertadoras
ou conservadoras e ideológicas. Em outras palavras, pode ser o suporte para a
consciência libertadora e transformadora ou alienante e massificadora.
Sob esse ponto de vista, os autores Bauman (2001) e Nóvoa (1991) salientam
que propostas pedagógicas que teimam em permanecer na antiga solidez
precisam perceber que estão formando para um paradigma que não existe mais.
A modernidade líquida desafia propostas voltadas para a formação de um ser
humano diferente, capaz de lidar com as intempéries desta época, sem perder a
noção do todo como pessoa e como profissional. A educação, para este modelo
de sociedade, deverá rever o seu projeto político pedagógico, que define com
clareza e maestria a concepção de mundo e de ser humano desejada, pois nada do
que se adquire é definitivo para o resto da vida. O ser humano é a personificação
da dinâmica da vida, precisa estar em permanente processo de educar-se.
Feuerstein (2014) defende que os seres humanos precisam se autoperceber,
pois são possuidores de uma identidade contínua. Esta abordagem otimista vem
de uma visão flexível, cuja probabilidade de mudança é elevada. Isso leva a uma
enorme diferenciação em tudo o que diz respeito à definição de objetivos e escolhas
dos meios para alcançá-los na educação, no trabalho ou na vida pessoal.
Numa visão bastante esperançosa e otimista, Freire (2007) mostra a influência da
educação sobre o comportamento. Para contrapor a influência ideológica, ele elegeu
critérios para o exercício de uma prática que exige, além da formação, a disposição
para aplicá-la. É uma adequação consciente, intencional e de caráter educativo. Cada
um dos critérios é mobilizado nos diferentes contextos que envolvem educador e
educando. Pode-se dizer que a autonomia pode ser considerada conceito-chave na
sua obra. Esse termo pode ser utilizado como o empoderamento do indivíduo e se
faz fazer presente nas suas necessidades e reinvindicações.
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Freire (2007) propõe um jeito diferente de ensinar e aprender referenciado
em três capítulos: Não há docência sem discência; Ensinar não é transferir
conhecimento; e Ensinar é uma especificidade humana. Aborda a influência de
cada uma das condutas do educador no ato de ensinar e reforça o dever e
compromisso ao afirmar que “[...] a importância do papel do educador, o mérito
da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas
ensinar os conteúdos mas também ensinar a pensar certo”.
A partir desse conjunto de elementos constitutivos do fazer pedagógico,
conforme destacou o autor, nada é novo, são ações cotidianas, são posturas
incorporadas ao fazer, que se estendem a outras relações em que homens e
mulheres estão expostos todos os dias à experiência existencial.
No olhar de Feuerstein (2014, p.94), para
[...] os seres humanos agirem com competência, cumprir desafios, lidar com situações
novas, devem sentir que são competentes para controlar estas situações, para vencer
dificuldades, se familiarizarem com o novo e o desconhecido, e abordar desafios com
a expectativa de que estes sejam vencidos.
Como se percebe, são posturas que evidenciam os atributos e as características
para uma mudança de comportamento, que coincidem com diferentes formas
de aprender e ensinar. Os ambientes de aprendizagem devem potencializar
oportunidades de o educando aprender a desenvolver uma atitude de aprender
sempre. Feuerstein (2013) considera uma atitude otimista, pois representa uma
resposta que parte do indivíduo para o problema, é um progresso individual, que
advém do esforço que surge de outras possibilidades de ensinar e aprender.
aprender e ensInar sob a ótIca da teorIa da
modIfIcabIlIdade cognItIva estrutural e
das IdeIas de freIre
Os pensamentos pedagógicos de Feuerstein e Freire possuem caráter
emancipatório, pois fortalecem a presença do educador e do educando no
processo de aprendizagem. É uma relação que carrega princípios dialéticos
que se constituem em elementos essenciais para o desenvolvimento de uma
diferente proposta pedagógica. Ambos inspiram, sem dúvida, ações favoráveis
à construção de diferentes modelos, pautados no diálogo, na intencionalidade
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Disponível em: www.univali.br/periodicos
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e na reciprocidade. Ao defender uma concepção de educação alicerçada
numa pedagogia da autonomia, Feuerstein e Freire ajudam a instaurar uma
diferente relação entre educador e educando, determinada por uma também
diferente intenção. Isso pressupõe um repensar, tomar iniciativas livremente,
que demandam outros comportamentos, modos de pensar criativos e de agir
coerentes com uma proposta que traga contribuições didáticas e que sustente
o aprendizado no contexto complexo da sociedade contemporânea.
A formação necessária para atender a essas condições implicaria o que Feuerstein
(2014, p.10) defende como princípio pedagógico do autodesenvolvimento: uma
dupla ontologia - a biológica e a social.
Esta modificabilidade não se refere à mudança de um comportamento específico, mas
às mudanças de natureza estrutural que alteram o curso do desenvolvimento cognitivo,
a forma em que o organismo interage, atua ou responde às fontes de informação. O
que o indivíduo experimenta é uma modificação cognitiva estrutural, que ocorre por
meio de um programa de intervenção intencional e o torna mais sensível às fontes
internas e externas de estimulação.
Feuerstein (2014) dedicou um capítulo do seu livro “Além da Inteligência”
para reafirmar e testemunhar a capacidade de mudança no sistema neural. Sua
intenção é clarificar ao leitor que existem muitas diferenças entre alunos com
relação à habilidade de usar e adaptar o conhecimento a novas situações. Ele
retratou o que significa a natureza estrutural da mudança e quais características
fazem com que seja estrutural. Ele qualificou a mudança estrutural como
sendo responsável por provocar transformações e afetar o aprendizado e o
comportamento de forma profunda, sustentável e autoperpetuável.
A partir da sua constatação, apontou quatro aspectos importantes para se
identificar a qualidade com que o aprendiz apresenta a mudança estrutural nos
aspectos relacionados à: permanência, resistência, flexibilidade/adaptabilidade
e generalização/transformação.
A permanência está empenhada em demonstrar até que ponto a mudança é
preservada com o tempo, ou por meio dela se pode observar quais habilidades
o aprendiz externa em reter e aplicar o seu conhecimento em outros contextos
de aprendizagens.
A resistência diz respeito à mudança de condições das alterações ambientais,
por exemplo, a mudança estrutural se confirma se o aprendiz não demonstrar
instabilidade ao responder uma pergunta num nível mais complexo. A flexibilidade
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da mudança é uma variante oposta à resistência, pois requer do aprendiz a
aplicação do comportamento adquirido em condições que diferem daquelas
verificadas. Generalização/transformação, este grau de mudança é reconhecido
como o mais alto nível de mudança estrutural. Neste nível o aprendiz consegue
criar alterações estruturais por si mesmo, consegue se orientar no campo abstrato
e extrair soluções ou princípios e regras que poderão ser aplicados a outros e
diferentes situações problemas.
Sob este mesmo enfoque, lembra Freire (2007, p. 77) em relação à égide da
mudança na:
[...] objetividade com que dialeticamente me relaciono, meu papel no mundo não é
só o de quem constata o que ocorre mas também o de quem intervém como sujeitos
de ocorrências. Constatando nos tornamos capazes de intervir na realidade, tarefa
incomparavelmente mais complexa e geradora de novos saberes do que simplesmente
de nos adaptar a ela.
De acordo com essa ideia, a modificabilidade cognitiva estrutural é definida
como uma força que direciona o organismo para se modificar e modificar a estrutura
do pensamento (FEUERSTEIN, 2014). Neste ponto de vista, a modificabilidade
pode representar outra proposta a ser disseminada e trabalhada no contexto
educacional, contribuindo assim com uma prática pedagógica emancipatória,
libertadora e reflexiva na perspectiva do ensino e aprendizagem, como deseja
Freire. Como tornar isso realidade? Começa-se pelo esforço pela implantação de
políticas educacionais que contemplem formação de professores e investimento
em pesquisa nesta direção. Está-se ciente de que esta deve constituir-se numa
luta permanente de professores, pais, gestores e alunos que acreditam no
potencial da educação no Brasil.
Deste pensamento crítico decorrem novas possibilidades para uma prática
pedagógica calçada numa concepção de mundo, de ser humano e de sociedade
desejada. A proposta pedagógica que surge a partir das mudanças vivenciadas
pelo professor e aluno irá implicar mudanças significativas no processo de ensino
e aprendizagem. Nesse aspecto, as manifestações na prática pedagógica serão
reelaboradas nos processos do planejamento, da metodologia e da avaliação,
[...] com relação a aprender, é um processo que pode deflagrar no aprendiz uma
curiosidade crescente, que pode torná-lo mais e mais criador. O que quero dizer é o
seguinte: quanto mais criticamente se exerça a capacidade de aprender tanto mais se
constrói e desenvolve que venho chamando “curiosidade epistemológica”, sem o qual
não alcançamos o conhecimento cabal do objeto (FREIRE, 2007, p.25).
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Ao se discutir o planejamento, trazem-se para reflexão conceitos e concepções
como a de Gandin (1994). Ele propõe que se pense no planejamento como prática
educativa, sempre estabelecendo um relacionamento entre a intencionalidade
do professor e o seu trabalho na sala de aula. O planejamento tem objetivo de
pensar estrategicamente propostas de trabalho, orientar e organizar ações de
médio e longo prazo. Planejar é crer na possibilidade de intervenção na realidade.
Por não ser neutro, o planejamento carrega um cunho político, pois se concretiza
no contexto educacional como um compromisso político do educador, uma vez
que ele toma decisões, faz opções, decide estratégias, isto é, opta diante de
teorias pedagógicas e correntes epistemológicas.
Gandin (1994) reforça que não basta discutir o que seja o planejamento, é
necessário o fazer crítico, pois este se traduz num requisito para a construção de
um projeto identitário, construtor de novos fazeres pedagógicos. Tal articulação
entre diferentes fazeres e a aceitação de outra postura se consolidam a construção
de um plano de ensino focado não apenas em conteúdo, mas focado no ensino de
habilidades do pensamento com ênfase em um tipo de raciocínio especializado.
Gomes (2007, p.146) intensifica a relação do planejamento com o conteúdo,
uma vez que “[...] o reconhecimento das relações entre as habilidades gerais
metacognitivas, as habilidades modulares e as habilidades ontológicas de cada
conteúdo é um aspecto importante a ser considerado”.
A modificabilidade pressupõe provocar no aluno o próprio gerenciamento
da sua aprendizagem. O processo de pensamento se estende para atividades de
percepção e observação, construção estratégica para soluções de problemas.
Todos esses aspectos contemplados no planejamento da aula desenvolverão
processos metacognitivos importantes que impulsionarão a aprendizagem.
É um processo que requer incentivo por parte do professor no momento de
acompanhar seus alunos. Deve ser uma prática aperfeiçoada no planejamento,
na qual o professor cria um clima de diálogo e troca experiências, tornando
esta prática um hábito. Esta predisposição de aplicação e contextualização dos
conteúdos deve se tornar um hábito no próprio estudante sobre o seu processo
de aprendizagem.
A modificabilidade como condição para a aprendizagem requer efeitos
de intervenção na estrutura cognitiva também pelo caminho da avaliação.
Esta é considerada por Feuerstein (2013) como a intervenção para sondar se
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ocorreu aprendizagem significativa e qual o nível de mudança que ocorreu. Ao
acompanhar a transferência da aprendizagem, torna-se importante o professor
diagnosticar em quais situações as habilidades cognitivas estiveram em ação e
quais foram generalizadas.
No entanto, uma avaliação planejada para provocar mudanças de alterações
estruturais exige instrumentos de avaliação bem elaborados, que deixem claro
o objetivo e o nível do conhecimento pretendido. Em outras palavras, exige
a seleção e a condução metodológica apropriada. As atividades devem ser
claramente pensadas e selecionadas em função do estágio em que se está e
aonde se quer chegar. A interação em sala de aula deve ser um ponto pensado
e organizado pelo professor, quanto maior a intencionalidade e a reciprocidade
em sala de aula, maior será o resultado positivo da avaliação.
consIderações fInaIs
A educação escolar, na perspectiva da modificabilidade cognitiva, assume
papel central na formação e na difusão de um sistema de aprendizagem capaz de
fornecer as bases para a formação de indivíduos autônomos, críticos e capazes
de se situar no mundo, os quais são sustentados em novos modos de ver e agir,
de fazer escolhas, observar e intervir.
À medida que se vai amadurecendo no processo, vai-se ampliando cada vez
mais a capacidade de aprender e ensinar. É uma construção que envolve atitude
existencial proativa e constante perante a vida, na busca por diferentes saberes
e no despertar do desejo de aprender sempre. As teorias de Feuerstein e Freire
são contundentes sobre esse ponto de vista.
Esses dois educadores viveram as grandes mudanças do século XX e todas as conquistas
e contradições dessas mudanças. A crença na capacidade que os seres humanos têm
para aprender e o respeito pela busca de identidade que caracteriza toda pessoa são os
aspectos que mais os aproximam, o que os torna tão universais (SOUZA; DEPRESBITERIS;
MACHADO, 2004, p. 161).
Ao abordar este tema, espera-se ter gerado algumas reflexões sobre a
possibilidade de diferentes formas de aprender e ensinar que podem ter sua
gênese a partir da modificabilidade cognitiva estrutural e caminham pari passu
ao que Freire desejava para o processo educativo com a intensão de enriquecer
a prática educativa com aprendizagens significativas.
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ISSN: 1984-7114
Estende-se, assim, a necessidade de dar uma diferente dinâmica ao processo
de ensino e aprendizagem para que se mude a sua essência “bancária” e vertical.
Na perspectiva de Feuerstein e Freire, reformas educacionais significam alterações
conjunturais, que se apresentam com maior capacidade em provocar mudanças
mais profundas, com reflexos em outros segmentos da sociedade.
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Artigo recebido em: 24/02/2015
Aprovado em: 03/09/2015
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