http://doi.org/10.7213/1980-5934.34.062.DS03
ISSN 1980-5934
A persistência do niilismo nos escritos de
Nietzsche de 1888*
The persistence of nihilism in Nietzsche’s 1888
writings
CLADEMIR ARALDI
a
a
Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil
Como citar: ARALDI, C. A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888. Revista
de Filosofia Aurora, Curitiba, v. 34, n. 62, p. 44-61, maio/ago. 2022
Resumo
Procuro mostrar neste artigo que o niilismo persiste como um problema sem
solução nos escritos de Nietzsche até agosto de 1888. O niilismo como vontade de
nada emerge como um problema, principalmente no escrito O niilismo europeu e na
terceira dissertação da Genealogia da moral, ambos de 1887. Investigarei como
Nietzsche ainda permanece enredado ao problema da verdade, após vincular o
niilismo ao horror vacui. Defendo que as soluções propostas no ano de 1888 giram
em torno de propostas diversas da transvaloração dos valores, mas não conseguem
romper o círculo da “magia do extremo” que anima o pensamento do Filósofo
Solitário. Na arte estaria a saída mais promissora, mas o Filósofo da Transvaloração
não a radicaliza até as suas últimas consequências.
Palavras-chave: Niilismo. Vontade de nada. Horror vacui. Transvaloração. Arte.
Este artigo foi possível graças ao apoio do CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento
Científico e Tecnológico.
a
CA é Professor Doutor, Brasil, e-mail: clademir.araldi@gmail.com
*
Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 34, n. 62, p. 44-61, maio/ago. 2022
A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888
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Abstract
I intend to show in this article that nihilism persists as an unsolvable problem in
Nietzsche’s writings until August 1888. Nihilism as a Will to Nothingness emerges as a
problem, especially in the writing “The European Nihilism” and in the third dissertation
on the Genealogy of Morals, both from 1887. I will investigate how Nietzsche still remains
entangled in the problem of truth, after linking nihilism to the horror vacui. I argue that
the solutions proposed in 1888 revolve around different proposals for the transvaluation
of values, but they cannot break the circle of “magic of the extreme” that animates the
Solitary Philosopher’s thought. In art would be the most promising way out, but the
Philosopher of Transvaluation does not radicalize it to its ultimate consequences.
Keywords: Nihilism. Will to Nothingness. Horror vacui. Transvaluation. Art.
Niilismo como vontade de nada
É no ano de 1887 que Nietzsche mais desenvolve seus pensamentos acerca do
niilismo. Ele concentra as investigações dos anos anteriores, tendo como fio condutor
a “história do niilismo europeu”. Essa longa história do niilismo é desenvolvida
principalmente nos escritos póstumos, através de três fases: o niilismo incompleto, o
niilismo completo (que abarca o niilismo passivo e o ativo) e o niilismo extremo 1. É
também no ano de 1887 que o niilismo possui um lugar destacado numa obra
publicada, a saber, na Genealogia da moral2. A investigação do niilismo na figura do
sacerdote ascético é um ponto de virada nas investigações de Nietzsche sobre o
niilismo, à medida que coloca um contramovimento à vontade de nada. A tarefa
afirmativa, ligada à arte e a transvaloração dos valores, é pouco desenvolvida na GM.
Do mesmo modo, a análise da complexidade da doença do homem moderno é
Desenvolvi essa caracterização do niilismo no capítulo “A posição do niilismo na filosofia
de Nietzsche” (cf. ARALDI, 2004, p. 112 – 127). O próprio Nietzsche estaria envolvido no
niilismo moderno, em sua fase ativa, procurando incitar a transição para o niilismo extremo.
A filosofia afirmativa de Nietzsche se coloca, nesse sentido, no extremo do niilismo, como a
reversão da negação extrema na afirmação incondicional do mundo.
2
Serão utilizadas as seguintes abreviaturas para citar as obras de Nietzsche: GC (A gaia
ciência), BM (Além do bem e do mal), GM (Genealogia da moral), AC (O Anticristo) e FP, para os
fragmentos póstumos por nós traduzidos, conforme a convenção adotada pelos editores G.
Colli e M. Montinari, na Kritische Studienausgabe (KSA), e seguida por Paolo D’Iorio, na edição
eletrônica e-KGWB: http://www.nietzschesource.org/#eKGWB
1
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relegada ao projeto da grande obra que ocupava Nietzsche desde 1885: “Tais coisas
serão por mim tratadas em outro contexto, com maior profundidade e severidade
(sob o título de ‘História do niilismo europeu’; numa obra que estou preparando: A
vontade de poder. Ensaio de transvaloração de todos os valores)” (GM III 27).
Essa obra não foi efetivada, restando projetos e elaborações dispersas sobre
os temas principais, inclusive sobre o niilismo. Entretanto, o problema do significado
do ideal ascético é tratado com mais profundidade na terceira dissertação da GM. Para
entendermos essa profundidade, é preciso retornar ao fragmento de Lenzer Heide,
escrito algumas semanas antes da GM.
O fragmento de Lenzer Heide começa com uma afirmação contundente acerca
do valor da moral cristã como antídoto de longa duração ao niilismo: a moral impediu
que o ser humano se desprezasse e sucumbisse. No ocidente, a moral cristã teria
fornecido a única interpretação que teve êxito duradouro nos últimos séculos, desde
a consolidação do cristianismo até o tempo de Nietzsche. Essas foram as vantagens
por ela trazidas:
1) Ela conferiu ao homem um valor absoluto, em oposição à sua pequenez e casualidade na
corrente do devir e do perecer.
2) Ela servia aos advogados de Deus, na medida em que deixava ao mundo, apesar do
sofrimento e do mal, o caráter de perfeição – incluindo essa “liberdade” – o mal aparecia pleno
de sentido.
3) Ela estabeleceu no homem um saber sobre valores absolutos e concedeu-lhe assim um
conhecimento adequado para o mais importante.
Ela impediu que o homem se desprezasse enquanto homem, que ele tomasse partido contra
a vida, que ele desesperasse ao conhecer: ela era um meio de conservação – in summa: a moral
era o grande antídoto contra o niilismo prático e teórico (FP, 1887, 5[71]).
Será que a moral cristã foi a única interpretação da existência que teve êxito no
Ocidente, depois da queda do Império Romano? Outras interpretações, como o
estoicismo, o epicurismo e o cinismo, foram cultivadas com êxito relativo nos últimos
séculos, apesar da supremacia das várias configurações ascéticas da moral cristã.
Temos que perguntar antes: por que tanta preocupação com êxitos duradouros, dada
a fluidez de sentido e transitoriedade de tudo o que é humano?
A posição extrema da moral cristã é entendida como “antídoto ao niilismo
teórico e prático”. Essa caracterização não está diretamente inserida na história do
niilismo europeu, mas é central para compreender a emergência do niilismo no
mundo antigo. Ou seja, no mundo grego, na cultura helenística e romana, o niilismo
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já surgiu como conhecimento da ausência de sentido (niilismo teórico) e como
experiência da perda do valor do ser humano (niilismo prático). O desprezo de si
mesmo se instaurou teórica e praticamente antes do predomínio do cristianismo! Ou
seja, há formas de niilismo anteriores à desvalorização dos “valores supremos”
cristãos. Surge no fragmento de Lenzer Heide, implicitamente, o tema do horror vacui,
que será desenvolvido na terceira dissertação da Genealogia. Nele, o niilismo é visto
como uma doença da vontade, contra a qual voltou-se a moral cristã com “antídotos”:
conferindo ao ser humano um “valor absoluto” e garantindo um “conhecimento
adequado desses valores”. Mas a vida do ser humano só tem valor a partir do centro
de gravidade no Além-mundo. A moral mesmo ocasionaria, através da veracidade por
ela gerada, seu movimento de autossupressão. Essa metanarrativa histórica abarca
todos os seres humanos submetidos ao longo processo de moralização das formas de
vida. Com o niilismo ativo 3 , o movimento unívoco de autodestruição da moral
atingiria a todos os herdeiros de seus valores, incluindo Nietzsche.
Assim, é a veracidade, promovida pela própria moral, que intensifica o
niilismo. Tem efeito desesperador reconhecer que a interpretação moral cristã é uma
mentira incorporada e imprescindível para suportar a vida. Se todo valor depende das
mentiras da moral, parece que agora nada tem valor. Nessa filosofia da história niilista
ressalta uma oscilação entre dois extremos do niilismo: “não estimar o que
conhecemos e não poder mais estimar, aquilo de que gostaríamos de nos iludir”. Não
se trata de um dilema, da necessidade de escolher entre os dois termos da oposição,
mas de uma dissolução, em que ressaltam as consequências nocivas desse
processo valorativo4.
O niilismo é tratado como uma doença (tornada pandêmica) que atinge os
fracos e esgotados pela moral cristã. Os “mais fortes”, no entanto, ainda poderiam
furtar-se ao cansaço niilista, se pudessem experimentar o pensamento do eterno
retorno do mesmo, de modo afirmativo. Não entraremos nessa questão do confronto
com o eterno retorno, que é central no fragmento de Lenzer Heide, mas que não
3
O niilismo ativo se manifesta no mundo moderno, quando a penúria do ser humano
diminui, tornando menos urgentes os artigos de fé extremos, como Deus e a imortalidade
da alma. Cf. FP 1887, 5[71] § 13.
4
Cf. FP 1887, 5[71] § 2.
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aparece na GM III. Importa aqui ressaltar que “foi a moral que protegeu a vida do
desespero e do salto no nada nesses homens e classes violentados e oprimidos por
homens”5. No mundo moderno, contudo, a moral não consegue mais impedir os
“fracos e malogrados” do desespero. Esse “salto no nada” é interpretado por
Nietzsche como “vontade de nada” (Wille ins Nichts):
O sucumbir apresenta-se como um fazer-se-sucumbir, como uma seleção instintiva daquilo que
necessariamente destrói. Sintomas dessa autodestruição dos malogrados: a autovivissecção, o
envenenamento, a embriaguez, o romantismo, sobretudo a urgência instintiva de ações, por
meio das quais se faz dos poderosos inimigos mortais (– como que criando seus próprios
carrascos), a vontade de destruição como vontade de um instinto ainda mais profundo, do
instinto de autodestruição, da vontade de nada (FP 1887, 5[71] §11).
A vontade de nada é um instinto mais profundo que a vontade de destruição.
Mas Nietzsche afirma reiteradamente no escrito “O niilismo europeu” que a vontade
de poder é o “traço característico fundamental” da vida, que a vida é vontade de poder
(der Wille zur Macht). Se “não há nada na vida que tenha valor, exceto o grau de poder”
(FP 1887, 5[71] §10), os fracos sucumbiriam inexoravelmente por impotência, visto
que seus valores se despotencializaram. Nessa interpretação nietzschiana, a vontade
de poder é o “traço característico” do mundo e de todas as formas de vida, tanto as
dos fortes quanto as dos fracos. A diferença básica consiste em que os fortes
aprovariam esse traço característico fundamental, e os fracos o amaldiçoariam. Mas
essa maldição é ainda uma expressão da vontade de poder, como vontade de nada.
Considero que a vontade de nada é um tanto nebulosa no fragmento de Lenzer Heide.
Mas ela abre um abismo na investigação nietzschiana sobre o caráter básico da
vontade humana. Se no fragmento de Lenzer Heide a vontade de poder é o traço
característico da vida, no início de GM III Nietzsche afirma que o horror vacui é “o
dado fundamental da vontade humana” (GM III 1). É uma ênfase no perigo latente
(o salto no nada) que ameaçava o ser humano; é uma nova tentativa de resposta ao
problema da vontade de nada (der Wille zum Nichts) 6 , dessa vez por meio da
5
Cf. FP 1887, 5[71] § 9.
É importante lembrar que as primeiras formulações acerca da vontade de nada ocorrem
nos escritos supracitados de 1887 (“O niilismo europeu” e A genealogia da moral), ou seja,
nos meses de junho e julho de 1887. As demais formulações ocorrem no ano de 1888,
principalmente nos fragmentos póstumos. Há uma menção relevante à vontade de nada em
AC 18, no sentido proposto em 1887.
6
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A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888
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investigação do ideal ascético. O foco da análise não está mais no panteísmo moderno
(desde Spinoza) e no eterno retorno, mas no poder descomunal do ideal ascético para
a vida humana. Na GM III Nietzsche estabelece um novo confronto com
Schopenhauer, em face do ascetismo.
O sacerdote ascético e o horror vacui
A única menção explícita ao horror vacui na obra de Nietzsche ocorre em GM
III 1. A interpretação nietzschiana do horror ao vazio é sui generis, a partir de sua
concepção de vontade de poder, e em relação aos sentidos do ideal ascético.
Entretanto, o horror vacui é um tema que permeia inquietações filosóficas, desde
Aristóteles7. Entendo que o autor da Genealogia retoma a discussão do fragmento de
Lenzer Heide acerca da vontade de poder como traço fundamental da vida, para se
contrapor ao vazio niilista. No início da terceira dissertação, ele afirma que o ser
humano não pode viver sem um objetivo, e ele “preferirá ainda querer o nada a não
querer” (GM III 1). Ele já havia afirmado em GM II 12 que a vontade de poder é a
“essência da vida”. E reafirmará em GM III 18 que a vontade de poder é “o instinto
mais forte e afirmador da vida”. Mas a vontade de poder não é somente impulso para
a afirmação da vida; ela pode se manifestar como vontade de nada, dado o seu horror
ao vazio, à sua compulsão por querer. Aqui já se mostra um confronto decisivo com
Schopenhauer. Para o filósofo pessimista, é possível justamente uma vontade ascética,
capaz de não querer 8. O horror ao nada, em Schopenhauer, ocorre porque o ser
7
Na Física (IV, 6-9), Aristóteles compreende de modo antropomórfico o horror vacui
(kenofobia), como uma aversão própria da natureza ao vazio, no interior da realidade física.
Essa interpretação, segundo a qual a natureza se ‘esforçaria’ para que o vazio não se
produzisse no seu interior, subsiste até a Revolução Científica do século XVII. Pascal,
pensador e cientista muito estimado por Nietzsche, é um dos pioneiros a admitir o vácuo
(vazio) no mundo físico, a partir de seus estudos experimentais sobre a pressão do ar e dos
líquidos. Nietzsche não se interessa por esse debate científico, mas sim por suas
consequências para a vida humana e seus valores. O mundo “dionisíaco” da vontade de
poder, cercado do “’nada’ como de seus limites” (cf. FP 1885 39[12]), nesse sentido, é ainda
uma nova interpretação antropomórfica, para tentar vivificar o todo e chancelar o sim à
totalidade pelo ser humano.
8
João Constâncio defende que a compreensão schopenhaueriana de vontade está no centro
da discussão de Nietzsche de sua interpretação da vontade como horror vacui na GM (cf.
CONSTÂNCIO, 2018, p. 60-64). Concordo com Constâncio no sentido de que o confronto de
Nietzsche com a interpretação do ascetismo em Schopenhauer é determinante para a
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humano é dominado pelo querer. Mas ele afirma que é possível uma outra direção ao
querer (que Nietzsche nega), como supressão da vontade de viver. Ou seja, o caminho
para o nada seria uma perspectiva possível de ser alcançada por seres humanos
(asceticamente), na negação da vontade de viver:
para todos aqueles que ainda estão cheios de Vontade, o que resta após a completa supressão
da Vontade é, de fato, o Nada. Mas, inversamente, para aqueles nos quais a Vontade virou e
se negou, este nosso mundo tão real com todos os seus sóis e vias lácteas é – Nada
(SCHOPENHAUER, 2005, p. 519).
Não analisaremos aqui se as críticas de Nietzsche à vontade de viver em
Schopenhauer são pertinentes. Importa-nos investigar o caminho trilhado pelo
primeiro, com sua recusa da vontade ascética schopenhaueriana, através de sua
investigação do ideal ascético. Dentre os vários significados do ideal ascético,
elencados em GM III, o que mais lhe interessa é o sentido desse ideal para o sacerdote
ascético. Pois é justamente o sacerdote ascético quem criou o ideal ascético, e tem
nele seu maior instrumento de poder, para efetivar a dominação sobre os “fracos e
malogrados”. No interior da moral cristã, o sacerdote ascético procurou impedir a
irrupção do niilismo (do desespero, do horror vacui) com suas medicações. Ele é um
artista do sentimento de culpa, ao tornar o próprio “pecador” culpado pelo
seu sofrimento.
Para compreender os sentidos do ideal ascético postos pelo sacerdote ascético,
Nietzsche recorre aos “fisiólogos”, sem precisar suas fontes. Entretanto, em GM III
Nietzsche desafia os fisiólogos a testarem suas hipóteses de investigação acerca do
valor do ascetismo desde a vontade de poder. O próprio Nietzsche procurou aplicar,
mesmo que de forma livre e tendenciosa, métodos “fisiológicos” acerca da narcose e
do hipnotismo para diagnosticar a doença da vontade, tanto no sacerdote ascético
quanto no rebanho dos esgotados. Em suas investigações acerca da “verdadeira causa
fisiológica” (die wahre Ursache, die physiologische) do mal-estar dos doentes, Nietzsche
propõe hipóteses de diagnose que poderiam estar: “numa enfermidade do nervus
terceira dissertação da GM. Entretanto, discordo da afirmação de que a vontade de nada
consista apenas em vontade ascética. Como mostrarei neste artigo, a vontade de nada em
Nietzsche é um impulso mais multifacetado e obscuro.
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sympathicus”, “numa anormal secreção de bílis, numa pobreza de sulfato e fosfato de
potássio no sangue, em estados de tensão do baixo ventre [..] etc.” (GM III 15)
Assim, nessa estranha forma ascética de vida, Nietzsche crê detectar a
“causação fisiológica efetiva” do niilismo: a diminuição da vitalidade fisiológica (cf.
GM III 11). Com seu “monstruoso modo de valorar”, o sacerdote ascético efetivou
suas ambições de poder: “O sacerdote ascético tem nesse ideal não apenas a sua fé,
mas também sua vontade, seu poder, seu interesse” (GM III 11). Fica evidente aqui
que o autor da Genealogia opera no registro da vontade de poder, para criticar o
niilismo resultante da ação do ideal ascético 9 . Para isso, ele precisa reforçar sua
compreensão da “vitalidade fisiológica”, que remete ao “instinto profundo da vida”;
desse modo, seria possível explicar como esse tipo ascético pode prosperar e dominar:
deve ser interesse da vida mesma, que um tipo tão contraditório não se extinga. [...] Aqui
domina um ressentimento ímpar, aquele de um insaciado instinto e vontade de poder que
deseja assenhorear-se, não de algo da vida, mas da vida mesma, de suas condições maiores,
mais profundas e fundamentais, aqui se faz a tentativa de usar a força para estancar a fonte
da força; aqui o olhar se volta, rancoroso e pérfido, contra o florescimento fisiológico mesmo
[...]” (GM III 11).
Esses processos fisiológicos são complexos, e ocultam muitas discussões,
leituras científicas e elucubrações de Nietzsche, de modo que a expressão “usar a força
para estancar a fonte da força” mais encobre do que revela esse processo fisiológico.
Parece-me que Nietzsche quer mascarar sua concepção vitalista-antropomórfica de
vontade de poder como antídoto à vontade de nada, quando ele simplesmente deriva
a “vontade encarnada de contradição e antinatureza” do “autêntico instinto da vida”.
9
Müller-Lauter detecta essa ambiguidade, própria da vontade do nada, no modo como o
sacerdote ascético faz experimentos com o “instinto profilático da vida”. Para o intérprete
berlinense, o sacerdote ascético, ao afirmar e negar a vida, ao mesmo tempo, não apresenta
a “simultaneidade de um não total e um sim total. Não e sim estão entrelaçados de tal modo
que eles põem limites à pretensão absoluta de ambos” (MÜLLER-LAUTER, 2011, p. 130).
Assim, ele busca esclarecer essa pretensa autocontradição de Nietzsche, que atribui ao
sacerdote ascético dois impulsos inconciliáveis: o instinto da vida e o instinto/vontade de
nada. Ao vincular o niilismo ao sacerdote ascético, Nietzsche compreenderia o niilismo como
vontade de nada, como contraimpulso e contravontade. Visto haver uma luta incessante
entre vontades de poder, que combatem entre si por mais poder, também a vontade de
nada expressaria o traço básico da vontade de poder: a aspiração a mais poder. O problema
reside em que essa aspiração desencadeada pelo sacerdote ascético no rebanho doente
resulta em um avanço na decadência.
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Fisiologicamente considerada, a autocontradição do sacerdote ascético (vida
contra vida) não faz sentido; é aparente, pois não expressa o processo efetivo das
vontades de poder a operar como instinto da vida. A medicação dos sacerdotes
ascéticos, desse modo, não é nenhuma cura efetiva dos doentes, em sentido
fisiológico. Os valores gerados pelo sacerdote ascético, com seu olhar rancoroso, são
antinaturais; ele trata a vida como um “caminho errado”, volta a vida contra si mesma
(cf. GM III 11). Entramos, assim, nos paradoxos e autocontradições da vida
sacerdotal. Essa “vontade encarnada de contradição e antinatureza” buscará
instintivamente o erro que a seduz a viver. O sacerdote ascético ignora os processos
fisiológicos efetivos. Contra isso, é preciso expor a realidade dos fatos. Nietzsche
critica o “erro” que move o sacerdote ascético, ao mesmo tempo que busca a verdade
acerca do “autêntico instinto da vida” (der eigentliche Lebens-Instinkt):
O ideal ascético nasce do instinto de cura e proteção de uma vida que degenera, que busca
manter-se por todos os meios, e luta por sua existência; indica uma parcial inibição e exaustão
fisiológica, que os instintos de vida mais profundos, permanecidos intactos, incessantemente
combatem com novos meios e invenções” (GM III 13).
Como é possível que o ideal ascético seja “um artifício para a preservação da
vida”, e que ele esteja entre as “grandes potências conservadoras e afirmadoras da vida”,
se ele acaba justamente agravando a doença dos esgotados? Não é satisfatório para o
pensador que quer operar a partir das realidades fisiológicas recorrer aos “instintos
profundos da vida”: como eles podem permanecer “intactos”, se estão imersos em
processos fisiológicos, culturais e históricos dinâmicos e cambiantes? Continuamos
no paradoxo10, pois a busca pelas causas efetivas dessa doença não constitui uma
investigação naturalista coesa sobre o ascetismo. Em 1888, Nietzsche parece
10
Müller-Lauter considera, no entanto, pouco esclarecedora a compreensão nietzschiana da
vontade de nada como vontade de autoaniquilamento, pois a vitória do tipo de homem
decadente não constitui uma simples inversão temporária da hierarquia entre fortes e
fracos (cf. MÜLLER-LAUTER, 2011, p. 138 ss.). As forças envolvidas na luta entre os instintos
da vida e os instintos niilistas levariam, enfim, a uma exaustão das forças. Nietzsche pouco
desenvolve na terceira dissertação os rumos da vontade de nada no sacerdote ascético e no
rebanho doente, mas se limita a ansiar por um tipo futuro afirmativo, em que a vontade
ascendente de poder pudesse triunfar sobre a vontade niilista de poder. Em Além do bem e
do mal e na Genealogia da moral, esse tipo é “filósofo do futuro” e o “homem do futuro”. Em
1888 Nietzsche se esforça por construir tipos artísticos em sua busca por construir um
contramovimento ao niilismo.
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abandonar a afirmação de que o sacerdote ascético foi o único a fornecer uma
interpretação com sentido duradouro ao sofrimento humano, ao valorizar o espírito
provençal, a Renascença e o mundo de Goethe como expressões portentosas de
transvaloração dos valores cristãos. Nietzsche quer também apropriar-se dos efeitos
dessa longa enfermidade do ser humano. Esse “animal mais corajoso” não perecerá
sob a influência dos valores antinaturais do ideal ascético. Isso porque ele é “o grande
experimentador de si” (GM III 13), insaciável em sua luta pelo domínio em face dos
outros animais e da natureza. No final da terceira dissertação há uma retomada
significativa do projeto de “transvaloração dos valores”, tal como foi apresentado em
Além do bem e do mal (cf BM 203) e aludido no final da segunda dissertação da Genealogia
(cf. GM II 24). Nietzsche presume que o ser humano está ainda inesgotado para
grandes experimentos consigo mesmo. Mas teme que a influência nociva do sacerdote
ascético possa tornar a Terra um grande hospício, um planeta ascético. Isso ocorreria
se as duas mais terríveis pragas se unissem: “o grande nojo do homem e a grande compaixão
pelo homem!...”. Se essas duas “pragas” um dia se casassem, dariam à luz o que há de
mais monstruoso no mundo: “a última vontade do homem, sua vontade de nada, o
niilismo” (GM III 14). É relevante Nietzsche ponderar na GM que esse evento terrível
ainda não ocorreu, ao passo que em 1888 ele tende a afirmar o triunfo da vontade
de nada.
Os efeitos dessas medicações ascéticas, assim, cessariam no mundo moderno,
com o aumento do poder atingido pelo ser humano. É quando a moral cristã e seus
valores não têm mais poder sobre os humanos, que não estariam mais submetidos ao
pecado, à culpa, ao castigo e às demais prescrições dessa moral. A partir do século
XIX ocorreria a ascensão do niilismo ativo, que se manifesta como vontade de
destruir as ordenações do mundo moderno e seus valores. O Deus cristão, enfim, se
revelaria aos ateus honestos e esclarecidos como o nada divinizado, como expressão
sagrada da “vontade de nada”11.
Na genealogia da moral Nietzsche colocou o problema do niilismo como vontade
de nada12 em toda a sua envergadura; no ano de 1888, ele mobiliza todos os recursos
11
Como ele afirma em AC 18.
Oswaldo Giacoia Júnior enfatiza a compreensão do ascetismo em Nietzsche como
“expressão da vontade de nada” e como “fenômeno da décadence”. Entretanto, Giacoia
12
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ARALDI, C.
de seu pensamento, na busca de respostas afirmativas. Todas elas estão articuladas em
torno da grande tarefa da transvaloração dos valores (Umwertung aller Werte). Essa
tarefa tem várias configurações nesse ano, em relação aos valores morais, à ciência, à
religião e à cultura modernas; e aparece ligada ao projeto da “Vontade de poder”, às
várias formas de transvalorar valores na moral, na política, na cultura, na arte e na
própria vida de Nietzsche. Em GM III Nietzsche já aponta para o caminho de
superação dessa forma de niilismo. Depois de afirmar que a ciência moderna é ainda
aliada do ideal ascético, ele afirma que a arte “opõe-se bem mais radicalmente do que
a ciência ao ideal ascético” (GM III 25). A menção ao projeto da fisiologia da arte
(GM III 8) é bem elucidativa para o viés artístico de superação do niilismo no ano de
1888, em face da questão da decadente.
Niilismo e décadence
Nietzsche aprofunda o conceito de décadence em 1888, distanciando-se sempre
mais da narrativa histórica abrangente do niilismo, preocupando-se mais em efetivar
a sua grande tarefa da transvaloração em seu próprio tempo. O foco das análises das
formações de decadência está nos processos vitais, na fisiologia:
Que a humanidade tenha uma tarefa inteira para resolver, que ela, como um todo, vá ao
encontro de algum objetivo: essa representação tão obscura e arbitrária é ainda muito
recente. Talvez ela seja abandonada, antes de se tornar uma “ideia fixa”... Ela não é nenhum
todo, esta humanidade: ela é uma pluralidade insolúvel de processos vitais ascendentes e
decadentes. Ela não tem uma juventude, depois uma maturidade e, enfim, uma velhice. As
camadas se interpenetram e se sobrepõem – e em alguns milênios poderão existir sempre
ainda tipos mais jovens de homem do que nós hoje podemos comprovar. A décadence, por
outro lado, pertence a todas as épocas da humanidade: em toda parte há estofo de escória e
ruína, é um processo vital mesmo, a eliminação das formações de decadência e de declínio
(FP 1888 11[226]).
pondera que o ascetismo não é invenção do cristianismo. Na dinâmica histórico-civilizatória
do Ocidente, “O Cristianismo é ascetismo, mas ascetismo tornado absoluto, razão pela qual
é com a difusão mundial do Cristianismo, com sua ascendência e hegemonia no plano dos
valores – e em sua aliança com a ciência moderna – que vem à tona o Niilismo” (GIACOIA
JUNIOR, 1997, p. 29). Considero muito instigante essa perspectiva de considerar o
cristianismo como sublimação dos valores ascéticos em valores absolutos. Entretanto,
pondero ser a hipótese de Nietzsche sobre a hegemonia do cristianismo no mundo antigo
muito simplificadora e tendenciosa – para dar conta desse processo complexo do triunfo
dos valores cristãos, por meio do ideal e do padre ascético.
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A persistência do niilismo nos escritos de Nietzsche de 1888
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Em vários momentos ele já havia expressado que o niilismo é o resultado dos
valores que predominaram até agora. Com a análise dos processos vitais ascendentes
e decadentes, o niilismo ocupará um lugar mais modesto na crítica dos valores. Ele é
um movimento histórico, sobretudo o niilismo europeu, que emerge da décadence que
faz parte de todas as épocas da vida humana: “O niilismo não é nenhuma causa, mas
somente a lógica da décadence”13. Não temos com isso o abandono do conceito de
niilismo, mas uma nova interpretação sobre a dinâmica dos valores. O cristianismo
continua sendo interpretado como uma religião niilista, que reuniu os “elementos de
décadence” da Antiguidade que lhe eram afins, acabando por tomar o “partido dos
fracos e malogrados” 14 . Mas o triunfo dessa religião niilista será objeto de uma
investigação fisiológica acerca dos valores da décadence.
Esse vínculo entre niilismo e décadence pressupõe as análises anteriores sobre a
vontade, o prazer e o poder. As considerações sobre o caráter plural da vontade e
sobre o prazer e desprazer em relação ao grau de poder são repetições de argumentos
já desenvolvidos em anos anteriores. Nos vários projetos de 1888 acerca da “Vontade
de Poder. Ensaio de uma transvaloração de todos os valores”, entretanto, há esforços
de incidir diretamente sobre a modernidade, como uma época de um avanço coeso
na decadência. Nesse contexto, ele pretende reunir as condições para a
autossuperação do niilismo, pelo menos para os mais fortes, para os “vencedores”
dessa luta entre valores antagônicos milenares.
Em 1887 o niilismo ocupava um lugar mais destacado nos projetos de “A
vontade de poder”. Como no projeto do final do inverno (de 17 de março, escrito em
Nice), em que há um comentário específico a esta questão:
[+ + +] de todos os valores
Primeiro livro. O niilismo europeu.
Segundo livro. Crítica dos valores supremos.
Terceiro livro. Princípio de uma nova posição de valor.
Quarto livro. Disciplina e cultivo (FP, 1887, p. 7[64]).
O niilismo é visto como necessário nesse longo processo que desembocaria na
posição de valores afirmativos. Do mesmo modo, o niilismo ainda aparece como o
13
14
FP 1888 14[86] 4.
FP 1888 11[371].
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primeiro livro do plano do outono de 188715. Em 13 de fevereiro de 188816, ele admite
ter concluído a “primeira versão” da transvaloração, mas não temos nenhuma
organização de um dos quatro livros sequer17. Os últimos projetos da vontade de
poder em que o niilismo ocupa um lugar central são do início – primavera de 188818.
Eles marcam um ponto de inflexão, pois nos escritos seguintes ele paulatinamente
substitui as temáticas do niilismo e da decadência (Niedergang) pela temática da
décadence. Sem conseguir dar um desfecho favorável às questões da vontade de nada e
do valor da verdade.
É também na primavera de 1888 que Nietzsche afirma o triunfo das
“formações de decadência” (Decadenz-Gebilde) na modernidade. É quando a “vontade
de nada prepondera sobre a vontade de vida” (FP 1888 14[123]19. O valor da vida
estaria terrivelmente comprometido com a supremacia dos instintos niilistas
schopenhauerianos, cristãos e budistas. É estranho Nietzsche retomar a expressão
schopenhaueriana “vontade de vida” (Wille zum Leben) nesse contexto: quando afirma
que para o niilista a vontade de nada vale mais do que a vontade de vida20, ele parece
fazer uma concessão ao velho mestre pessimista. Entendo que é um indício forte de
que ele ainda não possui uma saída para o niilismo enquanto vontade de nada.
A vontade de verdade como impulso niilista
Nas tentativas de desenvolvimento dos planos da “Vontade de poder” de
1888, Nietzsche permanece ainda enredado nas conclusões dos anos anteriores sobre
as consequências da vontade de verdade no homem. Se no ideal ascético e na ciência
Cf. FP 1887 9[164]. No projeto do Livro I, o niilismo aparece como o “resultado final dos
valores supremos até agora”.
16
Conforme consta na carta a Köselitz, de 13 de fevereiro de 1888
(http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN-1888,991): “Conclui a primeira versão de
meu “Ensaio de transvaloração”: no final das contas, foi uma tortura e de modo algum tenho
ainda coragem para essa tarefa. Daqui a dez anos, quero fazer isso melhor. –“
17
Os fragmentos do grupo 12 (1888) são a tentativa mais elaborada para avançar na
efetivação desse projeto. Dos 374 fragmentos destinados à “Vontade de poder” (Nietzsche
enumerou 372, mais dois repetem a numeração), 300 foram divididos entre os 4 livros.
18
Cf. os dois planos para a “obra capital” contidos no caderno Z II 3b., do grupo 13, do início
de 1888 à primavera de 1888, FP 13[3] e 13[4].
19
Cf. também FP 1888 14[140].
20
Cf. FP 1888 17[4] e FP 1888 17[7].
15
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moderna há uma superestimação da verdade21, o Filósofo da Transvaloração22 não
consegue se libertar completamente das expressões decadentistas da vontade de
verdade. A veracidade cristã, enfim, terminaria com uma grande interrogação: “que
significa toda vontade de verdade?...” (GC 357). Ao retomar esse parágrafo da Gaia ciência,
Nietzsche presume que em si mesmo a vontade de verdade tome consciência de si
como problema:
Nessa gradual consciência de si da vontade de verdade – disso não há dúvida – perecerá
doravante a moral: esse grande espetáculo em cem atos reservados para os próximos dois
séculos da Europa, o mais terrível, mais discutível e talvez mais auspicioso entre todos os
espetáculos ...” (GM, III, p. 27).
Esse espetáculo terrível, que acometeria a Europa nos dois séculos seguintes,
é justamente o advento do niilismo23. A vontade de verdade, enfim, faria com que a
cultura europeia se voltasse contra si própria. Os espíritos livres do futuro, com sua
problemática vontade de verdade, serão os herdeiros dessa tradição que afirmou a
verdade como valor superior. Eles deveriam ir além dos ateus do século XIX, presos
ainda nos enredamentos ascéticos dessa vontade. E justamente o niilismo tira as
consequências da decadência do valor supremo da verdade. Por que Nietzsche coloca
tanta ênfase na questão da verdade, se ele já teria se libertado de seu peso 24? No
máximo, ele poderia chegar ao discernimento da “longa e encarnada mentira”, com a
qual o ser humano atribuiu valor a si mesmo, para continuar vivendo, agarrado à ilusão
de ser a medida de todas as coisas.
Nietzsche não possui recursos teóricos suficientes para sustentar a vontade de
poder como “novo conceito da verdade” (FP 1888 15[45]), limitando-se a inserir a
mentira como “suplemento do poder”. É problemático a posição do novo critério da
Para João Constâncio (2013, p. 307) seria possível uma “espécie de fusão entre a ciência e
a arte” no pensamento de Nietzsche, depois que ele superou o niilismo como ausência da
verdade. Discordo de Constâncio no sentido de que em 1888 não há um abandono completo
da vontade de verdade nos escritos nietzschianos, e muito menos a compatibilização da
ciência (e sua superestimação da verdade e da paixão do conhecimento) com a arte da ilusão
e da mentira.
22
Nietzsche se assume como “Filósofo da Transvaloração de todos os valores” na carta a C.
Fuchs, de 6 de setembro de 1888 (http://www.nietzschesource.org/#eKGWB/BVN1888,1101). Entendo que ele já se compreende como Filósofo, ator, artista e mártir da
transvaloração desde o início desse ano.
23
Cf. FP 1888 11[411].
24
Cf. FP 1880 3[19], em que Nietzsche expressa a convicção de não “possuir a verdade”.
21
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verdade, que não é justificado nos escritos de 1888: “O critério da verdade. A vontade
de poder como vontade de vida – da vida ascendente” (FP 1888 16[86]). Se toda
vontade de verdade é expressão de instintos niilistas, de uma mentira necessária para
a sobrevivência dos fracos, como pode Nietzsche ainda pretender sustentar seu critério
de “verdade”? Ele conseguiria, no máximo, inserir a “prova da força”: o que importa
é a afirmação da vida, no sentido do aumento do sentimento de poder e do próprio
poder. Mas ele hesita em adotar esse “critério da verdade”, como transparece nos
fragmentos póstumos de 1888. É um procedimento até mesmo contraditório para o
pensador que afirma, que para o ser humano, “a mentira é o poder”25. Nesse sentido,
G. Colli apresenta um desafio enorme para a filosofia do poder nietzschiana: na
“Filosofia da mentira” (Philosophie der Lüge), a arte, como criação de ilusões, enganos e
mentiras úteis à vida, é vista como a expressão mais elevada do poder afirmativo
humano26. O homem como poeta, como artista e mentiroso, poderia triunfar sobre o
caráter terrível da existência, e quiçá sobre algumas formas do niilismo. Nietzsche
quer restringir a profusão de forças da arte da “modernidade” no registro do
esgotamento niilista. Entretanto, ao longo de 1888, ele faz várias tentativas para
reduzir o artista e o pensador mais “geniais”, a saber, Wagner e Schopenhauer, como
os que radicalizariam a décadence; ao passo que Nietzsche, o “artista” e pensador da
Transvaloração, com seus valores estéticos ainda por construir, quer desencadear a
arte afirmativa do futuro.
Com esses desafios, o Filósofo Solitário retorna ao Nascimento da tragédia, para
reinterpretar o valor de todas produções humanas: arte, religião, filosofia, ciência,
moral seriam aspectos distintos de uma tendência preponderante à mentira. Sem os
erros incorporados ao longo do devir humano não poderíamos viver. O problema da
verdade retorna também para Nietzsche, sem uma saída para suas implicações niilistas.
Nietzsche não assume inteiramente a posição do comediante e artista, que
simplesmente afirma o valor da mentira. A nova orientação para a Aesthetica é um
indício de um caminho a ser percorrido ainda, na fisiologia da arte, no tema da
transfiguração, na distinção entre as formas de embriaguez apolíneas, dionisíacas e as
formas de embriaguez dos modernos, esgotados. O grande problema é que na cultura
25
26
FP 1888 11[415].
Cf. COLLI, 1988, p. 661.
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e na arte de seu tempo predominam os valores niilistas, entendidos agora como
valores da décadence.
É com essas tensões e impasses que Nietzsche incorpora em seu pensar a
“magia dos extremos”, tal como ele havia formulado em 1887:
Nós, imoralistas, somos hoje o único poder que não precisa de aliados para vencer: somos de
longe os mais fortes entre os fortes. Nem precisamos da mentira: que outro poder poderia
eximir-se dela? Uma forte sedução luta por nós, quiçá a mais forte que existe – a sedução da
verdade... da verdade? Quem colocou essa palavra na minha boca? Mas eu a tiro de novo; mas
eu desprezo a palavra orgulhosa: não, nós não precisamos dela também, chegaríamos ao
poder e à vitória ainda sem a verdade. A magia que luta por nós, o olho de Vênus que entrelaça
nossos oponentes e os torna cegos, é a magia do extremo, a sedução que exerce tudo o que é
extremo: nós imoralistas – nós somos os extremos... (FP, 1887, p. 10[94]).
O Imoralista e Filósofo da Transvaloração, contudo, é seduzido pela mentira,
pela arte “em que a mentira se santifica” (GM III 25) como o poder superior em seu
contramovimento ao niilismo. Na longa história do niilismo europeu, marcada pela
vontade de verdade, o resultado é o vazio de sentido. Mas essa crise do valor supremo
da verdade poderia abrir espaço para novos valores “estéticos”, e para uma nova
“hierarquia dos valores”. Essas ponderações aparecem nos planos do início –
primavera de 188827, nos quais há um vínculo forte entre a história do niilismo e a
decadência (Nierdergang), com foco na crítica do valor da verdade. Da mesma forma,
ele trata sempre mais dos valores da décadence, que abarcariam os “valores niilistas”.
Mas a questão da verdade permanece como um empecilho para a transvaloração dos
valores. Podemos entender, assim, porque no último plano da “vontade de poder”
(de 26 de agosto de 1888), todo o primeiro livro seria dedicado ao problema
da verdade:
Livro I. “O que é verdade”?
Capítulo I. Psicologia do erro.
Capítulo II. Valor da verdade e do erro.
Capítulo III. A vontade de verdade (somente justificada no valor afirmativo da vida (FP 1888
18[17]).
É muito problemática essa justificativa para a vontade de verdade. Além desse
esboço de plano, há várias anotações para tentar desenvolver a questão da vontade de
verdade. Os fragmentos póstumos até agosto de 1888 mostram que não há avanços
significativos em relação ao que foi desenvolvido em 1887. O valor afirmativo da vida
27
Cf. FP 1888 13[3] e 13[4].
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está na vontade de erro, de ilusão, de engano, de arte, e não na vontade de verdade.
Assim, é bem compreensível que Nietzsche retome o Nascimento da tragédia como uma
transvaloração “artística”, depois de colocar em segundo plano suas investigações
sobre o niilismo. Mas a arte só tem poder de “violentar a realidade”, em virtude
da mentira:
A metafísica, a moral, a religião, a ciência – elas são levadas em consideração nesse livro
somente como diferentes formas de mentira: com seu auxílio, acredita-se na vida. “A vida deve
inspirar confiança”: assim posta, a tarefa é descomunal. Para resolvê-la, o homem tem de ser
um mentiroso já por natureza, ele tem de ser ainda, mais do que qualquer outra coisa, artista...
E ele é isso também: metafísica, moral, religião, ciência – tudo isso somente rebentos de sua
vontade de arte, de mentira, de fuga da “verdade”, de negação da “verdade”. Essa faculdade
mesmo, graças à qual ele violenta a realidade através da mentira, essa faculdade de artista par
excellence do homem – ele tem ainda em comum com tudo o que existe: ele mesmo é um
pedaço de efetividade, de verdade, de natureza – ele mesmo é um pedaço de gênio da
mentira... (FP 1888 11[415]).
A ampliação do domínio da arte para todas as produções humanas é o
resultado de um longo processo de pensamento. O homem, animal inventivo e astuto,
se destaca pela boa consciência com que cria e frui de ilusões: “e toda moral é uma
decidida e prolongada falsificação, em virtude da qual se torna possível a fruição do
espetáculo da alma. Desse ponto de vista, “o conceito de “arte” incluiria bem mais do
que normalmente se crê” (BM 291).
A insistência em “valores estéticos” é uma tentativa de evadir-se do problema
da verdade. A arte possui mais valor do que a “verdade”; por meio da arte, seria
possível efetivar novas transvalorações, depois da ruína dos valores morais. Após
mostrar que a redenção prometida pela arte dramática wagneriana é um engodo, que
acelera a décadence, Nietzsche propõe o seu modelo de “redenção”, através de um
elogio da arte como contramovimento à décadence e ao niilismo:
A arte e nada mais do que a arte! Ela é a grande possibilitadora da vida, a grande sedutora
para a vida, o grande estimulante da vida.
A arte como a única força superior em contraposição a toda vontade de negação da vida, como
o anticristão, antibudista, antiniilista par excellence.
A arte como a redenção do que conhece, – daquele que vê, que quer ver o caráter terrível e
problemático da existência, do conhecedor trágico.
A arte como a redenção do que age, – daquele que não apenas vê o caráter terrível e
problemático da existência, mas ama-o, quer amá-lo, do homem trágico-guerreiro, do herói.
A arte como a redenção do que sofre, – como caminho para estados em que o sofrimento é
desejado, transfigurado, divinizado, em que o sofrimento é uma forma do grande encanto.
(FP 1888 17[3]).
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A partir de setembro de 1888, Nietzsche repensa radicalmente suas estratégias
de transvaloração, por meio de outras formas de arte da ilusão e da transfiguração,
buscando ainda concretizar seus valores estéticos. Não cabe aqui analisar seus
derradeiros esforços para construir um contramovimento que possa triunfar sobre o
niilismo e a décadence moderna. A persistência do niilismo em 1888, como procuramos
mostrar, é um impedimento enorme para todas as posições afirmativas desse último
ano de sua vida filosófica. Entretanto, são muito valiosas e desafiadoras suas tentativas
de construir uma arte como redenção aos seres humanos, nos tempos sombrios
do niilismo.
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RECEBIDO: 18/10/2021
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Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 34, n. 61, p. 44-61, maio/ago. 2022
RECEIVED: 18/10/2021
APPROVED: 05/26/2022