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PRINCÍPIOS DO PRAZER E DA REALIDADE NO TRICKSTER MACUNAÍMA Renato Amado Barreto RESUMO: Neste estudo explicitaremos como os princípios do prazer e da realidade, cunhados por Freud, se aplicam a Macunaíma, o clássico personagem de Mário de Andrade. Veremos que Macunaíma é um trickster de ciclo incompleto. Os tricksters seguem ciclos, nos quais eles migram do princípio do prazer para o princípio da realidade. Macunaíma, contudo, não completou seu ciclo e, por isso, foi derrotado no embate com Vei, a Sol, e não conseguiu se adaptar ao mundo, retirando-se para o cosmo. PALAVRAS-CHAVE: Macunaíma, princípio do prazer, trickster. ABSTRACT: In this study we will demonstrate how the pleasure principle and the reality principle, both created by Freud, apply to Macunaíma, the classic Mario de Andrade`s character. We will see that Macunaíma is a trickster of an incomplete cycle. The tricksters follow cycles in which they migrate from the pleasure principle to the reality principle. Macunaíma, however, has not completed his cycle and, therefore, was defeated in the clash with Vei, the Sun, and has failed to adapt to the world, retreating into the cosmos. KEYWORDS: pleasure principle, Macunaíma, trickster. INTRODUÇÃO Neste artigo veremos que Macunaíma foi derrotado pela falta de contenção de sua pulsão sexual, o que se deu por não abandonar o princípio do prazer em favor do princípio da realidade, duas formulações freudianas. Isso se dá porque Macunaíma é um trickster de ciclo incompleto. O trickster é um conceito extraído da mitologia. Diversos povos têm em seus aproximam de outros personagens de culturas diversas com semelhantes 202 Mestre em literatura brasileira pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e doutorando em estudos portugueses e brasileiros, com ênfase em literatura, pela Brown University, EUA. Página mitos um personagem com determinadas características e funções que o Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. características e funções. Pela observação destes personagens, encontra-se um núcleo essencial. Este núcleo é o trickster. Os tricksters costumam seguir um ciclo, no qual eles migram do princípio do prazer para o princípio da realidade, em um processo de amadurecimento, que lhes permite uma adequada adaptação ao cosmo. O ―herói de nossa gente‖, contudo, não completa essa transição, restando, portanto, incapaz de se adequar ao mundo, razão pela qual se retira para o cosmo. O CICLO DOS TRICKSTERS O trickster é um frequente arquétipo mitológico, encontrado em diversas culturas, que surge como um mediador, para resolver contradições. Considerando-se que as atividades humanas encontram pontos de contradições, a função central do mito, segundo Lévi-Strauss, seria a de buscar superá-las (LÉVI-STRAUSS, 2012, p. 325; 329,). Mas, como são insuperáveis, criam-se constantemente novos mitos sobre as mesmas temáticas. Uma vez que uma contradição se constitui de uma oposição entre distintas ações, um ser arquetípico que represente simultaneamente estas duas ações pode ser uma forma mais ou menos eficaz de tentar equacioná-la. O duplo caráter do trickster faz com que ele pertença a dois (ou frequentemente, colocar em xeque os valores destes mundos. Se o trickster, ao mesmo tempo em que representa um determinado mundo ou prática Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página autonomia em relação aos mundos dos quais faz parte, sendo capaz de, 203 mais) mundos e ao mesmo tempo a nenhum deles. Ele tem, portanto, representa outro(a) que a ele(a) se opõe, ele será um ser dúbio, simultaneamente aliado e inimigo. Silvia M.S. de Carvalho, no artigo ―O trickster como personificação de uma práxis‖ (1985), clareia a questão, ao tratar daqueles tricksters que buscam superar as contradições do delicado equilíbrio das sociedades humanas com a natureza, à qual ela se refere como ―outro‖. É que o ser humano necessita extrair elementos da natureza - o que ela chama de "punção" - para sua subsistência. Contudo, caso os extraia em demasia, os recursos disponíveis se esgotam. Desse modo, é frequente haver tricksters que simultaneamente incentivam e limitam a punção da natureza. Assim, eles estarão ao lado do ser humano, fornecendo tecnologias, como o anzol, para aprimorar a punção; outras vezes, entretanto, serão aliados da natureza, castigando o ser humano por alguma ação indevida ou simplesmente ajudando elementos da natureza contra o ser humano. Tais seres costumam seguir um ciclo. No início, são tomados pela inconsciência e guiados por luxúria e fome incontroláveis. Conforme observa Subirats: Es mentalmente ´inconsciente` y ´infantil`, carece de una identidad definida, ignora las normas morales (...). Su asombro ante las cosas pone manifesto su apertura psicológica frente a los misterios de lo existente. El goce y el placer (Lust) es su principio de actuación (SUBIRATS, 2014, p. 281). criando tabus -, que só vêm a atingir o equilíbrio quando passam a conter estes desejos. Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página consequências terríveis para eles - e, muitas vezes, para a humanidade, 204 Suas ações desmedidas, em busca de satisfazer tais apetites, geram O trickster passa da imaturidade para a maturidade, da insegurança para a segurança (RADIN, 1956, p. 166). Uma ação recorrente entre os tricksters é vagar pelo mundo, como um ser primordial, muitas vezes anterior ao ser humano – que é, em muitos mitos, criado por ele. Daí seu caráter intermediário entre o humano e o divino. Como um ser que perambula em tempos primordiais, assim como o ser humano, ele tenta compreender o mundo. No início está jogado num terreno de grande inconsciência. Ele é considerado, por Jung e Hyde, como mais estúpido do que um animal, pois os animais, ao menos, ―have inborn knowledge, a way of being, and trickster doesn’t‖ (HYDE, 1998, The bungling host, p. 13)1. No ciclo de Wakdjunkaga, trickster winnebago, povo autóctone norteamericano, o trickster mata um búfalo usando apenas a mão direita e então, seu braço esquerdo, subitamente, segura o búfalo. ―Me devolva, é meu! Pare com isso ou vou usar minha faca em você!‖, grita o trickster para o seu braço esquerdo, que em seguida larga o búfalo e segura seu braço direito. As mãos e braços entram em um combate e o trickster usa a faca com sua mão direita, cortando severamente seu braço esquerdo. Só neste momento ele parece tomar consciência de que se tratava de uma parte de seu corpo, ao exclamar: ―Oh, por que fiz isso? Me fiz sofrer!‖ (RADIN, 1956, p. 8). 1 A citada referência bibliográfica possuímos no formato epub, para leitor digital. A numeração de páginas recomeça a cada capítulo ou subcapítulo, deste modo, a fim de que o leitor possa localizar o trecho, sempre que fizermos referência a esta obra de HYDE colocaremos, entre o ano e a página, o nome do capítulo ou subcapítulo a que nos referimos. Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página Andrade na criação do seu personagem - derruba Wazaká, árvore que 205 Makunaima – trickster dos índios pemon, que inspirou Mário de fornecia todos os frutos, o que gera uma enchente que destrói a humanidade (que depois é recriada pelo próprio Makunaima). Tal consequência faz surgir o interdito à derrubada de árvores, para que elas estejam sempre presentes para fornecer alimentos. O trickster, portanto, guiado pelo seu apetite desenfreado, passa por maus bocados, o que faz com que ele vá aprendendo a lidar com as artimanhas do mundo, de forma a, através de sua esperteza, obter o alimento necessário sem sofrer consequências desastrosas por isso. A esse respeito, leiamos Hyde: The trickster myth derives creative intelligence from appetite. It begins with a being whose main concern is getting fed and it ends with the same being grown mentally swift, adept at creating and unmasking deceit, proficient at hiding his tracks and at seeing through the devices used by others to hide theirs. Trickster starts out hungry, but before long he is master of (…) creative deception. (HYDE, 1998, The bait thief, p. 1) Ao desenvolver tais técnicas e obter alimento através de estratagemas, como armadilhas, o trickster cumpre sua função de mediador, pois tais ações permitem uma punção equilibrada da natureza. Ele contém seu desejo desenfreado e passa a extrair pontualmente o alimento de que precisa, sem necessitar de grandes ações que caotizem o meio ambiente para satisfazer sua fome. Ele é obrigado a desenvolver estas técnicas para alimentar-se, pois um motivo comum nas mitologias é o de que havia abundância de alimentos, até que o trickster fez alguma tolice (como comida. Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página tolice é, muitas vezes, a violação de um interdito, em função do desejo por 206 derrubar a árvore de todos os frutos) e o alimento tornou-se escasso. Esta Segundo Lewis Hyde, só há duas possibilidades: comida limitada, ou apetite limitado. O estudioso narra uma história bastante ilustrativa, ocorrida com Coyote, trickster de um povo nativo de Colville, nos EUA. Coyote teria dado um par de chifres de presente para Old Buffalo Bull, que lhe retribuiu dando-lhe uma vaca mágica. Fez, contudo, um aviso: ―never kill this cow, Coyote. When you are hungry, cut off a little of her fat (...). Rub ashes on the wound. The cut will heal. This way, you will have meat forever‖ (HYDE, 1998, Eating the organs of appetite, p. 18). Coyote, contudo, voltou para sua terra, do outro lado das montanhas e então pensou: ―essa regra servia para as terras do Buffalo Bull, mas aqui sou chefe e as palavras de Buffalo Bull não significam nada. Ele nunca saberá‖ (HYDE, 1998, Eating the organs of appetite, p. 18). Então ele matou a vaca e logo em seguida corvos apareceram e começaram a comer a carne. À medida que ele caçava, mais e mais corvos apareciam, até que comeram toda a carne da vaca. Nesta história, vemos replicado o motivo da comida em abundância, até que o trickster viola um interdito em função da sua fome incontrolável. Ele não limita a punção da natureza. Em vez de retirar apenas um pedaço de gordura da vaca, o que lhe daria comida ilimitada, mata-a em função de seu descontrole e, com essa punção excessiva, ele se prejudica, não tendo mais a fartura alimentar. As ações humanas, sobretudo nas sociedades se o ser divino ficou sem comida por não conter seu apetite, nós devemos nos controlar. E mais: nós não temos comida suficiente porque tal ser Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página mitológico tomou uma ação que o prejudicou, isto se estende aos humanos: 207 arcaicas, são repetições de ações arquetípicas, de modo que, se um ser primordial não respeitou os interditos e descontrolou-se. O trickster, portanto, precisa controlar seu desejo, para estar sujeito a menos armadilhas e situações desagradáveis e manter o equilíbrio do meio ambiente. Uma vez privado de sua fonte inesgotável de comida, o trickster terá que se valer de técnicas alternativas para alimentação. Ele desenvolverá, por consequência, sua inteligência criativa a partir do apetite. Derrubada a árvore Wazaká, Makunaima precisará encontrar outras formas para alimentar-se. Ele, então, inventa um anzol de cera que, contudo, não funciona. Não sendo suficiente a técnica, usa de esperteza para furtar o anzol de um pescador. Alguns tricksters têm órgãos digestivos e sexuais enormes, representando a sexualidade e a fome fora de controle. Num dado momento, contudo, estes órgãos diminuem e o trickster passa a conter sua fome ou sexualidade. Wakdjunkaga tinha um enorme pênis, que carregava numa caixa em suas costas. Um esquilo começou a zombar dele por isso, então o trickster decidiu matá-lo. Mas o esquilo escondeu-se dentro do buraco de uma árvore. Para tentar alcançá-lo, ele colocou seu pênis dentro do buraco, mas não chegava ao fundo. Então cada vez colocava mais e mais seu grande órgão no buraco, até esvaziar a caixa que carregava nas costas, e todo o seu apenas uma pequena parte sobrara, pois o resto fora roído pelo esquilo. Ao notar isso, ele lamenta, por um instante, ter sido privado de um órgão tão Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página esquilo. Então retirou o seu pênis de dentro da árvore e percebeu que 208 falo estar dentro do buraco. Mas ainda assim, não conseguia atingir o magnífico, mas logo revê sua posição e pensa: ―vou fazer objetos com os pedaços para que os humanos usem‖. Então, os pedaços que sobraram do seu pênis roído se transformam em vitória-régia, batata, nabo, alcachofra, feijão, arroz... E o trickster ficou com o que restou do pênis, e é por isso que o homem tem o pênis do tamanho atual. Não fosse o esquilo ter roído, teria o pênis do tamanho que tinha o trickster quando o carregava numa caixa nas costas. Em síntese: ―Now it would not have been good had our penis remained like that and the chipmunk was created for the precise purpose of performing this particular act‖ (RADIN, 1956, p. 40). Após este fato, não há, na narrativa trazida por Paul Radin sobre este trickster, mais nenhuma referência à sua sexualidade, ao contrário do que ocorria anteriormente, quando ele entrava em enrascadas por conta de falta de controle do apetite sexual. A redução do pênis, portanto, que se estende aos homens – ―And this is the reason our penis has its present shape‖ (RADIN, 1956, p. 39) –, foi fundamental para colocar um freio na atividade sexual, permitindo que o homem se concentrasse em outras atividades e fundasse instituições familiares e tabus sexuais. Histórias como a de Wakdjunkaga vêm simbolizar a necessidade de controle das pulsões e de se realizar uma migração do princípio do prazer, quando as pulsões determinam as ações, para o princípio da realidade, O CICLO DE MACUNAÍMA Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página do herói sem nenhum caráter. 209 quando os atos passam a ser calculados. Contudo, antes conheçamos o ciclo O trickster, como vimos, primordialmente vaga pelo mundo em estado de grande inconsciência, a ponto de suas mãos brigarem até que ele se machuque, somente então percebendo que ambas fazem parte do seu corpo, como faz o trickster do povo winnebago. Ele está, no primeiro momento, aquém dos animais, já que estes têm um jeito nato de agir, estratégias de sobrevivência pré-determinadas pelo instinto. O trickster, contudo, no início não as possui, mas é capaz de observar e apreender técnicas de animais e utilizá-las não por instinto, mas por astúcia – de que os animais não são capazes –, aprimorando sua eficácia e tornando-se superior aos animais. É o que faz Macunaíma, por exemplo, quando vira aimará três vezes, uma espécie de peixe, para roubar o anzol de um pescador. Sua estratégia não funciona, então transforma-se em piranha e arranca o anzol com sua forte dentição (ANDRADE, 2007, p. 131; 132). Macunaíma tem uma atitude típica de trickster no trecho citado. Ele aprende por tentativa e erro e então adapta a ação, encontrando uma solução eficaz. Fundamental na evolução do trickster é a contenção dos desejos, sobretudo o sexual e, ainda mais, por alimento, uma vez que, em caso de desejo alimentar incontido, a comida tornar-se-á escassa. O herói andradiano, contudo, não parece ser afeito a contenções. Mais de uma vez disso, mata a própria mãe. Mas, sua mais grave falta de contenção ocorre quando trai o acordo com Vei, a Sol. Segundo Gilda de Mello e Souza Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página ficar com toda a provisão. Tampouco poupa uma veada parida e, por conta 210 deixa de repartir a comida com seus irmãos, chegando a enganá-los para (2003, p. 50), a rapsódia marioandradiana traz dois sintagmas essenciais: a disputa de Macunaíma com o industrial Venceslau Pietro Petra, pelo seu amuleto, a muiraquitã, e seu antagonismo com Vei, a Sol. Este segundo embate surge a partir do momento em que o herói é lavado e recebe carinho das filhas de Vei, que lhe faz uma grande proposta em troca do casamento dele com uma de suas filhas: Oropa França e Bahia. Mas porém você tem de ser fiel e não andar assim brincando com as outras cunhãs por aí. Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele. (ANDRADE, 2007, p. 90) Contudo, logo em seguida, à vista da primeira cunhatã, uma portuguesa, o herói não se contém e trai o acordo, perdendo ―Oropa França e Bahia‖. Com isso, transforma Vei em inimiga. A Sol, mais à frente, ciente da falta de contenção do herói, usa tal fraqueza como arma para desgraçá-lo. Envia uma Uiara para seduzi-lo e, por não se conter e entregarse à sereia amazônica, Macunaíma termina mutilado e sem a muiraquitã. Nota-se, portanto, que Macunaíma chega ao fim do livro sem ter aprendido a contenção, sendo ainda um trickster ingênuo, de ciclo incompleto, não tendo atingido a contenção de desejos necessária para que se tornasse astucioso o suficiente para cumprir sua missão de manter a promessa feita para Vei e deitou-se com uma portuguesa tão logo a Sol e suas filhas lhe deram as costas. A traição incitou o desejo de vingança em Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página contenção que impôs sua derrota, uma vez que não se deteve ao trair a 211 muiraquitã no retorno à beira do Uraricoera. Foi justamente esta falta de Sol, que enviou uma Uiara para desgraçar o herói. Novamente ele não resistiu à tentação e, por isso, teve sua derrota final ao perder a muiraquitã e ser mutilado. Em síntese, Macunaíma, o trickster modernista, foi derrotado pela falta de contenção de sua pulsão sexual. PRINCÍPIOS DO PRAZER E DA REALIDADE: BREVE INTRODUÇÃO AO TEMA Macunaíma termina sua história derrotado por não controlar suas pulsões, sobretudo a sexual. Isso ocorre porque ele é um ser entregue, a maior parte do tempo, ao princípio do prazer. O ciclo trickster, que passa da inconsciência à astúcia pela contenção, pode ser visto como uma representação do amadurecimento do ser humano, que migra do princípio do prazer para o princípio da realidade. Macunaíma, por seu turno, permanece sempre uma criança, segundo se observa no seu encontro com a Os princípios do prazer e da realidade são expressões cunhadas por Freud, primeiramente abordadas no pequeno texto ―Formulações sobre os Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página - Culumi faz isso não, meu neto, culumi faz isso não... Vou te igualar o corpo com o bestunto. Então pegou na gamela cheia de caldo envenenado de aipim e jogou a lavagem no piá. Macunaíma fastou sarapantado mas só conseguiu livrar a cabeça, todo o resto do corpo se molhou. O herói deu um espirro e botou corpo. Foi desempenando crescendo fortificando e ficou do tamanho dum home taludo. Porém a cabeça não molhada ficou pra sempre rombuda e com carinha enjoativa de piá. (ANDRADE, 2007, p. 25) 212 cotia: dois princípios do funcionamento psíquico‖ e aprofundadas em ―Além do princípio do prazer‖. Segundo o autor: (...) o curso tomado pelos eventos mentais está automaticamente regulado pelo princípio de prazer, ou seja, acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente colocado em movimento por uma tensão desagradável e que toma uma direção tal, que seu resultado final coincide com uma redução dessa tensão, isto é, com uma evitação de desprazer ou uma produção de prazer. (FREUD, s/d, p. 1, grifo nosso) O trecho em destaque é a essência do referido princípio e se refere ao propósito dominante da atividade psíquica, sobretudo em seu nascedouro: evitar o desprazer e buscar o prazer. O desprazer, para Freud, é o aumento da tensão psíquica e, para descarregá-la, é necessária uma ação motora. Recebemos estímulos através dos sentidos, estes estímulos geram excitações que correm através do sistema nervoso e são descarregados na extremidade motora do sistema. Alguém entregue exclusivamente ao princípio do prazer, portanto, ao sentir o cheiro de uma comida que lhe agrada, terá de imediato a ação motora correspondente ao devoramento desse alimento, sem maiores considerações (pertence a outra pessoa, faz mal à saúde... ou quaisquer outros motivos que se possa imaginar). Assim, o desprazer ―corresponderia a uma elevação, o prazer a uma baixa da taxa Entende-se que o prazer, fique claro, é a satisfação de necessidades. E isso se reproduz na atividade fantasmática, ou seja, na imaginação, nos sonhos Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página atividade psíquica o que lhe gera prazer e fora dela o que causa desprazer. 213 de excitação‖ (SAFOUAN, 1988, p. 20). O princípio do prazer mantém na (embora haja também outras leis a regerem a atividade onírica que a impulsionam igualmente em outros sentidos), nas brincadeiras. Nestas será buscado o prazer, ou seja, a satisfação através de descargas de excitações. Contudo, não haverá efetivamente uma satisfação por meio alucinatório, o que gera uma decepção por parte do sujeito. Desse modo: [...] o aparelho psíquico teve que se decidir a formar uma ideia das reais circunstâncias do mundo exterior e se empenhar em sua real transformação. Com isso foi introduzido um novo princípio de atividade psíquica; já não se imaginava o que era agradável, mas sim o que era real, ainda que fosse desagradável (FREUD, 2010, p. 83). Até então, ideias emergentes que gerassem desprazer eram recalcadas. Agora, contudo, conceitos que geram desprazer não são automaticamente reprimidos. Ao contrário, são postos sob um juízo imparcial, que deve definir se é verdadeiro ou falso, ―isto é, se concordava ou não com a realidade, e o fazia comparando-a com os traços de memória Página A descarga motora, que sob o governo do princípio do prazer tinha servido para aliviar o aparelho anímico de aumentos de estímulos, por meio de inervações enviadas para o interior do corpo (mímica, expressões de afeto), recebeu uma nova função, ao ser utilizada na modificação adequada da realidade. Transformou-se em ação. A suspensão da descarga motora (da ação), que se tornou necessária, foi arranjada mediante o processo de pensamento (...). (FREUD, 2010, p. 84) 214 da realidade‖ (FREUD, 2010, p. 84). E mais: Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Os seres, para terem suas necessidades atendidas, precisam do Outro, ou seja, um objeto, algo externo a eles. Por exemplo, a necessidade de alimento e de água. O princípio do prazer buscará o Outro a todo tempo. Um recém-nascido poderá sugar outras coisas que não serão o seio materno e, após decepcionar-se, passará a se preocupar se o objeto que lhe é oferecido tem, de fato, a possibilidade de atender ao seu desejo. Essa necessidade de verificação gera uma suspensão da sua ação. Em outras palavras, entra em campo o pensamento, o cálculo, a contenção da ação para avaliação da situação real posta. Em níveis mais sofisticados, essa suspensão não se dará apenas para verificação da realidade do objeto (tomado como real um objeto que tem o potencial de satisfazer o impulso que se apresenta), mas também para que se calcule até que ponto a obtenção instantânea e desenfreada de prazer a partir do objeto pode prejudicar ou não a obtenção de prazeres futuros, ou gerar desprazeres. Podemos pensar, por exemplo, naquele que suspende sua alimentação, a despeito de sentir o desejo por prosseguir, porque sabe que em seguida virá a sensação de satisfação e, caso exagere na quantidade de alimento ingerido, sentirá uma sensação desagradável. Essa suspensão da busca imediata pelo prazer em função da consideração de dados da realidade foi trickster começa com desejos incontroláveis, mas, ao perceber que deve limitar seu desejo ou haverá falta de alimentos, migra para o princípio da Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página O ciclo trickster é a representação do amadurecimento humano. O 215 chamada por Freud de princípio da realidade. realidade, tornando-se astuto. Relembremos a história de Coyote, narrada na primeira sessão deste artigo, em que o personagem devora toda a carne de uma vaca, quando poderia comer apenas um pedaço e depois esfregar cinzas na ferida, que ela regeneraria e ele teria uma fonte inesgotável de alimento. Coyote quis zerar a excitação psíquica gerada pela fome, tendo sido incapaz de manter um grau mínimo dela, objetivando ainda poder dar vazão a tal excitação quando ela retornasse, no futuro. Essa gênese do princípio da realidade só é possível se o aparelho psíquico aprende a frear sua tendência primária à descarga, o que acarreta uma transformação de seu fim: não é mais de reduzir toda tensão a zero (o prazer a qualquer preço, poder-se-ia dizer), mas de manter constante – ou próximo da constância – uma taxa mínima de energia. Além disso, à medida que o ser humano, cuja impotência em seu início precoce é total, se torna capaz de realizar a ação que introduz no mundo exterior as modificações necessárias para achar o objeto, a descarga se torna ação. Essa transformação é possível graças à intervenção do pensamento como ação antecipatória, experimental (...) que supõe uma certa tolerância com o que é penoso até que seja decidido se esse objeto penoso é útil ou não em relação ao fim. (SAFOUAN, 1988, p. 40-41) Com o princípio da realidade, o ser humano torna-se mais pragmático e realista. Ciente da inviabilidade de obter prazer ou evitar o desprazer a todo instante, uma vez que o mundo oferece recursos limitados para desejos ilimitados, a pessoa passa a negociar com o meio, a calcular a completa de tensões em algumas hipóteses em que isso parece viável. Trazendo para termos práticos da vida cotidiana, podemos, dentre Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página aparelho psíquico, mesmo que isso signifique não realizar uma descarga 216 melhor ação para que tenha sempre a menor tensão possível em seu incontáveis hipóteses, pensar no exemplo do concursando, que adia diversos prazeres para estudar, em prol da obtenção futura de um salário que lhe permitirá um acesso constante a objetos que lhe trarão prazer. É importante notar, portanto, que o princípio da realidade joga favoravelmente ao prazer, buscando mantê-lo o mais constante possível, mesmo que isso imponha algumas limitações na sua intensidade. Vejamos como age Macunaíma face a esses dois princípios. MACUNAÍMA E OS PRINCÍPIOS DO PRAZER E DA REALIDADE Macunaíma, ingênuo e eterna criança, não é afeito a contenções, sobretudo quanto aos seus desejos sexual e por alimento. Mais de uma vez deixa de repartir a comida com seus irmãos, sendo frequentemente capaz de enganá-los para ficar com toda a provisão. Tampouco poupa uma veada parida (caçar animal grávida é tabu na cultura pemon, criadora do personagem mitológico Makunaima, inspiração para o trickster modernista) e por conta disso mata, sem querer, a própria mãe, que havia se transformado na veada. Não se contém ao ver belas mulheres, inclusive à traição do próprio irmão Jiguê, dormindo com mais de uma namorada dele. da outra parte. O seu primeiro encontro com a amazonas Ci, a mãe do mato, é emblemático: Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página que ele tem dificuldade até em levar em conta o desejo, ou ausência dele, 217 A predominância do princípio do prazer, sobretudo no campo sexual, é tal Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunha dormindo. Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua, coada pela Nhamundá. A cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido com genipapo. O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha tridente enquanto Macunaíma puxava da pajeú. Foi um pega tremendo e por debaixo da copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos. O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos: — Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato! Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato. (ANDRADE, 2007, p. 31-32) Assim como aquele totalmente tomado pelo princípio do prazer não deixaria de buscar devorar um alimento porque pertence a outro, não deixa de ter relações sexuais com alguém, se assim deseja, por conta da ausência de vontade da outra parte. Como disse Moustapha Safouan, em trecho acima transcrito, o princípio do prazer é o prazer a qualquer preço. Por ser dominado por ele, Macunaíma não leva em consideração fatores outros que não a descarga de excitação anímica que sentiu ao ver Ci. Somente partir de percepções dos nossos sentidos. Aquele, portanto, que deixa de ter uma relação sexual imediata com alguém que lhe gera uma excitação Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página desprazer que, como vimos, é causado por excitações psíquicas geradas a 218 possuindo-a poderia zerar esta excitação, ou seja, livrar-se por completo do psíquica, experimenta certo desprazer nesta contenção. Macunaíma, contudo, não tem freios. Regido unicamente pelo princípio do prazer, buscará a descarga necessária para liberar-se da excitação causada pela visão de Ci, daí o estupro. Mas será que em nenhum momento o princípio da realidade se manifesta no espírito do herói? Parece-nos que sim: quando se trata de recuperar a muiraquitã. Para reavê-la, Macunaíma demonstra "uma certa tolerância com o que é penoso até que seja decidido se esse objeto penoso é útil ou não em relação ao fim". Portanto, na sua missão de recuperar este objeto de desejo, o personagem elabora planos e tolera desprazeres que entende úteis ao fim de realizar o desejo maior de resgatar a muiraquitã. Portanto, pode-se dizer que, particularmente quando está tomando por esse objetivo, o herói demonstra maior grau de maturidade e age pelo princípio da realidade. Vejamos: Macunaíma traveste-se de princesa para enganar Piaimã, ir à sua mansão e tentar recuperar seu amuleto. Para isso, dependurou em seu corpo tantos acessórios "que ficou pesado" (ANDRADE, 2007, p. 65), mas tolerou este desprazer em favor do plano. Assim que saiu travestido da pensão onde estava hospedado, se deparou com um beija flor com rabo de 2007, p.65). Nada mais incompatível com o princípio do prazer do que "promessa é dívida". Vale ressaltar que a promessa era de recuperar a muiraquitã, portanto, feita para si mesmo e para seu próprio benefício. Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página "porém como promessa é dívida fez um esconjuro e seguiu" (ANDRADE, 219 tesoura que tomou como mau agouro. Não gostou, quis abandonar o plano, Quando Venceslau Pietro Petra lhe mostra a pedra buscada, o herói reprime seu desejo de chorar de emoção, disfarça e pergunta ao gigante Piaimã se ele não aceitava vendê-la. Em outra cena, está de tocaia próximo à casa do seu rival quando surge Chuvisco: O curumi Chuvisco andava librinando pelo bairro e encontrou Macunaíma negaceando da esquina. Parou e ficou olhando o herói. Macunaíma virou-se: - Nunca viu não! - Que que você está fazendo aí, conhecido! - Estou assustando o gigante Piaimã com sua família. Chuvisco debicou: -Qual! não vê que gigante tem medo de ti! Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater nele porém lembrou de-cor: "Quando você estiver embrabecendo conta três vezes os botões da vossa roupa", e contou e ficou manso de novo. (ANDRADE, 2007, p. 129) O protagonista tem, neste momento, mais uma ação de contenção. Certamente não por consideração a Chuvisco (lembremos que Macunaíma é capaz de estuprar, dormir com namorada de irmão e deixar a família passar fome para satisfazer seus desejos), mas porque, se arrumasse confusão com o curumi, chamaria a atenção do gigante e sua família, atrapalhando seus planos relativos à muiraquitã. Ele também luta contra o sono, ação que certamente gera desprazer, a outro patamar, de fazê-lo suportar desprazeres. Como diz Subirats: ―es a Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página A muiraquitã é o objeto de desejo máximo do herói, capaz de alçá-lo 220 para manter-se de tocaia próximo ao lar do rival. través del muiraquitã que la novela rompe el ritmo rapsódico (...), transformándose en un autentico relato épico” (SUBIRATS, 2014, p. 309). Contudo, quando fora dessa missão, ele é tomado pelo princípio do prazer, inclusive no outro grande sintagma do livro, o embate com Vei, a Sol. Por não conseguir conter sua pulsão sexual, isto é, por ser guiado pelo princípio do prazer, o herói é derrotado neste embate. Ele é incapaz de se organizar "numa vida legítima e funcional" (SOUZA, 2003, p. 57), pois, para isso, são necessárias a contenção, a ponderação, enfim, a prevalência do princípio da realidade. Ele consegue sim, em alguns momentos, reger-se por esse princípio quando está diretamente em missão pela muiraquitã. Contudo, organizar-se e transformar "o caos interior de suas disposições naturais num cosmo organizado em torno de um centro de gravidade" (SOUZA, 2003, p. 57) é-lhe inviável, pois, para isso, é necessário agir de acordo com um determinado ethos, ao passo que aquele que é guiado pelo princípio do prazer não tem um ethos, aproxima-se de um estado de inconsciência, apenas permite que os impulsos que passam pelo seu sistema nervoso concretizem-se em ações motoras, no que já foi chamado de reflexo hidráulico (daí ele ser ―sem nenhum caráter‖): o corpo como um sistema hidráulico que dá vazão à "água" (estímulo) que entra pelos sentidos (SAFOUAN, 1988, p. 74-77). A adaptação ao mundo daquele que princípio do prazer será sempre um caçador-coletor, viverá exclusivamente para o momento, caçando ou colhendo quando sentir fome e devorando o Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. Página exemplo, haver domesticação de plantas e animais. O ser tomado pelo 221 vive no princípio do prazer é necessariamente limitada. Não é possível, por alimento assim que o tiver à mão. Não se organizará funcionalmente de forma sustentável, de modo que, em momento de escassez, acabará experimentando maior desprazer, pois não estará bem adaptado ao cosmo. E Macunaíma opta por retirar-se do mundo justamente por não conseguir se adaptar, por não conseguir se conter. Sua própria opção de trair as filhas de Vei com uma portuguesa, demonstra sua incapacidade de buscar uma organização funcional para sua vida. Por sua condição de índio sul-americano, que enfrentou um capitalista pela recuperação de um amuleto místico dado por Ci, a mãe do mato, que o transformou em Imperador do Mato virgem, ele colocaria sua vida em uma rota plausível se cumprisse o acordo com Vei, representante dos valores tropicais, em vez de traí-la com uma portuguesa. Vejamos as reflexões de Página Acompanhemos agora Mário de Andrade na explicação que nos dá de sua alegoria. As filhas de Vei – ―filhas da luz‖, ―filhas do calor‖– representam as grandes civilizações tropicais como a Índia, o Peru, o México, o Egito, civilizações que se realizaram em torno de valores culturais muito diversos do Ocidente e que teriam se harmonizado melhor com as nossas condições geográficas e climáticas. Por conseguinte, posto na situação de escolher entre as filhas de Vei e a portuguesa (o Ocidente), Macunaíma devia ter optado pela primeira; esta seria a decisão acertada, coerente com a ação central do livro, a busca do amuleto. Agindo assim, o herói estaria inscrevendo o seu destino no âmbito do Uraricoera, dando coerência à luta com o gigante e fazendo jus à recuperação da muiraquitã. Enfim, estaria se esforçando por ―se organizar numa vida legítima e funcional‖, que transformasse ―o caos interior de suas disposições naturais num cosmo organizado em torno de um centro de gravidade‖. Ao contrário, a escolha que efetua – inicialmente da portuguesa e, no final da narrativa, de Dona Sancha (pois ludibriado por Vei toma a uiara ameríndia por uma das filhas de mani) – estava em desacordo com a aventura em que se lançara: representava uma acomodação aos princípios cristãos europeus e estabelecia, portanto, uma relação desarmoniosa entre o núcleo de Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. 222 Gilda de Mello e Souza sobre o tema: sua personalidade e uma civilização que correspondia a ―outras necessidades sociais e outros climas‖. (SOUZA, 2003, p. 56-57). Após o episódio com a Uiara, em que o Macunaíma acaba por ser parcialmente devorado por um cardume de piranhas, o herói mutilado entra numa espécie de depressão e percebe que para se adaptar ao mundo é necessária uma organização de que não é capaz: Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Pra viver lá, assim como tinha vivido era impossível. Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra... Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta terra carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização. (ANDRADE, 2007, p. 208) Depois de reconhecer-se demasiado caótico para adaptar-se ao mundo, desiste dele e retira-se para o cosmo. Macunaíma, portanto, percebe-se escravo do princípio do prazer ("afinal não fora sinão um se deixar viver"), incapaz de passar ao princípio da realidade ("carecia de ter um sentido. E ele não tinha coragem pra uma organização‖), mesmo tendo se valido deste pela causa maior, que era a muiraquitã. Mas, nesse ponto da história, seu amuleto estava definitivamente perdido e não havia incentivo Página realidade, ou seja, uma vida com projetos, freios e organização. 223 suficiente para justificar o esforço de uma vida conduzida pelo princípio da Revista Trama ISSN 1981 4674 - Volume 12 – Número 27 –2016, p.202-226. CONCLUSÃO Notamos, em conclusão, que, no embate em que o princípio da realidade se fez presente, contra Piaimã, o protagonista sagrou-se vitorioso, recuperando a muiraquitã. Mas, no confronto com Vei, no qual ele foi tomado exclusivamente pelo princípio do prazer, terminou derrotado e, ao final, percebeu-se como alguém incapaz de viver neste mundo. Aquele tomado pelo princípio do prazer apenas age por impulsos, sendo incapaz de fazer escolhas. Macunaíma bem que queria viver na cidade de Pedra como Delmiro Gouveia, mas era impossível, pois aquele que apenas ―se deixa viver‖ não é capaz de autodeterminar-se. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Mário de. 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