Multinormatividade, Convivialidade e Direito: Uma Proposta de
Aproximação
José Rodrigo Rodriguez
INTRODUÇÃO
O objetivo deste texto é aproximar as pautas de pesquisas que estão sendo
desenvolvidas no campo do direito sob a denominação de “pluralismo jurídico”,
“pluralismo normativo” e “multinormatividade” e os estudos sobre “convivialidade” que
se desenrolam principalmente no campo das ciências sociais (COSTA, 2019). Como
veremos a seguir tal aproximação nos parece produtiva por oferecer ao direito uma
visão de sociedade preocupada com toda a sua diversidade e com os arranjos
necessários para fazer com que as pessoas convivam entre si. Em face desta visão de
sociedade, a pesquisa em direito será capaz de refletir com mais precisão sobre a
capacidade de suas categorias, raciocínios e instituições de manter a coesão social de
uma sociedade diversa e conflitiva.
Cabe dizer, para começar, que os estudos sobre pluralismo e multinormatividade
no campo do direito tem procurado renovar este campo ao deixar de pensar as
instituições jurídicas como centradas no Estado e seu direito unificado sobre um
território. Tanto do ponto de vista descritivo quanto do ponto de vista normativo, este
modo de pensar admite que a sociedade é composta de normas de natureza variada e
de ordens jurídicas diferentes convivendo em um mesmo território e no espaço global.
Por isso mesmo, a reflexão sobre o direito e a solução de casos concretos deixa
de ser pensada apenas como a aplicação de normas homogêneas e garantidas pelo
Estado a uma comunidade política territorializada, mas também como a reflexão e a
tentativa de solução de conflitos entre normatividades. Conflitos que podem ocorrer
dentro do território do Estado ou para além dele.
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De fato, há instituições hoje, muito mais ricas e muito mais poderosas do que
boa parte das nações do planeta, que editam normas para regular suas atividades e as
impõe transnacionalmente, à revelia do poder dos Estados e da soberania popular de
seus povos. Podemos citar como exemplo a atual dificuldade de regular as questões
relativas a fake News nas plataformas que atuam na internet.
De outra parte, há grupos no interior dos Estados que, apesar de submeteremse ao direito estatal, consideram-se no centro de uma ordem jurídica própria fundada
em um centro de poder diferente da Constituição Federal. Por exemplo, populações
originárias, especialmente indígenas isolados. Há países, inclusive, que se consideram
multinacionais e reconhecem aos tribunais indígenas jurisdição sobre os conflitos
envolvendo sua comunidade.
As categorias, raciocínios e instituições pensadas para um direito da
multinormatividade pode contribuir para refletir sobre a melhor forma de regular uma
série de problemas sociais. Por exemplo, ao invés de editar regras universais e abstratas
para todo um território, o Estado pode também reconhecer como jurídicas regras
criadas pela sociedade, permitindo assim o florescimento de outras ordens jurídicas em
paralelo à ordem estatal.
Sob um estado democrático de direito, é claro, nem todas as normas não estatais
podem ser toleradas pelo Estado: é preciso que elas respeitem ao menos os direitos
fundamentais. No entanto, de outra parte, o reconhecimento do caráter jurídico de uma
ordem normativa pelo Estado pode contribuir para aprofundar a democracia ao admitir,
por exemplo, que povos originários manifestem obediência às suas próprias instituições
em primeiro plano, ainda que se mantenham também como cidadãos brasileiros.
Além disso, para solucionar uma série de problemas globais, como o controle da
internet, tem sido necessário criar uma normatividade para além dos Estados nacionais
e dos interesses de grandes conglomerados econômicos, combinando regras editadas
pelos Estados e regras criadas e geridas autonomamente pelas empresas, em modelos
de regulação híbridos que não se confundem nem com o direito estatal nem com o
direito internacional.
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Toda esta complexidade por ser colocada à serviço de arranjos construídos pela
própria sociedade, desde que democráticos, tudo com a finalidade de promover a
convivência não violenta entre pessoas, empresas, animais e outros entes ao redor do
planeta. Cabe esclarecer que este texto não irá analisar nenhum caso concreto: seus
objetivos são exclusivamente teóricos. A partir dele, assim esperamos, pode ser possível
construir análises empíricas e avaliações críticas informadas de problemas jurídicos
contemporâneos.
Assim, em sua primeira parte, o texto irá apresentar a relação entre
multinormatividade e convivialidade pensada como uma visão a respeito da sociedade
e de seus conflitos. Seu objetivo será construir uma visão de direito que incorpore a
convivialidade como perspectiva privilegiada para analisar a complexidade dos conflitos
sociais em estados democráticos de direito e avaliar suas ferramentas tendo em vista a
efetivação da democracia.
A seguir, na segunda e na terceira parte, o texto irá desenvolver dois modelos de
direito, o modelo tecnocrático e o modelo democrático, mostrando como a ideia de
convivialidade, vista como conceito normativo, pode ajudar a identificar o modelo mais
adequado para um estado democrático de direito. Trata-se aqui demostrar que o
modelo democrático dispõe de instrumentos capazes de fazer com que o direito
expresse os interesses e desejos da sociedade, contribuindo assim para fomentar e lidar
de forma não violenta com os conflitos de uma sociedade plural e diversa.
Um objetivo secundário deste texto é ligar este debate com a tradição da
pesquisa em direito brasileira, mais especificamente, com as reflexões a respeito do
direito como tecnologia desenvolvidas por Tercio Sampaio Ferraz Jr., as quais me
parecem bastante próximas dos problemas que trataremos aqui. Ao realizar este
objetivo, pretendo conferir mais densidade à noção de “direito como tecnologia” que,
na obra de Ferraz Jr. é bastante vaga e desenvolver uma de suas ideias a respeito do
raciocínio jurídico como disputa entre interpretações que procuram criar ambiguidades
em códigos fortes e desambiguar códigos fracos, noção que ele trouxe da obra
“Gramática do Poder” de Issac Epstein.
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DIREITO, SOCIEDADE E JUSTIÇA
Sugerir que um profissional do direito reflita sobre questões de justiça durante
seu expediente de trabalho pode se revelar, em vários sentidos, um convite incômodo
e impertinente. Afinal, em uma primeira aproximação, para exercer bem a sua função,
para não ser acusado de usurpar a vontade do povo, tais profissionais deveriam
examinar os problemas jurídicos como se o debate sobre a justiça das leis e da
Constituição Federal teria ficado para trás. O direito não tem como finalidade oferecer
decisões justas, mas sim decisões conforme a constituição e as leis.
Nesse registro, os profissionais do direito começam a atuar depois que o
problema da justiça já foi resolvido no campo da política, ou seja, durante os debates
ocorridos na esfera pública e no interior do sistema político, tendo como protagonistas
cidadãos, cidadãs e seus representantes. Afinal, tais agentes sociais relacionam-se entre
si e se envolvem em conflitos fazendo uso das leis existentes, também debatem a
necessidade de criar leis novas, de adotar novas interpretações das leis existentes. No
limite, podem até defender projetos de fundar uma nova ordem jurídica (COVER, 1983,
1986).
Na visão de Robert Cover, a sociedade é fonte constante e narrativas sobre o
bem e o mal que podem apresentar como propostas de novas ordens jurídicas, em
conflito com todo um ordenamento jurídico vigente ou como propostas de novas
normas jurídicas ou de novas interpretações de normas jurídicas em vigor em
ordenamentos jurídicos existentes, fenômeno que ele denomina de jurisgênese (COVER,
1983). Deste ponto de vista, a sociedade se mostra como multinormativa, ou seja, um
espaço em que convivem normas de natureza diversa, normas jurídicas, normas morais,
normas éticas, normas religiosas, normas de natureza técnica, entre outras.
A capacidade de um determinado ordenamento jurídico de criar normas e
interpretações que reconheçam as diversas narrativas sobre o bem e o mal – que
justificam determinadas formas de vida - está diretamente relacionada com sua
legitimidade. Afinal, se o direito naturalizar suas categorias e raciocínios e fechar as
portas para a complexidade de multinormatividade social pode incentivar os agentes
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sociais e grupos a romper com aquele regime político e criar outro (para cover
“constitucionalismo redentor”) ou buscar isola-se em uma comunidade fechada, sem
comunicação com o restante da sociedade (nos termos de Cover “constitucionalismo
insular”).
Em sociedades regidas por instituições formais como o Estado, ao lado da
jurisgênese, que ocorre no âmbito do que vou chamar de uso social do direito, o qual
inclui necessariamente debates sobre a justiça das leis e das interpretações, temos uso
oficial do direito, ou seja, a interpretação do direito realizado pelos funcionários e
autoridades da burocracia estatal e pelos profissionais do direito em geral no exercício
de suas funções.
Para Robert Cover, esta dimensão do direito tem necessariamente um caráter
jurispático, pois implica na destruição de normas e de interpretações, afinal, nem
sempre os desejos e interesses sociais se mostram compatíveis. Tal fato exige a escolha
de uma interpretação em detrimento de outras e no reconhecimento da validade de
uma norma e não de outras. As decisões oficiais, portanto, tem o poder de proteger ou
não as formas de vida que utilizam certas normas e intepretações como justificativa de
sua existência na convivência conflitiva com os demais membros da sociedade.
Nesse sentido, a partir da Cover, é razoável partir do pressuposto de que os
agentes sociais procuram influenciar as autoridades a tomarem decisões que estejam
de acordo com seus desejos e interesses – ou seja, que ajudem a viabilizar ou não sua
forma de viver - por meio de seus advogados e advogadas, na condição de partes de um
processo, ou na condição de cidadãos e cidadãs participantes de debates e protestos na
esfera pública.
Isso se explica porque em sociedades democráticas a produção das normas que
regulam a vida em sociedade deve contar com a participação de todas as pessoas
afetadas por elas, as quais procuram fazer com que elas expressem seus desejos e
interesses (RODRIGUEZ, 2019). Apenas desta maneira tais normas serão consideradas
justas e não instrumento de pura violência. Neste registro, portanto, a violência do
direito, ou seja, a violência organizada exercida pelo Estado, será mais ou menos
violenta em função de sua capacidade de expressar os desejos e interesses da
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sociedade, criando ou reinterpretando normas que ajudem a viabilizar e proteger
diversas formas de viver.
O problema central que uma democracia põe para o direito é estabelecer
arranjos capazes de conciliar, ainda que temporariamente, os interesses e desejos de
todas as pessoas por meio de leis e decisões judiciais que as desestimulem a utilizar de
meios violentos. Por este motivo, como mostraram Hans Kelsen e, com mais clareza,
Franz Neumann (KELSEN; NEUMANN, 2013) pela primeira vez, um direito democrático
deve funcionar desligado de qualquer concepção naturalizada dos valores. Tal direito
deve poder ser modificado em resposta à dinâmica dos conflitos sociais, exceto no que
diz respeito aos institutos jurídicos que protegem o pluralismo e a diversidade social e
que institucionalizem juridicamente o conflito como mecanismo de decisão, o que
vamos chamar de forma direito democrático (v. RODRIGUEZ, 2019; NEUMANN, 2013;
HABERMAS).
Em sociedades democráticas o direito deve ser capaz de oferecer respostas que
garantam o convívio entre as pessoas, alterando seu conteúdo e, muitas vezes, o
desenho de suas instituições (RODRIGUEZ, 2019). Tais respostas, por meio de gramática
das regras (RODRIGUEZ, 2019) exigem que sejam sacrificados os interesses e desejos de
alguns em favor dos desejos e interesses de outros.
Esta gramática utiliza regras de conduta para criar posições jurídicas ativas e
posições jurídicas passivas – para simplificar, espécies variadas de direitos subjetivos e
de deveres - protegidas pelas instituições do Estado as quais colocam os interesses e
desejos e determinas pessoas na posição protegida e os desejos e interesses de outras
em posição subordinada, permitindo que as primeira, no caso mais trivial, exijam um
determinado comportamento das segundas, sob a ameaça das instituições coercitivas
do Estado (ver HOHFELD , LUMIA, ). Importante notar que se trata de uma modalidade
de ação estatal que concentra em suas instituições a produção de normas jurídicas.
O direito também pode utilizar respostas desenhadas com a utilização da
gramática da regulação social. Tal gramática permite atribuir o poder de criar normas
jurídicas diretamente aos agentes sociais e grupos por meio de regras de competência
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que reconheçam a legalidade de normas sociais de qualquer natureza (morais, éticas,
religiosas, negociais, técnicas) (RODRIGUEZ, 2019).
Note-se que na origem desta gramática está a autonomia privada, cujo
instrumento central é o contrato, que era reconhecido como fonte de direito antes
mesmo da existência de Estados nacionais. Hoje em dia, a gramática de regulação social
é utilizada tanto para reconhecer normas nascidas de relações privadas quanto, entre
outras hipóteses, para proteger os direitos de populações originárias, reconhecendo
jurisdições indígenas independentes (ver) e protegendo indígenas isolados e suas
instituições, uma proteção regida pelo direito público (ver ).
Nestes casos, as normas jurídicas podem viabilizar e proteger uma série de
arranjos sociais construídos nas relações cotidianas, os quais garantem a
interdependência e a interpenetração entre processos, espaços e interações, sejam eles
baseados na cooperação, na competição ou conflito, fenômeno estudado pelos
pesquisadores da convivialidade (ver COSTA, 2019). Ademais, as normas jurídicas
também podem ajudar a produzir ou transformar os arranjos de convivialidade ao serem
apropriadas e utilizadas por agentes e grupos em suas disputas.
Pesquisas mostram que a Constituição e as leis podem alterar a autoidentificação
dos agentes sociais e dos grupos na interação com o direito estatal, modificando seu
comportamento em face dos demais agentes e grupos. Por exemplo, uma pessoa que
se via e se apresentava como “parda” passa a ver a si mesma e a reivindicar direitos
como “indígena” ou “quilombola” a partir do momento em que grupos originários se
organizam e conquistam na esfera pública e na disputa política a proteção do direito
estatal (v. FRENCH, COSTA).
Como se vê, é implausível imaginar uma sociedade democrática em que uso
social e uso oficial do direito estejam em perfeita harmonia. Uma sociedade em que os
interesse e desejos sociais em conflito não promovam mudanças nas normas jurídicas,
ou seja, mudanças no texto das leis e em sua interpretação. A coincidência completa
entre sociedade e direito, entre vida e norma, seria imaginável apenas em um regime
autoritário que controle a educação, a livre expressão do pensamento, a criação de
várias interpretações dos textos normativos e elimine, inclusive fisicamente, os
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dissidentes. Tal coincidência também pode ser pensada em uma sociedade utópica em
que reine a concórdia universal entre todas as pessoas e a harmonia entre pessoas,
animais e meio ambiente, ou seja, no Paraíso.
Por isso mesmo, qualquer reflexão sobre o direito em uma democracia deve
situar-se no intervalo tenso entre o uso social e o uso oficial do direito tendo em vista a
multinormatividade nascida das diversas maneiras em que as pessoas organizam seu
convívio. Assim, os pesquisadores e pesquisadoras em direito devem desenvolver visões
mais ou menos sistemáticas de como as leis e as decisões de casos concretos deveriam
ser a partir de uma análise crítica do uso oficial do direito tendo em vista a complexidade
das demandas nascidas dos interesses e desejos sociais e a utilização adequada das duas
gramáticas do direito ocidental referidas acima.
O estudo do direito em uma democracia, portanto, tem (i) um momento
empírico que consiste na observação externa do direito com a finalidade de identificar
e organizar os modelos de regulação (ou modelos de juridificação dos fatos sociais), as
categorias jurídicas e os padrões de racionalidade utilizados nos conflitos de
interpretação que ocorrem em um determinado contexto e (ii) um momento normativo
que consiste na avaliação das instituições e de sua capacidade de oferecer respostas
jurídicas que incluam os interesses e desejos sociais em permanente conflito.
Tal momento normativo, quando falamos no contexto de um estado
democrático de direito, confunde-se em parte com o ponto de vista interno ao direito.
Afinal, neste regime político, a defesa de democracia se torna, inclusive, dever funcional
das autoridades do Estado. Dizemos “em parte”, pois sempre será possível criticar uma
determinada democracia em concreto em nome de outros modelos de democracia ou
criticar e democracia em nome de um outro regime político, desde que não se conspire
concretamente para destruí-la.
O DIREITO COMO TECNOCRACIA
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Em face do que foi dito até agora, podemos dizer que o direito consiste em uma
tecnologia destinada a solucionar conflitos, um meio de gestão da multinormatividade
nascida do uso social do direito, codificada em uma série da raciocínios e procedimentos
padronizados que servem para solucionar casos concretos a partir de normas abstratas
ou para reconhecer o caráter jurídico a normas produzidas pela sociedade na construção
de sua convivialidade.
Dizer que o direito seja uma tecnologia significa dizer que estamos diante de um
instrumento destinado a realizar finalidades definidas pelos homens e pelas mulheres
reunidos em uma comunidade política e não da expressão de valores metafísicos
(BOBBIO, 2006; FERRAZ JR., 2014, 2019). Mas tal instrumento pode assumir
características diferentes a depender da maneira como a sociedade desenhe suas
instituições e distribua o poder entre Estado e sociedade e entre os poderes do Estado.
Um primeiro modelo, que chamarei de modelo tecnocrático, exige que o jurista
seja pensado como um técnico a quem cabe refletir a ajudar a encontrar respostas para
problemas jurídicos concretos de forma impessoal, tomando as leis e a Constituição
como ponto de partida indiscutível. Como dogmas indiscutíveis a serem interpretados,
de preferência, em seu sentido literal, pois resultantes da manifestação da soberania
popular.
Mesmo nesse modelo, isso não significa que os profissionais do direito estejam
totalmente proibidos de debater a justiça das leis e das decisões judiciais. Na condição
de cidadãos e cidadãs, participando das atividades políticas desenvolvidas por sua classe
profissional ou na condição de professores e professoras, profissionais do direito podem
participar desses debates, ainda que normalmente sejam proibidos de se filiarem a
partidos políticos e atuar na política partidária. No entanto, este modelo separa com
rigidez o momento de debate sobre a justiça das normas, que é social e político, e o
momento da interpretação das normas, que é oficial e jurídico. Ficam separadas teórica
e institucionalmente justiça e a legalidade.
Esta neutralização político-social do judiciário e do direito (a) sob a forma da
impessoalidade do Juiz ou da Juíza, funciona, em primeiro lugar, como um equipamento
semântico de proteção profissional. Estamos diante de um conjunto de significados
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padronizados; um esquema interpretativo da função profissional dos juristas capaz de
garantir a eles alguma paz de espírito no exercício de sua função. Afinal, trabalhar sob a
exposição de toda a intensidade dos problemas jurídicos, tendo o dever que levar em
conta todos os desejos e interesses em jogo e toda a complexidade social, política,
econômica que o problema levanta pode se tornar subjetivamente insuportável para
qualquer pessoa.
O dever de impessoalidade, que inclui o dever de julgar conforme a lei, ajuda,
portanto, a viabilizar existencialmente o exercício destas funções. O profissional do
direito pode deixar de lado, em larga medida, uma parte da complexidade do problema
com o qual está lidando para privilegiar apenas o que as leis consideram relevante.
Assim, o que para um réu ou para uma ré pode ser um grave drama pessoal, um conflito
com consequências importantes sobre sua vida e sobre seu patrimônio, transforma-se
em uma atividade relativamente trivial para as pessoas que atuam em processos
judiciais. Uma atividade que deve ser exercida com distanciamento emocional, caso
contrário, tais profissionais seriam submetidos a um stress emocional insuportável.
Nesse sentido, o encontro entre cidadãos e profissionais do direito não é - e
provavelmente jamais deva ser - um encontro entre seres humanos tout court, entre
pessoas na integralidade de seus desejos e interesses. Trata-se de um encontro entre
pessoas no exercício de funções institucionalmente desenhadas que se dão em
procedimentos formais que limitam a expressão de toda a sua humanidade, impondo a
utilização de categorias, padrões de raciocínio, de linguagem e critérios previamente
definidos para julgar os casos concretos.
À exemplo dos profissionais de saúde, que precisam confiar no estado atual da
ciência e da técnica para chegar a um bom diagnóstico e serem capazes de propor um
tratamento adequado para seus pacientes, profissionais do direito também precisam
contar com materiais de trabalho bem construídos - as leis e a Constituição - e com bons
procedimentos, consagrados pela comunidade jurídica, para poderem trabalhar
adequadamente. O domínio da tecnologia jurídica funciona, desta perspectiva, como
uma proteção existencial no exercício das funções profissionais.
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O raciocínio acima inspira-se em sugestões teóricas de Robert Cover,
especialmente as contidas no texto “Violência e Palavra”. Neste trabalho, Cover afirma
que a melhor perspectiva para estudar o direito é a perspectiva do carrasco, ou seja, da
pessoa que irá efetivamente executar a sentença, muitas vezes, sobre o corpo das
pessoas envolvidas. O texto é econômico nesse ponto, limitando-se a afirmar que a
consequência teórica desta forma de ver o direito é encarar a interpretação jurídica
como uma atividade que estabelece num “campo de dor e a morte”, assumindo a função
jurispática, ou seja, inviabilizando certas interpretações de normas e a criação social de
determinadas normas.
Explorar esta sugestão de Robert Cover pode nos ajudar a construir uma nova
visão a respeito da função da jurisdição, do papel do juiz e da juíza e da racionalidade
jurisdicional. Uma visão que incorpore a seus conceitos a percepção que, ao menos até
este momento da história do direito ocidental, juízes, juízas e carrascos são pessoas
dotadas de corpos físicos. Não são algoritmos, mas seres humanos em convívio com seus
semelhantes, pessoas que precisam ser levadas em conta pelo estudo do direito.
Seguindo esta linha de raciocínio, a neutralização política do direito, quando
pensada a partir dos corpos físicos dos profissionais do direito, servem também para (b)
garantir que a vontade da soberania popular, atuante na criação das leis, não seja
frustrada, pervertida ou apropriada de maneira indevida, ou seja, puramente subjetiva,
por estes profissionais. Do ponto de vista dos juízes e juízas, trata-se, assim, de uma
proteção contra qualquer tipo de desejo ou viés interpretativo que não possa ser
tornado público nas fundamentações das decisões. A tecnologia, nesse sentido,
funciona como proteção contra o subjetivismo dos profissionais do direito.
Tal afirmação merece um esclarecimento que, como veremos, levanta um grave
problema para a utilização deste modelo. Se há um ponto em que os teóricos do direito
contemporâneos concordam é que o direito é indeterminado, ou seja, existe um espaço
aberto para a interpretação da Constituição e das leis pelos profissionais do direito. O
problema da hermenêutica jurídica não é identificar o sentido dos textos, mas atribuir
sentido a eles de acordo com padrões de racionalidade considerados adequados pela
comunidade jurídica que, de fato, alimenta discordâncias a respeito deles, tantos entre
juristas práticos quando entre professores e professoras de direito.
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Seja como for, mesmo autores que afirmam que tal espaço deve ser preenchido
pela discricionariedade do intérprete, que pode inclusive aplicar, no campo do direito,
normas econômicas, morais, entre outras (HART), afirmam tal coisa sob o pressuposto
que decisões discricionárias ocorreriam muito raramente. O uso da discricionariedade
seria feito apenas em casos isolados (RAZ), irrelevantes para descaracterizar o padrão
de racionalidade jurídica positivista tradicional, caracterizado pela subsunção do caso
concreto à norma geral.
Considerando-se assim que o direito admite interpretação, que ele é uma prática
interpretativa, é evidente que juízes e juízas poderão desenvolver visões diferentes de
um mesmo caso. Pode haver mais de uma interpretação nos casos concretos, ou seja,
isso significa que o direito é indeterminado. Mas isso não significa que eles e elas possam
decidir subjetivamente, de acordo com percepções puramente subjetivas. Toda decisão
deve ser racionalmente justificada, ainda que haja discordância sobre qual deve ser o
padrão de racionalidade destas justificativas. A imparcialidade funciona, portanto, como
garantia contra a autarquia do Poder Judiciário, afastando a possibilidade de que
problemas jurídicos sejam decididos pela mera subjetividade dos profissionais do direito
e não pelos critérios objetivos estabelecidos pelas leis.
Cabe observar que a imparcialidade também protege o profissional contra si
mesmo, ou seja, contra eventuais tentações de adotar determinados vieses para
interpretar as leis. Por exemplo, vieses baseados em suas emoções em estado bruto, em
sua simpatia pela pessoa de uma das partes ou por sua ideologia, em informações de
senso comum que não tenham sido submetidas a um exame racional, em estereótipos
preconceituosos variados, em ideologias político partidárias, entre outros.
Diante do que foi dito, fica claro o que está em jogo na distinção entre questões
de justiça e questões dogmáticas, entre uma análise filosófica, crítica do direito e de
seus fundamentos e uma análise estritamente técnica. Em suma, a diferença entre
pensar o direito filosoficamente e pensá-lo como mera tecnologia. Estão em jogo a
impessoalidade do juiz diante do caso, a imparcialidade do juiz diante das partes, o lugar
do Judiciário na separação de poderes e, ademais, o conforto subjetivo dos profissionais
do direito no exercício de sua função.
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Misturar questões de justiça com a técnica jurídica, de acordo com este modelo,
pode promover um abalo considerável no exercício das funções dos profissionais de
direito. Em muitos aspectos, portanto, trazer a filosofia para dentro do direito, ou seja,
para o ponto de vista interno ao direito pode soar altamente indesejável. No entanto,
se partirmos do pressuposto de que o direito admite interpretações dos textos
normativos, o trabalho do jurista não pode ser apenas aplicar a literalidade do texto a
casos concretos. Admitir esta descrição do trabalho do juiz significa, por assim dizer,
voltar a personalizá-lo para que ele possa atribuir sentido ao texto a partir de uma certa
visão do direito, uma certa visão sobre a justiça do caso. Uma visão que poderá estar
fundada em uma tomada de posição valorativa a respeito dos princípios sobre os quais
aquela ordem jurídica está fundada.
O debate contemporâneo tem se colocado esta questão há tempos, mas sem
clareza a respeito do seguinte fenômeno: se admitirmos que o direito é indeterminado,
atribuir exclusivamente ao juiz e ao judiciário o poder de interpretar os textos faz com
que esta instituição assuma feições tecnocráticas, mesmo que ela justifique
adequadamente as suas decisões. Como estamos diante, no fim das contas, do poder
de criar normas jurídicas, inclusive de validade geral, especialmente quando falamos de
decisões dos Tribunais e das Cortes Constitucionais, gerir a indeterminação do direito
exclusivamente via Judiciário faz com que esta instituição se aproprie de fato de parte
do poder da soberania popular (para este argumento, ver RODRIGUEZ, 2019).
Diante de todos estes problemas, será que esta formulação do significado do
trabalho do jurista é satisfatória? Devemos eliminar todo e qualquer traço de
personalidade da função jurisdicional e dos problemas jurídicos tendo como horizonte,
no limite deste modo de pensar, a construção de comportamentos que possam ser
reproduzidos por programas automatizados capazes de tomar decisões baseadas em
critérios rígidos a serem aplicados sem levar em conta as características singulares de
cada problema jurídico concreto? Mas isso é mesmo possível? Como evitar que, diante
da indeterminação do direito, juízes e juízas acabem decidindo de fato apenas conforma
a sua vontade subjetiva, usurpando parte do poder da soberania popular?
A situação inversa parece ser evidentemente indesejável: identificar o
julgamento no campo do direito com julgamentos morais e políticos, eliminando a
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distância entre justiça e legalidade para atribuir à jurisdição o poder de decidir sem levar
em conta critérios objetivos e procedimentos formais. Pois uma solução como essa
transformaria o estado de direito em um estado autárquico, abrindo espaço para o puro
arbítrio subjetivista. No entanto, em face da indeterminação do direito, talvez seja
necessário deixar de lado este modelo e pensar em uma alternativa para a tecnologia
jurídica que não abra espaço para o subjetivismo de juízes e juízas.
O DIREITO COMO TECNOLOGIA DEMOCRÁTICA
O que desejamos dos profissionais do direito é mesmo a adoção de uma postura
insensível ao enfrentar os problemas humanos que lhe são apresentados, uma total
indiferença ao debate de valores e às pessoas que se apresentam diante do Judiciário
para obter uma solução para os conflitos em que estão envolvidas? Ainda, construir um
modelo assim é possível em face da indeterminação do direito? Caso as respostas a estas
perguntas sejam negativas, qual seria a alternativa?
Como pensar em instrumentos e procedimentos técnicos que não transformem
o direito em mera opinião subjetiva, frustrando a soberania popular e comprometendo
a imparcialidade do Judiciário? Uma “técnica jurídica” assim concebida poderia
comprometer a autoridade das leis e da Constituição, pois os textos normativos se
revelariam meros pretextos utilizados para justificar a visão pessoal de qualquer um e
de cada jurista. Qual é o custo teórico e político de alterar a relação entre pensamento
jurídico e reflexão filosófica, admitindo que o problema da justiça deve ocupar os juristas
durante o seu expediente de trabalho?
As teorias da argumentação e o positivismo contemporâneo têm proposto novos
modelos de raciocínio jurídico, para além do modelo positivista clássico do juiz boca da
lei, e enfrentado vários dos problemas que acabo de mencionar, ainda que nem sempre
tenham apresentado com clareza a imagem de técnica jurídica, de juiz e de judiciário
que emergem de suas propostas.
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O sofisticado debate teórico no campo do direito não tem dialogado com o
conceito de separação de poderes, ou seja, não tem se preocupado em reformular
organizadamente o papel do Juiz e dos demais profissionais do direito no estado
democrático do direito. Como discutido acima, toda esta inovação pode terminar
justificando a apropriação da soberania popular pelo poder judiciário (RODRIGUEZ,
2014, 2019). Por isso mesmo, é importante discutir a necessidade de um modelo
democrático de técnica jurídica que evite os problemas do modelo anterior no que se
refere a efetivação e o aprofundamento da democracia prevista em nosso texto
Constitucional.
Em primeiro lugar, seguindo a ordem da exposição anterior, a proteção
existencial oferecida pela impessoalidade da função jurisdicional à qual nos referimos
acima pode trazer alguns inconvenientes. Como dissemos acima, se o valor fundamental
do direito for eliminar a humanidade do julgador em nome da segurança jurídica,
burocratizar ao extremo a função jurisdicional para tornar os profissionais de direito
verdadeiras “bocas da lei”, podemos estar preparando terreno para a eliminação da
função jurisdicional exercida por seres humanos em favor programas de computador.
Além disso, se admitirmos que o direito é indeterminado, esta construção teóricoinstitucional funcionará como mera fachada para decisões autárquicas.
Não há problema algum, a princípio, em especular e pesquisar sobre um
horizonte em que parte das funções jurisdicionais sejam substituídas por máquinas.
Resta avaliar se esta seria a melhor alternativa a ser seguida por um estado democrático
de direito. A supressão da humanidade dos organismos decisórios e a irrelevância da
humanidade das partes serve melhor à democracia do que a utilização de seres
humanos com poder para interpretar as leis e a Constituição?
Com Klaus Günther (GÜNTHER, ), tendo a acreditar que não. É papel da jurisdição
examinar toda a complexidade dos casos concretos e as características singulares das
partes no processo antes de formar a convicção e justificar uma decisão judicial. A
segurança jurídica não pode significar a recusa de ouvir cada caso, cada problema
jurídico no singular. Revela-se neste ponto a importância da indeterminação para a
democracia: apenas um direito indeterminado será capaz de responder às
transformações sociais. Vejamos.
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É senso comum afirmar que as leis são incapazes de antecipar todos os
problemas que a jurisdição irá enfrentar no futuro, ainda que seja materialmente
impossível conhecê-lo. O legislador elabora os textos de lei na tentativa de antecipar os
conflitos sociais que os cidadãos e cidadãos irão enfrentar, sempre com base em
informações que obteve no passado. Insisto, por definição, é impossível obter
informações seguras sobre os problemas que a sociedade e o direito irão enfrentar no
futuro.
É justamente por isso que cabe aos juízes e juízas utilizar seu senso de adequação
(GÜNTHER) para atualizar o sentido dos textos normativos. Muitas vezes, a sociedade
não pode esperar que o legislativo edite novas leis, atualizando o conhecimento
disponível a respeito dos problemas sociais. É preciso tomar decisões naquele momento
específico, mesmo em face da indeterminação do direito.
Além disso, quando estas supostas leis forem efetivamente criadas, novos
problemas sociais já terão surgido e não parece razoável exigir que o Parlamento
atualize a Constituição e as leis do país em intervalor de tempo muito curtos. A
dificuldade política para criar uma lei controversa é sempre muito alta e ela já nascerá
desatualizada. Por isso mesmo, parece razoável supor que a edição constante de leis
novas pode comprometer a segurança jurídica mais do que julgamentos inovadores que
procurem atualizar o sentido de textos antigos para casos específicos, um a um.
Assim, é dever de juízes e juízas, em uma jurisdição democrática, verificar se cada
caso pode ser resolvido com fundamento nas normas e interpretações hegemônicas ou
se será necessário criar interpretações que atualizem o sentido dos textos para melhor
abarcar os desejos e interesses da sociedade expressos no caso. Notemos que a decisão
de criar interpretações inéditas das leis e da Constituição não pode ser tomada por um
programa computacional: os algoritmos funcionam a partir de padrões definidos no
passado, padrões extraídos de um acervo de informações com o qual foram
alimentados.
Para que um estado de direito democrático não comprometa sua legitimidade
no momento de julgar problemas jurídicos concretos, todo caso deve ser examinado
como se fosse único, mesmo que depois ele se revele semelhante a um grupo de casos.
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Afinal, determinadas circunstâncias de fato e características do direito pertinente ao
caso podem ser decisivas para que aquele problema jurídico singular receba a resposta
mais adequada. Uma escuta a partir do abstrato, que não mergulhe na complexidade
do sensível, pode fazer com que as partes vejam negado o seu direito de serem
efetivamente ouvidas pelo Poder Judiciário.
Por isso mesmo, o caminho mais democrático para a jurisdição, em nossa
opinião, seria garantir condições materiais para que cada caso fosse ouvido em toda a
sua complexidade, o que exigiria diminuir o acervo de processos hoje sob a
responsabilidade de juízes e tribunais. A tentativa de solucionar estes problemas pela
via computacional ou pela burocratização do pensamento e da prática jurídica contribui
para diminuir a capacidade da jurisdição de lidar com a complexidade da sociedade, ou
seja, a priva de uma escuta atenta aos problemas sociais que lhe são encaminhados sob
a forma de processos judiciais.
Mas a exposição dos profissionais do direito à complexidade dos casos concretos
não eliminaria a proteção existencial que a impessoalidade oferece a eles e poderia
trazer ao primeiro plano sua subjetividade, ameaçando também sua imparcialidade? A
adoção de uma técnica jurídica atenta ao sensível, menos voltada para a formalidade
abstrata das regras, que admita que o direito pode ser interpretado, não poderia
comprometer o bom funcionamento de um estado democrático de direito? Não há
como deixar de lado esta questão, ainda mais em face dos riscos que a indeterminação
do direito apresenta para a legitimidade do Estado.
Nesse ponto da exposição, vale a pena recorrer a uma antiga distinção elaborada
por Ivan Illich em seu livro “Tools for Conviviality”, a distinção entre ferramentas
manipuladoras e ferramentas manipuláveis. Illich usa o termo “ferramenta” para se
referir a utensílios, máquinas complexas e instituições que estão à serviço de objetivos
definidos pelas pessoas e ajudam a produzir coisas materiais ou entes imateriais como
ideias ou, no caso do direito, decisões (ILLICH, ) .
O autor não é um determinista tecnológico, ele não apresenta uma crítica radical
das ferramentas em nome da uma existência que prescindam de sua utilização. Ao
contrário, sua crítica às ferramentas se dá na interação dos homens como elas, partindo
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do pressuposto de que o uso de tecnologias é algo necessário e positivo para a
humanidade. Para ele, é justamente a convivialidade, aqui vista como conceito
normativo, que permitiria desenhar as ferramentas para favorecer um intercambio
harmonioso entre as pessoas e os grupos, acolhendo tudo aquilo que for estranho a uma
determinada coletividade, ou seja, na linguagem deste texto, novos desejos e demandas
nascidos do conflito social.
Há ferramentas “manipuláveis” que fomentam a convivialidade, ou seja,
permitem que seus usuários expressem suas intenções por meio da ação e ferramentas
“manipulativas” que põe o sujeito na posição de mero objeto, suprimindo seu poder de
realizar juízos de valor. Estas últimas têm seus fins pré-determinados por outrem ou por
necessidades técnicas e por isso invertem a relação entre pessoas e ferramentas: as
pessoas é que se colocam a seu serviço (ILLICH, ).
É claro que esta distinção não deve ser utilizada de maneira radical e esse ponto
é crucial para o direito: as tecnologias podem ser pensadas como uma combinação entre
heteronomia e autonomia tendo em vista o objetivo de fomentar um convívio que inclua
os desejos e interesses de todos os membros de uma comunidade. Mesmo instituições
manipuláveis podem ter o seu momento coercitivo.
Assim, tal distinção nos convida a pensar como o direito (i) ou como uma
ferramenta tecnocrática desenhada para atender ao imperativo do consumo rápido, ou
seja, a eficiência e a segurança jurídica, (ii) ou como uma ferramenta democrática
desenhada para lidar com uma variedade de desejos e interesses tendo em vista criar
arranjos capazes de manter a coesão de sociedade plurais, diversas e dinâmicas, sem
prescindir de seu momento coercitivo.
Como afirma Illich em sua crítica à sociedade industrial, saímos da era da
ferramenta e entramos na era dos sistemas em que já não se pensa em termos de
causalidade. Por exemplo, os médicos não escutam mais o que seus pacientes sentem,
não buscam sua anamnese. Tornam-se profissionais treinados no funcionamento de
determinados subsistemas de um corpo humano concebido abstratamente. O paciente
é agora uma “vida” que emerge de seus genes para uma ecologia de vidas que devem
ser geridas sob o imperativo da eficiência (ILLICH, 1995). Com efeito, as pessoas passam
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a objetificar a si mesmas: consideram-se “produtoras” de seus corpos e como parte do
texto cibernético da sociedade (ILLICH, 1986).
Illich aponta transformações na linguagem que atestam tais mudanças. As
pessoas deixar de “ter necessidades” e passam a ser definidas como “necessitadas”, elas
não trabalham mais, “têm um trabalho”, não aprendem mais, “têm escolaridade”: o
sujeito deixar de ser o centro da comunicação. Os conflitos passam a ser vistos como
disputas por recursos escassos e não como um problema de distribuição justa. De sua
parte, a linguagem passa a ser considerada um meio de comunicação e não uma
ferramenta de expressão e passa a ser codificada em padrões rígidos de significado,
deixando de estar à serviço da expressão da subjetividade dos indivíduos e grupos
(ILLICH, 1978).
Pensando o direito a partir destas reflexões, podemos dizer que é justamente a
indeterminação do sentido dos textos normativos que permite que as pessoas que se
utilizam deles possam utilizá-los para fomentar a convivialidade, ou seja, reconhecer
novos interesses e desejos não previstos pelo legislador. É claro que, se o caso concreto
não exigir uma interpretação inovadora, juízes e juízas devem julgá-lo de acordo com a
interpretação prevalente naquele contexto e momento histórico. E o judiciário tem o
poder de tomar esta decisão, este é o momento heterônomo da tecnologia jurídica, que
tem como função social produzir decisões em situações controversas e não produzir
especulações sem fim.
No entanto, isso não significa que esta decisão deva ser tomada de cima para
baixo, a partir do texto abstrato das leis, de forma solitária, subjetiva, individualista pelo
magistrado ou magistrada. Em primeiro lugar, as partes em um processo produzem as
suas respectivas interpretações do casso tendo como objetivo satisfazer os seus desejos
e interesses. Juízes e juízas decidem em face de ao menos duas versões do mesmo
problema jurídico.
Digo “ao menos”, pois pode ser que a jurisdição ouça peritos a respeito de fatos
pertinentes ao processo e, no caso do STF, podem ser ouvidos amicus curiae – amigos
da corte que são chamados a opinar sobre assuntos de sua especialidade - e
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participantes de audiências públicas nas quais são debatidos amplamente os problemas
a serem decididos por entidades interessadas e afetadas na decisão.
A incorporação de mecanismos desta natureza na estrutura do poder judiciário,
no caso das audiências públicas, trata-se de um fenômeno recente, facilita a
compreensão da complexidade do caso a ser julgado e permite que mais pessoas
interessadas e afetadas participem da formação da decisão, tornando a tecnologia
jurídica mais manipulável do que manipuladora por abrir espaço para a sociedade na
construção da decisão dos juízes e juízas.
Retomando o que ei dizia acima, as partes – e qualquer outra pessoa interessada
- podem, em um estado democrático de direito, produzir versões próprias do problema
jurídico no qual estão envolvidas. O processo judicial se alimenta justamente do debate
entre ao menos duas versões. A construção destas versões é possível pois as partes, seja
diante de normas fechadas, que procurem descrever com precisão os fatos
juridicamente relevantes em abstrato, seja diante de normas abertas como aquelas que
enunciam princípios, pode explorar a indeterminação da linguagem para ampliar ou
restringir o alcance das palavras utilizadas pelos textos.
Nesse sentido, diante de um texto que afirme que “a pessoa que subtrair coisa
móvel deve ser condenado por furto”, uma norma que parece ser clara e fácil de
interpretar, um código forte que parece transmitir uma mensagem inequívoca, a parte
pode tentar suavizar sua mensagem tornando ambíguas suas palavras. Por exemplo, a
parte pode argumentar que a coisa furtada era tão insignificante que estaria fora do
escopo do legislador: seria irracional colocar todo o aparelho de Estado para condenar
e punir criminalmente alguém que furtou algo de valor irrisório. Melhor seria, neste
caso, que a pessoa furtada buscasse reaver seus prejuízos pela via de uma indenização
cível.
Ao fazer isso a parte procura transformar uma regra que parece ser parte de uma
ferramenta manipuladora, veículo de uma mensagem forte, não ambígua em um
instrumento capaz de expressar toda a complexidade sensível do caso e produzir uma
decisão mais justa, mais adequada às suas características. E o inverso também é
possível: podemos ter uma norma aberta, indeterminada, um código fraco que abra
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espaço para ações variadas por transmitir uma mensagem ambígua que seja, por assim
dizer, desambiguada pela parte para que seja possível utilizá-la como critério para
orientar as ações da sociedade. Caso contrário, a norma poderia desorientar a sociedade
e se tornar elemento de perturbação.
Por exemplo, um texto que afirme que o Estado deve promover o
“desenvolvimento” do país precisa ser desambiguado para que possa fundamentar
qualquer ação ou decisão em concreto. E é evidente que cada agente social ou grupo
que precise se valer do termo em embates políticos ou jurídicos irá desambiguá-lo tendo
em vista os seus desejos e interesses. Caberá aos organismos decisórios, em última
instância, ao poder judiciário, avaliar estas disputas entre códigos fortes tornados
ambíguos e códigos fracos tornados unívocos tendo como objetivo estabelecer um
equilíbrio adequado entre os desejos e interesses de todas as pessoas interessadas e
afetadas pela decisão.
CONCLUSÃO
A aproximação das agendas da multinormatividade e da convivialidade
desenvolvidas, respectivamente, no campo do direito e das ciências sociais, pode
produzir ganhos analíticos claros para a análise do fenômeno jurídico. Como vimos, a
convivialidade faz com que seja possível avaliar criticamente as ferramentas jurídicas
tendo em vista sua utilização em sociedades diversas e conflitivas. Tal avaliação pode
avançar para o desenvolvimento de um modelo de direito que seja capaz de fomentar e
proteger a convivialidade não violenta, regulando diretamente ou reconhecendo o
caráter jurídico de normas criadas pela sociedade.
A partir do que foi discutido nestas páginas será mais fácil imaginar soluções para
uma serie de problemas sociais e jurídicos contemporâneos. Por exemplo, como
estabelecer regras a respeito da família e do casamento em sociedades diversas que
contam com diversas religiões, costumes e povos convivendo em um mesmo território?
Como regular problemas de liberdade de expressão e combate de notícias falsas em
ambientes multinormativos em que Estados, ricos e pobres, globalmente influentes e
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insignificantes com grandes empresas e instituições privadas poderosas, capazes de
criar suas próprias normas e impor o seu cumprimento às pessoas que desejarem se
relacionar com elas?
Como lidar com problemas assim mantendo no horizonte o objetivo de
promover a democracia, ou seja, de promover e proteger arranjos justos entre pessoas,
empresas, animais e outros entres de modo a abarcar o máximo de desejos e interesses
nas instituições, raciocínios e categorias jurídicas? Ainda que este texto não tenha
oferecido ferramentas capazes de solucionar todas estas questões, ele procurou abrir
um espaço teórico que permita que perguntas deste tipo sejam formuladas e
respondidas por pesquisas empíricas que se proponham também a avaliar criticamente
o direito contemporâneo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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