Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 277
MAKUNAIMA E MACUNAÍMA: DOIS TRICKSTERS
Renato Amado Barreto102
Ana Lúcia Machado de Oliveira103
RESUMO: Macunaíma, protagonista da obra clássica de Mário de
Andrade, foi inspirado no herói mitológico dos povos pemons, da região
do circun-Roraima, Makunaima, um ser transnacional que existe em
comunidades indígenas de três países sul-americanos: Brasil, Venezuela e
Guiana. Veremos que os dois personagens são tricksters, e por isso têm
diversos aspectos em comum. O trickster é um conceito extraído da
observação de personagens mitológicos de culturas distintas, mas que
conjugam certas características, dentre as quais se destacam a astúcia e o
poder de mediação. Desse modo, primeiro discutiremos alguns aspectos
essenciais dos tricksters. Ao final da primeira seção resumiremos, em
tópicos, estes aspectos. Na segunda seção verificaremos, um a um, como
eles se manifestam nos personagens em análise e em quais pontos
percebemos interseções e afastamentos entre eles.
Palavras-chave: Macunaíma. Makunaima. Trickster. Mitologia.
ABSTRACT: Macunaíma, protagonist of the classic Mário de Andrade`s
novel, had its creation inspired by the mythological hero of the Pemon
people, from the area around Mount Roraima, Makunaima, a
transnational being that exists in indigenous communities in three South
American countries: Brazil, Venezuela and Guyana. It will be shown, in
this article, that the two characters are tricksters, and so they have many
aspects in common. The trickster is a concept extracted from the
observation of mythological characters from different cultures, but which
combine certain characteristics, among which stand out the cunning and
the power of mediation. Thus, first this article will address some essential
aspects of the tricksters. At the end of the first session, these aspects will be
summarized in topics. In the second session it will be made a check list,
verifying if and how these features manifest themselves in the characters in
question and on which points we may notice intersections and distances
between them.
Doutorando em Estudos Portugueses e Brasileiros, ênfase em literatura, pela Brown
University, Providence, EUA.
103
Doutora em Literatura Brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro - UERJ e Professora Associada do Departamento de Letras da mesma universidade.
102
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Keywords: Macunaíma. Makunaima. Trickster. Mythology.
INTRODUÇÃO
Makunaima é o trickster dos povos pemons, que vivem na região do
circun-Roraima. Embora compartilhem idioma, há diversas nações entre os
pemons, quais sejam, os arekuna, taurepang, kamarakoto e macuxi
(CARVALHO & JOBIM, 2009, p. 30). Estes povos ocupam partes de três
países: Brasil, Venezuela e Guiana. Makunaima, portanto, é um
personagem transnacional, tanto em termos de fronteiras de Estados
modernos, quanto de nações indígenas. A despeito de sua importância
numa região de considerável extensão geográfica, manteve-se inaudito à
sociedade ocidental até o livro de Koch-Grünberg, Vom Roraima zum
Orinoco - publicado originalmente em alemão, em 1917, em cinco volumes
-, tendo sido popularizado pela obra de Mário de Andrade, Macunaíma, um
herói sem nenhum caráter, que se inspirou no trabalho do pesquisador
alemão. Sem dúvida, o recente boom turístico pelo qual passa o Monte
Roraima, com diversas excursões diárias, amplia ainda mais a fama deste
herói que, assim como o da literatura, é sem nenhum caráter.
Vale comentar que Makunaima, nas últimas décadas, passou por
uma metamorfose. Hoje é conhecido pelos jovens índios pemons como um
herói sem ambiguidade, ao contrário do que costumava ser, como trickster
que é, como se verá no decorrer deste estudo. Ele cumpre uma função
moralizadora, ao mesmo tempo em que atende à demanda por resgate dos
valores autóctones (cf. CARVALHO & JOBIM, 2009, p. 27) ou, ao menos,
dá a impressão de atender. Atualmente, a maioria das comunidades
pemons é parte das culturas venezuelana ou brasileira. Além de dominar o
idioma do país em que se insere, a maioria destes índios se declara como
adventistas104, embora eles ainda acreditem em algumas lendas e mitos
pemons. Conforme parece evidente, se alguém é cristão, não pode ter um
trickster como herói, por uma incompatibilidade de valores. Então, a forma
de enaltecer a cultura local é resgatar o herói, mas com outra face, numa
espécie de antropofagia invertida. A esse respeito, cabe citar a seguinte
observação de Carvalho e Jobim:
104
Como pudemos verificar pessoalmente, em visita ao Monte Roraima.
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Como personagem que se presta a uma finalidade moralista
e, por conseguinte, formadora das novas gerações de índios
Pemon; com circulação pretendida como leitura literária,
mas também paradidática, a ser empregada, de forma
particular, no âmbito da escola e nas esferas de formação da
juventude indígena (CARVALHO & JOBIM, 2009, p. 27).
É o Makunaima com que o etnógrafo alemão teve contato, contudo,
que nos interessa, uma vez que neste trabalho pretendemos demonstrar
que ele e o protagonista marioandradiano pertencem à mesma classe de
seres, qual seja, a dos tricksters. Na próxima seção, apresentaremos os
aspectos essenciais deste conceito. Verificaremos em que extensão tais
aspectos se aplicam aos personagens em análise, sendo assim possível
demonstrar suas principais semelhanças e diferenças e, sobretudo, que
ambos são tricksters, residindo aí o principal motivo de o escritor
modernista ter aproveitado o nome do demiurgo mitológico, com apenas
uma diferença de grafia.
Acerca da grafia do nome do herói pemon, registre-se que o
antropólogo alemão e a autora Silvia M.S. de Carvalho, que serão citados
neste artigo, escrevem “Makunaíma”, contudo, na visita que fizemos ao
Monte Roraima tivemos a oportunidade de conversar com índios de
Parateipuy - comunidade arekuna localizada próxima à base do Monte – e
com guias que foram enfáticos em afirmar que a letra tônica da palavra é o
segundo “a”. Como afirmam Fábio Almeida de Carvalho e José Luis Jobim,
“´Makunaima` é a designação corrente entre os índios Pemon e os
regionais de Roraima” (CARVALHO & JOBIM, 2009, p. 13). Deste modo,
optamos, neste estudo, pela grafia sem o acento agudo, preservando,
contudo, a redação dos autores em citações.
1. O TRICKSTER: ASPECTOS GERAIS
Em linhas gerais, o trickster é um frequente arquétipo mitológico,
encontrado em diversas culturas, que surge como um mediador, para
resolver contradições. Considerando-se que as atividades humanas
encontram pontos de contradições, a função central do mito, segundo LéviStrauss, seria a de buscar superá-las (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 325-329).
Mas, como são insuperáveis, criam-se constantemente novos mitos sobre as
mesmas temáticas. Uma vez que uma contradição se constitui de uma
oposição entre distintas ações, um ser arquetípico que represente
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simultaneamente estas duas ações pode ser uma forma mais ou menos
eficaz de tentar equacioná-la.
Esse duplo caráter do trickster faz com que ele pertença a dois ou
mais mundos e ao mesmo tempo a nenhum deles. Ele tem, portanto,
autonomia em relação aos universos dos quais faz parte, sendo capaz de,
frequentemente, colocar em xeque os valores destes universos. Se o
trickster, ao mesmo tempo em que representa um determinado mundo ou
prática, representa outro(a) que a ele(a) se opõe, ele será um ser dúbio,
simultaneamente aliado e inimigo.
Silvia M. S. de Carvalho, no artigo “O trickster como personificação
de uma práxis” (1985), clareia a questão, ao tratar daqueles tricksters que
buscam superar as contradições do delicado equilíbrio das sociedades
humanas com a natureza, à qual ela se refere como “outro”. É que o ser
humano necessita extrair elementos da natureza - o que ela chama de
"punção" - para sua subsistência. Contudo, caso os extraia em demasia, os
recursos disponíveis se esgotam. Desse modo, é frequente haver tricksters
que simultaneamente incentivam e limitam a punção da natureza. Assim,
eles estarão ao lado do ser humano, fornecendo tecnologias, como o anzol,
para aprimorar a punção; outras vezes, contudo, estarão ao lado da
natureza, castigando o ser humano por alguma ação indevida ou
simplesmente ajudando elementos da natureza contra o ser humano.
Como faz a ligação entre mundos, é comum que o trickster seja um
mensageiro, como Exu (trickster ioruba, trazido ao Brasil pelos escravos) e
Hermes (trickster da Grécia clássica). Mesmo alguns que não são definidos
como tais são associados ao deslocamento ou se deslocam muito nas suas
histórias ou mitologias. O trickster é um ser ligado aos caminhos, capaz de
abri-los e fechá-los, pois, por pertencer a mais de um mundo, aponta
diferentes possibilidades de rotas, dentre as quais se incluem as que
transgridem e as que se mantêm de acordo com a ordem vigente, pois,
como um ser ambíguo, ele é simultaneamente um transgressor e um
garantidor da ordem; não à toa, em muitas mitologias, é considerado um
guardião. Se Exu é um grande transgressor, ao mesmo tempo pune quem
deixa de cumprir mandamentos divinos, sobretudo de Olorum, o deus
supremo. Já Hermes cumpre fielmente diversas ordens de Zeus.
É relevante ainda destacar que algo reincidente entre os tricksters é
o fato de seguirem ciclos. No início, são tomados pela inconsciência e
guiados por luxúria e fome incontroláveis. São escravos, neste momento,
do que Freud definiu como “princípio do prazer”, que se refere ao
propósito dominante da atividade psíquica, sobretudo em seu nascedouro:
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evitar o desprazer e buscar o prazer (FREUD, s/d, p. 1), por meio do
atendimento às excitações que chegam através dos sentidos, sem
considerações de outras ordens, sejam estratégicas (se todo o alimento que
naquele momento é desejado for consumido, haverá escassez adiante) ou
morais. Suas ações desmedidas, em busca de satisfazer tais apetites, geram
consequências terríveis para eles - e, muitas vezes, para a humanidade,
criando tabus, uma vez que, ao menos os trickster mitológicos, costumam
ser seres primordiais -, que só vêm a atingir o equilíbrio quando passam a
conter seus desejos.
No primeiro momento do ciclo, alguns tricksters mal têm
consciência sobre o próprio corpo. Em uma história do trickster
Wakdjunkaga, do povo winnebago, da América do Norte, suas mãos
esquerda e direita disputam por alimento e então uma fere a outra. Apenas
ao sentir a dor, Wakdjunkaga percebe que brigava contra si mesmo
(RADIN, 1956, p. 8).
Tricksters que seguem este ciclo estão, em um primeiro momento,
aquém dos animais, pois estes possuem habilidades inatas, algo que falece
aos tricksters. Contudo, estes detêm inteligência e, observando as ações dos
animais, passam a copiá-las com as adaptações necessárias, em momentos
oportunos. Assim, superam os animais, pois têm à disposição diversas
técnicas usadas por diferentes espécies. Tornam-se, assim, astutos, mestres
da trapaça, da malandragem, sendo mutantes e adaptáveis.
Nesse processo de aprendizagem, precisam aprender a controlar
suas pulsões por alimento e sexo. É comum haver, nos ciclos tricksters, a
seguinte oposição: ou contenção e obtenção prolongada de alimentos ou
falta de contenção e abundância limitada no tempo. Isso tem uma
finalidade educativa, uma vez que, se não houver uma contenção da
demanda por alimentos, ocorrerá uma punção exagerada da natureza,
esgotando os recursos disponíveis. Por isso encontramos várias histórias em
que há recursos infinitos, mas, em função de uma falta de contenção do
desejo alimentar do trickster, a comida passa a ser restrita.
Desse modo, em seu ciclo, o trickster acaba por aprender que deve
haver uma contenção dos seus desejos. Essa suspensão da busca imediata
por prazer foi denominada por Freud de “princípio da realidade”. Tal
aprendizagem, muitas vezes, é simbolizada pela redução de algum órgão
ligado à digestão ou à sexualidade.
Quando o trickster amadurece e aprende a controlar suas pulsões,
em um mundo agora com quantidade limitada de alimentos, desenvolve
tecnologias e promove alterações no mundo que permitem o florescimento
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da cultura humana. Trata-se do trickster transformer, que corresponde ao
lado herói-civilizador que muitos tricksters apresentam.
Ressalte-se, por fim, que a astúcia do trickster encontra no terreno
da troca um campo favorável. Exu é o deus do mercado, do comércio.
Como se sabe, a linguagem também é um ambiente de troca e convidativo
à astúcia. Obtêm-se grandes vantagens através de um uso astucioso do
verbo. Além disso, entre emissor e receptor há um espaço vazio que abre
campo para a hermenêutica, para o desvio de linguagem, o mal entendido.
Onde há espaço vazio há um mediador, há um trickster. Segundo Subirats:
“El trickster es también un mediador de la unidad arcaica de la palabra y el ser (...).
Provoca la risa” (SUBIRATS, 2014, p. 281). Ele é um bufão, que faz um uso
esquivo e por vezes cômico da linguagem. Por isso muitos tricksters são
deuses ligados à comunicação, como Exu e Hermes. A brincadeira, o jeito
bufão, é uma forma de “puxar o tapete”, criticar, passar uma rasteira até em
quem está do seu lado, e é isso que o trickster faz. De dois mundos
simultaneamente, constitui uma espécie de estranho aliado, um aliado
pronto a criticá-lo, a criar dúvidas e problemas através de seu jeito ambíguo,
a agir de forma que pareça uma traição.
Pelo exposto até aqui, em resumo, podemos dizer que as seguintes
características são comuns aos tircksters:
a) é um mediador que transita entre diferentes mundos, buscando
resolver contradições;
b) tabus são criados a partir de ações por ele tomadas;
c) quando é herói-civilizador, configura elemento fundamental no
estabelecimento dos contornos que o mundo tem, com suas ações gerando
produtos (como alimentos e tecnologias) que aproveitam ao ser humano
ou interferem diretamente na sua vida;
d) é ligado ao deslocamento;
e) caminha pelo mundo primeiramente num estado quase
inconsciente e, através da contenção de seus desejos, desenvolve uma
inteligência astuciosa, através da qual obtém seus objetivos de forma aética
e desprendida da ordem do cosmo em que se encontra, frequentemente
fazendo uso esquivo da linguagem e de um estilo bufão. Não tem um
caráter definido. É mutante, com grande capacidade de adaptação.
Demonstraremos, a seguir, que Makunaima e Macunaíma
compartilham, em diferentes graus e formas, de tais características, sendo,
portanto, ambos tricksters.
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2. MACUNAÍMA E MAKUNAIMA, DOIS TRICKSTERS
2.1 SÃO MEDIADORES ENTRE DIFERENTES MUNDOS?
2.1.1 – Macunaíma
Macunaíma é, por um lado, um mediador entre dois mundos: o do
homem e o da natureza. E também entre três mundos: o das três principais
etnias fundadoras da cultura brasileira. Desdobremos esses pontos em
nossa análise.
O protagonista andradiano é um índio, portanto vive em espécie de
simbiose com a natureza. O silvícola vê a natureza como fonte de
subsistência e simultaneamente como ameaça. Para estabelecer-se como
sedentário, precisa realizar uma punção controlada dos subsídios dados por
ela. Mas Macunaíma se transforma em formiga quenquém; em caxipara,
que é macho da formiga saúva; em aimará (espécie de peixe); em piranha
feroz. Nota-se que, em geral, o herói se metamorfoseia em algum ser da
natureza para fazer oposição ao humano e, muitas vezes, vira animais
nocivos. Transforma-se em formiga quenquém para morder Iriqui; em
caxipara para espiar se o gigante Piaimã terá medo de Chuvisco. Ele
também vira aimará, uma espécie de peixe, para enganar um pescador e
roubar seu anzol. Sua estratégia não funciona, então transforma-se em
piranha para fazê-lo, engolindo e subtraindo o anzol do pescador. É curioso
notar que, nesse ponto, Macunaíma vira um ser da natureza, se voltando
contra um homem, para obter acesso a uma tecnologia que aprimorará o
processo de punção da natureza. Este trecho deixa claro o caráter mediador
e ambíguo do herói, que não se identifica nem com o lado “homem” nem
com o lado “outro” - como Silvia M.S. de Carvalho (1985, p. 180) se refere
à natureza -, agindo ora como de um lado ora como de outro, ao seu bel
prazer, levado pelo seu desejo momentâneo. Também se transforma em
pragas, como a lagarta rosada do algodão e a broca do café. Vira São Paulo
num bicho preguiça todo de pedra, agressiva ação contra o ser humano.
Contudo, transmuta seus irmãos em máquina-telefone diversas vezes,
numa adesão à tecnologia.
Quando é morto por uma flechada de Piaimã é ressuscitado por
uma formiga, lado outro, e pelo seu irmão, um humano, contando, ainda,
com a ajuda de um carrapato. É ajudado por dois animais nocivos,
portanto.
É inegável que o “herói de nossa gente” é, também, um trickster
cultural, transitando entre as principais etnias do país. Trata-se de um índio
que nasce preto retinto e torna-se branco. Estas transformações físicas talvez
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sejam uma sintética representação da essência do livro, que é a atuação de
Macunaíma entre culturas, ora se aproximando, ora estressando sua relação
com uma ou outra.
Segundo Gilda de Mello e Souza, a rapsódia marioandradiana traz
dois sintagmas essenciais: a disputa de Macunaíma com Piaimã pela
muiraquitã e seu antagonismo com Vei, a Sol. Há que se examinar o que
representa cada um desses embates e sua relevância para o presente estudo.
De acordo com a autora: “o primeiro sintagma, relacionado à vitória de
Macunaíma contra Piaimã, se refere aos valores primitivos, simbolizados
pelo Uraricoera; e o segundo, que descreve a derrota de Macunaíma diante
de Vei, representa a atração perigosa da Europa, expressa na união com a
portuguesa” (SOUZA, 2003, p. 51).
Temos, portanto, o herói representando papéis opostos nestes dois
conflitos. No seu embate com Piaimã, Macunaíma acentua, sobretudo, seu
lado índio, primitivo, enquanto Venceslau Pietro Petra é, para Cavalcanti
Proença (apud CAMPOS, s/d, p.150), o estrangeiro. Segundo Haroldo de
Campos:
O conflito, num primeiro nível, pode assim reduzir-se à
confrontação de duas lideranças: a do solo (Macunaíma,
lembremos, é o “Imperador do Mato Virgem”) arraigada na
terra, nacional por direito hereditário, e a alienígena,
arrivista, promovida pela especulação financeira e pela
emergência de uma economia de consumo acoroçoada via
industrialização.
(...)
A oposição mais nítida que se poderia estabelecer entre o
“herói sem nenhum caráter” e o façanhudo antagonista
“mau caráter” é, talvez, para além do conflito
“nacional”/“estrangeiro”, a que se põe entre o anárquico e o
estabilizado, entre um polo de desorganização criativa e
seminal, ainda quando perversa, e outro de poderio
concentrado e satisfeito, refestelado e repressivo, embora
grotescamente caricaturado (CAMPOS, s/d, p. 151-152).
Verifica-se, portanto, um conflito de valores ligados à etnia que
representa cada um dos contendores. Venceslau Pietro Petra encarna o
estrangeiro e os valores ligados à economia e à cultura branca, como a
acumulação do capital, a ordem, a contenção. Já Macunaíma, neste
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sintagma, agiria como representante dos valores autóctones e do caos
criativo que a tais valores (equivocadamente ou não) comumente é
atribuído.
Contraditório como um trickster, Macunaíma, representante dos
valores primitivos no embate com Piaimã, coleciona palavras estrangeiras,
transforma os irmãos em telefone, volta ao Uraricoera carregado de bens
da metrópole, como revólveres e relógio, que usa como enfeites e brincos,
alterando seu uso normal e dando-lhes uma atribuição mais ligada à prática
indígena. Como se não bastasse, o herói trai o acordo com Vei, a Sol – uma
representante menos contraditória do que Macunaíma dos valores
autóctones –, ao não escolher uma de suas filhas para casar-se e, em vez
disso, se amulherar “com uma portuguesa, o Portugal que nos herdou os
princípios cristãos europeus” (SOUZA, 2003, p. 56), pois “o contato com
o progresso modificara gradualmente o herói, habituando-o aos padrões
europeus” (SOUZA, 2003, p. 56). Ele deveria ter escolhido uma das filhas
de Vei para casar-se, pois assim acordaram após as filhas dela o recolherem
tremendo de frio numa ilhota deserta da Baía de Guanabara, limparem-no,
porem-no numa jangada e embalarem seu sono em carícias.
A traição é a primeira parte da contenda entre Vei e o herói. Mais
adiante, Macunaíma está de volta à sua terra natal, à beira do rio
Uraricoera, exausto e carcomido por maleita, com a muiraquitã, quando
Vei resolve vingar-se. Acompanhemos as reflexões conclusivas de Gilda de
Mello e Souza sobre o tema:
Vei sabe, portanto, que para ser bem-sucedida precisa
europeizar também os instrumentos de castigo. E por isso
empresta à miragem com o que o atrai a atonalidade geral
europeia, fazendo a água “forçadamente fria naquele clima
do Uraricoera e naquela hora alta do dia” e disfarçando a
aparência ameríndia da Uiara sob os traços lusitanos de
Dona Sancha. Macunaíma resiste durante algum tempo ao
embuste, mas afinal acaba cedendo e “se atira na água fria,
preferindo os braços da iara ilusória”. Então os bichos da
água o reduzem a um “frangalho de homem” e ele perde para
sempre a muiraquitã, “o amuleto nacional que lhe dava
razão de ser”.
Acompanhemos agora Mário de Andrade na explicação que
nos dá de sua alegoria. As filhas de Vei – “filhas da luz”,
“filhas do calor” – representam as grandes civilizações
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tropicais como a Índia, o Peru, o México, o Egito, civilizações
que se realizaram em torno de valores culturais muito
diversos do Ocidente e que teriam se harmonizado melhor
com as nossas condições geográficas e climáticas. Por
conseguinte, posto na situação de escolher entre as filhas de
Vei e a portuguesa (o Ocidente), Macunaíma devia ter
optado pela primeira; esta seria a decisão acertada, coerente
com a ação central do livro, a busca do amuleto. Agindo
assim, o herói estaria inscrevendo o seu destino no âmbito
do Uraricoera, dando coerência à luta com o gigante e
fazendo jus à recuperação da muiraquitã. Enfim, estaria se
esforçando por “se organizar numa vida legítima e
funcional”, que transformasse “o caos interior de suas
disposições naturais num cosmo organizado em torno de um
centro de gravidade”. Ao contrário, a escolha que efetua –
inicialmente da portuguesa e, no final da narrativa, de Dona
Sancha (pois ludibriado por Vei toma a uiara ameríndia por
uma das filhas de mani) – estava em desacordo com a
aventura em que se lançara: representava uma acomodação
aos princípios cristãos europeus e estabelecia, portanto, uma
relação desarmoniosa entre o núcleo de sua personalidade e
uma civilização que correspondia a “outras necessidades
sociais e outros climas” (SOUZA, 2003, p. 56-57).
Notamos que se, por um lado, Macunaíma enfrenta o gigante num
embate entre autóctone e estrangeiro, cede aos encantos da portuguesa e
da Uiara europeizada, traindo Vei, representante dos valores dos trópicos.
Parece-nos, portanto, que Macunaíma tem a característica trickster
em análise, pois vive na fronteira, transitando de forma ambígua entre
mundos e fazendo a ligação entre eles. Ao retornar ao Uraricoera com
aparatos da metrópole, ele está sendo um mediador entre os dois mundos.
Assim como o é em diversos momentos em que está em São Paulo e age
como se estivesse na floresta, chegando a explicar, na forma da mitologia
indígena, a formação do Cruzeiro do Sul. Cumpre a mesma função ao
escrever a “carta pras Icamiabas”, momento em que leva a linguagem
empolada do brasileiro europeizado para o fundo do mato virgem, onde
nasceu e para onde retornará, carregado de carga metropolitana. Usará os
apetrechos dos brancos, contudo, como bem entende, como faz ao
transformar revólver e relógio em brinco, numa postura que se pode
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chamar de antropofágica, única saída para o habitante do entre-lugar
cultural que habitam o brasileiro, espremido entre o índio, o negro e o
europeu, e também Macunaíma, que antropofagicamente faz a mediação
entre estas culturas, em uma atuação tipicamente tricksteriana.
2.1.2 - Makunaima
Assim como fizemos na análise desta característica no Macunaíma
marioandradiano, voltamos a referenciar a tese de Silvia M. S. de Carvalho.
Como já explicitado, o ser humano vive em uma relação de tensão com a
natureza, tendo que extrair dela sua subsistência. Contudo, caso exagere na
punção, faltarão alimentos. Por isso o trickster age ora como ao lado do ser
humano, ora como ao lado do “outro”, ou seja, da natureza.
No famoso relato do antropólogo alemão Koch-Grünberg podemos
extrair algumas ações mediadoras. “Makunaíma fez todos os animais de
caça e os peixes” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 66), ou seja, criou seres
da natureza benéficos ao ser humano, de que este se vale para realizar a
punção necessária, mas, por outro lado, fez animais perigosos como a
arraia; seu irmão Jigué, como colocado por Silvia M. S. Carvalho, espécie
de alter ego do trickster em comento (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 66),
fez a cobra venenosa, embora haja igualmente versão que afirma ter sido
criada pelo próprio Makunaima (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 66 e nota
de rodapé). Ele também se transformou em um animal nocivo, qual seja, o
bicho-de-pé.
Makunaima demonstra, ainda, ser um ente da natureza ao
transformar-se em grilo (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 66) e ao viver
numa montanha junto a diversos bichos-de-pé (KOCH-GRÜNBERG,
2002, p. 68). No mito “Morte e ressurreição de Makunaíma”, o herói,
depois de ser morto pelo gigante Piai`mã, é ressuscitado com a ajuda de
alguns animais.
Entendendo-se a natureza como outro em oposição ao ser humano,
ele também pode ser visto como um aliado desta sempre que se opõe às
pessoas. Alguns exemplos: cria feridas no próprio corpo, depois cansa delas,
as atira no chão e as transforma em pedra, dizendo “´ficai aqui! Pegai em
toda gente que passar por aqui!` Por isso aqueles que usam esse caminho
hoje, ficam com feridas” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 67). Ele
transforma várias pessoas que participavam de uma cerimônia dançante em
pedra (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 67). Em outra ação contra o homem
e a favor da natureza, ele transmuta pessoas que queriam ir para casa em
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cupim e, depois de deixar pegadas de veados, antas e todos os animais –
dando a entender que se transformara neles -, vira outros homens em
pedras (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 68). Ele leva sua mãe, a casa e as
plantações para o pico da montanha, deixando o resto da família sem nada
para comer. Ao fazer isso, ele protege os alimentos contra a sanha dos
irmãos, agindo, portanto, a favor do outro e contra os humanos (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 67). Outro exemplo:
Quando Jigué pulou dentro d`água, Makunaíma quebrou
uma folha da planta Makumúku-yeg, jogou-a na água e disse:
´Transforma-te numa arraia e vai para junto de Jigué!
Quando ele pisar em cima de ti, pica-o!” Makunaíma ficou
na entrada da baía e disse a Jigué: “Vem mais pra cá, para
espantar os peixes!” Jiguê veio pisou nela. A arraia picou-o
no pé. Jigué gritou muito (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.
67).
Mas Makunaima, ao mesmo tempo em que é uma entidade da
natureza, também é uma pessoa e, como tal, precisa realizar punção da
natureza para alimentar-se, então age muitas vezes contra esta. Por isso,
apanha os animais que seu irmão Ma`anápe abate com a zarabatana. Ele
também demonstra ser um ente ao lado do humano por ser um heróicivilizador, que fornece tecnologias fundamentais para o desenvolvimento
da cultura humana.
É emblemático um trecho da mitologia pemon de que se vale Mário
de Andrade e já citado também quando analisamos o caráter mediador de
Macunaíma. Referimo-nos à transformação do herói em peixe aimará, para
roubar o anzol do pescador. Depois de duas tentativas frustradas, ele
transforma-se em piranha para arrancar-lhe o anzol com a dentição. Neste
mito, ele demonstra ser um ente da natureza, não à toa vira duas espécies
distintas de peixe e age contra o pescador, ao mesmo tempo em que busca
facilitar a punção da natureza pelo humano, pois vira peixe para obter o
anzol que permitirá uma pesca mais fácil. Seu caráter mediador escancarase neste ponto. Em síntese, Makunaima é ao mesmo tempo gente e natureza
e, atuando ora a favor de um, ora de outro, acaba por ser um mediador
entre estas duas realidades.
Contudo, não é apenas atuando a favor que ele exerce a mediação.
Makunaima tem o hábito de transformar diversas coisas em pedra. Esse
mito, muito provavelmente, deriva do fato de a região do Monte Roraima
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 289
ser tomada por diversas rochas de formatos curiosos. Ele transmuta
indiscriminadamente pessoas e entes da natureza em rochas. Trata-se de
uma representação de seu lado traiçoeiro e ambíguo, lembrando que, se,
por um lado, ele é aliado do ser humano e da natureza, é simultaneamente
inimigo dos dois (no idioma pemon: Maku = mau; Ima = grande. “Assim o
nome significaria ´O grande mau`, que calha perfeitamente ao caráter
intrigante e funesto deste herói”; MEDEIROS, 2002, p. 33). Leiamos:
Makunaíma foi então para o outro lado do Roraima, onde
deve estar vivendo até hoje. Lá ele transformou em rochedos
homens e mulheres, bem como saúvas, antas e porcos do
mato (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 67)
Makunaíma, porém, transformou tudo o que encontrou,
homens e animais, mutum, veados, porcos, garças, etc, em
pedras, árvores e florestas. E tudo continua assim até hoje
(...). Então Makunaíma foi para a montanha Mairari, onde
deixou uma cabaça e um tipiti cheio de massa de mandioca.
Estas coisas ele também transformou em pedra, e até hoje
estão lá (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 67)
2.2 - SUAS AÇÕES CRIAM TABUS?
2.2.1 – Macunaíma
Haroldo de Campos, em Morfologia do Macunaíma, afirma que o
livro de Mário de Andrade contém, sobretudo nos primeiros capítulos,
“microfábulas” ou “micro-sequências”, moldadas no esquema
“interdito”/“violação” (CAMPOS, s/d, p. 126-127). Ele analisa, sobretudo,
dois microepisódios:
a) Macunaíma flecha uma veada parida/ Mata a mãe;
b) Macunaíma possui Ci, rainha das Amazonas/ Ci morre.
No primeiro, a proibição de abater a caça prenhe constitui a moral
da fábula indígena recolhida por Couto Magalhães e na qual Mário de
Andrade se baseia nesta passagem. Ao violar o interdito, Macunaíma mata
a mãe. A despeito de a interdição existir na lenda indígena usada como
inspiração, ela surge no universo ficcional a partir da ação do herói. Ao
matar a veada parida, ele é castigado com a morte da própria mãe. O
surgimento do castigo a partir de uma ação corresponde ao nascimento de
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290 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
um tabu, já que o tabu nada mais é do que uma proibição e proibições
efetivas demandam a existência de um castigo correspondente.
A mesma lógica se aplica ao fato de Macunaíma possuir Ci,
conforme se atesta na seguinte afirmação de Haroldo de Campos:
Na micro-sequência de Ci, a proibição não-escrita, mas
presente no espírito da lenda, é a do casamento com a
celibatária rainha das amazonas, tribo de mulheres solitárias.
Na lenda taulipang, coligida por KG (p. 127-128), as
amazonas podem ter relações eventuais com homens que
visitem suas malocas, mas não lhes é lícito casar-se
(estabelecer relações duradouras), sendo vedado aos
companheiros de ocasião permanecer no convívio da tribo;
os filhos-varões que resultem dessas uniões são sacrificados,
só sendo poupadas as filhas. Tomando-a primeiro à força,
mas logo consentidamente, a rainha das amazonas e
desposando-a, Macunaíma se transforma no “Imperador do
Mato-Virgem” e passa a viver entre as icamiabas (CAMPOS,
s/d, p. 128).
Posteriormente, Macunaíma tem um filho com Ci que, todavia,
morre. Ao viver com Ci, Macunaíma quebra o tabu mitológico e, na
narrativa, cria a ação de casar-se com a rainha das amazonas. É punido por
isso, com a morte do filho, trazendo (criando), assim, para o universo
ficcional, a proibição que existia na cultura Taurepang.
Portanto, nota-se que efetivamente tabus são criados em função de
ações de Macunaíma.
2.2.2 – Makunaima
Makunaima derrubou a árvore Wazaká, também chamada de
Árvore do Mundo, que dava todos os frutos. Do buraco no tronco da árvore
jorrou uma enorme quantidade de água, provocando uma enchente de
proporções bíblicas. Depois que as águas secaram houve um incêndio
universal. Salvo pelas caças, que se esconderam num buraco dentro da
terra, “o fogo consumiu tudo: os homens, as montanhas, as pedras”
(KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65).
Não há, na mitologia pemon, referência a um tabu relativo à
derrubada de árvores. Contudo, devemos lembrar que, no terreno da
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 291
mitologia, os seres e ações são arquetípicos e exemplares. Desse modo, se a
derrubada de uma árvore (arquetípica) teve a consequência da extinção da
humanidade, podemos assumir que se criou, com base nesta história, um
tabu quanto à derrubada de árvores frutíferas. Sílvia M. S. Carvalho de fato
afirma a existência de tal tabu. Segundo a autora, “este mito representa a
desobediência a um tabu que proibia o corte de árvores” (CARVALHO,
1997, p. 59). Diríamos, contudo, que, como estamos no terreno
mitológico, essa história não apenas representa a desobediência ao tabu,
mas funda o tabu. É que todas as ações e interditos relevantes de uma
sociedade dita “primitiva” precisam de um mito que os represente, que
funde aquela ação ou proibição. As ações dos seres humanos, segundo
Mircea Eliade, nada mais são do que uma repetição destes atos arquetípicos
(ELIADE, 1992, p. 13).
Ressalte-se que a queda da árvore, por outro lado, gerou várias
benesses. De seus galhos nasceram árvores frutíferas; junto com as águas
que escaparam pelo seu tronco cortado surgiu uma abundância de peixes.
Isso, contudo, não parece ilidir o tabu, uma vez que qualquer benefício é
incapaz de suplantar a extinção da humanidade em função de seu ato.
Parece-nos que tais acréscimos ao mundo são uma faceta do lado heróicivilizador de Makunaima, que estabelece diversos contornos do mundo,
como veremos adiante.
2.3 QUANDO SÃO HERÓIS-CIVILIZADORES, GERAM PRODUTOS
FUNDAMENTAIS AO FLORESCIMENTO DA CULTURA
HUMANA?
É importante ressaltarmos que não necessariamente um trickster é
um herói-civilizador, embora seja comum que o seja. Por isso esta premissa
inicia-se com uma condicionante: “quando é”. Somente os tricksters
transformers, ou seja, os que causam alterações no mundo, de modo a deixálo como o conhecemos, permitindo o florescimento de culturas humanas,
são heróis-civilizadores.
2.3.1 - Macunaíma
Macunaíma é, efetivamente, iniciador de algumas coisas. Fatos
acontecem com ele ou a partir de suas ações que passam a se aplicar a toda
a humanidade. Isso o aproxima dos personagens mitológicos, uma vez que
realiza ações arquetípicas que passam a ser repetidas por todos. Além disso,
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292 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
características do universo existem graças às suas ações. Cite-se como
exemplo que a própria lua surge após um embate entre Macunaíma e
Capei. E as manchas do satélite existem porque Macunaíma “deu uma
porção de munhecaços” (ANDRADE, 1997, p. 124) nele. Macunaíma
estabeleceu, dentre outras, as seguintes realidades no mundo:
a) as caças têm bexiga graças a Macunaíma. Depois de tocar uma
violinha mágica e atrair um despropósito de caça, o herói fica com medo
de tamanha bicharada e atira a viola longe.
A violinha caiu no dente de um queixada que tinha umbigo
nas costas e se partiu em dez vezes dez pedaços que os bichos
engoliram pensando que era gerimum. Os pedaços viraram
nas bexigas das caças (ANDRADE, 2007, p. 191).
b) a flor miosótis existe graças a uma ação do herói. Ele chora de
saudade de Ci, sua amada, e, por conta disso: “As lágrimas pingavam dos
olhinhos azuis dele sobre as florzinhas brancas do campo. As florzinhas
tingiram de azul e foram os miosótis” (ANDRADE, 2007, p. 207);
c) a Sol fica amarela após Macunaíma arremessar um ovo contra ela
(ANDRADE, 2007, p. 206).
Macunaíma, portanto, estabelece alguns dos contornos que o
mundo tem, contudo, não se pode dizer que ele seja um elemento
fundamental da configuração geral do mundo. É determinante no
estabelecimento de apenas alguns aspectos específicos. Tampouco os
produtos de suas ações parecem ser de grande importância para o ser
humano. Um típico herói-civilizador gera produtos – como tecnologias e
alimentos – fundamentais para a existência da cultura humana, o que não
ocorre com Macunaíma.
Parece-nos, pelo exposto, que o herói sem nenhum caráter é um
transformer de poder limitado, uma vez que transforma o mundo em
determinados pontos, mas sem alterar sua configuração como um todo.
Não chega, deste modo, a ser um herói civilizador, pois não há qualquer
ação sua que tenha resultado num produto essencial para o
desenvolvimento da cultura humana.
2.3.2 - Makunaima
Graças a Makunaima, os seguintes produtos da natureza e
tecnologias existem ou são acessíveis ao ser humano:
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 293
a)
o fogo:
Procuraram o fogo e acharam o passarinho Mutúg, que,
segundo se dizia, tinha o fogo. O pássaro estava pescando
Makunaíma amarrou-lhe um comprido cordel ao rabo, sem
que ele o notasse. Logo o pássaro se assustou, levantou voo
e levou o cordel consigo. Os irmãos seguiram o cordel e
acharam a casa do Mutúg. Eles levaram então o fogo. (Talvez
o tenham levado à força.) (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.
60).
b)
o Monte Roraima e demais tepuis105 da região, sendo
Makunaima responsável pela fertilidade do lado norte, como consequência
da derrubada da Árvore do Mundo e de outras grandes árvores que se
encontravam à volta dela:
(Seus tocos formam hoje as motanhas Elu-tepe e
Yuluwazaluimá-tepe. O toco da árvore Wazaká forma o
Roraima. Todas estas montanhas têm o mesmo formato e
são muito altas.) As árvores caíram todas para o outro
lado106. Por isso ainda hoje existem por lá muitas bananas,
milho, algodão e muitas frutas silvestres (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 61).
c) a inajá, ao garantir a fertilidade desta fruta:
Então Jigué lhe deu uma fruta. Makunaíma tirou uma
dentada, esfregou a fruta no próprio pênis e a devolveu a
Jigué, dizendo: “Experimenta-a agora!” (Até hoje a Inajá dá
frutas na época das chuvas.) (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.
61).
d)
os seres humanos. Depois de estes terem sido
consumidos pelo incêndio universal que se seguiu ao dilúvio provocado
pela derrubada de Wazaká, foram recriados por Makunaima, que nessa
Substantivo comum empregado pelos pemon para designar os montes da região onde
vivem.
106
O lado norte.
105
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294 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
história, como ser dúbio que é, mostra-se como destruidor e criador da
humanidade:
Quando a água da grande enchente secou, veio um grande
fogo. (...) O fogo consumiu tudo: os homens, as montanhas,
as pedras. (...)
Makunaíma fez novos homens de cera. Mas eles se
derreteram ao Sol. Então ele os fez de barro. Estes, expostos
ao Sol, endureceram cada vez mais. Depois ele os
transformou em gente (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 64).
e) todos os animais de caça e os peixes (KOCH-GRÜNBERG, 2002,
p. 66);
f) o anzol, conforme a história a que nos referimos em 2.1.2, sobre
o furto do anzol (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 66-67);
g) a arraia. A cobra venenosa é criada, no mesmo mito, pelo seu
alter-ego e irmão Jigué (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 71-72).
Como se nota, Makunaima é responsável por diversos contornos do
mundo. Contudo, tal não basta para que seja herói-civilizador, pois é
necessário que as alterações provocadas no mundo pelo ser sejam
fundamentais para o florescimento da cultura humana. Como o herói em
comento foi o criador de todos os animais de caça e peixes, além de ter
trazido para o ser humano o anzol e o fogo, seria difícil a sobrevivência da
cultura pemon sem ele. Por mais que os pemon se valessem de uma
alimentação vegetariana, ainda assim, é graças a Makunaima que existe
abundância de alimento vegetal no lado norte do Monte Roraima, onde
talvez a caça seja dispensável para a sobrevivência. Como visto acima, o
próprio ser humano foi criado pelo herói, mas esta responsabilidade pela
existência da humanidade fica mitigada, uma vez que o ser humano existia
independente de Makunaima, tendo sido, contudo, destruído por uma
ação deste ser mítico e aí sim, posteriormente recriado por ele.
Uma vez que Makunaima é responsável pela existência do alimento
e de tecnologias de que se vale o ser humano para melhor punção da
natureza, não há dúvida de que ele é elemento fundamental para o
florescimento da cultura humana, sendo, portanto, um típico heróicivilizador.
2.4 - É LIGADO AO DESLOCAMENTO?
2.4.1 – Macunaíma
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 295
Segundo Eduardo Subirats, Mário de Andrade já definiu
Macunaíma como “homem itinerante sem vontade” (SUBIRATS, 2014, p.
248, 286). Tal itinerância é de clareza solar. Na primeira parte do livro,
antes de Macunaíma partir para São Paulo em busca de sua muiraquitã, a
narrativa tem um formato rapsódico, em que histórias se sucedem, muitas
delas graças a um constante deslocar-se do herói. Logo no início do livro
desloca-se, junto com sua mãe e sua casa, para outra banda do rio,
escapando de inundação e fome (ANDRADE, 2007, p. 23). Como deixara
o resto da família passando fome, a mãe expulsou o herói, que começa,
então, sua errância rapsódica, algo comum aos tricksters. Enquanto vagava,
Macunaíma encontrou o Curupira e fugiu dele; deparou-se com a cutia,
que jogou água em seu corpo, fazendo-o pôr corpo de homem; conheceu
sua amada Ci, a mãe do mato, com quem viveu até a morte dela. Falecida
a esposa, o herói volta a errar e tem o encontro com Capei, cuja cabeça
acaba por tornar-se a lua, após um embate com o herói. Depois disso,
descobriu que a muiraquitã estava com o industrial Venceslau Pietro Petra,
em São Paulo, e deslocou-se para lá.
Há uma certa magia no deslocamento de Macunaíma, um
desrespeito à geografia nacional, que se embaralha sob as aventuras do
herói. O próprio Mário de Andrade escreveu em uma folha de um bloco
de notas: “Contar a embrulhada geográfica proposital de fauna e flora”
(ANDRADE, 2007, p. 221). Macunaíma mistura os lugares e, com isso, a
fauna e flora. Ele dá “uma chegada na foz do rio Negro pra deixar a
consciência na ilha de Marapatá” (ANDRADE, 2007, p. 49) e enquanto é
perseguido por um cachorro passa por lugares tão distantes quanto
Itamaracá e os Pampas. Semelhante dinâmica ocorre quando ele foge do
monstro do Oibê, no capítulo “A pacuera do Oibê”. Não bastasse, vai até
o Rio de Janeiro para uma sessão de macumba e, por fim, faz uma viagem
de regresso ao Uraricoera.
Nota-se que, durante o vagar, Macunaíma desenvolve sua astúcia,
como quando escapa do Curupira vomitando em uma poça o pedaço de
carne da perna do monstro que respondia aos seus chamados,
denunciando a localização do herói. É também vagando que Macunaíma
conhece Ci, com quem vive seu único relacionamento amoroso (além desta
relação, só há aventuras sexuais) e que lhe dá uma muiraquitã. Na saga pela
recuperação deste talismã, o herói, pela primeira e única vez, terá foco e
algum sentido de praticidade.
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296 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
Conclui-se, portanto, que o se deslocar e o se deparar com o novo
fazem parte do processo de amadurecimento de herói, mesmo que ao fim,
como se verá, tal processo evolua pouco.
2.4.2 – Makunaima
Após a enchente e o incêndio universal, Makunaima desloca-se para
o outro lado do Roraima (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65), ou seja, o
norte (Venezuela), onde caíram os galhos de Wazaká e onde há muitas
frutas e tubérculos. Em outro mito ele também se desloca para o outro lado,
para a Terra dos Ingleses (Guiana), na forma de grilo, dentro da cesta do
pescador, para adquirir novo anzol (KOCK-GRÜNBERG, 2002, p. 67).
Em comum a ambos os deslocamentos, a busca por alimento depois de o
alimento do lado “de cá” do Monte Roraima haver escasseado por conta
do desastre ocorrido após a derrubada da Árvore do Mundo. Agora com
escassez de alimento, o herói terá que lutar para consegui-lo, valendo-se,
inclusive, de astúcia para tal, como faz ao transformar-se em grilo para
entrar no cesto do pescador e ser levado, sem esforço, para o outro lado.
Outro momento de grande deslocamento é quando foge do
cachorro de Piai`mã. O cão representa a natureza aliada do homem, ao
passo que Makunaima é mediador entre natureza como outro, ou seja, a
natureza inimiga, e o homem. Ele é inimigo e aliado, simultaneamente, da
natureza e do ser humano, nesta relação tensa entre a humanidade e a
natureza. Esta natureza aliada é estranha ao herói-mediador. O ponto de
mediação surge, no plano simbólico, pelo fato de Makunaima agir, muitas
vezes, a favor do homem e contra a natureza, ele que é – ao mesmo tempo
em que é gente - um ser da natureza. O cachorro, que é natureza, também
age o favor do ser humano, podendo ser interpretado, igualmente, como
um mediador. Mas um mediador menos contraditório, que propõe uma
aliança, quando não uma submissão. No entanto, o pemon sabe que esta
aliança não é possível, que, se a natureza fornece os insumos necessários
para a sobrevivência, ela não é submissa ou confiável. Makunaima é um
mediador que representa a natureza de forma mais real do que o cachorro
e por isso consegue sobreviver às investidas deste (KOCK-GRÜNBERG,
2002, p. 73-74).
2.5 - CAMINHA PELO MUNDO PRIMEIRAMENTE NUM ESTADO
QUASE INCONSCIENTE E, ATRAVÉS DA CONTENÇÃO DE SEUS
DESEJOS, DESENVOLVE UMA INTELIGÊNCIA ASTUCIOSA,
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 297
ATRAVÉS DA QUAL OBTÉM SEUS OBJETIVOS DE FORMA
AÉTICA E DESPRENDIDA DA ORDEM DO COSMO EM QUE SE
ENCONTRA, FREQUENTEMENTE FAZENDO USO ESQUIVO DA
LINGUAGEM E DE UM ESTILO BUFÃO? É MUTANTE, SEM
CARÁTER DEFINIDO, COM GRANDE CAPACIDADE DE
ADAPTAÇÃO?
2.5.1 – Macunaíma
Para desdobrar este tópico, vejamos alguns exemplos de ações de
Macunaíma nas quais ele demonstra astúcia e capacidade de adaptação:
a) transforma-se em francesa para enganar Piaimã (ANDRADE,
2007, p. 64);
b) tenta enganar o Pai do Sono, fingindo-se de morto (ANDRADE,
2007, p. 162);
c) três vezes transforma-se em aimará para concluir que não
conseguirá roubar o anzol desta maneira, uma vez que tal peixe não possui
dentição para arrancar o anzol. Vira, então, uma piranha, mimetizando sua
capacidade de morder, mas acrescentando a essa capacidade a astúcia, para
arrancar o anzol, tomando-o para si (ANDRADE, 2007, p. 132).
Macunaíma tem, como se nota, a capacidade de usar astúcia para
conseguir seus objetivos, sobretudo mimetizando algo, seja transformandose efetivamente na coisa ou adotando uma ação típica dela.
Os ardis do trickster dão-se principalmente pela imitação de outros
seres. Ele segue um ciclo. Primordialmente vaga pelo mundo em estado de
grande inconsciência, a ponto de suas mãos brigarem até que ele se
machuque, somente então percebendo que ambas fazem parte do seu
corpo, como faz o trickster do povo winnebago. Ele está, no primeiro
momento, aquém dos animais, já que estes têm um jeito nato de agir,
estratégias de sobrevivência pré-determinadas pelo instinto. O trickster,
contudo, no início não as possui, mas é capaz de observar e apreender
técnicas de animais e utilizá-las não por instinto, mas por astúcia – de que
os animais não são capazes –, aprimorando sua eficácia e tornando-se
superior a eles.
É o que faz Macunaíma, por exemplo, quando, depois de se
transformar em aimará três vezes e não conseguir roubar o anzol que deseja,
vira uma piranha e, usando os dentes de tal peixe e a sua astúcia, arranca o
anzol da linha e dele se apodera. Macunaíma tem uma atitude típica de
trickster no trecho citado. Ele aprende por tentativa e erro e então adapta
a ação, encontrando uma solução eficaz.
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298 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
Fundamental na evolução do trickster é a contenção dos desejos,
sobretudo o sexual e, ainda mais, por alimento, uma vez que, em caso de
desejo alimentar incontido, a comida tornar-se-á escassa. O herói
andradiano, contudo, não parece ser afeito a contenções. Mais de uma vez
deixa de repartir a comida com seus irmãos, chegando a enganá-los para
ficar com toda a provisão. Tampouco poupa uma veada parida e, por conta
disso, mata a própria mãe. É lavado e recebe carinho das filhas de Vei, a
Sol, que lhe faz uma grande proposta em troca do casamento dele com uma
de suas filhas:
Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não
andar assim brincando com as outras cunhãs por aí.
Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela
memória da mãe dele (ANDRADE, 2007, p. 90).
Contudo, logo em seguida, à vista da primeira cunhatã, o herói não
se contém e trai o acordo, perdendo “Oropa França e Bahia”. Com isso,
transforma Vei em inimiga. A Sol, mais à frente, ciente da falta de
contenção do herói, usa tal fraqueza como arma para desgraçá-lo. Envia
uma Uiara para seduzi-lo e, por não se conter e entregar-se à sereia
amazônica, Macunaíma termina mutilado e sem a muiraquitã.
Nota-se, portanto, que Macunaíma chega ao fim do livro sem ter
aprendido a contenção, sendo ainda um trickster ingênuo, de ciclo
incompleto. Contudo, ele é inegavelmente astuto. Mas, se a astúcia do
trickster depende da consciência que adquire da necessidade de contenção
de suas pulsões, de onde viria a astúcia do herói incontido?
Embora Macunaíma não aprenda a restringir seus desejos,
sobretudo os sexuais, ele elabora planos, principalmente para resgatar a
muiraquitã em poder de Piaimã. A simples elaboração de planos exige uma
mínima contenção, uma vez que aquele que age puramente por impulso
não planeja, apenas pratica uma ação na primeira oportunidade que surge.
O herói, contudo, parece ter ao menos uma consciência da necessidade de
contenção, a qual ele consegue exercer para executar seus planos. Esta
consciência fica clara quando ele aconselha ao tuiuiú:
— Olha, primo, pagar não posso não mas vou te dar um
conselho que vale ouro: Neste mundo tem três barras que
são a perdição dos homens: barra de rio, barra de ouro e
barra de saia, não caia!
Bajo los ojos del sur: viejas fronteras y nuevos espacios en literatura y cultura
Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 299
Porém estava tão acostumado a gastar que esqueceu-se da
Economia (ANDRADE, 2007, p. 138).
Macunaíma percebe o perigo das tentações e a necessidade de
constrição. Contudo, “tão acostumado a gastar esqueceu-se da Economia”,
ou seja, logo após aconselhar a contenção, ele próprio paga ao tuiuiú,
deixando de restringir-se e economizar.
É desta consciência da necessidade de contenção que o herói se vale
para ser astuto. Ele chega a exercer um básico nível de contenção quando
está em busca da muiraquitã. O objeto de seu desejo é a única coisa capaz
de fazê-lo agir de uma forma minimamente funcional, mas, assim que ele o
recupera, torna a ser exclusivamente guiado pelo princípio do prazer. Tal
comportamento determina sua derrota ao final.
A ausência de caráter definido, proclamada no próprio título da
obra, faz com que o protagonista não tenha uma ética determinada,
permitindo-lhe agir da maneira que lhe agrada em cada situação específica,
rompendo os limites de qualquer moral. Esta falta de caráter faz dos
tricksters seres do limiar, pois quem está no limiar não está comprometido
com nenhum lado e pode apenas observar sem envolvimento “las
contigencias humanas” (SUBIRATS, 2014, p. 257), como ocorre logo no
início da vida do herói, em que ele “Ficava no canto da maloca, trepado no
jirau de paxiúba, espiando o trabalho dos outros” (ANDRADE, 2007, p.
13).
Aquele que é sem caráter e ambíguo será mutante, pois a mutação
deriva da própria instabilidade: “A metamorfose é desordem, regressão e
transgressão” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 73). Portanto, a natureza
mutante manifesta-se no próprio estilo contraditório. Será, contudo,
também física. Basta lembrarmos que o herói se transforma em peixes,
formiga e francesa.
Uma leitura interessante, trazida à baila por Eneida Maria de Souza,
nos autoriza dizer que Macunaíma é, também, um trickster linguístico. O
uso esquivo da linguagem encontra-se em vários tricksters e é de onde, em
geral, deriva o jeito bufão. Como soem fazer os tricksters, Macunaíma
desrespeita convenções pré-estabelecidas. No campo da linguagem isso se
dá por uma alienação quanto às relações signo-referente consagradas,
lembrando-nos que não há um elo lógico ou natural entre significantes e
significados. Nas palavras da autora mencionada:
Caderno de Letras, nº 26, Jan-Jun - 2016 - ISSN 0102-9576
300 | Renato Amado Barreto e Ana Lúcia Machado de Oliveira
É possível afirmar que a produção textual de Macunaíma põe
em causa a pretensa propriedade do discurso, conseguido
graças ao comportamento impróprio da personagem frente
aos signos, apontando, assim, a ausência de elo entre signo e
referente (SOUZA, 1999, p. 51).
A prática linguística repetitiva consiste no questionamento
da linguagem, considerando-se que os signos, desprovidos de
sentido fixo e estereotipado, são como moedas que circulam,
veiculando um número infinito de significações. O olhar
distanciado do sujeito em relação às palavras vem comprovar
a ilusão de existir um elo natural entre o signo e o referente.
Macunaíma, ao revelar a tendência de tomar as palavras
sempre ao pé da letra, no intuito de provar que elas são o
reflexo das coisas, permite que se interprete a atitude
imprópria frente aos signos como negação da propriedade
que os signos reivindicam sobre seus referentes (SOUZA,
1999, p. 47).
A interpretação ao pé da letra dos signos, contudo, não é apenas
uma “negação da propriedade que os signos reivindicam sobre seus
referentes”, mas também os transforma em “manifestações concretas
capazes de transformar a realidade” (SOUZA, 1999, p. 115), como ocorre
no trecho em que o herói atira palavrões em Venceslau Pietro Petra, como
se fossem pedras e, assim, “a linguagem torna-se ação” (SOUZA, 1999, p.
132):
Então Macunaíma pegou na primeira palavra-feia da coleção
e jogou na cara de Piaimã. O palavrão bateu de rijo porém
Venceslau Pietro Pietra nem se incomodou, direitinho
elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na
caapora. A ofensa bateu rijo porém se incomodar é que
ninguém se incomodou. Então Macunaíma jogou toda a
coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens
(ANDRADE, 2007, p. 130).
Como um típico trickster, o herói marioandradiano distorce a
lógica do cosmo em seu benefício. Faz um furo no tecido de possibilidades
ao subverter a linguagem e transformá-la em arma concreta. Ele tem uma
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Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 301
relação subversiva com a linguagem desde seu nascimento, conforme
observa Subirats:
Simplemente se niega a hablar. Y esta rebelión lingüística del joven
Macunaíma es sólo el primero de una serie de desacatos
semiológicos, sabotajes semánticos y atentados gramaticales, así
como invenciones y regurgitaciones en y contra el sistema de la
langue (SUBIRATS, 2014, p. 253).
Sabotagem que se inicia desde o seu nascimento, ao se recusar a
falar, e que encontra seu ápice na transformação de signos em objetos
concretos, no trecho acima destacado.
Concluímos, por fim, que Macunaíma possui as características
trickster deste tópico, uma vez que usa de astúcia por meios aéticos para
atingir seus objetivos. É, sem dúvida, mutante e possui grande capacidade
de adaptação. O próprio uso da linguagem como forma de atacar um
adversário fisicamente superior, o que faz ao arremessar palavrões contra o
gigante, é um exemplo de sua grande capacidade adaptativa.
Reconhecemos, contudo, que “o herói de nossa gente” não
concluiu seu ciclo, não tendo atingido a contenção de desejos necessária
para que se tornasse astucioso o suficiente para cumprir sua missão de
manter a muiraquitã no retorno ao Uraricoera. Foi justamente esta falta de
contenção que impôs sua derrota, uma vez que não se deteve ao trair a
promessa feita para Vei e deitou-se com uma portuguesa tão logo a Sol e
suas filhas lhe deram as costas. A traição incitou o desejo de vingança em
Sol, que enviou uma Uiara para desgraçar o herói. Novamente ele não
resistiu à tentação e, por isso, teve sua derrota final ao perder a muiraquitã
e ser mutilado. Não acreditamos, contudo, que o fato de Macunaíma não
ter alcançado o mesmo grau de contenção e de astúcia atingido pela maioria
dos tricksters mitológicos lhe retira a qualidade de trickster, uma vez que,
de todo modo, ele é astucioso, tem grande capacidade adaptativa e age de
forma aética. Apenas o grau de sua astúcia não atingiu patamares elevados
o suficiente para se adaptar da melhor forma possível ao mundo, como
acabam por fazer os tricksters. Eles, na maioria dos mitos, começam
praticamente na inconsciência e por isso passam por maus bocados. Vão,
contudo, contendo seus desejos e aprendendo técnicas astutas até que se
adaptam ao seu entorno, servindo de exemplo aos humanos. Macunaíma,
contudo, não desenvolve a contenção necessária para se tornar astuto o
suficiente para lidar bem como o mundo que o cerca, por isso, após perder
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a muiraquitã pela segunda vez e ser mutilado, desiste dele, retirando-se para
o cosmo. Em síntese, Macunaíma, o trickster modernista, foi derrotado
pela falta de contenção de suas pulsões, sobretudo a pulsão sexual.
2.5.2 – Makunaima
Vemos, em Makunaima, momentos de ingenuidade – muitas das
vezes causada por falta de contenção de suas pulsões - e de astúcia, ou seja,
os dois momentos do ciclo trickster. A mais emblemática ação do herói, no
que tange à falta de constrição, é a derrubada da Árvore do Mundo, que
fornecia todos os frutos. Não satisfeito em comer apenas as frutas que dela
caíam, como recomendou seu irmão mais velho Jigué, Makunaima decide
derrubar a árvore, o que lhe daria acesso imediato a todos os frutos dela, a
despeito do alerta do irmão: “Não! Não derrubemos também esta árvore,
senão ficaremos outra vez sem comer!” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.
60). Com isso, o alimento passa a ser limitado, sendo necessária astúcia
para obtê-lo.
Em outro mito, Makunaima é engolido por Waimesá-pódole, o pai
da lagartixa (na verdade, uma lagartixa arquetípica), por não aguentar a
curiosidade:
Ninguém podia se aproximar dele, porque tinha uma língua
muito comprida, com a qual pegava todos os animais.
Makunaíma disse: “Quero ver!” Ma`nápe disse: “Não! Ele
vai te engolir!” Makunaíma respondeu: “Não! Eu quero ver!”
Ma`nápe disse mais uma vez: “Olha, o bicho vai te pegar,
meu irmão!” Mas Makunaíma não deu importância ao
conselho. Então Ma`nápe deixou-o ir. Makunaíma foi lá
para ver. Aproximou-se de Waimasá-pódole, que o pegou
com a língua e o engoliu (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p.
76).
O exemplo acima é sintomático de uma característica do herói:
“quando Makunaíma queria alguma coisa ele insistia até conseguir”
(KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 61-62). Isso significa dizer que Makunaima
não se continha, ou seja, fatores exteriores não o bloqueavam, algo típico
de um ser tomado exclusivamente pelo princípio do prazer, ainda infenso
ao princípio da realidade. Por isso, por desejar sem restrições ou
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considerações, é que Makunaima derruba a árvore Wazaká e, em outra
história, violenta a esposa de seu irmão:
Quando Makunaíma ainda era menino, chorava a noite
inteira e pedia à mulher do irmão mais velho que o
carregasse para fora de casa. Ele queria segurá-la e abusar
dela. Sua mãe decidiu levá-lo para fora, mas ele não quis.
Então a mãe mandou a nora levá-lo: ela o carrega para fora,
afastando-se uma boa distância da casa, mas ele pediu que o
levasse para mais longe. Então a mulher o levou para mais
longe, para trás de um morro. Makunaíma ainda era um
menino. Mas quando lá chegaram, ele se tornou um homem
e abusou dela (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 68).
Nota-se por essa ação e outras - como amarrar e deformar um jovem
por cuja pretendente Makunaima era sexualmente interessado (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 72), ou a já citada transformação de diversos seres
em pedra -, que o herói age de forma aética. Uma vez que é tomado pelo
princípio do prazer, é guiado por suas pulsões, de modo que considerações
externas aos seus desejos sequer se lhe apresentam; assim, a ele é inviável
ter considerações éticas. Nada mais típico de um trickster, uma vez que estes
seres têm justamente uma função de, por sua ação um tanto caótica e
indiferente à moral vigente, pô-la em xeque, propondo, deste modo, uma
constante atualização da moral social. Não que ao transgredir uma
determinada regra o trickster esteja propondo a revogação daquela regra,
ele apenas, por ser indiferente a ela, uma vez que não se submete à estrutura
mental que rege os membros de uma sociedade, demonstra que há outras
possibilidades de estruturas mentais e lógicas, desestabilizando e
problematizando, por meio de ações não calculadas, o sistema.
Vejamos, agora, que Makunaima é mutante e astuto.
O primeiro ato de astúcia narrado pelo etnógrafo alemão é o furto
do fogo, já transcrito no item “a” da subseção 2.3. Logo em seguida,
fingindo que dormia, o herói consegue confirmar que Akúli comia,
escondida, saborosas frutas (KOCK-GRÜNBERG, 2002, p. 60). No
mesmo mito, é afirmado que “Makunaíma, o mais novo dos irmãos, era
mais safado que todos os outros, embora fosse um menino. Os outros
irmãos dependiam dele, pois lhes garantia seu sustento” (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 60). Neste trecho, a astúcia (gênero do qual a citada
“safadeza” constitui uma espécie) é explicitamente posta como importante
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para a garantia do sustento, pois, num mundo de recursos limitados (nesta
altura, Makunaima e seu irmão ainda não conheciam a árvore Wazaká), a
astúcia é fundamental para o sustento. Por isso Makunaima sabe rastrear
(KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65) e domina técnica para cercar os peixes,
facilitando a pescaria (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65). E justamente
para a pesca é que Makunaima cria o anzol, primeiramente de cera, mas,
percebendo que não funciona, vale-se de astúcia para subtrair o anzol de
um pescador. Este mito, já referido em 2.2.2, traz um importante exemplo
da típica evolução do trickster. Assim como o Macunaíma ficcional (Mário
de Andrade valeu-se desse mito para narrar história praticamente idêntica),
Makunaima tem uma atitude típica de trickster no trecho citado. Ele
aprende por tentativa e erro e então adapta a ação, encontrando uma
solução eficaz, ou seja, passa da ingenuidade e da falta de consciência para
a ação pensada, astuta.
A astúcia é o ardil, a capacidade de enganar, logo demanda
dissimulação. Aquele que está sempre dissimulando acaba por não ter um
caráter definível, como é o caso dos tricksters. São, portanto, seres mutantes
e ambíguos. Diz-se que são mutantes tanto por terem caráter ambíguo
quanto por, muitas vezes, alterarem sua constituição física. Makunaima
transforma-se em todos os animais. Ainda menino transmuta-se em homem
feito para deitar-se com a mulher do seu irmão, em um primeiro momento
violentando-a. Mas, num segundo momento, desejando-a ainda mais
entregue e submissa, passa por mutações para, astutamente, fazê-la rir:
Um dia o irmão mais velho foi caçar com os outros irmãos,
deixando em casa a mulher com o menino e a mãe. A mãe
foi para a roça e Makunaíma ficou em casa, sozinho com a
mulher. Transformou-se num bicho-de-pé para fazê-la rir.
Mas ela não riu. Então ele se transformou num homem com
o corpo todo coberto de feridas, porque queria que ela risse
e se tornasse mais submissa. Então a mulher riu. Makunaíma
caiu sobre ela e a possuiu.
O irmão mais velho sabia de tudo, mas preferiu ignorar,
porque pensou na fome que tinha passado e também porque
não podia viver sem o irmão mais moço. Por isso não quis
mais brigar com ele (KOCK-GRÜNBERG, 2002, p. 70).
Lembrando que os mitos expressam valores fundamentais de uma
sociedade, observa-se que a reação do irmão parece ser um reconhecimento,
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Makunaima e Macunaíma: dois tricksters | 305
pelos pemons, da impossibilidade de sobrevivência sem a astúcia. O ser
humano consegue caçar e pescar não por uma superioridade física, mas por
sua astúcia. O simples fato, que nos parece hoje tão corriqueiro, de colocar
uma isca em um anzol, que simula uma presa do peixe, é uma típica ação
astuta. Desse modo, como os seres mitológicos inauguram
comportamentos, há um reconhecimento de que, sem a astúcia, ou seja,
sem o trickster, não é possível o florescimento da cultura humana. Afinal,
um dos diferenciais do ser humano é conseguir adaptar-se, ou seja, ter
mobilidade, fazer ajuste nos planos, pois os animais considerados astutos
não o são verdadeiramente: apenas seguem o instinto, só sabem agir
daquela maneira. Caso por algum motivo o velho “plano” não funcione,
serão incapazes de adaptá-lo e a suposta astúcia redundará em estupidez. É
fundamental, portanto, para a verdadeira astúcia, a capacidade de adaptarse, de fazer mutações. E isso só o ser humano consegue realizar, graças aos
aprendizados trazidos pelo trickster em tempo primordial. O ser humano
imita os animais, mas está livre para valer-se de um ou outro subterfúgio
daquele ou deste animal, de acordo com as circunstâncias. É essa
capacidade de escolha da ação mimética mais apropriada ao momento que
permite ao ser humano superar os animais.
Já a capacidade de adaptação deriva da própria astúcia e da
mutabilidade. Ao transformar-se para melhor atingir um objetivo,
Makunaima está sabendo adaptar-se. Desse modo, ao notar que, ao virar
um bicho-de-pé, não consegue fazer a mulher de seu irmão rir, transformase num homem cheio de feridas; com isso o herói demonstra sua
capacidade de adaptação, sua necessária maleabilidade. Há também outros
momentos em que ele deixa clara esta capacidade, como no tão citado mito
em que vira piranha para roubar o anzol depois de perceber que como
aimará não conseguiria, ou quando cria homens de barro depois de os que
fizera de cera derreterem ao sol (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65), ou
ainda ao mudar-se para o norte do Roraima, onde caíram os galhos da
árvore Wazaká, permitindo o florescimento de uma maior quantidade de
alimentos (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 65).
Por fim, vale dizer que o herói pemon, assim como muitos outros
tricksters, possui uma relação particular com a linguagem. O verbo tem um
poder de alteração da realidade, como acontece com alguns deuses e
demiurgos. Com isso, a linguagem liberta-se do plano meramente abstrato
e, graças ao trickster, atinge o plano concreto (um furo no tecido de
possibilidades), torna-se coisa, fato. Assim, basta Makunaima ordenar a
uma planta “Transforma-te numa arraia e vai para junto de Jigué! Quando
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ele pisar em cima de ti, pica-lo” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 71) que o
evento ocorre. Há outros exemplos. Num deles o herói estava preso em um
cesto e “ficou pensando: ‘Como é que vou sair do cesto?’ Disse ao cesto:
‘Abre tua boca, tua grande boca!’ Então o cesto abriu a boca” (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 73). Dentre todas as opções, o uso do verbo como
elemento mágico, capaz de alterar a realidade, foi a escolhida, o que
demonstra talvez uma superioridade da linguagem até sobre qualquer
plano astucioso, visto que nada pode ser mais simples do que apenas falar
e, com isso, dar à realidade o contorno que se deseja. A própria derrubada
de Wazaká teve que contar com o apoio da linguagem:
Makunaíma começou a dar golpes num lado do tronco, Jigué
no outro, Jigué golpeava e dizia: ´Wainayég`107. Então um
dos lados do tronco foi ficando cada vez mais duro.
Makunaíma, porém, golpeava mais depressa que Jigué e dizia
sempre: ´Elupa-yég, makúpa-yég`108. Então este lado foi
ficando cada vez mais mole. A árvore quebrou-se (KOCHGRÜNBERG, 2002, p. 61).
Esse poder da linguagem dialoga com o poder mutante do trickster.
Makunaima, como vimos em vários mitos aqui destacados, transmuta
coisas, pessoas, objetos e a si próprio. Parece-nos, contudo, que as mutações
provocadas por Makunaima alteram ontologicamente os objetos de suas
mutações, já que as pessoas transformadas em pedra até hoje estão no
Monte Roraima em forma de rochas, dando a impressão de terem perdido
sua natureza de pessoa. As mutações sobre si próprio, todavia, não alteram
sua natureza e Makunaima mantém sua consciência identitária, tanto que
normalmente retorna à sua forma original.
Makunaima chega a ser capaz, inclusive, de determinar
acontecimentos futuros e romper a lógica pelo uso da linguagem. Ele retira
feridas do seu corpo, as arremessa sobre o chão, as transforma em pedras e
diz: “‘Ficai aqui! Pegai em toda gente que passar por aqui!’ Por isso aqueles
que usam esse caminho hoje, ficam com feridas” (KOCH-GRÜNBERG,
2002, p. 61). A par do maravilhoso, a lógica é rompida pela própria ideia
Explica, o autor, em nota de rodapé: “Nome duma árvore de madeira muito dura; aqui
significa uma espécie de fórmula mágica” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 61).
108
Explicita, o etnógrafo, em nota de rodapé: “Bananeiras. O tronco da bananeira é tão mole
que pode ser abatido de um só golpe. Aqui os nomes deverão exercer uma influência mágica
sobre o tronco da árvore Wazaká” (KOCH-GRÜNBERG, 2002, p. 61).
107
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de as pedras cumprirem a ordem de “pegar em toda gente que passar por
aqui”, já que se trata de um objeto inanimado, incapaz de qualquer ato para
fazer alguém ser por ele machucado.
As observações anteriores nos levam a concluir que Makunaima
apresenta todas as características deste tópico, bem como as dos anteriores,
sendo, portanto, um típico trickster.
CONCLUSÃO
Pelo exposto, conclui-se que ambos os personagens são tricksters.
Mário de Andrade certamente percebeu que havia um certo grupo de
personagens com características comuns, embora, ao tempo em que
escreveu o livro, o conceito de trickster ainda não estivesse traçado pela
antropologia. Não à toa, além de dar ao seu protagonista o nome de um
importante trickster sul-americano, informa, no capítulo “Macumba”, que
Macunaíma é filho de Exu, outro clássico trickster.
Contudo, o “herói de nossa gente” não conseguiu completar seu
ciclo, não livrou-se do domínio do princípio do prazer, por isso, ao
contrário do seu coirmão mitológico, acaba derrotado, sem conseguir
adaptar-se ao mundo.
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