REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
Anais do II-EEL
II – Encontro de Estudos Literários:“Desafios da teoria e da crítica literária:
final do século XX e XXI”
14 a 16 de abril de 2011
Unidade Universitária de Campo Grande
REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
Anais do II-EEL
II – Encontro de Estudos Literários:“Desafios da teoria e da crítica literária:
final do século XX e XXI”
14 a 16 de abril de 2011
Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul
Unidade Universitária de Campo Grande
Campo Grande/MS
2011
REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
ANAIS DO II EEL
II – Encontro de Estudos Literários:“Desafios da teoria e da crítica literária:
final do século XX e XXI”
Unidade Universitária de Campo Grande
De 14 a 16 de abril de 2011
REITOR
Gilberto José de Arruda
VICE-REITOR
Adilson Crepalde
GERENTE DA UUCG
Celi Neres
COORDENADOR DO CURSO DE LETRAS
Daniel Abrão
COORDENADOR DO CURSO DE PÓS-GRADUAÇÃO LATO SENSU EM LETRAS
Antônio Carlos Santana de Souza
COORDENADOR DO CURSO DE PÓS-GRDUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
Marlon Leal Rodrigues
COORDENADORES DO II-EEL
Danglei de Castro Pereira
Daniel Abrão
COMISSÃO ORGANIZADORA
Claudia Andréa Ferreira
Cristiane da Silva Umbelino
Danglei de Castro Pereira
Daniel Abrão
Gilson Vedoin
Glaucia Beretta
Isabelle Dinis Akemi Tanji
JanderBaltazar Rodrigues
José Omar Rodrigues Medeiros
Lucilo Antônio Rodrigues
Rosa Maria dos Santos
Vanessa dos Santos Ferreira
Walmir Cardoso Pereira
O conteúdo dos artigos e a revisão lingüística e ortográfica dos textos são de
responsabilidade dos autores.
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SUMÁRIO
Apresentação ........................................................................................................................ 12
O corpo erótico em Bernardo Guimarães..............................................................................13
Ana Maria Salvador
Hauer Ribeiro Rodrigues
Para além do gênero: a inquietude do corpo em “La pierna de Severina” de Josefina Plá .18
André Rezende Benatti
Literatura e adaptação audiovisual: elementos entrelaçados na formação do leitor .............24
Carlos Alberto Correia
Aline Calixto de Oliveira
A configuração do mito em Órfãos do Eldorado .....................................................................32
Fátima do Nascimento Varela
Milena C. M. S. Guido
Uma nova tarefa à poesia brasileira .......................................................................................42
Gabriel Pinheiro de Deus
“Deus na antecâmara”: o niilismo de Nietzsche em Ana Cristina Cesar .............................48
Glenda Yasmin S. da Silva
The vigil between literary life and death: the case of Shirley Jackson .................................59
Gustava Vargas Cohen
A construção do espaço no romance simbolista No hospício de Rocha Pombo ....................67
Louise Bastos Corrêa
Resgate de mitos e lendas nas Obras Completas de Hélio Serejo .......................................74
Mara Regina Pacheco
Leoné Astride Barzotto
Glauce Rocha: desafios críticos do arquivo e da memória artístico-cultural em Mato Grosso do Sul 83
Marcia Maria de Brito
Edgar Cezar Nolasco
Transgressão da linguagem na obra A última tragédia de Abdulai Silá ................................96
Nágila Kelli Prado Sana
Ana Paula Macedo Cartapatti Kaimoti
A dramaturgia do ator na Commedia dell’arte .....................................................................102
Marcos Villa Góes
O crioulismo de Hélio Serejo: uma representação literária do regionalismo no Mato Grosso do Sul 115
Leoné Astride Barzotto
Noraci Cristiane Michel Braucks
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Fundamentos para um estudo da fortuna crítica de Thiago de Mello .................................124
Pollyanna Furtado Lima
O crítico de Rubem Braga .....................................................................................................137
Priscila Rosa Martins
O amor em retrospecto: duas mulheres de Braga ................................................................146
Rafaela Godoi Bueno Gimenes
Luiz Carlos Santos Simon
Choque entre ficção e real: releituras históricas nos contos de Fernando Bonassi .............156
Raquel Medina Dias
A dialética da malandragem revisitada em O Xangô de Baker Street ..................................161
Renato Oliveira Rocha
Gabriela Kvacek Betella
A memória de um filho pródigo.............................................................................................168
Samuel Carlos Melo
O entre-lugar do conto “O trovão entre as folhas”, de Augusto Roa Bastos ......................176
Silvia Morais Silva
Leoné Astride Barzotto
Arcaico versus moderno em Lavoura arcaica ......................................................................191
Silvio do Espirito Santo
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APRESENTAÇÃO
O EEL – Encontro de Estudos Literários da UEMS é um evento organizado para
possibilitar a divulgação das pesquisas em nível de Pós-Graduação Lato Sensu e Graduação da
UEMS, bem como de outras instituições de ensino em MS e em outros estados da federação.
Sua primeira edição foi realizada em abril de 2010 com a participação de quinhentos
congressistas de diversas instituições brasileiras. O principal objetivo do evento, agora em sua
segunda edição, é apresentar os resultados e a relevância dos trabalhos realizados na área de
Letras na UEMS, fomentando, com isso, a consolidação dos Cursos de Graduação e PósGraduação Lato Sensu em Letras, a criação do Mestrado em Letras da UEMS e o fortalecimento
dos Grupos de Pesquisa em Estudos Literários da instituição. É também objetivo do evento
fornecer aos graduandos e pós-graduandos da UEMS um espaço de discussões e troca de
experiências com outros pesquisadores do estado e do Brasil, fato que contribui para a
formação de novos pesquisadores e futuros docentes preocupados com a pesquisa relacionada
ao ensino.
É uma das ações previstas dentro das atividades do Grupo de Pesquisa Literatura,
História e Sociedade ao promover uma ampliação das discussões realizadas dentro do grupo
durante o ano de 2010. Considerando, ainda, a participação da comunidade externa, egressos
e professores do ensino fundamental e médio, o evento também constituirá uma oportunidade
de consolidação da UEMS enquanto instituição pública.
Tendo em vista o início em 2007 das discussões sobre a implantação do Programa de PósGraduação Stricto Sensu em letras na UEMS, avaliado pela CAPES em 2010. A transferência
em 2010 do Curso de Letras da UEMS de Nova Andradina/MS para Campo Grande, bem como
a realização, em abril de 2010, do I - Encontro de Estudos Literários da UEMS: Literatura
história e sociedade; a realização do II EEL – Encontro de Estudos Literários 'Desafios da teoria
e da crítica literária: final do século XX e XXI" é uma forma de divulgar e incentivar a Pesquisa
na área de Letras; fortalecer a Graduação e a Pós-Graduação em Letras na UEMS, tendo como
foco específico, neste caso, os Estudos Literários.
O II- ELL é resultado, portanto, de uma ação conjunta entre o Curso de Pós-Graduação
Lato Sensu em Ciências da Linguagem da UEMS de Campo Grande e do Curso de Licenciatura
em Letras – Habilitação Português/Inglês – Português/Espanhol também da UEMS. É, como já
mencionado, resultado de discussões realizadas no Grupo de Pesquisa e uma forma de
fortalecer as ações para a construção do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras
da UEMS, via fortalecimento dos grupos de pesquisa da instituição.
A organização do evento garante o envolvimento da comunidade acadêmica e os
resultados esperados só podem ser frutíferos na medida em que cada acadêmico/pesquisador
envolvido no evento terá condições de ampliar seu conhecimento ao interagir com novos
olhares, novas linguagens. Pensar no Tema “Desafios da teoria e da crítica literária no século
XX e XXI” possibilita uma reflexão importante sobre os caminhos acadêmicos para o
enfretamento do objeto literário no contemporâneo ao considerar os caminhos trilhados pelos
Estudos Literários dentro do contexto de crise teórica que se manifesta ao final do século XX e
início do século XXI. A compreensão de que a Língua e a Literatura, vista como expressão
cultural de um povo, comporta falares, vozes e posicionamentos ideológicos conduzem a
validade de uma reflexão sobre os caminhos da teoria e da crítica literária enquanto
instrumento de avaliação da diversidade do literário no contexto de transformações e
questionamentos do contemporâneo.
O II-EEL é, neste sentido, um caminho para a ampliação das discussões surgidas no
ambiente da UEMS, fato que garante a importância do Grupo de pesquisa Literatura História
e Sociedade como instrumento de discussões sobre e a partir do literário.
Comissão Organizadora
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O CORPO ERÓTICO EM BERNARDO GUIMARÃES
Ana Maria Salvador (G-UFMS)
Rauer Ribeiro Rodrigues (UFMS)
RESUMO
Este trabalho faz uma leitura do pecado e da transgressão sexual no poema “O elixir do pajé”, de Bernardo
Guimarães, tendo como referencial teórico conceitos de Bataille, em O erotismo, e por substrato a exposição
sobre sexualidade elaborada por Marilena Chauí em Repressão Sexual, essa nossa (des)conhecida. O índio,
em Bernardo Guimarães, figurativiza o erótico e, a ação do pajé se caracteriza por palavrões escrachados e
por atitudes que o senso comum considera obscenas. Obra publicada em 1875, o poema de Bernardo
Guimarães, segundo a historiografia do romantismo brasileiro, se contrapõe tematicamente à idealização da
figura do índio e, em termos formais, faz singular paródia de poemas de Gonçalves Dias. O erotismo, na
visão de Bataille, se dá através de transformações e movimentações corpóreas que excitam interiormente o
homem, estando ligado à experiência e sendo condicionado pela transgressão: a experimentação erótica
contém em si a experiência do pecado. Marilena Chauí apresenta o pecado original como a descoberta do
sexo, explicando o pecado em duas faces: a primeira é o deixar-se seduzir, ou seja, a tentação, e a segunda é
a queda, o distanciar-se para sempre de Deus. Nosso trabalho tem como pressuposto a concepção de que o
sexo reafirma sem cessar que o homem é corpóreo e carente e mostramos como tal concepção é traduzida no
poema de Bernardo Guimarães.
Palavras-chave: transgressão; pecado; Elixir do pajé; Bataille.
ABSTRACT
This study is a reading of sin and sexual transgression in the poem “O elixir do pajé” (The elixir of shaman),
by Bernardo Guimarães, had as a theoretic concepts of Bataille, in O erotismo (The erotism), and substrate
exposure about sexuality developed by Marilena Chaui into Repressão Sexual, essa nossa (des)conhecida
(Sexual Repression, that our ( un) known). The indian, in Bernardo Guimarães, show the erotic, and
shaman’s action is characterized by dirty words and attitudes that common sense considers obscenes. Study
published in 1875, the poem by Bernardo Guimarães, according to the historiograpy of brazilian
romanticism, thematically opposed to the idealization of the figure of the indian and, in formal terms, make a
unique parody poems by Gonçalves Dias. The erotism, in Bataille’s vision, occurs through bodily changes
and movements that excite the man, being connected to the experience and being conditioned by
transgression: erotic experimentation contens within it the experience of sin. Marilena Chaui presents
original sin as the Discovery of sex, explaining the sin with two faces: the first is to be seduced, it means,
temptation, and the second, is the fall , to distance themselves from God. Our study has how afirmation that
the sex constantly reaffirms that the human has a body and needs and show how this concept is translated in
the poem by Bernardo Guimarães.
Keywords: transgression; sin; Elixir of the shaman; Bataille.
1. INTRODUÇÃO
Este trabalho propõe-se a uma breve análise do “Elixir do pajé”, poema de Bernardo
Guimarães, a partir da perspectiva da desconstrução de um índio idealizado pela tendência literária
romântica. Herói às avessas, o velho pajé, se destaca por ser o rompimento com as categorias
literárias vigentes e por se tornar composição crítica ao autor Gonçalves Dias.
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Baseando-se em variados poemas do Gonçalves Dias, Bernardo desconstrói não somente a
exaltação e o valor do índio. Conceitos que demonstram a Deus, e da necessidade de tal presença no
cotidiano indígena são quebrados, inserindo em questão o afastamento de Deus e a ocupação desse
lugar celestial pelo desejo carnal.
A experimentação de tal desejo expõe a transgressão do interdito, e no momento da
transgressão vem à tona a angústia, ou seja, a experimentação do pecado.
2. DESCONSTRUÇÃO DO ÍNDIO
O índio, em Bernardo Guimarães, figuratiza o erótico e exterioriza um velho pajé
atormentado pela impotência. Tal pajé possuía “um caralho murcho, cabisbaixo, pálido e pendente
olhando para o solo” que ao receber de modo misterioso uma gota do santo elixir, originário de
longícuas terras, sente renascer os brios de seu velho chouriço. A partir deste feito, “ninguém mais
via o velho pajé, que sempre fodia”.O pajé se caracteriza por palavrões escrachados, com
comportamentos degradantes e por atitudes que o senso comum considera como obscenas. O
poema, que era considerado imoral para os princípios da época, foi excluído do cânone romântico e
reprimido assim a várias impressões clandestinas. A conseqüência da clandestinidade foi a
popularidade. Publicada em 1875, o poema de Bernardo Guimarães, segundo a historiografia do
romantismo brasileiro, se contrapõe tematicamente à idealização da figura do índio. O Romantismo
nos leva ao contexto do processo de independência, que se encontra no índio a imagem que
personifica e se projeta as idealizações do ser brasileiro. I-Juca- Pirama exprime a sublimitude e
exalta a imagem do índio, que em Guimarães se torna alvo de divertida chacota, sendo a paródia
construída a partir de variações métricas, rítmicas e pelo uso de linguagem vulgar, aparecendo
termos como caralho, cu, putas e foder com grande freqüência no poema. Tais palavras são
explicadas por Bataille: “os nomes sujos do amor não deixam de ser menos associados, de uma
forma estreita e irremediável para nós, a essa vida secreta que levamos ao lado dos sentimentos
mais elevados.”(1987, p.129).
2.1 Pecados: a ausência de Deus
Marilena Chauí apresenta o pecado original como a descoberta do sexo, significando tanto
como primeiro pecado quanto pecado da origem. Tal descoberta geraria o pecado que é explicado
em duas faces: a primeira é o deixar-se seduzir, ou seja, a tentação, e a segunda é a violação de um
interdito relativo ao conhecimento do bem e do mal. Estas faces, quando colocadas em prática,
gerariam consequentemente efeitos. Primeiramente seria a descoberta da nudez, que, aliada a ela,
traria o sentimento de vergonha de um lado e em outro, o medo da punição. Em segundo, a perda do
Paraíso. Contudo, esta perda traz implícito em seu significado uma constante: de que o homem
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perderia o posto que lhe foi entregue ”Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem, conforme a
nossa semelhança”(Gn1.26) Essa igualdade levantada pelo próprio Deus seria quebrada, dando
lugar a sua expulsão do Paraíso, ou seja, para queda. A sentença recebida pelo homem no momento
da queda afetou sua relação com Deus, tendo como resultado o afastamento de Deus, o tornar-se
mortal (descobrir a morte), conhecer a dor, o sofrimento, a carência e a falta, além da perda de
atributos divinos como: eternidade, infinitude, incorporeidade, auto-suficiência e plenitude. Essa
ruptura entre o ser celestial e o homem é notória no Elixir quando se analisa que o termo Deus (no
caso da religião do homem branco-civilizado) e Tupã (o Deus indígena) não aparece nem uma única
vez, entretanto o que aparece é seu oposto, o demônio. /Foi ter com o demônio, a lhe pedir conselho
para dar-lhe vigor ao aparelho/ (BATAILLE,p.52). Essa oposição aos conceitos colocados nos
textos produzidos pelo seu alvo Gonçalves Dias, são perceptíveis quando em várias obras como “IJuca-Pirama”, há a aproximação dos dois deuses. Quando o forte índio se vê aprisionado pela tribo
rival pensando ser tal situação um fardo imposto por Deus–Tupã, faz dos seus rogos uma
aproximação não só de discurso, porém também de atributos do ser soberano. A desconstrução de
Gonçalves Dias é brilhantemente feita no poema de Bernardo já que ele o faz sem mencioná-lo e
sem utilizar das caracterizações românticas. Canto do Piaga demonstra claramente a preocupação
do índio ao clamar por Tupá, que por não atender aos seus chamados, permite a aproximação do
perigo. A ausência do seu guardião facilita a entrada do mal. Mal que também é cantado em
Deprecação, ”Tupã, ó Deus grande! Teu rosto descobre: bastante sofremos com tua vingança!” O
Elixir traz essa distância de Deus de modo claro ao não apresentar a palavra Deus, mas também por
seu índio não trazer ao poema a necessidade de aproximação de tal. O pajé Bernardino transfere
esse lugar ocupado por Tupã para algo carnal, demonstrando onipotência humana, não padecendo
de um ser superior. Seu martírio está na busca do preenchimento das suas necessidades corpóreas,
deixando a mostra que não era qualquer tipo de posse que lhe satisfaria, mas a posse de um corpo,
outra pessoa, um alguém viril. /Um cabaço! Que era este o único esforço, única empresa digna de
teus brios; porque surradas conas e punhetas são ilusões, são petas, só dignas de caralhos doentios./
A virgem seria o seu objeto de desejo, intocada, inexperiente e com o desejo interior florescida.
2.2. Efeitos da queda: o desejo explícito nos poemas românticos
A perda do Paraíso ou queda acarreta ao homem a saída da realeza para um campo de
relativa inferioridade. O sentimento criado é o de rebaixamento real e do qual produziria a
descoberta do sexo como vergonha. Com esta humilhação o ser humano descobre o que é a
corporeidade, possuir um corpo. ”Corporeidade significa carência (necessidade de outra coisa para
sobreviver), desejo (necessidade de outrem para viver), limite (percepção de obstáculos) e
mortalidade (pois nascer significa que não se é eterno, é ter começo e fim).” (BATAILLE, p.86). A
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necessidade de outrem, a fraqueza de ser só e precisar ser preenchido pelo outro é trabalhada em G.
Dias com uma perspectiva moderada. No poema Marabá a personagem é uma mulher, mistura de
índia com homem branco, apesar de uma beleza colossal e minimamente detalhada, representa a
amada intocada, que vive sozinha, chorando a espera do seu grande amor.
A descrição minuciosa
feita por seu autor demonstra peculiaridades da jovem a formar um erotismo comedido,
metaforicamente prudente para os apreciadores do romantismo. Também é trabalhada a disposição
da personagem em receber o amado, apesar da distância e da demora, o vazio dentro de si é o que
lhe consome, em “Leito de folhas verdes”, /Por que tardas, Jatir, que tanto a custo À voz do meu
amor moves teus passos?/. O sexo masculino também é exposto com seu amor não realizado, se
encontrando na tristeza da solidão por ter caído de amores por uma mulher de olhos verdes, o qual a
personagem nunca mais voltou a ver e por isso padeceu em sofrimento. “Olhos Verdes” mostra o
sofrimento causado pela própria essência humana de não se sentir completo em si, mas de padecer
no desejo de possuir outra pessoa.
2.3. Transgressão: a violação do corpo
Bataille expõe a visão de erotismo como transformações e movimentações corpóreas que
excitam interiormente o homem, estando ligado à experiência e sendo condicionado pela
transgressão. A este respeito Gina Valbão Strozzi afirma:
A verdade das interdições é a chaves da nossa interdição humana. Elas não
são impostas de fora. Isso nos aparece na angústia, no momento em que
transgredimos a interdição, sobretudo no momento suspenso em que ela
ainda atua, e no qual, contudo cedemos ao impulso a que ele se opunha. Se
cedemos à interdição, se estamos a ela submetidos, dela não temos mais
consciência. Mas experimentamos, no momento da transgressão, a angústia
sem a qual a interdição não existiria: é a experiência do pecado. (STROZZI,
p. 51)
O pecado do sexo é a nostalgia de transpor o abismo imposto pela queda do homem que
através da atividade sexual é diminuída, nos levando ao reencontro dessa continuidade. “E ao som
das inúbias, e ao som do boré, na taba ou na brenha, deitado ou de pé, no macho ou na fêmea, de
noite ou de dia, fodendo se via o velho pajé!” A ausência do ser supremo exprime um vazio interior
ao homem que precisa ser ocupado e esse ultrapassar a vontade divina é que rege o prazer humano
com expõe José Paulo Paes:
O prazer encontra seu maior estímulo não na liberdade de perseguir até onde
quiser os seus objetivos, mas no constante interdito de fazê-lo, o ‘interdito
criador do desejo’ em que Bataille vê a própria ‘ essência do erotismo’. (...)
mas o interdito sempre andou de mãos dadas com o seu oposto, a
transgressão, a qual, numa incoerência apenas aparente, serve exatamente
para lembrá-lo e reforçá-lo: só pode se transgredir o que se reconheça
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proibido. Esse jogo dialético entre a consciência do interdito e o empenho de
transgredi-lo configura a mecânica do prazer erótico, (...). (PAES, 2006, p.
17)
B. Guimarães utiliza da crítica não só ao G. Dias, mas ao romantismo, fazendo no Elixir a
construção do pecado intrínseco ao homem, da necessidade de transferência desse vazio e da sua
infinitude a outro alguém, conseguindo essa proeza na consumação do ato sexual, tal ato é
vislumbrado como proibido sendo então necessário transgredi-lo para o encontro do prazer.
3. CONCLUSÃO
Estudamos superficialmente conceitos de transgressão e pecado no poema Elixir do pajé, de
Bernardo Guimarães. Este estudo abrange vários conceitos a serem trabalhados, propondo
consequentemente um aprofundamento dos estudos. Pelo exposto, foi possível aguçar a curiosidade
por maior conhecimento sobre o assunto, reiterando que este trabalho é inicial e que prosseguirá
com suas pesquisas em busca de maior entendimento dos pensamentos propostos.
REFERÊNCIAS
BATAILLE, G. O erotismo. Porto Alegre: L&PM,1987.
CHAUÍ, M. Repressão Sexual: essa nossa (desconhecida).São Paulo : Editora Brasiliense, 1984.
CORRÈA, I. E. J. O elixir do pajé de Bernardo Guimarães. Cien. Let.,Porto Alegre, 2006, p.83120.
GUIMARÃES, B. Poesia erótica e satírica. Rio de Janeiro: Imago,1992.
PAES, J. P. Poesia erótica em tradução: seleção e tradução de José Paulo Paes. São Paulo: Cia
das Letras, 1990.
STROZZI, G. V. Experiência erótica e religiosa em Georges Bataille. Faculdade Teológica IV
Centenário, 2007, p.51.
NASCIMENTO, M. A. Faces do erotismo na
http://www.filologia.org.br/viicnlf/anais/caderno10-07.html
(acessado em: 16.10.10)
aprendizagem
dos
prazeres.
16
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PARA ALÉM DO GÊNERO: A INQUIETUDE DO CORPO EM “LA PIERNA
DE SEVERINA”, DE JOSEFINA PLÁ
Andre Rezende Benatti (PG – UFMS)
RESUMO
O presente trabalho tem como intuito uma análise de alguns dos semblantes que envolvem a escrita feminina
no conto “La Pierna de Severina”, de Josefina Plá, poeta, dramaturga, critica de arte, ensaísta, pintora e
jornalista paraguaia moderna, enfatizando as questões relativas ao corpo e as inquietudes femininas. A
pesquisa foca-se na imagem da personagem Severina, que possui deficiência em sua perna e que por conta
disso não pode exercer a função de “hija de Maria”, na igreja da pequena comunidade em que vive no
interior do Paraguai, e de todo o universo obscuro que a envolve, tais como a não aceitação de seu próprio
corpo, a ocultação de desejos e vontades, e a busca e desconstrução de seus sonhos. Nesse segmento, foram
utilizadas teorias acerca da escrita feminina, ressaltando alguns aspectos como a presença do corpo no texto e
a inquietude subjetiva dos desejos e anseios, a voz, o vulto feminino da personagem. O estudo ancora-se nas
contribuições de Lucia Castelo Branco, Ruth Salviano Brandão e Cristina Piña. Assim, o trabalho pretende
aclarar de forma expositiva o universo feminino dentro do conto de Josefina Plá, bem como ajudar na
divulgação da escritora paraguaia, tão pouco conhecida no Brasil.
Palavras-chave: feminino; corpo; inquietude.
ABSTRACT
This paper aims an examination of some of the faces that surround women's writing in the story "La Pierna
Severina", Josefina Plá, poet, playwright, art critic, essayist, painter and a modern paraguayan journalist,
emphasizing issues related to the body and the concerns of women. The research focuses on the character
Severine’s image, who has disabilities and because of that that cannot perform the function of "hija de Maria
" in the church in the small community she lives in Paraguay, and all the dark world surrounding it, such as
non-acceptance of his own body, the concealment of desires and wishes, and deconstruction and the pursuit
of their dreams. In this segment, were used theories of feminine writing, highlighting aspects such as the
presence in the body text and the restlessness of the subjective wishes and desires, the voice, the feminine
face of the character. The study is anchored on the contributions of Lucia Castelo Branco, Ruth Salviano
Brandão Cristina Piña. Thus work intends to clarify the exposition of the female form in the tale of Josefina
Plá, and help spread the Paraguayan writer, so little known in Brazil.
Keywords: female; Body; restlessness.
Ao analisarmos qualquer obra literária temos de imediato a sensação de que o autor, de tal
obra, é como se fosse um ventríloquo, que comanda suas personagens conforme quer. No entanto,
existem aquelas personagens que, de certa maneira, comandam seus autores, tratam-se de
personagens com tanta complexidade, profundidade e força, que fica impossível que os autores
mudem os rumos de seu “destino”. Portanto, dentro da Literatura, segundo Brandão (2006), há a
presença do consciente e do inconsciente, pois as personagens criadas, que tomam suas próprias
atitudes, podem revelar algo de inconsciente do autor que inventou esta personagem.
Este é o caso que acontece no conto “La Pierna de Severina”1, de Josefina Plá, autora
paraguaia. Ao lermos a narrativa fica clara a impossibilidade da autora de modificar certas atitudes
da personagem, devido à tamanha força e complexidade com que esta foi escrita. Severina é uma
1
Trad. “A perna de Severina”.
17
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mulher que, ao mesmo tempo é forte, porém delicada, criada como uma antítese contrapondo-se
com a figura que se tem da forte e inabalável mulher paraguaia, figura esta criada desde a época da
Guerra do Paraguai.
Em “La Pierna de Severina”, a personagem título, Severina, é uma moça de origem humilde
que vive em uma pequena comunidade no interior do Paraguai e que há quinze anos vive a cuidar
de sua tia doente e não sai de casa por ter vergonha de ser deficiente física, ela somente sai para ir à
missa, porém faz tudo o que esta a seu alcance para que ninguém a veja. Seu desejo maior, desde
antes do acidente o qual perdeu a perna, é ser “hija de Maria 2” da igreja de sua comunidade, e esta
não poderia por conta de seu problema com a perna, pois uma “hija de Maria” teria que acompanhar
as procissões e fazer pequenos trabalhos na igreja que envolveriam longas caminhadas e horas sem
sentar-se.
Dentro do que se passa no decorrer da narrativa, percebe-se que quase todas as atitudes da
personagem são realizadas por meio do extremo desejo, que segundo Leyla Perrone-Moisés (1998)
está ligado a toda e qualquer atividade humana, que, no caso de Severina, é de se tornar “hija de
Maria” e o único impedimento que a mesma tem é o de ser deficiente física. Sendo assim, o corpo
torna-se alvo de uma constante inquietação da personagem, para além de seu desejo de se tornar
uma “hija de Maria”, a mesma vê em sua perna a única forma de impedimento para que seu desejo
se torne real. Para Chevalier “a perna é um símbolo do vínculo social. Permite as aproximações,
facilita os contatos, suprime as distâncias. Reveste-se, portanto, de importância social.” (2001,
p.710), posto isto podemos compreender o caráter de importância que Severina da à perna. A
personagem só reconhece-se por meio do corpo para alcançar o lugar onde quer estar.
Segundo Santaella:
Descartes definiu o humano como a mistura de duas substancias distintas:
de um lado o corpo, um objeto da natureza como outro qualquer (res
extensa), de outro lado, a substância imaterial da mente pensante, cujas
origens, misteriosas, só poderiam ser divinas. (SANTAELLA, 2004, p.14)
No entanto ele não encontrou nada que explicasse a ligação de ambos, assim Santaella
(2004), nas palavras de Doel explica que o corpo é o meio pelo qual a mente expressa seus desejos,
suas angústias. Em “La pierna de Severina”, a protagonista está entre os desejos que sua mente tem
de se tornar “hija de Maria” e as limitações que a mesma tem por conseqüência de sua perna.
Dentro da narrativa o corpo se torna a matriz pela qual as ações de Severina se desenrolam.
E a escritura deste corpo, no plano ficcional, é estritamente física, pois a personagem projeta na
perna todas as dificuldades que encontra para a realização de seu objetivo maior. O problema que a
protagonista tem em uma de suas pernas desenha o movimento interno da mesma para a
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Trad. “ filha de Maria”.
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exteriorização problemática corporativa, exteriormente um fator físico passa a ser o motivo que leva
a personagem a desenvolver determinadas ações dentro da narrativa.
Na mente de Severina, ela somente poderá encontrar exílio por conseqüência de uma
suposta aceitação por si mesma e pela sociedade, se tiver um corpo em que não encontrará
determinadas limitações, o corpo passa a ser algo que a identifique como alguém normal perante si
mesma. O corpo se torna um lugar em que se inscrevem as marcas de determinada cultura.
No início da narrativa, a personagem vive em completa passividade em relação a seu
problema, ela não o aceita, porém não têm meios, nem conhecimento para modificá-lo, o que,
segundo Brandão e Castello Branco (2004), pode representar a morte pelo inconsciente da
personagem.
A mulher, na cultura ocidental, é caracterizada como um ser de falta. Segundo Brandão e
Castello Branco (2004), ao contrário do homem, a mulher se define como ser através de privações,
perdas, ausências, o que Plá retrata com maestria em sua narrativa. A ela é relegada a falta, a
lacuna. É nesse vazio que se instaura o feminino. Dentro da narrativa, Severina não consegue
manipular esses sentimentos, daí sua busca sagaz por preenchimento de seu vazio, tal busca a
relaciona com a morte de seu intelecto, para que ela possa ser reconhecida socialmente.
O “boom” da personagem para ação se dá com a possibilidade de ter uma nova perna, uma
mecânica. Com isso, há uma espécie de despertar interior por parte da personagem, que passa a
querer buscar por uma resolução para seu problema e não mais fica passiva em relação a ele. Pela
primeira vez Severina vai à igreja, não para se confessar, mas sim para conversar com o padre,
transgredindo assim uma regra imposta pela própria.
Segundo Brandão (2006, p.94-95), a imagem exerce um encanto hipnótico em Narciso,
quando este se vê refletido no espelho d’água onde acaba mergulhando para a morte, esta imagem
que Narciso reconhece e nela percebe a impossibilidade de te-la para si. No conto de Josefina Plá,
Severina se encontra em estado parecido ao de Narciso, porém, ela almeja parte do eu, que lhe está
fazendo falta, para que se realize seu objetivo maior. A existência dela, assim como a da imagem de
Narciso refletida depende unicamente do reconhecimento de seu próprio corpo como forma
identitária. Enquanto o mundo de Narciso é feito de reflexos e ecos de seu próprio corpo, o mundo
de Severina, a partir de certo ponto, gira em torno de parte de seu próprio corpo.
A partir então do momento de transcendência, onde ela passa de um ser passivo ao que está
a seu redor a um ser ativo no qual busca meios para que possa conseguir ser “hija de Maria”,
Severina se sente maior que tudo, capaz de realizar qualquer coisa. Seu impedimento não era mais a
falta de conhecimento e sim a tia da qual cuidava. “Crecía la ansia, la montaña de obstáculos
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desmoronaba. El más grande lo representaba su tía clavada en la cama y que necesitaba se la
atendiera constantemente”3 (PLÁ, 2000, p.169)
Severina via a vida passar diante de seus olhos, no entanto, estava estagnada, não esboçava
qualquer reação em relação do que acontecia a seu redor, pois, estava obsecada pela idéia de
conseguir a parte que lhe faltava.
Brandão (2006), citando Kristeva, nos revela que “a face escondida de Narciso, que o leva à
morte, é a que ele vê em lugar daquela que ama, como miragem, onde se admira.” Sendo assim,
podemos perceber que dentro da narrativa de “La Pierna de Severina”, há uma espécie de
narcisismo por parte da personagem, pois ela somente se vê como mulher e membro da sociedade
se tiver a perna, como todos ao seu redor. Para ela, se não fosse assim não seria um ser humano
completo, e este pensamento a leva à morte intelectual fazendo com que viva somente para
conseguir a parte que lhe falta. Manter-se isolada do mundo ao seu redor, para Severina, é a única
maneira de manter a imagem que deseja visível.
A imagem tão almejada da personagem não é a de si própria bela e perfeitamente normal,
mas sim a de um estereótipo, que esta vê desde muito tempo pela janela da casa onde vive a
imagem do que fazem as “hijas de Maria”. Severina não as conhece, apenas conhece o que vê,
somente a superfície do que são as “hijas de Maria”.
O corpo passa a ser então, para Severina, o símbolo para o que significa para ser “hija de
Maria”, ela idealiza o seu próprio eu, de como deve ser para realizar sonho.
(...) essa mediação superpõe-se ao Imaginário e o organiza, levanto o sujeito
a encontrar um lugar para si em um ponto, o Ideal do Eu, que determina e
sustenta a projeção imaginária sobre o Eu Ideal. A relação dual instaurada
por este último seria impossível de viver pois a imagem ideal de uma unidade
vislumbrada é a mesma do outro na qual o Eu, capturado, se aliena.(...)
(SANTAELLA, 2004, p. 145, 146)
O narcisismo de Severina é então uma mediação que lhe permite ver-se igual às demais
“hijas de Maria” que ela observa tão atentamente. Elas se tornam o símbolo que a personagem tanto
almeja alcançar, um significante pelo qual ela vai desenvolver as atividades de sua vida.
A busca de Severina por seu corpo se torna uma odisséia no labirinto de uma local
desconhecido para ela. Com a chegada em Assunção, ela dá alimento à sua loucura quando percebe
que a perna manca é motivo de chacota em um restaurante. Fato esse que atordoa Severina,
deixando-a ainda mais “gauche”, que assim como no “Poema das Sete Faces”, de Drummond, diz
de alguém que se encontra às avessas na vida, indo à margem da sociedade, observando, o que,
segundo Eco (2000), leva a constatar, mesmo que erroneamente, que somente com a perna seria
3
Trad. “Crescia a ansia, a montanha de obstaculos desmoronava. O maior era representado por sua tia cravada na cama
e que necessitava que a atendera constastemente”.
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perfeita e poderia ser “hija de Maria”, dando maior ênfase à idealização de “hija de Maria”, tida por
ela.
Um ponto importante da narrativa e que marca sua sutileza, é o fato de a personagem
principal, por conta provavelmente de sua obsessão por se tornar “hija de Maria”, é totalmente
celibata. Celibato que é interrompido de maneira brutal dentro da narrativa. Severina é violentada.
O momento principal do conto, quando Severina se encontra já em Assunção, se dá de
maneira violenta, uma epifânia brutal que lhe revela o verdadeiro mundo e que a transforma por
completo. Depois de chegar a Assunção, Severina se vê sozinha e sem muito dinheiro em um lugar
totalmente desconhecido, perambulando pela cidade encontra abrigo em um ambiente que para ela
parece familiar, uma igreja. Lá Severina dorme, onde é acordada sendo espancada.
A partir desse ponto da narrativa os sonhos construídos pela personagem ao longo de sua
vida são destruídos. Para Brandão:
Se é pela palavra que se constroem as pretensas verdades, as ideológicas,
fundadoras dos valores sociais, a verdade sobre o feminino faz-se também
como construção masculina, seja pela imaginária, mítica ou científica.
(BRANDÃO, p. 116, 2006)
Portanto, se o masculino é capaz de construir os valores femininos, é também capaz de
destruí-los, o que acontece na narrativa de Plá, quando Severina é alvo de chacotas por ser manca, “
(...) _ Es renga nipo raé.”4(PLÁ, p 172, 2000), e em seguida é vitima de violência sexual. Desfaz-se
assim, com a impossibilidade de auto-defesa por parte da personagem, os sonhos que havia
construído ao longo de sua vida.
Diante do ato, Severina se encontra atônita, “(...) como si todo hubiese sido una pesadilla.” 5
(PLÁ, p 172, 2000). Este momento funciona como se a água que refletia a imagem de Narciso, tão
adorada, se turve, tornando a imagem disforme, e Severina se vê pela primeira vez sem o objetivo
de obter a parte que lhe falta. Sua consciência desperta, a personagem, agora machucada e sem a
“máscara” de ser “hija de Maria”, se arrasta pelas ruas de Assunção, até que encontra ajuda para se
recuperar.
No entanto, Severina, assumindo mais uma vez, porém de outra forma, sua característica
passiva em relação aos fatos que lhe aconteceram, nada faz a respeito, volta para seu povoado no
interior do país. O casulo, onde a personagem se manteve durante toda sua vida aumenta ainda mais
com sua volta ao povoado. Ela não conta nada a ninguém.
Severina então volta a olhar por sua janela discreta, onde apenas vê o mundo caminhar e
progredir. No entanto, ela mesma se encontra novamente parada, estagnada diante de tudo, apenas
4
5
Trad. “ (...) _ Estou vendo que é manca.”(
Trad. “(...) como se tudo houvesse sido um pesadelo”.
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observando, de uma maneira ainda mais passiva, pois nem ao menos o desejo de ser “hija de Maria”
expressa mais.
A mesma inquietude que levou Severina, mesmo passivamente, a buscar algo para ser “hija
de Maria”, a fez aceitar sua condição diante de seus problemas e a despertar do sonho narcisista ao
qual se encontrava para começar a viver por sua própria conta.
REFERÊNCIAS
BRANDÃO, Ruth Salviano. Mulher ao pé da letra: a personagem feminina na literatura. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2006.
BRANDÃO, Ruth Silviano; CASTELLO BRANCO, Lúcia. A mulher escrita. Rio de Janeiro:
Lamparina Editora, 2004.
CHEVALIER, Jean, 1906. Dicionário de símbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos, formas,
figuras, cores, números. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
ECO, Umberto. Tratado geral da semiótica. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000.
PLÁ, Josefina, Cuentos completos. Organização de Miguel Ángel Fernadez. Assunção: Editorial El
Lector, 2000.
SANTAELLA, Lúcia; Corpo e Comunicação: sintoma da cultura. São Paulo: Paulus, 2004.
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LITERATURA E ADAPTAÇÃO AUDIOVISUAL: ELEMENTOS
ENTRELAÇADOS NA FORMAÇÃO DO LEITOR
Carlos Alberto Correia (PG-UNESP)
Aline Calixto de Oliveira (PG-UFMS)
RESUMO
Este trabalho tem como finalidade apontar os entrelaçamentos entre literatura e sua adaptação para
linguagem audiovisual. O fulcro da análise é evidenciar neste processo a ótica da complementaridade. Para
tal a figura de um novo leitor/telespectador se articula, dialoga na relação entre interação e sociedade. Deste
modo este novo leitor (re)afirma-se conectado a esses diversos suportes, por meio de vastos recursos
propiciados por sua polissemia, ativando assim, sua memória em outros textos, interligando-os em lugares
distintos e atribuindo-lhes significação.
Palavras-chave: adaptação audiovisual; literatura; leitor
ABSTRACT
This work aims pointes out the interconnections between literature and its adaptation to audiovisual
language. The fulcrum of this process analysis is to show the viewpoint of complementarily. For such of a
new reader is articulated, dialoguing on the relationship between interaction and society. Thus this new
reader asserts connected to these various media, through its vast resources provided by polysemy, thus
activating his memory in other texts, linking them in different places and giving them meaning.
Keywords: audiovisual adaptation; literature; reader.
1. A ADAPTAÇÃO E SOCIEDADE
A literatura integra um sistema cultural amplo, estabelecendo diversas relações com outras
artes e mídias. A diversidade de meios e a hibridação de linguagens exigem um leitor que não se
prenda à letra e esteja aberto à diversidade de suportes pelos quais a literatura circula, bem como às
suas combinações com outras artes, ressaltando assim, o diálogo interartístico e a considerável
presença das tecnologias e dos meios de comunicação na formação desse leitor.
Na sociedade moderna os meios de comunicação ocupam grande parte do cotidiano das
pessoas. A televisão é o meio de comunicação que adquiriu grande espaço neste território, não
sendo utilizada somente para o entretenimento, mas também para a formação e o contato social,
tornando-se inclusive substituto do contato com os outros e das relações face a face. Por ser um
veículo que está em constante atividade, a programação televisiva é formada por um amplo número
de apresentações, já que a grade deve suprir 24 horas de exibição. Essa estrutura televisiva é
composta por fluxos que enveredam por vários caminhos, desde informações referentes às
atividades cotidianas, até programas criados desde o intertexto que reafirmam os laços com outros
meios de comunicação, como as adaptações de obras literárias para a televisão.
Embora a televisão, jornal, livro, cinema sejam meios diversos, esses entrelaçamentos
devem ser vistos pela ótica da complementaridade, pois os textos dos diferentes suportes guardam
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entre si relações que apontam o aproveitamento, a paráfrase e a intertextualidade. Vê-se que o
leitor/telespectador também se modifica com esta nova realidade, pois se o contato com os diversos
meios de comunicação é uma das experiências na atualidade mais significativas, quando se tange a
relação de interação e sociedade, esse leitor também precisa se conectar a esses suportes explorando
os diversos discursos polissêmicos da televisão, ativando em sua memória outros textos,
interligando-os em lugares distintos, pensando por meio da teoria da intertextualidade, a qual incide
que os textos são lidos em sua(s) relação(es) com os outros, as ligações parafrásticas, incluindo
também os de formato audiovisual que se interagem e se interligam com os mais variados textos
que coabitam o fluxo midiático. A relação entre paráfrase e polissemia, tal como formulada em
Orlandi (1998), é a que permite “a fluidez dos sentidos”, por meio do jogo entre o mesmo e o
diferente; da repetição do mesmo, no caso dos processos parafrásticos, e de rupturas, deslocamentos
nos processos de significação. Nos termos de Orlandi (2001, p. 36): “é nesse jogo entre paráfrase e
polissemia, entre o mesmo e o diferente, entre o já-dito e o a se dizer que os sujeitos e os sentidos se
movimentam, fazem seus percursos, se significam”. Dentro dessa perspectiva Balogh (2002) afirma
que o telespectador/leitor precisa ser muito competente para captar o rico tecido oferecido por esta
intertextualidade antropofágica, que deixa de ser apenas citação, mas a partir da deglutição passa a
constituir a cerne de um processo criativo, e por isso significativo.
John Fiske, em seu livro Television Culture (1987) discute a intervenção dos meios de
comunicação e as tecnologias na formação do público leitor. Ele aponta que esse novo leitor criado
por essas novas tecnologias, quanto em contato com a televisão ou produtos audiovisuais, explora a
polissemia desses veículos ativando em sua memória outros textos. O espectador articula uma
memória que dialoga com o seu horizonte cultural. Essa memória audiovisual contribui para os
possíveis elos que esse espectador possa traçar, tanto no campo da literatura (palavra escrita) ou do
cinema (linguagem visual, sonora, artística e outras). A adaptação de obras literárias para o
audiovisual, por exemplo, intensifica o repertório e a possibilidade dessa leitura. Pois, em si,
congrega uma articulação múltipla, que auxilia na produção de significado e veiculação de uma
obra antes restrita a apenas um suporte. As diferentes adaptações de uma mesma história
contribuem para sua veiculação e ampliam o seu sentido, pois cada leitor ao se defrontar com a obra
poderá entendê-la de acordo com suas vivências, experiências e conceitos de vida. Justamente por
estarem nesse terreno de possibilidades é que as adaptações audiovisuais propiciam algumas
questões de interesse, quanto o referido é o leitor/leitura, sendo estas: a apropriação e
ressignificação de produtos culturais do passado pelos atuais meios de comunicação de massa, o
que as faz se projetar para diferentes públicos e atribuir-lhes novas significações e sentidos.
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2. DIÁLOGO E CONTEXTO: A NARRATIVA COMO ENTRETENIMENTO
Um dos elos marcantes a se pensar quanto o assunto é adaptação de obras literárias para a
linguagem audiovisual é o retroalimentação entre as artes audiovisuais e a literatura. O paralelo
abordado é a conexão entre o cinema e romance. Uma vez que entre os finais do século XVIII e as
primeiras décadas do século XX, o público do romance alargara-se desmedidamente e, para
satisfazer a sua necessidade de leitura, numerosos romances foram escritos para a satisfação deste
público. Temos neste contexto a narrativa como entretenimento. O cinema, seguindo esses passos
surge como uma espécie de narrativa do entretenimento, que brota de um crescimento considerável
de um público leitor da palavra impressa que se assemelha ao crescimento de um público leitor do
cinema. Porém é válido ressaltar que o cinema não deve ser visto como apenas arte de
entretenimento, já que estrutura-se por meio de redes amplas e plurissignificativas.
Desse modo tem-se um gênero comunicativo, o cinema, aliado desde suas origens a aspectos
tão peculiares à comunicação humana: a necessidade de registrar e de contar, a necessidade de abrir
espaço à manifestação do imaginário e a parceria tão enriquecedora entre a narrativa e a expressão
dramática. E neste percurso de relações entre linguagens que se torna inevitável mencionar aquelas
que se estabelecem entre a literatura e a “sétima arte”. Talvez o que nos ocorra primeiro seja a
constatação relativamente óbvia das inúmeras adaptações (transcodificações) que levaram tantas
obras do papel às telas do cinema, preenchendo caminhos do imaginário com seu encanto de
transformar as vidas de papel em algo cada vez mais concreto e verossímil.
A linguagem audiovisual, pela qual, o telespectador vê/lê a história na tela ou na telinha,
exige de seu criador um exercício articulado de linguagens (verbais e não-verbais), considerando a
complexidade de signos e códigos que devem ser compartilhados para o “bem” contar uma história.
“O bem contar audiovisual” não significa apenas uma adaptação ou narração habilmente estruturada
e tramada. A história tem de ser mostrada em cenas esmeradas, com papéis bem concebidos (e bem
interpretados) que com o auxilio do cenógrafo, o fotógrafo, o compositor, o montador e todos os
demais colaboradores a acrescentam seus talentos à forma final com que as imagens e palavras do
roteirista aparecem perante o espectador. Assim, quando se fala do formato audiovisual, não pode
deixar de pressupor todo o conjunto de linguagens e respectivos operadores que se lançam à tarefa
de construir um artefato artístico a que chamamos de narrativa audiovisual. E, vinculado a este
trabalho coletivo, está toda uma gama de leituras, experiências e olhares criativos que incrementam
e alimentam o caráter do “bem contar” no formato audiovisual. Contemplando a relação de diálogos
entre diferentes suportes, o ato de criar, o ato de enunciar geram novas formas expressivas,
possibilitando a criação de novos produtos. Seguindo os conceitos da cultura midiática, a qual se
apropria de vários mecanismos de informação, a enunciação em um produto pode lhe proporcionar
novo corpo e forma. È o caso dos muitos textos que circundam o fluxo midiático, que partem de
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uma matriz, o livro, e a partir de sua forma de enunciação, de criação, são reelaborados, adaptados
em outros suportes, no caso o audiovisual, transformando-se em um novo produto.
Esta definição é o ponto de partida que permite retirar os textos audiovisuais do terreno das
evidências, pois esses textos passam a ser visto como uma construção que, como tal, altera a
realidade através de uma articulação entre a imagem, a palavra, o som e o movimento, contribuindo
assim para a formação e troca de conhecimento entre seus praticantes, tanto produtores quanto os
consumidores. Os vários elementos da confecção de um filme, de uma minissérie, tais como: a
montagem, o enquadramento, os movimentos de câmera, a iluminação, a utilização ou não da cor são elementos estéticos que formam a linguagem cinematográfica, conferindo-lhe um significado
específico que transforma e interpreta aquilo que foi recortado de um livro, ou do real. Segundo
Nagamini (2004), adaptar um texto é reinterpretar e redimensionar aspectos da narrativa a fim de
adequá-la à linguagem do outro veículo.
3. LITERATURA E ADAPTAÇÃO: UM TERRENO A SER DISCUTIDO
Quando se questiona a relação entre literatura e a sua transcodificação para outros códigos,
como os do cinema e da televisão, abrem-se muitas possibilidades de estudo e interpretação. Esta
relação não é recente, pois essas linguagens mantém entre si vínculos com antigas estruturas
comunicativas. A integração interartes se mantém desde a invenção do folhetim romanesco, que
procurou tornar a linguagem mais estimulante, valendo-se de temas vibrantes, suspensões para
nutrir expectativas, artimanhas que vieram a influenciar a arte do cinema, que se difundiu graças
aos seriados, que obedeciam mais ou menos os mesmos princípios, ajustados a tela. Sobre esta
relação Balogh afirma que:
A narrativa na ficção abriga estruturas antigas, já consagradas em outras
artes, que convivem com formas novas e são revitalizadas por novos modos
de recepção e veiculação. Os relatos são veiculados de modo descontinuo,
interrompidos pelos comerciais. A fragmentação representa outra marca do
mundo contemporâneo, ao qual as estruturas narrativas antigas se adaptam.
(BALOGH, 2002. p.52)
A adaptação é possível, pois algumas alterações se instalam no campo em que literatura e
cinema se interceptam, encontram uma esfera comum de operações que pode ser descrita com as
mesmas noções, por exemplo, as relações de semelhança entre imagem e palavra através da
metáfora, ou, a sensações de causalidade e associação advinda das metonímias, as figuras de
linguagem entrelaçando o poder exercido pela associação da palavra e da imagem. Com base, nessa
ideia podemos perceber que a literatura não se exaure em páginas de livros, ela também pode ser
transposta para vários veículos de informação. Como se vê, o processo de transposição,
transcodificação pode gerar uma cadeia infinita de referências a outros textos, constituindo um
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fenômeno cultural, que dialoga entre as mais diferentes linguagens. Fiske (1987) aponta que o
estudo das relações intertextuais pode nos proporcionar valiosas pistas para compreender as leituras
de culturas particulares ou de possíveis subculturas. Mikhail Bakhtin propõe um conceito intrigante
para pensar essas possibilidades. O conceito de dialogismo proposto por Bakhtin via Stam (2006)
aborda de forma mais generalizada às inúmeras possibilidades de abertura e aproximações geradas
por todas as práticas discursivas de uma cultura aplicadas tanto a fala cotidiana quanto à tradição
literária, artística, social e cultural. Por esse viés, todos os textos possuem aproximações e
estabelecem fortes laços e diálogos com outros tantos textos que surgiram anteriormente. Desse
modo, como afirma Stam “Qualquer texto que tenha “dormido com” outro texto também dormiu
com os outros textos que o outro texto já tenha dormido” (2006. p. 28)
Antonio Candido (1985) afirma que na literatura, a extrema plurivalência da palavra
confere ao texto uma elasticidade que lhe permite ajustar-lhe aos mais diversos contextos. Ao se
estudar adaptação não se deve reconhecê-las como simples cópias ou tentativas de reprodução de
um texto, pois cada mecanismo de comunicação possui suas especificidades, e, a relação intertexto
se constrói sempre entre diversos textos e texturas sociais, num constante fluxo de ideologia,
manifestações e criação. Se valendo da Concepção de texto assim sintetizada por Roland Barthes
(1987): “um texto é um tecido de citações, saídas dos mil focos da cultura”. Podemos então
correlacionar os mais variados textos, tanto os textos escritos como os textos audiovisuais, uma vez
que textos são constituídos de narração. Narrar é tramar, tecer, e como tal, há muitos modos de
fazê-los, em conexão com a mesma história.
Ao termo intertextualidade, Julia Kristeva (1966) apud Robert Stan (2006) refere-se a uma
propriedade inerente ao texto literário que se “constrói como um mosaico de citações, como
absorção e transformação de outro texto”. Assim, o que antes era entendido como uma relação
intersubjetiva passa a ser coletiva, uma vez que, vários textos são anexados, somados e interligados
para constituição de um todo textual. Assim, a linguagem audiovisual e escrita, tanto do romance,
quanto das adaptações apesar de suas especificidades somam-se, integram-se, transformando-se em
um novo produto resignificado.
Perrone-Moisés (1990), diz que o objetivo da intertextualidade é examinar de que modo
ocorre essa produção do novo texto, os processos de rapto, absorção, extensão, proliferação e
integração de elementos alheios na criação da obra nova. Robert Stam (2006) caminha nessa esteira
afirmando que “A adaptação assim molda novos mundos mais do que simplesmente retrata/ trai
mundos antigos”. (STAM, 2006, p. 26). Neste viés, ao se afirmar o cruzamento com escritas
anteriores, a individualidade de cada intertexto e suas memórias se firmam. Desse modo, ao se
concretizar como adaptação, tanto a minissérie quanto o filme tornam-se produções totalmente
independentes, configurando-se assim, como produtos novos, com renovadas significações e
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sentidos, estabelecendo-se como um sistema de trocas, de releituras, na qual as questões de
propriedade, de originalidade se relativizam não priorizando apenas a origem, mas resultado final.
Sobre esse prisma, ao abordar as adaptações audiovisuais, Robert Stam afirma:
[...] adaptações cinematográficas, desta forma, são envolvidas nesse vórtice
de referencias intertextuais e transformações de textos que geram outros
textos em um processo infinito de reciclagem, transformações e
transmutações, sem nenhum ponto claro de origem (STAM, 2006, p. 34).
Para reforçar a importância da mídia como formação e articulação de conhecimento,
apontamos não forma aprofundada, o posicionamento de um grupo de estudiosos latino-americanos,
manifestados nas figuras de: Martin-Barbero (2009), Guilhermo Orozco (2006), Ortega (2006),
Cancline (2008), que se posicionam de forma negativa em relação ao poder “supremo” atribuído à
mídia, embora eles não ignorem a força dominante possuída por esse mecanismo. Para eles, não é
mídia que controla seu espectador, e sim, ele que usufrui de toda possibilidade manifestada por este
meio. Segundo esses pesquisadores, o espectador tem a possibilidade de se armar contra a
imposição e a moldura proposta pela mídia, já que ele possui a capacidade de criar mecanismos de
resistência produzidos pelo seu próprio cotidiano. Por meio desses elementos instituídos pelos
próprios consumidores é que as mensagens veiculadas na mídia são filtradas e apreendidas, todavia
esse entendimento dá-se pelo grau de (re)leitura que estes indivíduos possuem, levando em
consideração as suas limitações e seus horizontes sociais. Assim, é a partir da junção de todos esses
elementos é que “leitor/consumidor” formula e estrutura seu conhecimento.
Por conseguinte, a relação estabelecida com a mídia torna-se, de certa forma, uma
complementação a formação sociocultural de um indivíduo, devido à excessiva quantidade de horas
que o cidadão global passa acessando esses suportes, atingindo assim por meio desse veículo, outros
aspectos do conhecimento e dos processos de interação. Ao ligar a televisão, por exemplo, ao ver
um filme, pesquisar na internet ou até mesmo folhear um jornal ou revista, os consumidores desses
mecanismos de comunicação se interconectam com o globo, em uma transcendência que encampa o
aspecto temporal e espacial, pois mesmo estando longe, eles permanecem interligados.
Pensando por esse prisma a comunicação começou e começa a ocupar um lugar estratégico
na configuração dos novos modelos de sociedade. O livro, esta antiga mídia de comunicação,
continua a desempenhar na atualidade um alcance significativo, que transmite não só informação e
conhecimento. Ela permite a circulação e veiculação de bens culturais às gerações que buscam por
meio da leitura ampliar seu conteúdo simbólico e cultural. Todavia, não se devem desprezar
algumas limitações que cerceiam esse suporte, como, por exemplo, o fato de ainda nos tempos
atuais, ele, o livro, não atingir a todos os lugares sociais, geográficos e espaciais de nosso país.
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Frente a esse obstáculo, novas mídias surgem como mecanismos e alternativas de difusão
cultural. Dentre elas, destacam-se os meios eletrônicos de comunicação. Esses mecanismos, por
terem o privilégio de ocupar um lugar estratégico na sociedade, conseguem sanar algumas
especificidades em relação ao alcance do material impresso antes limitado, pois possibilitam aos
produtos um alcance maior e significativo em relação a número de pessoas e localidades.
Dentre esses produtos difundidos por esses meios de comunicação, está a adaptação de
obras literárias para a linguagem audiovisual. Que a partir dessa difusão consegue atingir alguns
leitores em potencial que antes não conheciam o conteúdo dos livros adaptados por essas
produções. É por esse viés, que este trabalho se propôs a discutir os meios de comunicação, a
formação e a contribuição cultural da mídia, o papel e o posicionamento deste novo leitor
articulado, organizado por meio de mecanismos de mediações e funções sociais. Nesse novo
cenário, rearticula-se uma nova maneira de proliferação cultural, pois produzida em grande escala,
essas “obras” podem ser negociadas, vendidas e consumidas por um maior número de pessoas,
ocasionando o chamado intercâmbio simbólico cultural. E nesse processo de troca e aprendizagem,
que se interconectam os meios de comunicação e seus consumidores.
REFÊNCIAS
BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução Maria Ermantina Galvão G. Pereira. São
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A CONFIGURAÇÃO DO MITO EM ÓRFÃOS DO ELDORADO
Fátima do Nascimento Varela (PG-UNIR/CAPES)
Milena C. M. S. Guidio (UNIR)
RESUMO
A partir do livro Órfãos do Eldorado, esta pesquisa tem o objetivo de averiguar o modo como está
configurado o mito nessa obra, por meio de uma relação entre presente e passado, e evidenciar os
recursos estilísticos de Milton Hatoum na apresentação dos mitos. Simultaneamente, a narrativa é
tangenciada por acontecimentos históricos e míticos, dualidade que figura aspectos da realidade e
aspectos de um passado remoto.
Palavras-chave: mitos; lendas; culturas; Milton Hatoum.
ABSTRACT
In this study we aim at investigating how Myht is presented in Milton Hatoum´s Orphans from
Eldorado. We investigate the relation between present and past and observe the stylistic resources
used by the author when relating to the myth. The narrative is symultaneous stricken by historical
happenings and myths, a duality that portraits aspects of present reality and of a remote past.
Keywords: myths; legends; cultures; Milton Hatoum.
Um mito é uma máscara de Deus, também –
uma metáfora daquilo que repousa por trás do mundo visível.
(Joseph Campbell. In: O poder do mito)
Mito. Enigma que surge como explicação para a origem das coisas e permanece vivo
embora imperceptível “porque vivemos à sua própria sombra” (CASSIRER, 2000), é o fio condutor
da novela Órfãos do Eldorado do escritor Milton Hatoum. História dramática baseada no mito da
Cidade Encantada que, no decorrer da narrativa, é tangenciada por acontecimentos históricos e por
lendas de povos indígenas dentre as quais algumas são oriundas dos povos Macurap, Tupari, Ajuru,
Jabuti, Arikapu e Aruá – povos que habitam terras indígenas situadas no lado oriental do rio
Guaporé em Rondônia. Denise Maldi, em O complexo cultural do marico, comenta que essas
sociedades partilharam um complexo cultural com características bem definidas e
As relações intersocietárias se davam, e ainda hoje ocorrem, sobretudo
através de dois mecanismos: as festas de chicha e os casamentos. Nas festas
de chicha, as aldeias se alternavam nos papéis de anfitriã/convidada, criando
redes de solidariedade e reciprocidade, como ocorria também nas sociedades
do oriente boliviano.6
A leitura dessas lendas é um mergulho numa cultura desconhecida e incompreensível para
nós, cristãos, devido à complexidade que envolve os seus significados. Nesse sentido, temos no
6
Disponível em: < www.pib.socioambiental.org/pt/povo/macurap/print >. Acesso em: 22 de abril de 2010.
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diálogo entre Fedro e Sócrates uma reflexão pertinente acerca do significado do mito. Esse trecho é
apresentado no primeiro capítulo do livro Linguagem e Mito de Ernest Cassirer:
(...) Sócrates, ao encontrar-se com Fedro, é por ele levado longe das portas da
cidade, até as margens do rio Ilisso. Platão reproduziu nos menores detalhes a
paisagem onde se passa esta cena; (...) Embevecido pela paisagem, pergunta
Fedro se acaso não seria este o lugar onde – segundo o mito –, Bóreas raptou
a bela Orítia; (...) Indagado a seguir se julgava verdadeiro esse conto, esse
“mitologema”, Sócrates replicou que, mesmo se não lhe desse crédito, nem
por isso teria dúvidas sobre seu significado (CASSIRER, 2000, p. 15-16).
Sócrates não teve dúvidas quanto ao significado de um mito. Mito é mito. Não se coloca em
pauta sua validade quanto ao sê-lo mera fantasia de férteis imaginações, pois o que importa é o seu
significado místico. As lendas foram relatadas por Betty Mindlin em Moqueca de Maridos, livro
composto por um conjunto de mitos maior do que o que compõe os livros que o antecedem – Vozes
da origem e Tuparis e Tarupás – todos fruto de pesquisas realizadas pela antropóloga que
desenvolveu um denso levantamento das histórias de povos indígenas de diversas etnias que
habitam a região já referida aqui. Conforme a autora, os mitos revelam um imaginário desconhecido
por nós. Elas são histórias intocadas por influências urbanas e correspondem a um período arcaico
de vida no mato. (MINDLIN, 1997, p. 19)
Parece que Hatoum segue a sugestão dada por Betty Mindlin, ela diz que as pequenas
sociedades das aldeias da mata brasileira nos dão um bom material para quebrar a cabeça, no
sentido de que esses mitos
trazem à tona uma substância amorosa eterna, um padrão de embates e
acertos entre os sexos, surpreendentemente semelhantes através dos tempos,
de diferentes sociedades, costumes, condições materiais, linguagens (...) e
poderiam ser o núcleo de romances contemporâneos (MINDLIN, 1997,
p.17).
Podemos afirmar que Hatoum utiliza-se do mito para ser o núcleo da novela em questão,
mas a linguagem mítica é recriada, há um revestimento ficcional que transforma as histórias
primitivas. Elas passam por uma metamorfose, o El Dourado, lenda indígena que “Surgia na mente
de quase todo mundo”, como sendo o lugar onde a “felicidade e a justiça” estavam escondidas,
ganha um novo significado diante da contextualização em que é inserida. Apossando-se de vários
mitos indígenas, a novela conta a história da relação conflituosa entre um pai (Amando Cordovil) e
seu filho (Arminto Cordovil) e da relação tumultuada entre este e sua amada Dinaura. A estrutura
narrativa dessa novela nos remete ao oral que tem como conteúdo composicional a memória
coletiva, o mito. Ela aborda a saga de uma família de colonizadores no auge da ascensão e sua
decadência que é simbolizada pelo naufrágio do barco “O nome do barco naufragado parecia atado
ao meu destino: Eldorado.” (p. 80)
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O mito da Cidade Encantada que nos remete ao paraíso perdido adquire uma significação
disfórica dada às circunstâncias em que aparece. A busca por um mundo melhor, sem tanto
sofrimento, desgraça, onde a riqueza e a opulência seriam um bem comum a todos trazendo
felicidade é um desejo latente no ser humano desde os primórdios da civilização humana.
Na primeira cena que emerge das lembranças da infância de Arminto, personagem central da
trama que se desenrola no livro, essa lenda adquire uma nova configuração. A voz de uma tapuia,
que falava em língua indígena seu drama, atrai a atenção de muita gente e também a do narrador
que foge da casa do professor e vai para a beira do Amazonas. Ela perde o marido e os filhos,
mortos vítimas de febre, e tomada pela angústia e desespero é atraída pelos mistérios das águas do
Amazonas, então decide “morrer no fundo do rio porque não queria mais sofrer na cidade”. Florita,
que também é tapuia e por isso domina a língua indígena e ocupa a posição de mãe de Arminto,
traduz a fala da mulher, mas traduz “torto” com a intenção de proteger a criança. Na tradução, o
drama particular da tapuia é transfigurado e traduzido como um discurso que pertence à memória
coletiva. A lenda da Cidade Encantada, nesse evento, adquire uma atmosfera de encantamento; o
mesmo poder de encantamento dos contadores de histórias que envolvem os ouvintes:
Dizia que tinha se afastado do marido porque ele vivia caçando e andando
por aí, deixando-a sozinha na Aldeia. Até o dia em que foi atraída por um ser
encantado. Agora ia morar com o amante, lá no fundo das águas. Queria
viver num mundo melhor, sem tanto sofrimento, desgraça. Falava sem olhar
os carregadores da rampa do Mercado (...). E todos viram que ela nadava
com calma, na direção da ilha das Ciganas. O corpo foi sumindo no rio
iluminado, aí alguém gritou: A doida vai se afogar. Os barqueiros navegaram
até a ilha, mas não encontraram a mulher. Desapareceu. Nunca mais voltou.
(HATOUM, p. 11-12) Eram atraídos pela voz e pelo cheiro da sedução (p.
65)
O mito surge na circunstância citada como um ato de transcendência, o que é real e trágico é
transferido para a esfera do mágico, e Florita lança mão da cultura das suas origens para explicar o
ato da tapuia. Era ela quem traduzia as histórias que Arminto ouvia quando brincava com os
indiozinhos da Aldeia. Nesse sentido, ela é o ponto de integração entre a cultura local e a cultura do
colonizador, as duas culturas constituintes do personagem Arminto, mas que também constituem
Florita “estava acostumada ao conforto da chácara em Manaus e do palácio branco em Vila Bela.”
(p.15)
Uma das histórias que Florita traduzia para Arminto é a da anta macho. Nela há uma fusão
de várias versões criadas por povos indígenas de diferentes etnias. Hatoum pinça elementos de três
lendas indígenas pertencentes a diferentes etnias: Macurap, Tupari e Jabuti. Essa lenda, em Órfãos
do Eldorado, movimenta-se entre as três versões que, embora diferentes, convergem na mensagem.
Lévi-Strauss diz que um etnólogo, trabalhando na América do Sul, espantou-se com o modo como
os mitos chegavam a ele. Ele diz que cada narrador quase conta as histórias a seu modo. Até mesmo
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em detalhes importantes, percebia-se uma variação enorme, e, no entanto, os indígenas não
pareciam sensibilizar-se com essa situação. (LÉVI-STRAUSS, 2004, p. 31)
O mito A mulher do Anta, que pertence aos Macurap, povo que historicamente ocupa uma
posição de destaque no complexo interétnico da margem direita do Guaporé, tendo sua língua se
convertido em “língua franca” desde o início do século XX, conta que existia uma moça solteira
que não se interessava por rapaz algum, desprezava os galanteios e as gentilezas de todos, mas um
dia houve uma festa na aldeia e a moça se apaixona por um belo rapaz
Era forte, pesado, rosto comprido e o nariz grande; era muito cabeludo, tinha
mais pêlos que os homens que ela conhecia. (...) Ela descobre que ele era o
Anta – naquele tempo os animais eram gente. (...) Gostou muito do homem
Anta, não queriam se largar.” (MINDLIM, 1997, p.79).
Até que ela resolve viver com ele “ – Aguento qualquer vida para ficar com você, vou te
acompanhar – e desde então não o largava mais, sempre abraçada.” (MINDLIM, 1997, p.80). Com
o tempo ela teve um nenê com cara de antinha. Até a moça estava ficando com cara de anta. O pai e
o irmão inconformados com a condição da moça preparam uma “armadilha-buraco” e matam o
homem Anta e a Antinha filhote. A moça é levada para casa e
...a mãe havia preparado um banho bem quente com cinzas para jogar na
cabeça dela, para acabar com os carrapatos e pêlos que já cobriam todo o
corpo da moça – também ela estava virando anta. Os carrapatos e pêlos
caíram – mas depois de três dias a moça morreu de tristeza. Já se habituara a
viver no mato e chorava por sua Antinha morta. (MINDLIM, 1997, p. 81)
Já na versão dos Tupari, o mito O pinguelo de barro narra a história de uma moça solteira
que faz para si uma piroca de barro, igualzinha a de um homem, mas oca por dentro:
Ela namorava seu instrumento, falava com ele como se fosse gente de
verdade. Sempre que tinha vontade, enfiava o pinguelo de barro, não
precisava de rapaz algum. Acontece que um dia, sem que percebesse, um
emboá, um bichinho de muitas pernas (...) enfiou-se no oco do amante de
barro. Entrou junto, pequeniniho, sem-vergonhinha, ficou lá bem no fundo
dentro da moça, chupando suas entranhas.
Inexplicavelmente a barriga da menina foi crescendo, crescendo – ela não
sabia por que, já que graças ao artefato de barro não tivera homem algum.
Eram emboás que cresciam no seu interior, agora queriam sair.
Quando a moça via alguma orelha-de-pau, sentava, e saíam magotes de
emboás para roer a orelha-de-pau (...) até que se acabaram todos. A menina
jurou para si mesma:
- Que alívio, livrei-me deles! Nunca mais vou usar minha piroca de barro.
(MINDLIN, 1997, p. 130)
A história O Anta, pertencente ao povo Jabuti, narra a história de uma mulher casada que se
apaixona pelo homem Anta que vinha do mato e
“tirava o couro, como se fosse uma capa ou uma fantasia, pendurava num
galho de árvore. Vinha como gente, pintado, bonito, alegre. A mulher,
cantando, assanhada, feliz, corria para abraçá-lo. O Anta a levava para um
canto escondidinho. Namoravam esquecidos do mundo. (MINDLIN, 1997, p.
202)
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O marido descobre a traição, se junta ao compadre, ficam de tocaia e matam o Anta. A
mulher consegue escapar porque correu para perto do filhinho, deu de mamar e o compadre não
deixou que o marido a matasse.
Na aldeia foram tratar o Anta, preparar a carne para moquear. Era um homem
grande. Todos comeram um pedacinho, só a namorada recusou. Quando
estavam preparando a carne do homem que era Anta, um rapaz novo viu o
couro na árvore e quis vestir. Os outros desaconselharam: não devia, não era
couro de gente, iria acabar sofrendo, crivado de flechas.(...)
O rapaz desobedeceu, pegou o couro do homem Anta e o ajustou no corpo,
mal tinha posto, saiu correndo na forma de anta, desapareceu no mato. O
rapaz chegou na casa da mulher do Anta que morrera. Triste, arrependido,
pensativo, guardou suas flechas como o marido dela, o Anta, costumava
guardar, no mesmo lugar, na aljava pendurada na palha. Estava no lugar do
que fora morto, em vez de homem era o marido da Anta-fêmea.(...) Ele
deitou com a mulher do Anta e ela desapontou. Anta tem pica grande – e ele
era jovem, nem tinha namorado ainda quando virou anta. (MINDLIN, 1997,
p.203)
Nas três lendas, o castigo por ter violado uma regra aparece. A impressão de que o primitivo
vive livre de qualquer tabu, ou lei, é totalmente desfeita ao adentrarmos em seu universo com mais
profundidade. Malinowski cita em Sexo e repressão na sociedade selvagem que o tabu do irmão e
da irmã é um aspecto extremamente importante nas relações sexuais das crianças melanésias:
Desde a mais tenra idade, quando a menina pela primeira vez põe uma saia
de folhas, os irmãos e as irmãs da mesma mãe devem ser separados uns dos
outros, em obediência ao estrito tabu que prescreve não dever existir relações
íntimas entre eles. (MALINOWSKY, 1973, p. 57)
e a partir de uma leitura mais cuidadosa dessas lendas, podemos afirmar que a traição conjugal é um
tabu para os Macurapi e para os Jabuti, e que a união conjugal praticada com animais é inadmissível
para as três etnias. Malinowski diz que em algumas sociedades primitivas há uma proibição mais
ampla das relações sexuais, que excluem grupos inteiros de pessoas de quaisquer relações sexuais:
“Esta é a lei da exogamia. Logo após o tabu do incesto, o segundo em importância é a proibição do
adultério. Enquanto o primeiro serve para defender a família o segundo serve para a proteção do
casamento.” (1973, p.166)
Em Órfãos do Eldorado a mulher é seduzida pela anta-macho. O marido mata a anta, corta e
pendura o pênis do animal na porta da maloca, mas
a mulher cobriu o pênis com barro até ficar seco e duro; depois dizia palavras
carinhosas para o bichinho e brincava com ele. Então o marido esfregou
muita pimenta no pau de barro e se escondeu para ver a mulher lamber o
bicho e sentar em cima dele. Diz que ela pulava e gritava de tanta dor, e que a
língua e o corpo queimavam que nem fogo. Aí o jeito foi mergulhar no rio e
virar um sapo. E o marido foi morar na beira da água, triste e arrependido,
pedindo que a mulher voltasse para ele. (p. 12)
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As lendas indígenas não apresentam o aspecto dialético em relação àquele que castiga, mas
do nível mais profundo do texto emergem princípios que regem usos e costumes que para um
ocidental parecem absurdos, por este desconhecer o significado daqueles. Na obra em estudo, a
dialética fica evidente, o marido castiga, mas se arrepende.
A lenda do homem da piroca comprida que antecede à lenda da anta-macho revela-nos um
teor filosófico que perpassa os acontecimentos e transformações sofridas por Arminto, na
manifestação do imaginário coletivo:
Olha só: a história do homem da piroca comprida, tão comprida que
atravessava o rio Amazonas, varava a ilha do Espírito Santo e fisgava uma
moça lá no Espelho da Lua. Depois a piroca se enroscava no pescoço do
homem, e, enquanto ele se contorcia, estrangulado, a moça perguntava, rindo:
Cadê a piroca esticada? (HATOUM, 2008, p. 12)
Nesse trecho, a lenda representa a passagem de um drama individual para o universal
reafirmado em “Nossa vida não se cansa de dar voltas. Eu não morava nesta tapera feia. O palácio
branco dos Cordovil é que era uma casa de verdade.” (HATOUM, 2008, p.14) Ele acaba com a
herança deixada por Amando “com a voracidade de um prazer cego. Quis apagar o passado, a fama
do meu avô Edílio” (HATOUM, 2008, p. 14) e acaba ficando na miséria. Nesse sentido é autor do
seu destino trágico.
A lenda O homem do pau comprido que será transcrita a seguir, não traz em si questões com
esse teor. Nessa lenda Tampot é movido pelo impulso masculino, livre das regras sexuais impostas
pela sociedade, assim como era nos primórdios da civilização humana, e a mulher é tratada como
uma propriedade, o que de certa forma perdura até nossos dias com a diferença de que, em algumas
sociedades, essa forma de tratamento acontece de forma implícita:
Chamava-se Tampot o homem que tinha um pau, um pinguelo,
compridíssimo, podia chegar a uns duzentos metros. De longe mesmo ele
enfiava nas mulheres distraídas, que pensando estarem sozinhas, abriam as
pernas na beira do rio, tomando banho, ou se agachavam na roça para colher
mandioca.
Tampot nem saía da maloca; observava as mulheres gostosas, ficava vendo
onde iam. Ai, ai, se fossem para a beira do rio, era um dos melhores lugares,
os maridos bem longe, sem desconfiar de nada...
Onde quer que uma moça bonita estivesse, lá ia o pau comprido de Tampot
atrás, tentando se introduzir nela. Uma mulher bonita não tinha sossego; se
não quisesse brincar com o pinguelo de Tampot, se mudasse de lugar, fosse
mais longe, não adiantava. O pinguelo a alcançava sem piedade. Casada ou
solteira, pouco importa. O marido nem iria saber, estava sempre longe...
A mulher fugia para a beira do rio, pensando que se livrara, lá estava o
pauzão, e Tampot nem se levantara de seu banco na maloca. O jeito era
ceder, acalmá-lo por um tempo, até ele cansar ou se engraçar por outra. Pois
se a moça fugisse pelo meio das árvores, na floresta espessa, o pau ia
cavando debaixo da terra, a alcançava no lugarzinho em que parasse... Era
muito safado esse homem, com essa piroca danada.
Ah, se Tompat vivesse aqui, vocês mulheres que estão me ouvindo, tão
formosas, com as formas do corpo como Tampot cobiçava, redondas e
gordinhas do jeitinho que ele adorava, vocês não iam ter paz nenhuma, iam
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ter que namorar muito (...) Ele ia espichar o olho comprido para vocês,
lamber os beiços já assanhado, até vocês se arreganharem (...) (MINDLIN,
1997, p. 141-142)
Entre os povos primitivos, em tempos remotos, as relações sexuais não eram
regulamentadas, mas mesmo nesse período, sob a mulher recaiam tabus mais rígidos do que para os
homens. A novela apresenta várias lendas eróticas que expressam como o primitivo trata esse tema.
De certo modo, a sexualidade aflora naturalmente entre eles e, ao inserir lendas que abordam o
erótico, Hatoum nos apresenta um contraponto à cultura ocidental. Quando ocorre um suposto
incesto entre Arminto e Florita, na construção do texto, transparece, da parte desses personagens,
uma naturalidade em relação ao ato. Enquanto que Amando, pai de Arminto, símbolo de um típico
colonizador, ao falar “O que fizeste com Florita é obra de um animal” (HATOUM, 2008, p. 17),
expressa toda uma cultura calcada em valores ocidentais. Porém, há no decorrer do texto, indícios
de que a exploração de Amando sobre Florita é mais grave, pois ela ocorre tanto em níveis
psicológicos quanto físicos, este engloba também a sexualidade. Florita é duplamente colonizada, é
passiva diante dessa situação e a visão que tem de si própria é construída através das lentes do
colonizador (Amando). Ela é incapaz de lançar um olhar crítico à sua condição de subjugada “Dois
amigos do teu pai me tiraram da rua, disse Florita com raiva. Mesmo morto, ele continua a me
ajudar.” (HATOUM, 2008, p. 82) sendo explorada, acredita está sendo ajudada.
O olhar expresso de Arminto em relação às lendas é de estranhamento, o que revela a
incapacidade do ocidental de compreender o desconhecido, o Outro, mesmo tendo absorvido parte
da cultura, não consegue adentrar o universo cultural calcado em aspectos míticos e místicos do
Outro com profundidade. Cabe citar aqui o que Mircea Eliade pensa acerca desse estranhamento:
“Somente quando encaradas por uma perspectiva histórico-religiosa é que formas similares de
conduta poderão revelar-se como fenômenos de cultura, perdendo seu caráter aberrante ou
monstruoso de jogo infantil ou de ato puramente instintivo” (2004, p. 9-10). A relação tumultuada
entre Dinaura e Arminto é fruto, em parte, dessa incompreensão do Outro. Na Festa da Santa
Padroeira, ela aparece de repente
Parecia alucinação, porque, em meio aos vivas à Virgem, senti o cheiro de
lavanda, um arrepio no pescoço, e, quando me virei, os lábios de Dinaura
tocaram meu rosto. Ela apareceu sem que eu percebesse, e me acariciou com
as mãos mornas que me deixaram febril (...). De repente me largou, correu
até o coreto e começou a dançar. Foi uma gritaria, e não eram gritos de
devoção. Ela imitava os movimentos e o ritmo da outra, os ombros ficaram
nus, e não olhava para mim, e sim para o céu. Acho que não enxergava nada,
ninguém. Cega para o mundo, possuída pela dança. Dançaram juntas como se
tivessem ensaiado. No fim se abraçaram, e Dinaura saiu por trás do coreto.
Sumiu. Como eu podia entender uma mulher tão volúvel, de alma tão
instável? (HATOUM, 2008, p. 46-47).
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Em O mármore e a murta: sobre a inconstância da alma selvagem (2002), Viveiro de
Castro insere um trecho do Sermão do Espírito Santo de Antonio Vieira. Nesse trecho o escritor
analisa a alma selvagem criando imagens com o mármore e a murta. A estátua de murta é
contraposta a estátua de mármore pela “dureza e resistência da matéria” enquanto que a primeira,
embora sendo fácil de formar, “é necessário andar sempre reformando e trabalhando nela, para que
se conserve” (p. 183) devido à inconsistência da sua matéria. Dinaura é a estátua de murta feita de
ramos, matéria sem consistência, basta encontrar uma brecha e os ramos escapam, deformando a
forma, é a mulher dividida da lenda da cabeça cortada, lenda dos povos indígenas Macurap, Ajuru e
Jabuti e que, na obra, ganha novos contornos. Essa história provocou um estranhamento em
Arminto a ponto de assustá-lo:
Uma história estranha me assustou: a da cabeça cortada. A mulher dividida.
O corpo dela sempre vai atrás de comida em outras aldeias, e a cabeça sai
voando e se gruda no ombro do marido. O homem e a cabeça ficam juntos o
dia todo. Aí, de noitinha, quando um pássaro canta e surge a primeira estrela
no céu, o corpo da mulher volta e se gruda na cabeça. Mas, uma noite, outro
homem rouba metade do corpo, dormindo e acordando com a cabeça da
mulher grudada no ombro. Cabeça silenciosa, mas viva: podia sentir o mundo
com os olhos, e os olhos não secavam, percebiam tudo. Cabeça com coração.
(HATOUM, 2008, p.13)
As cabeças representam as duas personagens femininas que marcam a vida de Arminto de
forma significativa “Uma das cabeças me arruinou. A outra feriu meu coração e minha alma, me
deixou sozinho na beira desse rio, sofrendo, à espera de um milagre. Duas mulheres. Mas a história
de uma mulher não é a história de um homem?” A primeira cabeça refere-se a Florita que exerce o
papel de mãe, mas que também é quem o leva a iniciação sexual:
Abandonar Florita? Como eu podia abandonar a intérprete dos meus sonhos,
as mãos que prepararam minha comida, e lavavam, passavam, engomavam e
perfumavam minha roupa? Gostei dela desde o dia em que a vi no meu
quarto: a moça de rosto redondo, lábios grossos e cabelo escorrido, cortado
em forma de cuia, o olhar terno e triste que foi adquirindo dureza e malícia
no convívio com Amando. Florita sentia ciúme de mim por eu ter dormido
com ela uma única vez na rede: a brincadeira que me ensinou, dizendo: Faz
assim, pega aqui, aperta minha bunda, não faz assim, põe a língua pra fora e
agora me lambe: a brincadeira que foi a despedida da minha juventude
virgem e me castigou com a temporada na pensão Saturno e quatro ou cinco
anos de desprezo de Amando. (HATOUM, 2008, p. 74)
O ato incestuoso apresenta-se através da ambiguidade da relação retratada na citação,
embora não tendo laços consanguíneos, há uma suposta ligação parental entre os personagens
estabelecida pelo convívio “Amando entrou no meu quarto e disse: Ela vai cuidar de ti. Florita
nunca mais arredou o pé de perto de mim, por isso sentia falta dela quando morava na Saturno.”
(HATOUM, 2008, p. 16) e Amando, pela segunda vez, sentencia Arminto “O que fizeste com
Florita é obra de um animal” (HATOUM, 2008, p. 17)
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A proibição do incesto é fruto de uma regra social, criada ainda pelas sociedades primitivas
devido a uma necessidade que os selvagens sentiram em aprimorar a qualidade da progênie, visto
que a endogamia produzia uma fraqueza excessiva devido a defeitos hereditários, o que
impressionou ainda mais a mente humana e isso resultou na criação mais e mais de tabus contra o
matrimônio de parentes próximos.
A outra cabeça, talvez a mais poderosa, é Dinaura, personagem ambígua assim como a
linguagem literária. A ambiguidade em torno dessa personagem manifesta-se na sua origem “De
onde ela veio?” (HATOUM, 2008, p. 40). O sumiço de Dinaura é outro ponto originador da
ambiguidade e suas aparições são envolvidas por uma atmosfera misteriosa situando-a na fronteira
entre o real e o imaginário
Ela apareceu sem que eu percebesse. Parecia alucinação, porque, em meio
aos vivas à Virgem, senti o cheiro de lavanda, um arrepio no pescoço, e,
quando me virei, os lábios de Dinaura tocaram meu rosto. Ela apareceu sem
que eu percebesse, e me acariciou com as mãos mornas que me deixaram
febril (...) (HATOUM, 2008, p. 46)
Aspecto esse que nos remete à natureza mitológica. O olhar que hipnotiza, que tem a força
de atrair “O olhar de Dinaura era o que mais me atraía” (HATOUM, 2008, p. 31), assim como a
cobra sucuri que atrai suas presas com o olhar – “alguém espalhou que a órfã era uma cobra sucuri”
(HATOUM, 2008, p. 34). A atmosfera mística em torno dessa personagem é reforçada com as
figuras que o autor cria: “Vi os olhos de espanto no rosto fora do mundo” (p. 34) e “Ela não vai ser
tua mulher. Nunca vai ser amada quem não é de ninguém. (HATOUM, 2008, p. 37). Nesse sentido
Lévi-Strauss afirma na abertura de O cru e o cozido (2004), que há no mito uma situação paradoxal:
deve-se à relação irracional que prevalece entre as circunstâncias da criação,
que são coletivas, e o regime individual do consumo. Os mitos não têm autor;
a partir do momento em que são vistos como mitos, e qualquer que tenha sido
sua origem real só existem encarnados numa tradição. (p. 37)
O silêncio de Dinaura acentua o mistério em torno de suas origens e desorienta Arminto
“(...) essa mudez crescia e parecia uma faca que me ameaçava, cortando o meu sossego”
(HATOUM, 2008, p. 92). Ele acaba sendo perseguido pelos rumores que buscavam nas lendas a
justificativa para o sumiço de Dinaura:
Uns diziam que Dinaura havia me abandonado por um sapo, um peixe
grande, um boto ou uma cobra sucuri; outros sussurravam que ela aparecia à
meia-noite num barco iluminado e dizia aos pescadores que não suportava
viver na solidão no fundo do rio. (HATOUM, 2008, p. 64-63)
O nome de Arminto sugere (ar-) algo sem consistência que flutua levemente no tempo e no
espaço. O personagem com uma leveza sutil se movimenta e ocupa ambientes antagônicos devido
às imposições circunstanciais no decorrer da narrativa e essa predestinação a mudanças contínuas
nos remete a própria obra de Milton Hatoum que impossibilita o leitor, ao final da leitura, delinear
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tempo e espaço. Esses elementos que são estruturantes e essenciais da narrativa são dissolvidos na
obra, gerando reações no leitor com certo teor nostálgico, sentimento que é acentuado no
personagem Arminto, filho de um colonizador branco que tem o destino marcado pela morte da mãe
no seu nascimento. A leveza de Arminto e a dissolução de tempo e espaço nos remetem às reflexões
de Octavio Ianni em O príncipe eletrônico. Ele afirma que, embora no mundo da pós-modernidade
pareça predominar a multiplicidade, descontinuidade, fragmentação, simulacro, desconstrução;
como numa festa babélica permanente,
(...) ele está amplamente articulado em moldes sistêmicos. Ele se sustenta no
ar desenraizado, volante, virtual, e sideral, em toda uma vasta, complexa e
eficaz rede sistêmica, por meio da qual se articulam mercados e mercadorias,
capitais e tecnologias, força de trabalho e mais-valia.” (2002, p. 72)
Percebemos que tanto o mito quanto a ficção de Hatoum habitam espaços antagônicos,
situam-se na fronteira entre realidade e ficção ou história e ficcionalização. Na obra em estudo, as
lendas são destituídas da visão bipolar do mundo, aspecto marcante nos mitos primitivos que atuará
como elemento regulador e mediador entre o ser e o mundo. O mito literalizado adquire aspectos
próprios da linguagem literária, e talvez o mais relevante seja a capacidade de sugestão.
REFERÊNCIAS
CASSIRER, Ernest. Linguagem e mito. São Paulo: Perspectiva, 2000.
CASTRO, Eduardo Viveiro de. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de
antropologia. São Paulo: Cosac & Naif, 2002.
DOWBOR, Ladislaw et al. Desafios da Comunicação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2000.
HATOUM, Milton. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O cru e o cozido (Mitológicas v. 1) Tradução de Beatriz Perrone Moisés.
São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
MALINOWSKI, Bronislaw. Sexo e repressão na sociedade selvagem. Tradução de Francisco M.
Guimarães. Petrópolis, Vozes, 1973.
MINDLIN, Betty. Moqueca de maridos: mitos eróticos. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos tempos,
1997.
MOYERS, Bill. O poder do mito. Entrevista com Joseph Campbell, org. por Brtty Sue Flowers;
tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo: Palas Atena, 1990.
OCTAVIO, Ianni. A sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
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UMA NOVA TAREFA À POESIA BRASILEIRA
Gabriel Pinheiro de Deus (PG-UEMS)
RESUMO
Diante do panorama de final de século XX para XXI, e a quebra de paradigmas deste período, encontrar um
lugar para poesia, na variedade de meios e na fragmentação de ideias, é um caminho desafiador para a crítica
literária. O presente artigo busca analisar, sob as luzes da produção atual da poesia contemporânea, rastros
que possam permitir compreender os diferentes caminhos e correntes traçados como internalização da
realidade no fazer poético. Seu objetivo visa entender essa nova tarefa à poesia contemporânea brasileira.
Palavras-chave: poesia contemporânea; crise; produção; crítica literária
ABSTRACT
Against the back ground of late XX century and XXI, and this shift in paradigm period, finding a place for
poetry, the variety of means and fragmentation of ideas is a challenging path to literary criticism. The this
article aims to analyze, under the lights of de current production of poetry contemporary tracks that could
allow na understanding of the differente paths current and plotted as internalizations of reality in poetry.
Your objective aims to understand this new task to the contemporary Brazilian poetry.
Keywords: contemporary poetry; crisis; production; literary criticism
1.UMA BREVE INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo apresentar algumas reflexões sobre a Poesia Brasileira
Contemporânea. É claro que, sem precipitadas conclusões, pois o processo ainda apresenta-se em
curso. Sua pesquisa reflete certo período marcado por incerteza teórica e relativismo cultural.
Atualmente percebemos que há uma relação intrínseca entre poesia, técnica, tecnologia e
mercado editorial. Também, que a poesia torna-se apenas, mais uma das diferentes formas de
manifestação cultural. Durante o século passado, assistimos a passagem de diferentes movimentos
na poesia que foram da ruptura da tradição à forma de manifestação e protesto. É visível certa perda
de prestígio da poesia como movimento de vanguarda, que encabeçe um movimento de
enfrentamento ou mudança.
Para as novas gerações é comum a comunicação instantânea via twiter e facebook com seus
amigos virtuais. Um mundo que transcorre mais rápido, há uma facilicitação na divulgação da
informação, e pouca atenção para o conteúdo dessa. Daí, percebemos um certo desgaste não só da
poesia, mas da própria arte, característica visível da pós-modernidade. E não é incomum,
encontrarmos inúmeras citações em sites, páginas pessoais, de trechos de obras sem referência a
seus autores quando não apresentados equivocadamente. A obra então perde sua referencialidade e
a linguagem vai transformando-se em inúmeras abreviações e reducionismos.
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A poesia tenta encontrar seu lugar diante do quadro de transformações e perante à era da
informação instantânea. Como nos ensina Cabral, já na década de 50 do século XX, o autor já
identificava o processo de transformação da modernidade em sua tese “Da Função Moderna da
Poesia” (1954) – segundo ele o poeta passa a maior parte de seu trabalho na abstração. A inspiração
é por muito transformada, repensada. A linguagem da internet então, não permite tempos para
reflexões e se encaixa perfeitamente ao que ele atribui a pouca ênfase à “comunicação”.
Vemos também que no Brasil há uma crise de leitura. Ou de leitores. Embora com a
explosão de títulos diversos com temas que vão de lendas mágicas a auto-ajuda, o consumo de
poesia restringe-se a alguns poucos intelectuais e estudantes. Há um sinal de que os poetas estão
buscando novas formas de divulgação via blogs de poesia, por exemplo. Já que as revistas literárias
também perderam espaço. Na fragmentação, e ao mesmo tempo diversidade dos espaços.
2. ESGOTAMENTO DOS PARADIGMAS DE UMA ÉPOCA
A poesia continua tendo um papel de traduzir até mesmo as suas próprias transformações. É
o que aponta o autor Marcos Siscar (2010), em seu livro Poesia e Crise, no capítulo que trata de “A
Cisma da Poesia Brasileira”. Segundo ele, a poesia contemporânea brasileira passaria pela cisma da
oposição entre a poesia concretista e a poesia do cotidiano. E que o papel de alguns autores
contemporâneos de re-subjetivação seria uma tentativa da própria poesia de se auto-compreender
num cenário atual de esvaziamento e fragmentação.
De acordo com Siscar:
a ideia mais ou menos corrente segundo a qual o conjunto da poesia brasileira
carece de propriedades bem definidas, fazendo a prova da diversidade e da
multiplicidade típicas de uma “presentidade” geral, esquema que encontra
eco na compreensão que alguns poetas têm da situação atual, parece se
estabelecer como confissão da falta de recursos diante daquilo que deve ser
compreendido...(SISCAR, 2010, p.151 )
A vida acelerada, multifuncional e dinâmica não pôs fim à necessidade de comunicação.
Fato visto pelas redes sociais. O papel de conexão da análise da realidade, por meio da capacidade
criativa do homem em ver, imaginar, inventar, faz com que a poesia possa ser um caminho, talvez
uma direção. Por meio dela, podemos ter uma inflexão do sujeito contemporâneo. E seu
desenvolvimento esquizofrênico. Multifórmico. A compreensão do período chamado “pósmoderno”? e a busca por seu lugar-comum, de uma nova estética criativa. Não necessariamente em
busca do “novo”, haja vista, o esgotamento das vanguardas. E sim, o diferente, o transformatizante.
Com a expansão do mundo midiático, via capitalismo tardio, além das transformações
consequentes de uma globalização e internacionalização das relações interpessoais; a sociedade
humana, presa totalmente no fetiche mercadológico de seu constante consumismo; revê o conceito
de tempo, de História, Sociedade. Eis o espaço no qual a poesia luta para encontrar meios, agora
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não mais contra, ou fora, mas dentro do sistema, para sobreviver e encontrar sua função de
diferença.
O que para Siscar, nessa situação:
O primitivo, a infância, a ignorância constituem figuras dessa regressão pela
qual a poesia procura revalorizar o uso das tecnologias mais avançadas, mas
de uma nova forma, pela desdramatização dos jogos de metalinguagem
erudita e pragmática, pelo afastamento da discussão sobre o sentido cultural
da poesia. Nesse movimento, poesia tecnológica do contemporâneo parece
abrir-se no sentido do abandono do projeto humanista que era o da poesia
precedente, característica da época das vanguardas.(SISCAR, 2010, p.16 )
Contudo, não se pode tornar refém dos meios. Ou ser estabelecida a partir deles. É
impossível se negar a independência criativa do autor. O que esperamos, é que a internet, por
exemplo, possa servir como uma ferramenta de auxílio de divulgação de obras e autores. Ou que,
facilite o acesso a todos. Ampliando assim o número de leitores de poesia, saindo do atual estágio
de restrição. E não somente, como mecanismo capitalista mercadológico no qual obras são produtos
de consumo.
A tarefa à nova poesia brasileira segundo Marcos Siscar, seria encontrar uma voz própria,
capaz de explicar-se com impasse da técnica. Esta inflexão poderia permitir uma relocação, o
encontro por novas fronteiras.
A poesia está livre para sair de seu ambiente intelectualizado e restrito. Que a vinculavam a
academia. E tem de aproveitar a ampliação que essa nova era tecnológica permitiu, ao conectar
inúmeras pessoas e mundos, para oportunizar a circulação e o conhecimento. Podemos encontrar
informações em diferentes espaços de discussão. Blogs, grupos, sites de universidades entre outros.
Devem ser ainda explorados temas como a vida urbana, sua pobreza, marginalização e
criminalidade. Bem como, essa sociedade esfacelada, descrente e consumista a qual vivenciamos.
Chegamos ao fim das utopias, só nos resta o nada?
3. A PRODUÇÃO CONTEMPORÂNEA
A reflexão crítica da realidade social é um papel historicamente assumido pela poesia. A
obra Página Orfã (2007) de Regis Bonvicino. Descreve essa realidade, do nosso mundo urbano e
seus esquecidos. A vida nostálgica num mundo de prédios, ruas, despossuídos. Há um constante
questionamento do “eu”, característica do tempo histórico atual, além da crítica ao regime de
exploração capitalista e de seu consumismo desenfreado. (o lixo está contido/ em outro saco/ restos
de comida e cigarros/ no canteiro, sem a árvore,/ lixo consentido/ agora sob o viaduto/ onde se
confude/ com mendigos), Lixo (Página Órfã 2007).
A construção poética possui inúmeras direções e habilidades desenvolvidas no processo de
criação. Um deles é a re-leitura social da condição humana. Reformulações e rupturas são apontadas
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por movimentos estéticos que buscam compreender as mudanças sociais e culturais. E, a
“presentidade” está reproduzida na produção contemporânea da poesia brasileira.
Como exemplo, poderíamos apontar o poema “Sítio” de Claudia Roquette-Pinto, publicado
em 2001 e, que traz uma visão da realidade da vida composta por temas como esvaziamento do
sujeito, criminalidade, desigualdade social, fragmentação temporal, que são fenomenos de
desrealização do referencial. (De madrugada,/ muda na caixa refrigerada,/ a carga de agulhas cai
queimando/ tímpanos, pálpebras:/ O menino brincando na varanda./ Dizem que ele não percebeu./
De que outro modo poderia ainda/ ter virado o rosto: “Pai!/ acho que um bicho me mordeu!” assim/
que a bala varou sua cabeça?). Sítio (Margem de manobra 2005).
Devemos resgatar o diálogo e a troca de experiências. O mundo atual reveste-se de certo
individualismo e egocentrismo. A capacidade de mergulhar em diferentes fontes e trazer novas
resignificações e re-leituras deve ser um caminho para a explicação de uma época, que
historicamente apresenta certa incerteza e nebulosidade em sua interpretação. Vemos na História da
humanidade que as passagens entre séculos marcaram profundas transformações sociais, culturais e
econômicas.
A poesia pode cumprir essa função. Assumindo uma nova tarefa, de engajamento.
Abandonando a cisma herdada entre a poesia concretista (formalista) e a poesia do cotidiano
(inspiração popular). Superando o período de retração e refluxo, para buscar um ethos particular na
“presentidade”.
4. E A CRÍTICA?
Não podemos apenas assistir as mudanças presentes. A crítica se faz necessária. A poesia
deve encontrar seu lugar. Não se transformando apenas em objeto mercadológico. E, sim como
oportunidade para reflexão de sua existência enquanto forma de expressão.
Portanto, acreditamos também ser papel da crítica, o contínuo questionamento dos influxos
pelos quais a produção artística se encontra no momento atual. O resgate da consciência que
pergunta, e não apenas assiste paciente, é um novo desafio.
A produção acadêmica atual está marcada constantemente por reproduções a-criticas
reduzidas a processos de colagens de fragmentos e teorias. Logo, buscar uma formulação crítica e
questionadora para o período que marca o fim de um século e tudo que históricamente ele
representou e um novo que surge inicialmente sem referencialidade, torna-se fundamental como
projeto para teoria na compreenção da relação Literatura e Sociedade.
É lógico que o fim das “ideologias”, o relativismo cultural, os projetos universalistas, o
esvaziamento das utopias, a morte das grandes narrativas, o capitalismo em sua máxima expansão
adotando uma fisionomia global, e as transformações sofridas na arte com o esgomanento do
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projeto modernista, deram espaço para o surgimento do que Jameson nomeu de época pós-moderna.
Por isso, o momento atravessado pela crítica literária, passa também, pelo processo de autoreflexão. De posicionamentos intelectuais. Já que, é preciso construir novas explicações.
5. ESCREVER NÃO É PRECISO
Tomo emprestado a ideia proposta por Alcir Pécora na revista (Sibila n. 10 - 2006) em seu
artigo “O inconfenssável: escrever não é preciso”, diante da produção de qualidade mediana, que o
autor constata na contemporâneidade, para fazer minhas considerações finais.
Afinal, qual a situação encontrada? Alguns defenderiam que nunca houve tanta produção,
devido a facilidades tanto no custo como na facilidade de produzir. Também, poderíamos afirmar
que hoje a atividade “escritor” tranforma-se em hobby. Contudo, Alcir Pécora procura demonstrar
que a atividade passa por uma banalização. Para se publicar valhe ser amigo do editor. Ter
influência no meio acadêmico. E, para ele, nada de relativamente bom tem surgido na produção
atual.
Há defensores que afirmam o contrário, já que acreditam que a oportunidade de
comunicação que, por exemplo, a internet proporciona, facilitando tanto o surgimento de novos
poetas que poderiam disponibilizar suas poesias em blogs, sites e páginas pessoais; quanto o próprio
acesso a informação criando então uma grande rede de produtores e escritores. É claro que, isso não
significa um aprimoramento na qualidade, e sim uma maior quantificação na produção.
Proporcionariam uma riqueza e diversidade na produção de obras, que até então ficava restrita a
poucos números anuais.
Que a poesia contemporãnea brasileira vem refletindo todo esse processo de passagem entre
séculos, que todas as questões não respondidas e outras já esgotadas como a falta de movimentos e
projetos estão presentes em temas como sujeito, urbanidade, consumo, incertezas, negação e
resistência. E que, também, diante de um quadro pós-tudo a poesia não está morta. Embora, não
tenham surgido ultimamente grandes autores, a produção poética tem acontecido. Daí pensarmos
em um mundo pós-utópico, consumista, sem referências, anti-essencialista e em alguns casos
desumano. Que a poesia se valha do momento para descobrir novas formas de se expressar, já que
tanto o livro quanto o verso foram postos em prova.
Certo que, a crise do verso, as explorações gráficas feita pelos concretistas, e todas as
relevantes transformações por quais a poesia passou no século XX, definem como a poesia reage
historiograficamente a inflexões e mudanças ocorridas na sociedade. Por isso, é necessário para
compreenção da produção poética brasileira contemporânea, a dinâmica relação Literatura e
Sociedade. Que perceba a cultura e arte como aspectos de uma sociedade histórica e portanto,
ligada a fenômenos que implicam sua reprodução artística e intelectual.
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Uma nova tarafera à poesia brasileira, encontrar seu lugar-comum diante de um novo século
que surge, perante a todas mudanças sociais, tecnológicas e econômicas, e a própria restrição
enfrentada pela arte com sua cooptação pelo mercado. Como Marcos Siscar afirma, é próprio da
poesia estar em crise, o que permite a ela se reconfigurar. Se inconformando, com a repetição, a
homogeinização, não há apenas o pós-tudo. O futuro precisa ser inventado.
REFERÊNCIAS
BONVICINO, Régis. Página órfã. Martins: São Paulo, 2007.
JAMESON, Fredrich; GAZZOLA, Ana Lúcia. Espaço e imagem: teorias do pós-moderno e outros
ensaios. Rio de Janeiro: Ed UFRJ,1995.
SISCAR, Marcos. Poesia e crise. Ed. UNICAMP: Campinas, 2010.
PINTO, Claudia Roquette. Margem de manobra. Aeroplano Editora: Rio de Janeiro, 2005.
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“DEUS NA ANTECÂMARA”: O NIILISMO DE NIETZSCHE EM ANA
CRISTINA CESAR
Glenda Yasmin S. da Silva (PG-UEMS)
RESUMO
Em um mundo fragmentado, no qual os alicerces foram derrubados, a fé foi perdida e não há mais salvação
ou perspectivas, o sujeito também perderá a fé e a vontade, porque não há motivação. Os anos de ditadura
militar no Brasil representam bem esse tempo caótico. Neles, a produção literária que discordava do sistema
de governo foi colocada à margem. Entre os nomes que pertenciam a essa geração, destaca-se o de Ana
Cristina Cesar, que em “Deus na Antecâmara”, proporciona uma visão perturbadora da presença do niilismo
na essência do sujeito.
Palavras-chave: poesia marginal; niilismo; Ana Cristina Cesar; Deus na antecâmara.
ABSTRACT
In a fragmented world, in which the foundations were overthrown, the faith has been lost and there is no
salvation or prospects, the subject will also lose the faith and will, because there is no motivation. The
Brazilian years of military dictatorship represents this chaotic time. In them, the literary production that
disaccord the government system was sidelined. Among the names that belonged to that generation, to be
detached Ana Cristina Cesar, that in God in the Antechamber, provides a disturbing view of the presence of
nihilism at the essence of the subject.
Keywords: marginal poetry; nihilism; Ana Cristina Cesar; Deus na antecâmara.
1. INTRODUÇÃO
A perda da crença nos valores em que o sujeito está inserido leva, consequentemente, à
desvalorização do próprio sujeito. Se o mundo que o cerca está fragmentado, em ruínas, sem
conseguir sustentar a si mesmo, poderá esse sujeito apegar-se a ele para se proteger? A resposta, de
acordo com o niilismo de Nietzsche, em que a única coisa na qual se pode ainda acreditar é na
completa ausência de valor de tudo o que existe, é negativa.
São horizontes tempestuosos os que circundam a poesia marginal – ditadura militar,
repressão a qualquer movimento de oposição, o esfacelamento dos contornos individuais, a sujeição
ou a escolha do conflito. É dentro desse contexto caótico de perdas e grandiosas quedas que surge
Ana Cristina Cesar, um dos nomes mais significativos da geração marginal, cuja classificação é
representativa do meio que oprimia aquilo que não lhe aceitava, numa exclusão que ia desde a
produção até a veiculação do material poético.
Um de seus poemas, parte da obra intitulada, em tom confessional, A Teus Pés, denominado
“Deus na Antecâmara”, foi selecionado para a análise proposta, numa busca pelo niilismo presente
na obra de Ana Cristina. Há, nesse poema, uma profunda representação da caracterização niilista – a
descrença, o duvidar e questionar para, por fim, extinguir a moral. Há falta de fé, de Deus e de
perspectivas. Um homem cujos anseios, sentidos, proteção e verdades foram extintos, um homem
nu, que precisa acordar e dar-se conta de sua nudez, esse é o sujeito da poesia marginal.
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2. UM MUNDO DE FRAGMENTOS NUNCA FOI OU SERÁ UM TODO
De tempos em tempos, parece que todos os esforços se concatenam para uma mesma
direção. Foi assim com o Renascimento, com o Romantismo e com o Modernismo. Êxtase com o
excesso de possibilidades. A década de 60 também foi assim, pródiga em grandes acontecimentos
que movimentaram a vida de gerações inteiras – a consolidação do poder após as grandes guerras, o
mundo dividido entre socialistas e capitalistas. Na América Latina inteira, os Estados Unidos
aprofundam sua zona de influência. Impõem, indistintamente, o ‘American way of life’,
transformando vidas pela força do imperialismo.
Vivia-se diante de uma verdadeira aversão de que a terceira grande guerra acontecesse a
qualquer momento. O mundo segurava-se por uma tênue linha entre a sanidade e o horror, que só a
lembrança ou o medo de uma guerra podem trazer. Além disso, aprofundaram-se as diferenças entre
os países. Os ricos cada vez mais ricos e os pobres disputando a sobra das grandes potências. São
tempos de efervescência. Se o ser humano consegue conquistar o mar da tranquilidade lunar, as
divergências terrestres são diversas e propiciadoras do que se convencionou chamar de
contracultura. Movimento em que
os jovens norte-americanos expressaram, ao lado dos seus congêneres
europeus e também de jovens do Terceiro Mundo, não só a recusa em relação
ao status quo político e econômico como também às tradicionais formas de
relação familiares (CAPELLARI, 2007, p. 13).
Pode-se definir a contracultura como um conjunto de manifestações que repudiaram o modo de
viver ocidental e resultou em mudanças sócio-culturais, como a revolução sexual causada pela
pílula anticoncepcional; a revolução cultural, com o advento do rock n’roll, entre outras assim
chamadas revoluções.
No Brasil, após breve período de governo voltado para o povo – João Goulart –são tempos
de ditadura militar, plenamente incentivada e financiada pelos americanos. Território perfeito para a
contracultura, uma oposição ao estado de coisas vividas. Um governo que notoriamente exercia o
poder tendo como condição básica que o capital hegemônico americano reinasse prioritariamente é
como um estopim prestes a ser aceso.
Várias gerações confluem para se tornarem oposição ao regime instalado, várias se chocam
contra a força e suas próprias convicções. A luta chega ao labirinto, dois caminhos a seguir: do
“sabiá” ou das “flores”. No meio, reinava então “uma ilha de tranquilidade, extremamente atraente
para o capital monopolista internacional que aperta os laços da dependência” (HOLLANDA, 1980,
p. 90). Tempos de milagre econômico, “passa-se a viver um clima de ufanismo, com o estado
construindo seus grandes monumentos, estradas, pontes e obras faraônicas” (idem), enquanto
aprofundava-se a desigualdade social.
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São esses os tempos de Ana Cristina Cesar. Anos gravados com chumbo em que a
contracultura, sem conseguir se instalar de maneira tranquila diante do meio ditatorial, que não
aceitava “manifestações coletivas de repúdio ao sistema” (CAPELLARI, 2007, p. 17), teve que se
ambientar de outra maneira. Assim, abrasileirou-se, tornando-se mais “um novo “estilo de vida”, a
partir de seus referenciais estéticos e intelectuais introduzidos por intermédio das artes plásticas, da
literatura, da música e de jornais alternativos [...]” (idem). Diante das grandes dificuldades de
expressão, os grandes festivais de música cantavam, metaforicamente, as dores do mundo. Na
década de 70 desenvolve-se uma “cultura de resistência” que “começa a criar novos heróis que se
apresentam quixotescamente como os indivíduos que dizem aquilo que o povo quer dizer, mas se vê
impedido” (HOLLANDA, 1980, p. 92) e, continua a autora, criando “nesses espetáculos todo um
repertório de truques” para burlar a censura.
Se, por um lado, aprofunda-se a luta contra a ditadura, por outro, percebe-se uma sociedade
anestesiada, perdida entre mundos. Imperava então a televisão, que “passa a alcançar um nível de
eficiência internacional, fornecendo valores e padrões para um 'país que vai pra frente'”
(HOLLANDA, 1980, p. 91). Assim, o governo militar alcançou uma paz armada com “muitos
artistas e intelectuais, vivendo um clima de 'vazio cultural'” (idem), sendo cooptados pelo sistema,
transigindo, mas produzindo assim mesmo. “Também a universidade é alterada nesse momento. A
repressão ao movimento estudantil e a Reforma Universitária tentam assegurá-la como espaço
meramente acadêmico de feições tecnocráticas” (idem, p. 93).
Os anos 80 são chamados de “década perdida” (SIMON, 1999, p. 8). Se, enfim, o país se
livra da ditadura militar e conquista a liberdade, o poder apenas muda de mãos. Mantêm-se um
grande vazio cultural, aprofundam-se os problemas econômicos e, por extensão, sociais. É a década
das rádios, e da profunda massificação das televisões, que ditam moda, modos, lançando culturas
externas nos rincões brasileiros. De maneira geral é esse ambiente agressivo e pernicioso que
vivencia Ana Cristina Cesar, e muito da sua produção espelhará esses impasses. Seu suicídio, em
1983, desceu o pano sobre a sua vida, mas sua obra sobreviveu ao tempo e continua a ser motivo de
análises que tentam compreender seu profícuo universo.
3. QUANDO NADA MAIS RESTA, RESTA A VONTADE DE NADA
Em um contexto de esvaziamento e repressão, aqueles que são circundados possuem duas
opções bastante diversas – deixar estar e levar-se, adaptando-se às imposições e necessidades do
meio repressor, ou ser provocador, ainda que no íntimo, de revoltas que questionem, mesmo que
esse comportamento mais inquieto traga consigo consequências não muito positivas. O ser humano
é, em suma, representativo de seu tempo e, diante disso, é completamente possível afirmar que, se
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isso o é verdadeiramente, o homem passa por um momento de decadência do eu, do
desaparecimento do sujeito, da anulação do indivíduo.
Perspectivas tão negras são baseadas, nessa análise, no conceito e fundamentos
apresentados por Nietzsche acerca do niilismo. Oliveira (s.d., p. 4) o situa como algo dotado de
ambiguidade, pois “se apresenta contemporaneamente como ‘crise’ e como ‘solução’; como
‘revolução’ e como ‘nova ordem’; como o grito ardente de um sentido radical para a vida e como
tácito conformismo sócio-cultural”. Ainda que possa aparentar ser confuso, o fenômeno niilista
parece corresponder com exatidão ao tempo ao qual nos referirmos anteriormente – época de
medos, de guerras silenciosas, de ditaduras, de apagamento do sujeito e, vindo desse mesmo sujeito,
da necessidade de um movimento que pudesse se opor à total aceitação.
Imerso num contexto de faltas, o homem perde a fé, seja ela nas instituições, em Deus ou em
si mesmo. Não há mais desejo de apego à moral, pois essa está relacionada à doutrinação, e isso é
justamente aquilo que se nega. Nietzsche (1978, p. 93-94) afirma que “toda moral [...] é um bocado
de tirania contra a ‘natureza’ e também contra a ‘razão’ [...]”. Nesse sentido, é oportuno conhecer os
tipos de moral de acordo com aquele que os faz:
Há morais que se destinam a justificar perante os outros o seu autor; outras
têm por fim acalmá-lo e pô-lo bem disposto consigo próprio; com outras quer
crucificar-se e humilhar-se; com outras quer vingar-se, ou esconder-se, ou
transfigurar-se e colocar-se nas alturas e distâncias; esta moral serve para o
seu autor esquecer, aquela para o autor se fazer esquecer a si ou a algo de si;
certo moralista quereria exercer sobre a humanidade o seu poder e o seu
capricho criador; outro [...] daria a entender com a sua moral: “o que há de
respeitável em mim é o fato de eu saber obedecer – e convosco deve passarse precisamente o mesmo que comigo!” (NIETZSCHE, 1978, p. 93).
Perder a fé significa também perder parte de si, pois os valores e crenças são aspectos
bastante subjetivos e decisivos para a constituição do sujeito. O que fazer, então, quando nada do
que se acreditou verdade, e se defendeu como tal, corresponde ao verdadeiro sentido de mundo
real? É bem possível que, sem respostas para tal pergunta, o homem se encontrasse perdido, sem
caracterização imediata e de fácil reconhecimento. Em um mundo em que a realidade não mais se
parece com o que se acreditava como realidade, é justificável que se perca o desejo de vida, que se
negue a vida, no fim mais por desejá-la ardentemente.
Afinal, um mundo fragmentado pressupõe um sujeito também fragmentado – um indivíduo
deslocado, porque perdeu o chão sob os pés sem que estivesse preparado para isso. Um sujeito
anulado por seu contexto procura, obviamente, maneiras de se adaptar ou de tensionar este
admirável mundo novo, de novos olhos e novas ordens. Abrir os olhos, por vontade ou à revelia, é
receber da realidade mais luz do que pode suportar visões adestradas. Ser violentado pelo homem
causa ao homem o maior mal-estar, e se não há mais paraísos, não há Deus nem compensações, o
que há de positivo para se apegar?
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Ora, foi a moral que protegeu a vida do desespero e do salto no nada,
naqueles homens e classes que foram violentados e oprimidos por homens:
pois é a impotência contra homens, não a impotência contra a natureza, que
gera a mais desesperada amargura contra a existência (NIETZSCHE, 1983, p.
384).
Há, em Para além do bem e do mal, um questionamento interessante de Nietzsche, acerca de
Schopenhauer, que nos parece bastante cabível: “[...] um pessimista, um negador de Deus e do
mundo que pára em frente da moral – que diz sim à moral e toca flauta para acompanhar [...]: será
ele, no fundo – um pessimista?” (NIETZSCHE, 1978, p. 93). O homem situado nos anos de uma
ditadura deve ou calar-se para não ser punido ou levantar a voz, como se à espera de algo que viesse
castigá-lo ou libertá-lo. Em ambas as situações não há fé, não há perspectiva. É, nesse momento,
que se vê o niilismo mais presente, pois
[...] é então o tomar-consciência do longo desperdício de força, o tormento do
“em vão”, a insegurança, a falta de ocasião para se recrear de algum modo,
de ainda repousar sobre algo – a vergonha de si mesmo, como quem se
tivesse enganado por demasiado tempo [...] (NIETZSCHE, 1983, pg. 380).
Enganado, pois foi levado, por toda a vida, a crer em um mundo sustentado por falsas
verdades. Não haverá paz de espírito. Haverá mesmo espírito? Há um furto de tudo aquilo em que
se acreditava como certo, e tomar consciência disso não é, de modo algum, tarefa fácil, que não
exija grandes esforços. Diante de tal cenário, vale seguir vivendo? Talvez não, pois mesmo a
liberdade, bem tão precioso e digno de anseios profundos, é algo que, se observado com veemência,
não existe. Tem a vida sentido? Ou o melhor é entregar-se, deixando-se levar, sem gastos
desnecessários de energia, visto que “[...] custa cem vezes mais cansaço, mais cautela, levar avante
uma existência tão condicionada, tão tardia” (NIETZSCHE, 1983, pg. 339). Melhor seria, então,
desistir da vida? Seria esse o único modo de ser, em verdade, livre?
Pois o que é liberdade? Ter a vontade de responsabilidade própria. Manter
firme a distância que nos separa. Tornar-se indiferente a cansaço, dureza,
privação, e mesmo à vida. Estar pronto a sacrificar à sua causa seres
humanos, sem excluir a si próprio (NIETZSCHE, 1983, p. 341).
Camus (1978, p. 65), acerca desse sacrifício de si e de outros, ao falar do niilismo e de
Nietzsche, nos diz que este último, ao tomar consciência do apocalipse para o qual a humanidade
vendada caminhava, fez sofrer primeiro, e talvez de maneira mais dura, a si mesmo – “diagnosticó
en sí mismo y en los otros la imposibilidad de creer y la desaparición del fundamento primitivo de
toda su fe, es decir, la creencia en la vida”. Já que a esfera da vida não é aquilo que se acreditava
ser, pode o ser humano chamar a si de tolo, pode o homem ofender as verdades e crenças, pode o
ser humano, desanimado de tantas buscas, por fim, negar. E o niilismo surge, então, como a
negação total.
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O sentimento niilista nada busca ou almeja, pois “[...] um alvo é sempre um sentido ainda.
[...] com o vir-a-ser nada é alvejado, nada é alcançado...” (NIETZSCHE, 1983, p. 380). Para esse
ser humano, que se vê caótico e abandonado num mundo que rui, não há mais sentido algum. Não
existe mais um todo que lhe seja maior, não há algo a defender ou algo pelo qual os sacrifícios
sejam legítimos, não há valores incorruptos aos quais se apegar, não há crença em si e nos seus
chamados semelhantes – se nada disso existe, como poderá esse homem acreditar que é uma parte
realmente valorosa da existência?
Há tonantes nãos – a falta de coisas maiores e universais em que acreditar, que justifiquem
as dores, a descrença em seu próprio valor e a descoberta da inexistência de um mundo metafísico,
porque “admite-se a realidade do vir-a-ser como única realidade, proíbe-se a si toda espécie de via
dissimulada que leve a ultramundos e falsas divindades – mas não se suporta esse mundo, que já
não se pode negar...” (NIETZSCHE, 1983, p. 381). Como será possível ao homem resistir à
descoberta dos destroços por trás das cortinas de sua suposta realidade?
[...] falta a unidade abrangente na pluralidade do acontecer: o caráter da
existência não é “verdadeiro”, é falso... não se tem absolutamente mais
nenhum fundamento para se persuadir de um verdadeiro mundo... Em suma:
as categorias “fim”, “unidade”, “ser”, com as quais tínhamos imposto ao
mundo um valor, foram outra vez retiradas por nós – e agora o mundo parece
sem valor... (NIETZSCHE, 1983, p. 381).
4. DEUS NA ANTECÂMARA – AS VEIAS DO NIILISMO NA POESIA DE ANA
CRISTINA CESAR
Cronológica e didaticamente, Ana Cristina Cesar pertence à geração chamada marginal.
Imprensada entre o rescaldo do Modernismo e a força de um combativo Concretismo, a poesia
marginal “reivindicava uma ruptura com os valores literários em voga — de imediato, com o
ascetismo formal e existencial das vanguardas construtivas — em nome da experiência e do
comportamento” (SIMON; DANTAS, 1985, p. 2). Uma das características fundamentais dessa
poesia era sua intenção de burlar as imposições de um mercado elitista e estagnado, intentando criar
novos canais de circulação através da “afirmação de um espaço alternativo, independente, de
produção/consumo que, por oposição ao circuito editorial comercial, enfatizava os aspectos
artesanais da feitura, distribuição e divulgação da poesia” (idem, p. 5). Não era uma estratégia
pensada, surgiu por uma imposição do tempo em que se vivia então.
Para além do artesanal, a poesia marginal sempre foi muito criticada pelo seu excesso de
presença do autor. Uma re-subjetivação poética em que
[…] há elaboração, involuntária ou não, pois a representação dispõe
formalmente seus elementos: o registro confessional e biográfico, a anotação
irreverente do cotidiano, a nota bruta do sentimento, da sensação, do fortuito,
são soluções poéticas que acabam impondo um padrão informal e
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antiliterário de estilização. Seus traços recorrentes são facilmente
reconhecíveis: a coloquialidade, a despretensão temática, a relação
conversacional com o leitor, o humor, a cotidianização da metáfora
extravagante, a simplicidade sintática e vocabular, recursos que, por sua vez,
não ignoram a simultaneidade, a colagem, a elipse, a brevidade (SIMON;
DANTAS, 1985, p. 7).
Essas características, longe de significarem uma diminuição do nível poético, lançam luz sobre uma
problemática maior da época: o sujeito fragmentado, emparedado, prisioneiro do tempo, da ação
desordenada em busca de uma saída, da falta de ação, das mudanças sistemáticas nas grandes trocas
sociais, vivendo uma contracultura às avessas. Eram grandes as possibilidades de que um tempo tão
ambíguo impregnasse toda uma geração, e assim o fez.
A constante necessidade de se afirmar é prova de que não há nesse sujeito nenhuma
segurança acerca de si mesmo. É preciso que seja íntimo, para que lhe seja seu. Mas esse aspecto
tão singular e individual que se tornou característica do período marginal tornou-se, para grande
parte, mecanismo de defesa e de repetição de fórmulas, visto não existir nada a criar.
A consequência niilista (a crença na ausência de valor) como decorrência da
estimativa moral de valor: perdemos o gosto pelo egoístico (mesmo depois da
compreensão da impossibilidade do não-egoístico); - perdemos o gosto pelo
necessário (mesmo depois da impossibilidade de um liberum arbitrium e de
uma “liberdade inteligível”). Vemos que não alcançamos a esfera em que
pusemos nossos valores – com isso a outra esfera, em que vivemos, de
nenhum modo ainda ganhou em valor: ao contrário, estamos cansados,
porque perdemos o estímulo principal. “Foi em vão até agora!”
(NIETZSCHE, 1983, p. 380)
Toda essa “desqualificação literária supunha, sem que houvesse concretude desta suposição,
deixar à mostra a vitalidade do sujeito e o depoimento da experiência que, segundo se dizia, haviam
sido banidos da poesia brasileira [...]” (SIMON; DANTAS, 1985, p. 7), mas, na poética de Ana
Cristina Cesar, o que se percebe é um grito vazio, vontade de nada, um niilismo embrionário e
poderoso, a demonstração de “um estado geral da sensibilidade contemporânea” (idem, p. 9), como
se pode perceber no poema abaixo:
Deus na Antecâmara
Mereço (merecemos, meretrizes)
perdão (perdoai-nos, patres conscripti)
socorro (correi, valei-nos, santos perdidos)
Eu quero me livrar desta poesia infecta
beijar mãos sem elos sem tinturas
consciências soltas pelos ventos
desatando o culto das antecedências
sem medo de dedos de dados de dúvidas
em prontidão sanguinária
(sangue e amor se aconchegando
hora atrás de hora)
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Eu quero pensar ao apalpar
eu quero dizer ao conviver
eu quero partir ao repartir
filho
pai
e
fogo
DE-LI-BE-RA-DA-MEN-TE
abertos ao tudo inteiro
maiores que o todo nosso
em nós (com a gente) se dando
HOMEM: ACORDA! (CESAR, 1984, p. 24-25)
O niilismo é a representação final de um mundo em que, em verdade, nada tem existência
sincera e livre. Mesmo a liberdade é, com pesar, descoberta como inexistente. Os valores religiosos,
a moral cristã e seus dogmas parecem apenas instrumentos de controle, através dos quais se pode
justificar que haja dor, pois haverá também, num mundo metafísico, a compensação. Diante dessa
perspectiva, da queda do que era sólido até então, é desejável que, santos (sejam eles perdidos,
corrompidos ou não) ou putas, todos sejam perdoados. Talvez pela estupidez de se deixarem
enganar, pois, conforme as idéias de Nietzsche (1977, p. 234), “‘querer a verdade’ não significa,
portanto, ‘não querer deixar-se enganar’, mas - e não há outra escolha – ‘não querer enganar os
outros nem a si próprio’ [...]”. Não há perdão verdadeiro, porque não há a quem pedir perdão.
As menções à religiosidade presentes no poema de Ana Cristina são claras já no título – um
Deus na antecâmara é um Deus posto à prova. É um Deus que não está, como deveria estar, de
acordo com o que nos foi ensinado, em todos os lugares. Não se trata mais de um Deus onipresente,
é, sim, falho. A quem perdoar? Se não há mais um paraíso para os bons, se não se sabe mais o que é
realmente bom, por que perdão? A ironia deste pedido reside na aparente submissão do sujeito por
redenção para seus erros – vale ressaltar que o contexto desse sujeito também não possui mais
caracterização e, portanto, erros e acertos não indicam mais perdição ou salvação eterna – não há
nada, e isto é a única coisa real a que esse sujeito deve se apegar. Será mesmo que esse pedido de
socorro é real?
Livrar-se da infecção não é, de modo algum, tarefa possível se analisarmos que tudo está
infectado. Inclusive esse eu que se inquieta e parece dotado de inconformismo. A consciência solta,
que desata as antecedências pode ser compreendida, enfim, com a descoberta da verdade sobre a
existência real das coisas, o que, segundo Nietzsche (1983, p. 381), só ocorreria por causa da
“crença nas categorias da razão”. A razão real levou o sujeito a perceber que nada existe, a não ser a
certeza de que nada existe. A consciência, o conhecer a verdade, o entrar em contato com essa
perspectiva niilista é, certamente, algo que fez ruir tudo o que lhe antecedia no tempo e na
compreensão humana.
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Como não há mais espera, nem punições e condenações, o que se tem é a ausência do medo
dessas coisas, tão mais doutrinadoras ao homem do que o chicote, não é preciso se importar com o
julgamento dos dedos em riste dos juízes, sejam humanos ou divinos, não é preciso temer as
dúvidas que antes consumiam, visto a falta de respostas e mesmo de perguntas a buscar. Como não
fazer desse sujeito apenas um adereço na existência? É algo que certamente se quer evitar e, por
isso, justifica-se o tom de extrema pessoalidade – há mesmo nesse eu certas vontades, que parecem
defendê-lo da anulação total pelo nada –, “apalpar”, “conviver”, “repartir”, são todas ações que
indicam, e exigem, contato.
O contato poderia, em seu entender, salvá-lo da anulação. “Quando se vive só, não se fala
muito alto, não se escreve também muito alto: receia-se o eco, o vazio do eco, a crítica da ninfa
Eco. A solidão modifica as vozes” (NIETZSCHE, 1977, p. 164). Ser capaz de identificação, possuir
limites que lhe delimitem, o que só pode ser possível quando se está em meio a outros, surgem
como tentativas de evitar o apagamento total e arbitrário de si mesmo. No entanto, é pertinente
questionar se esse sujeito terá vontade (e, por consequência, um ideal) suficiente para o
enfrentamento ou será mais adequado, e mais confortável, deixar-se estar por aí.
É válido ressaltar que, embora as ações “apalpar”, “conviver” e “repartir” sejam
mencionadas e vistas como segurança, os enunciados que lhes antecedem são contraditórios –
apalpar não exige nenhum esforço de reflexão ou pensamento – é contato, é a presença do outro, e,
portanto exige que haja um outro, o que não é necessário ao pensamento. Conviver não implica em
dizer, pois o convívio com o outro, existente e necessário, anseia que se calem as palavras e críticas
em nome de uma coexistência pacífica, dizer não é o mais importante. O mais importante é saber
calar. Já no terceiro enunciado da estrofe, o verbo “partir” pode significar tanto quebrar quanto ir
embora – em ambos, não há repartição igualitária de si, pois, se há quebra, o todo se perdeu e não
possui mais a mesma valoração, se há partida, o sujeito leva consigo parte do que se devia repartir,
e a doação não é completa.
Na penúltima estrofe é possível perceber um jogo lúdico e mordaz com o significativo
dogma cristão da Santíssima Trindade - Pai, Filho e Espírito Santo –, o filho, considerado menor em
importância, é mencionado primeiro, em letras minúsculas, o que demonstra a sua perda de valor. O
pai é apenas o segundo elemento, abaixo de seu filho, que, numa comparação com Jesus Cristo, é
humano e, por conseguinte, falho e corruptível. A humanidade vence, então, a grandeza da
imortalidade para, no fim, ser consumida pelo fogo. O fogo que, para os cristãos, purifica a alma, e
corresponde a um bom castigo para os homens sem fé. Homens como esse sujeito, agora descrente e
perdido, pois não sabe mais a que se apegar, já que é “um animal desconfiado: e o mundo não vale
aquilo em que acreditamos, é mais ou menos a mais segura verdade que a nossa desconfiança
acabou por aprender” (NIETZSCHE, 1977, p. 238).
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No final, os três alicerces, os três julgadores, são indignos de confiança, são quebrantados e
sem valor, assim como todas as outras coisas, assim como o próprio sujeito. Tudo o que se
acreditava existir está destruído pela crença em sua existência, pela obediência servil e compreensão
das justificativas mais tolas e absurdas.
Resultado final: todos os valores com os quais até agora procuramos tornar o
mundo estimável para nós e afinal, justamente com eles, o desvaloramos,
quando eles se demonstram inaplicáveis – todos esses valores são, do ponto
de vista psicológico, resultados de determinadas perspectivas de utilidade
para a manutenção e intensificação de formações humanas de dominação: e
apenas falsamente projetados na essência das coisas. É sempre ainda a
hiperbólica ingenuidade do homem: colocar a si mesmo como sentido e
medida do valor das coisas (NIETZSCHE, 1983, p. 381).
O niilismo é a dor e a alegria da descoberta, diante do que o homem precisa apenas, e isso lhe
exigirá a maior força possível, acordar – gesto simples, mas representativo do maior esforço –
acordar é abrir os olhos e ver. O que se verá é que, de modo ambíguo, será positivo, visto ser
verdade, mas aterrorizante, visto ser nada.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O homem trava uma queda de braço secular com o mundo que o rodeia. Embate em que
parece estar sempre perdendo. Engessada, assim apresenta-se a humanidade como um todo. Não
existe escapatória, o que se espera da maioria é que compactue com a sacralidade das leis dos
homens. Crer é o verbo. O sujeito incrédulo se farta de ser isolado, atacado, doutrinado. Numa
época sem sobressaltos, o homem até consegue enfrentar as pesadas estruturas que o rodeiam, em
tempos difíceis, não. Em todos os momentos que o ser humano viu-se frente a frente com o
desconhecido, atado a um destino universal, sua finitude é posta à prova, ele sente o mundo pesar às
suas costas e estremece.
Ana Cristina Cesar vivenciou isso na pele. Vinha de uma geração que cresceu entre utopias e
realidades diversas. O sonho estava sempre acabando e recomeçando com novo nome. Existir
durante uma ditadura militar, presenciar amigos desaparecendo, morrendo, se calando, capitulando,
pegando em armas, eis um caminho seguro para a náusea do mundo. Quando os pilares do que se
acredita desabam, levam consigo todas as considerações possíveis.
E, ao mencionarmos pilares, nos referimos a Deus, o maior de todos os sustentáculos da
humanidade (e de seu servilismo), à moral (doutrinadora e artificial), aos sistemas de governo
(corruptos, castradores e hipócritas) e ao próprio homem como ele se concebia. Diante disso, o que
temos é um sujeito confrontado com a única verdade possível – a de que nada do que acreditamos
como concreto e certo existe em verdade, nem mesmo o sujeito completo. É então que esse
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composto de fragmentos, de corpos estranhos ao que conhecia como o seu, que o nosso homem sem
fé abre os olhos e vê que, agora, a única vontade é a vontade de nada.
Assim, a poética desse tempo nasce dentro de um labirinto. O nome é significativo da
valoração vigente: “poesia marginal”, que é aquilo relativo à margem, aquele que se situa no
extremo, no limite, na periferia; ou na periferia da consciência. Marginal são aqueles que
desconsideram costumes e valores, leis e normas ou é aquilo que é comercializado com pouco
lucro. Todos os significados condizentes com a poesia de Ana C.
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THE VIGIL BETWEEN LITERARY LIFE AND DEATH:
THE CASE OF SHIRLEY JACKSON
Gustavo Vargas Cohen (PG-UFRGS)
ABSTRACT
The objective of the present text is to help elucidate questions regarding the alleged lack of recognition and
the consequent oblivion of North American writer Shirley Jackson by the critics, the media, the Academy,
and the reading public, considering the events that took place since her death in 1965. In order to do so,
carefully selected information is presented in order to aid in the proposed goal. These data reflect the main
activities, in diverse arenas, that involve the writer and her works in recent times. These pieces of evidence
are approached through an argumentative analysis and an informed commentary is made in light of new
discoveries.
Keywords: Shirley Jackson; media; literary criticism; literary historiography.
RESUMO
O objetivo do presente trabalho é ajudar a elucidar questões que cercam a suposta falta de reconhecimento e
o consequente esquecimento pela crítica, pela mídia, pela Academia, e pelo público leitor da escritora norteamericana Shirley Jackson, levando em consideração os eventos que sucederam desde sua morte em 1965.
Para tanto, são apresentadas informações cuidadosamente coletadas que se propõe a auxiliar nesta meta.
Estes dados refletem as principais atividades, em diferentes âmbitos, que envolvem a escritora e suas obras
na atualidade. Essas evidências são abordadas por meio de uma análise argumentativa e uma discussão
informada à luz de novas descobertas.
Palavras-chave: Shirley Jackson; mídias; crítica literária; historiografia literária.
1. INTRODUCTION
Shirley Jackson (1916-1965) was a North American who is, today, mostly remembered – if,
at all – for having once shocked readers in her country with an unforgettable and gruesome short
story and as the author of quite influential haunted house novels. In the present text, she is briefly
presented in light of her literary accomplishments as the reader is introduced to the importance and
significance of the author’s oeuvre, and is invited to try and understand her continuing contribution
not only to American but to world literature, culture and art. Ms. Jackson is the author of six fulllength novels, two humorous family memoirs, four books for children, a juvenile stage play, some
thirty non-fiction articles, numerous book reviews and four short story collections that, along with
her uncollected pieces, yield circa one hundred separate short stories, the literary form which she
proved more prolific. She is responsible for one of the greatest haunted house stories of American
literature, The Haunting of Hill House, published in 1959. The novel was adapted to the big screen
and made into long feature motion pictures; the most famous being the 1963 version entitled The
Haunting directed by legendary Robert Wise and the homonymous 1999 version directed by Jan de
Bont and featuring Liam Neeson, Catherine Zeta-Jones, Owen Wilson and Lili Taylor. Ms. Jackson
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wrote what is likely the most controversial piece of fiction ever published in the magazine New
Yorker, the 1948 short story The Lottery. It resulted in hundreds of canceled subscriptions; it was
later adapted for television, theater, radio and, in a mystifying transformation, even made into a
ballet. Joined by Ambrose Bierce’s An Occurrence at Owl Creek Bridge and Flannery O'Connor’s
A Good Man's Hard to Find, Ms. Jackson’s The Lottery is one of three short stories which are most
anthologized in American literary twentieth-century history. Notwithstanding all that, Ms. Jackson
is considered a forgotten author (DIRDA, 1988; PASCAL, 2000; FLOOD, 2010).
2. INTENSE AND LIVELY ACTIVITY
Historically, the Academy, the media, and readers and critics, have allegedly relegated Ms.
Jackson to an unjust forsaken status. This supposed lack of recognition is worthy of investigation,
since new light has been shed regarding the activities that, directly or indirectly, involve the author
and her works in the present and in the recent past. To the moment, data has been obtained and
analyzed so as to reveal an intense activity regarding the author and her writings in diverse arenas
since the time of her death in 1965; these have been proven as diverse as can be, ranging from
intellectual to cultural production and from educative to journalistic output.
Among the most prominent findings – mostly freely derived from Ms. Jackson’s writings –
are theatrical productions (both amateur and professional); filmic adaptations for cinema and
television (in short and long features, as well as other experimental forms); appearances (that go
beyond mere citation) in fiction and non-fiction books (including children’s literature and literature
for all ages); didactic books for school level, for university level, and for specific purposes (such as
creative writing courses or with extra-academic educational aims); the realization of dramatic
readings (with or without adaptations) for university or general public; dance number adaptations
(such as ballet, jazz dance, among others); the creation of websites, blogs, posts, communities in
social networks and other internet-based environments; and appearances in news, journalistic
articles, and criticism, in specialized venues or otherwise (circulating only in American domestic
territory and/or overseas); and translations to various languages (including Brazilian and EuropeanPortuguese).
Distinction should be made, however, between primary and secondary findings due to the
elevated number of productions that simply mention her name or the title of one or more of her
short or full length stories – generally for comparative or illustrative ends, or as parts of lists of
writers, or books, of a certain genre or time period. Such pieces of information strengthen the idea
that Ms. Jackson is not all that forgotten as critics Dirda (1988), Pascal (2000), Flood (2010),
among others, have stated.
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In the Academy – to the present – approximately thirty graduate researches (among master’s
theses and doctoral dissertations) all over the world (approximately 85% in the United States) were
– or are being – conducted having Shirley Jackson, and/or her works, as main objects of
investigation (about one third uses the author, and/or her works, as secondary research object).
Among curiosities and unexpected facts found so far is the utilization of some of her stories
in accountancy offices and labor unions (both using the short story My Life with H. R. Macy as
example for debates concerning the massification of human resources and the banalization of the
human being by great corporations). Another interesting case is the use of the short story The
Lottery as an exercise of ‘bibliotherapy’ in a correctional incarceration facility in the U. S. (the
activity refers to the comparison of the printed versus the filmic version of cited story as an
educational medium).
More findings point out that Ms. Jackson’s texts are currently being, and/or have recently
been, used in American universities traditionally by professors of English and of literary studies
(among these, typically in gothic, horror, fiction or fantasy literature; as well as women’s literature;
lesbian and queer studies; and, of course, twentieth-century American and world literature). Besides
these, she is also required (or suggested) reading in various and diverse university courses, both in
America and internationally. Even though the evidence here gathered is quite far from representing
the totality of Ms. Jackson’s range, there is currently an intense life that is beyond debate.
3. UNDERAPPRECIATED AND FORGOTTEN?
Academics never have known quite what to do with Jackson. They
often resist canonizing writers who dabble in genre categories and
enjoy mass appeal. Yet Jackson's reputation has grown rather than
diminished (MILLER, 2009, p.1).
The end of the twentieth century served almost as a prelude to the possible Shirley Jackson
revival that is starting to build up in the twenty-first. Now, more than ever, her works are being
adapted to television, to the theater and several other media.
In 1996, American television network NBC mounted a new adaptation of The Lottery for the
small screen directed by Daniel Sackheim. It was said that the project lost something in the
translation from paper to tv format. It aired on a Sunday, September 29 th, at 9 o’clock pm, starring
Joe Cortese (of MTV and of the remake of Route 66) and Keri Russell (from Malibu Shores) in the
central roles. Critics have called it ‘unwatchable’ and ‘a big mistake’ and advised viewers to read
the short story because it would take less time and stick much longer (BIANCULLI, 1996). The
episode reappeared as a text being studied by problem students on the TV series Dangerous Minds
(DISCH, 1997). The Lottery is still at present being adapted to theatrical play and in performance at
high schools, universities and theaters (ROSENSTEIN, 2005; DOYRON, 2008; OSTER, 2009).
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The Lottery, in paper form and in video format, was even used in a United States
incarceration facility as corpus for a ‘bibliotherapy’ research, a comparison between print and video
as educational media:
(…) an informal experiment with two groups each of eight incarcerated men
who were already involved in a bibliotherapy program. One week, the first
group read the short story version of Shirley Jackson’s “The Lottery”; the
second group viewed a film version which is remarkably faithful to the
original both in concept and in dialogue. The group which watched the film
reacted immediately and emotionally (…) The reading group, however,
reacted slowly (…) A month later, the readers were still talking about the
story, while the film group had lost interest (RUBIN, 1978, p. 77).
The 1969 Larry Yust adaptation of The Lottery - shot on the location site in Fellows or Taft,
California – was cited by The Academic Film Archive as one of the two bestselling educational
films ever. When it was made, it had an accompanying ten-minute commentary film, Discussion of
The Lottery5 by University of Southern California professor Dr. James Durbin, of the Department
of English.
According to Miller (1997) it is almost impossible to graduate from an American high
school without having been assigned The Lottery to read. But not only in America. Atlantic
Bilingual School in Puerto Cortés, Honduras, teaches Shirley Jackson for 7th, 8th, and 9th graders
(WIGFALL, 2007).
In 1999, Ms. Jackson was featured in a book that provides biographical profiles of authors
of interest to readers ages nine and above created to appeal to young readers (HARRIS & ABBEY,
1999). For this and other reasons, she seems to hover over our heads as an ever-constant presence.
In March, 2000, there was a reading of her short stories on Broadway in a session of
Selected Shorts called All in the Timing in New York City (KING, 2000). Wherever we turn our
attentions, she seems, however parsimoniously, to be there. That same March, in Chicago, Harrison
McEldowney headed the darkly comic ballet The Lottery, drawn from the macabre short story. It
was the main feature of Hubbard Street Dance Chicago's three-week session at the 2,000-seat arena
Chicago's Shubert Theater (BARZEL, 2000). On June 1, 2004 a community called preconceived
notions of ghosts. . . the works of Shirley Jackson was created in the internet, hosted by Livejournal.
On September 2008, Colorado University students Alex Hughes and Patrick Cooney
directed the theatrical production of The Lottery, adapted from and homonymous to Ms. Jackson’s
short story. The play was presented at the University Theatre Loft, in Boulder, CO. On September
19 of the same year, Syracuse University selected Ms. Jackson to be the (posthumous) recipient of
The George Arents Pioneer Medal, the highest alumni honor the University bestows. The Alumni
Association Board of Directors annually selects (former) students based on excellence in their field
of endeavor (HAILEY, 2008). The award exists since 1939, which means, it took 69 years for this
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recognition to be ensued. On October 2008, the theatre department at West Virginia University at
Parkersburg organized a production of Hugh Wheeler’s adaptation of We Have Always Lived in the
Castle, as part of their continual celebration of Ms. Jackson’s works (CLOVIS, 2008). Other
adaptations included in the 2008-2009 Theater Fest were The Haunting of Hill House, The Lottery
and The Summer people.
In 2009, a stage adaptation of The Haunting of Hill House was produced by The Old
Schoolhouse Players from Pittsburgh and was performed at Bud Allison Memorial Auditorium
(OSTER, 2009). The same year, a jazz dance choreography inspired by The Lottery was produced
by Joanna Brooks at Stone Mountain Academy of Performing Arts in Georgia (BROOKS, 2009).
On September 30, a community called Shirley Jackson9 was created in Brazil in the social network
Orkut.
In 2010, We Have Always Lived in the Castle was translated into European Portuguese,
meant for use in all Portuguese territories, for the first time since its release in 1962
(LAGARTINHO, 2010). Portuguese-speaking communities had to wait for forty-eight years to have
access to Ms. Jackson’s sixth novel.
She is still, directly or indirectly, in the news. In the case of Ms. Ashtiani, the Iranian
woman convicted of adultery that, as of August 2010, was to be stoned, New York Times reporter
Robert Worth mentions that “in the West, death by stoning is so remote from experience that it is
best known through Monty Python skits and lurid fiction like Shirley Jackson’s short story The
Lottery” (2010, p.1).
Ms. Jackson’s novels and stories feature in Harvard University’s Spring 2010 Reading List
(SINGLETON, 2010). As of 2010, in the site YouTube, there are several reviews 6, adaptations7 and
parodies8.
These pieces of evidence certainly do not represent a total picture of the activities that
currently involve Ms. Jackson, however a serious epistemological issue is raised concerning what it
means to be forgotten, unrecognized or underappreciated in the literary world. Hopefully, these data
will aid in the understanding of this rather complex phenomenon.
4. CONCLUSION
Considering all that, to state that Shirley Jackson is a forgotten writer is at least a potentially
problematic issue; as it is possible to note in Dirda (1988) who, while reviewing Private Demons,
Ms. Jackson’s only biography, to the Washington Post, rightfully asked two sensible questions: “Is
there any story in modern American fiction more widely known than The Lottery? And is there any
author, so nearly a major figure, who is so underappreciated and half-forgotten as Shirley Jackson?”
(p.1).
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Another critic, S. T. Joshi (2001), the author of The Modern Weird Tale, claimed that
“Shirley Jackson and Ramsey Campbell are the two leading writers of weird fiction since
Lovecraft” (p.13). In making this assertion, Joshi faces two distinct potentially problematic issues.
The first is that one could claim he is bypassing other important writers who also have a claim – or
aspire – to that title, namely Stephen King, Peter Straub, Clive Barker and Anne Rice. The second
and perhaps the most interesting problem is the assertion that Ms. Jackson is a writer of weird
fiction all. Joshi acknowledges that, of her six full-length complete fictional novels, only one, The
Haunting of Hill House is “avowedly supernatural (…) while others are weird only slightly or not at
all” (2001, p.13). Fortunately Joshi also acknowledges that something quite similar may be said of
her short fiction; according to him, “only perhaps 15 or 20 of her 100-odd short stories can be said
to belong to the weird tale or to the mystery story or to science fiction”.
Trinity College Dublin professor Bernice Murphy (2004) says Ms. Jackson was a consistent
bestseller; in fact, she was one of the most commercially successful female writers of the period.
Her short fiction and essays were much sought after by many of the most famous magazines and
journals of the day.
To base an argument on the claim that Ms. Jackson has not been widely read or recognized
due to her belonging to a specific reading niche, such as that of horror fans or science-fiction fans or
even domestic-prone housewives is really to ignore the far-ranging scope of her literary creation.
All the data presented strongly suggests that an entrance to the coveted literary canon implies in
much more than satisfying reading audiences and specialized critics, and that the meandering ways
towards that path may be so crooked as to lead one to really question if admittance is really positive
or even desirable.
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A CONSTRUÇÃO DO ESPAÇO NO ROMANCE SIMBOLISTA NO
HOSPÍCIO DE ROCHA POMBO
Louise Bastos Corrêa (PGUFRJ/CAPES)
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo estudar a construção do espaço do hospício no romance simbolista No
Hospício, de Rocha Pombo. Neste texto, a instituição é um espaço místico que possui uma atmosfera
diferente da que podemos encontrar fora dele. A partir disso e de alguns aspectos da escola Simbolista, a
qual o autor é filiado, tem-se a presença do Sagrado. Assim, será tratada aqui uma questão primordial: como
um espaço de reclusão pode ser também um lugar de meditação? Para um mesmo espaço, outras
perspectivas.
Palavras-chave: Simbolismo; Rocha Pombo; No Hospício; Espaço.
ABSTRACT
This present article aims to study how the hospice environment is built in the Symbolist novel written by
Rocha Pombo. In this text the institution is a mystical space that has a different atmosphere from what we
can find elsewhere. From this and some aspects of the symbolist school, which the author is affiliated, there
is the presence of the sacred. Therefore, it will be treated here a primary question: how a confinement space
may also work as a meditation place? For the same space, other perspectives.
Keywords: Symbolism; Rocha Pombo; No Hospício; Space.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo tem como objetivo estudar a construção do espaço do hospício no romance
simbolista de Rocha Pombo. A narrativa de No Hospício se desenrola a partir da curiosidade do
personagem/ narrador, que não tem nome, que se interessa por Fileto que se encontra internado em
um hospício aparentemente administrado pela Igreja Católica, cuja representante é uma religiosa.
Podemos dizer que a situação contribui para ratificar o pensamento do autor sobre o caráter sagrado
do espaço ficcional do hospício.
José Francisco da Rocha Pombo nasceu em Morretes, no Paraná, a quatro de dezembro de
1857. Em 16 de março de 1933, foi eleito membro da Academia Brasileira de Letras, na vaga de
Alberto de Faria. Não chegou a tomar posse. Faleceu no Rio de Janeiro em 26 de julho de 1933. O
autor escreveu a narrativa romanceada em 1900 e foi editada pela primeira vez em 1905, pela
editora Garnier do Rio de Janeiro. Rocha Pombo é considerado um dos grandes nomes da escola
Simbolista no Brasil.
2. ANÁLISE DA OBRA
Não é preciso fazer uma análise muito detalhada para perceber que, diferentemente do
personagem principal, Fileto, o narrador não foi obrigado a se internar no hospício, o fez por opção.
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O mesmo vai à instituição na tentativa de buscar algo que não está conseguindo encontrar em seu
cotidiano. Ao passo que se encanta por aquele jovem sonhador ali enclausurado pelo pai.
Neste texto, a instituição não tem localização geográfica, é um espaço místico que possui
uma atmosfera diferente da que podemos encontrar fora dele, muitas vezes nos dando a sensação de
também ser atemporal. Rocha Pombo utiliza sua obra como um recurso para dar voz à sua
incansável imaginação e ao seu misticismo, e o faz por meio de embates metafísicos travados entre
dois de seus personagens, que se dedicam a discutir temas fundamentais, como a origem da Vida, a
natureza da Alma e da Matéria e o destino do Homem; Temas esses tão caros ao Simbolismo.
Como já foi dito anteriormente, Fileto não foi internado por ser louco, antes de ser colocado
dentro do hospício era o que se pode chamar um inofensivo flâneur. Ele foi internado porque a
família tinha vergonha dos modos dele, como é explicado ao personagem narrador por sóror Teresa.
A internação é a ação do mundo sobre Fileto, visto pela lente do decadentismo, em que não
há mais lugar para o artista, este flâneur que não se adéqua à sociedade burguesa. Fileto encarna o
artista, intelectual, que se opõe ao cotidiano da sociedade. Para ele cabe a afirmação que o narrador
faz de que “a arte dos espíritos ainda não foi criada e que apenas na música ele entrevê ou pressente
alguma coisa dessa arte futura que há de ser tão espiritual como os espíritos” (POMBO, 1970, p.38).
Exílio compartilhado e vivido pelo narrador que também como um intelectual não se encaixava na
sociedade como ele relata neste outro trecho:
Eu vivia de arrepio com o mundo, o mundo de birra comigo. Eu passava por
tolo, ignorante e pretensioso. Era intolerável quando fazia crítica dos maus
poetas ou dos galinhas da política;era ridículo quando achava, na sociedade,
alguma coisa ruim, quando via injustiças e horrores, onde só havia simples
fatalidades de acaso... Se me punha a estudar – não passava de um malandro;
era um pobre ambicioso, se trabalhava. Nunca estive em paz com as línguas,
meu Deus!Nunca me conciliei com o mundo! (POMBO, 1970, p.30)
O que existe de diferença entre os dois é que somente quando Fileto é levado ao hospício
como louco sem o ser, quebra-se o seu estado de espírito e começa a se abrir para ele o mundo visto
pela estética Decadentista, ele começa a sofrer a influência dos ideais decadentes como o
isolamento:
- Cerca de um mês depois que aqui chegou – ia me contando soror Teresaele passou doze dias sem abrir, sequer, a veneziana do seu cubículo: lia ou
escrevia, sem cessar, dia e noite. (POMBO, 1970, p.40)
Colocando-se este último trecho e o anterior juntos se pode ver que o narrador, ao contrário
de Fileto, queria ir à busca desta sociedade que o rejeita, ele não se “conciliava com o mundo”, ele
não era aceito pela sociedade, o mundo não o aceitava plenamente. E ele não por vontade própria ou
imanente como a de Fileto, era excluído do mundo da cidade. E é aí que se pode encontrar um
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motivo a justificar sua ida para o hospício. Este exílio à que os dois se submetem acaba criando a
condição de isolamento artístico e que no caso da narrativa de No Hospício faz da arte um meio
estético sagrado já que para o narrador e o Fileto a arte não toca senão os espíritos.
Os dois desempenham o papel de exemplo verdadeiro dos poetas decadentes e seus ideais.
Os decadentes eram poetas que não se adequavam ao mundo e à época em que viviam, então
procuraram escapar do mundo à sua volta exilando-se através da arte, cultivando a artificialidade e
o individualismo. E é neste exílio, ao qual é levado Fileto, e ao qual o narrador se entrega que se
cria o ambiente propício para viver os conflitos expostos por suas convicções, apesar de os dois
viverem situações que os diferem entre si quando os colocamos cada qual na sua posição dentro da
narrativa.
Olhando-se para o personagem principal, ele está isolado do mundo no hospício. No seu
quarto câmara prevalece o mundo intelectual usado como artifício para que possa estar longe,
apenas em contato com a sua arte, com seu eu interior, num ambiente entre quatro paredes. Fileto
do ponto de vista social é um exilado pela sua relação com a sociedade representada na narrativa
pela família. “Se me punha a estudar – não passava de um malandro; era um pobre ambicioso, se
trabalhava”, como Fileto mesmo coloca. Já o narrador não sentia poder fazer parte da sociedade.
O desejo do narrador de estar junto “àquela criatura extraordinária”, indo para o hospício, é
uma maneira de alcançar, numa busca intelectual-espiritual, o meio para demonstrar que longe da
sociedade da qual ele não sente fazer parte poderia alcançar uma razão superior. Ele se internou
pelo interesse em Fileto, a intenção dele era investigar o espírito dele e através deste revelar o seu
próprio ou receber o que “aquela criatura iria lhe firmar” colocando o outro na posição superior.
Como se pode ver o narrador não deixa de estar ligado à cidade ou de estar ligado à
realidade. Ele acaba exercendo este papel de intermediário entre Fileto e o mundo real de onde ele
narrador vem e também em certo momento o espiritual do Jesus místico dos novos ideais estéticofilosóficos que na época vinham da Europa e que o narrador apresenta para Fileto.
Através destes contatos logo podemos ver que ele tem a consciência de que sua passagem
pelo hospício é artificial, falsa, e que lhe interessa é sua intenção de estar lá sem ser incomodado
como ele fala:
Mas eu desejava ter, por ultimo, esta felicidade de um hospício... só este
silêncio... apenas quebrados por ululos como aqueles...Aqui, pode-se VIVER
à vontade... (POMBO, 197, p.150-151)
Afinal o narrador não foi internado contra a própria vontade, ele está conscientemente
internado, ele vai ao hospício para buscar para algo, que a vida externa não oferece. O narrador personagem vai ao hospício numa busca intelecto espiritual, está à procura de um espírito superior
para si. E ele, pretende conseguir através de Fileto. Mas ao longo da narrativa ele se dá conta que
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não está ao nível de abstração ou de recusa à sociedade de Fileto. E concluímos que o narrador vê o
hospício com os olhos de quem vê de ‘ fora’ e que é o paciente quem realmente é revestido interna e
externamente da estética decadente. A caracterização mais forte e original da estética Decadente em
No hospício se configura em Fileto:
Uma das manifestações mais características que nele persistiam, porém era
o ... horror à multidão, ao tumulto... Quando lembrava de que uma grande
cidade não pode existir sem muita gente ... preferia continuar no hospício...
As ruínas deveriam consolar muito seu coração ... porque- dizia- lhe dariam
um prazer heróico, muito semelhante ao prazer da vingança... nada mais belo
do que sentir junto às ruínas a cessação da força inconsciente, e o triunfo
imortal do espírito que por ali ficou dominado - eterno- onde a turba
desvairou por instantes...(POMBO, 1970, p.155)
Fileto enxerga o sábio, o poeta e o artista como os heróis do mundo moderno, como
Baudelaire vê no dandy o herói. E o que é um dandy moderno senão um poeta ou um artista aos
olhos de decadentes e simbolistas. A vida ordinária que Fileto e o narrador desprezam é o
instrumento, que torna possível ambos viverem sua relação intelectual.
Além de outros temas ligados à estética decadente que não são discutidos profundamente,
mas pinceladas sobre a narrativa nas vozes diretas de Fileto e do narrador. Fileto escreve contra o
Naturalismo:
A tentativa dos naturistas em França não é mais que um apercebimento dos
superiores atuais que não encontram ainda a plástica da espiritualidade atual.
Isto já se vê que reduz muito a importância do movimento. (POMBO, 1970,
p.170).
Também é possível notar uma critica velada à sociedade em que vive o autor quando dá voz,
nesse momento, à personagem sóror Teresa, no que se refere ao pai de Fileto: “Não há para ele nada
impossíveis na terra, pois que o dinheiro vence tudo ele tudo consegue.” (POMBO, 1970, p. 287).
No hospício, além de incluir diversas características do Decadentismo, tem mais que apenas
o fator da influência literária pura e simples dos franceses. Guarda em si, como originalidade de
leitura, a presença do mistério e da espiritualidade cristã.
Ao longo da narrativa podemos ver que o narrador-personagem se torna o ser intermediário
entre estas doutrinas e Fileto. Ou melhor, através da concepção mística de Jesus pregada por essas
doutrinas, ele consegue seduzir Fileto gradativamente durante a história. Isto porque o personagem narrador tinha de chamar a atenção do suposto paciente sobre si, e a maneira foi através de tiras de
papel que eram deixadas no corredor escritas para que chegassem à Fileto. E após inúmeras tiras ele
chega a uma, a qual ele pede que sóror Teresa leve pessoalmente para Fileto.
A partir do interesse do jovem por Jesus como um símbolo místico, inicia-se a sua
transformação ou transcendência a qual não se completa. A epifania que desencadeia este processo
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mais fortemente é quando o narrador e protagonista perseguem a aparição pelo corredor até a capela
onde “Por diversas noites mais fomos até a capela e tivemos ocasião de ver distintivamente a
estupenda figura.” (POMBO, 1970, p.179). E o narrador diz mais adiante: “Apesar de não ter
satisfeito a sua crescente curiosidade Fileto começou a viver como um homem que sente renovarse-lhe a existência.” (POMBO, 1970, p.179).
Fileto que chegou a escrever Fragmentos e Psicologia das visões tratando muito mais de
estética, filosofia e, uma investigação pseudo-científica da loucura e Criaturas um ‘ensaio de arte’
acaba por escrever este A era nova um estudo sobre o evangelho. E nesta passagem fica mais claro
que acabou por ter a revelação para si do Deus cristão: “Bendito seja o Senhor, que me arrancou do
meu túmulo! Eu estava cego no meio da grande luz, e a sua mão me amparou e me abriu os olhos.”.
(POMBO, 1970, p.291). Porém quando se pensou em vida externa ao hospício, que seria a
liberdade, o personagem não conseguira realizar esta passagem ou mudança, pois o mesmo já se
acostumara àquela situação de clausura. Aquela recusa de viver em um mundo incapaz de
compreendê-lo era evidente no personagem, que passava a ver a sua internação como uma
resistência.
Após a separação do narrador – quando este decide voltar à realidade lá fora – Fileto
demonstra, depois do momento em que se separaram, voltar a ser o mesmo homem. Porém, o
narrador confessa seu medo de partir e deixá-lo no hospício.
Mesmo assim, narrador e Fileto seguem suas vidas, o que acaba sendo uma forma de
demonstrar que o individualismo é imutável para um decadente. Nenhum dos dois sofre uma
mudança ao ponto de negar sua escolha anterior, ou melhor, seus propósitos. Pois o jovem
sonhador, quando foi levado ao hospício, não ofereceu resistência e, resignado, demonstrou que lá
era seu lugar final. E o narrador sai do hospício por que, de certo modo, ele havia investigado o
espírito de Fileto, que era sua intenção.
Também podemos notar que o narrador era e foi, o último fio de amarra de Fileto. O
narrador ainda fazia o protagonista ver um mundo exterior ou entrever a realidade. Desfeita esta
última amarra, o jovem se viu pronto para entregar-se na esperança de um novo lugar para si,
encontrando no seu ato o último refúgio para seu espírito.
A principal característica deste romance é a atmosfera espiritual, plena de obscuras ameaças.
Apesar da perfeita limpidez e serenidade do estilo, o ambiente é como sacudido por telúricas
convulsões, resolvendo-se em visões apocalípticas, tudo iluminado surdamente, como num frio
sonho. Outro aspecto dessa modernidade diz respeito à presença do monólogo interior: o romance
não passa de um extenso monólogo interior, em que o narrador reconstitui a traumatizante
experiência em sanatório de doentes mentais.
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Quanto ao aspecto ensaístico, nota-se que No hospício contém uma teoria da arte, sobretudo
simbolista, que registra as inquietações doutrinárias então em pauta, e documenta ainda uma vez a
fisionomia moderna da obra: esta exibe fundamentos teóricos que lhe dão razão de ser; comporta a
doutrina de que se nutre e que lhe justifica a ficção psicológica e a estrutura. Tudo se passa como se
o ficcionista escrevesse a obra e simultaneamente a enriquecesse com os princípios estéticos em que
se baseou.
Conduzido por um espiritualismo cristão e ocultista que na base se confunde com o
socialismo utópico, Fileto parece à encarnação do artista simbolista, o seu arquétipo vivo. Louco
lúcido, ou falso louco, exilado na realidade contingente, voltado para um universo de quimeras e
visões, as suas idéias localizam-se na fronteira entre a intuição divinatória e o disparate caótico. A
loucura, meio verídica, meio postiça, é uma representação da evidência simbolista.
Fileto é um símbolo imbuído da “loucura” consciente de viver em meio a símbolos, uma vez
que o mundo material lhe parece destituído da evidência e da realidade que somente o símbolo
possuiria. O internamento no hospício é uma imposição mais profunda do que faz crer a maldade do
pai; é também metáfora: para sonhar com a redenção do homem num futuro melhor, não tinha como
fugir à condição de visionário, impunha-se o afastamento do convívio humano.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Lida hoje, a narrativa nos afigura um mundo exótico, ultrapassado para sempre, mesmo no
referente à loucura. Mas alguns de seus aspectos, sobretudo aqueles que a fazem moderna, são
suficientes para justificar que tornemos a lhe conferir a atenção merecida. E, ainda para a história do
nosso Simbolismo, notadamente no capitulo de ficção, No hospício representa obra imprescindível e
única.
Nesse livro, contudo, observam-se notas precursoras do romance metafísico. Nele
encontramos elevado senso místico, aventuras curiosíssimas do pensamento, um escorço de poema
épico-filosófico, além de páginas que valem por poemas em prosa, admiráveis de profundeza
iluminada, e tipicamente simbolistas, tanto no que concerne ao vocabulário, como à temática e à
atmosfera espiritual.
O poeta simbolista cultivava os sonhos como o único nível vital da experiência, vivendo
deste modo na fronteira do visível e do invisível. Naturalmente, não é capaz de manter o delicado
equilíbrio entre o racional e o irracional e acaba entrando num estado de completa loucura. E é o
que podemos dizer que acontece com a obra, um reflexo de todo esse ideal vigente, no qual o autor
mescla elementos reais e oníricos, dificultando assim, uma precisão na interpretação do romance.
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REFERÊNCIAS
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MOISES, Massaud. História da Literatura Brasileira. Volume II – Realismo e
São Paulo: Cultrix, 2001.
Simbolismo.
MURICY, Andrade. O Símbolo: À sombra das araucárias. Conselho Federal de Cultura e
Departamento de Assuntos Culturais, 1976.
_______________ Panorama do movimento simbolista brasileiro. Volume I. 3. ed. São Paulo:
Perspectiva, 1987.
POMBO, Rocha. No Hospício. 2. ed. Instituto Nacional do Livro/MEC, 1970.
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RESGATE DE MITOS E LENDAS NAS OBRAS COMPLETAS DE HÉLIO
SEREJO
Mara Regina Pacheco (PG-UFGD/CAPES)
Leoné Astride Barzotto (UFGD)
RESUMO
As Obras Completas (2008) de Hélio Serejo permitem estudos sob diferentes vieses: o histórico, o
político, o econômico, o cultural, etc. Este último, é o foco deste trabalho que pretende se ater ao
resgate do lado mítico, de lendas, do folclore e das crendices presentes na narrativa deste escritor
sul-mato-grossense. Esse resgate proporcionaria a legitimação do lado folclórico dessa região,
fortalecendo a comunidade nas suas crendices e mitos, reforçando a concretização particular de um
repertório próprio, o registro do que é marcadamente a constituição da nossa cultura folclórica. O
escritor por meio das lendas, mitos e crenças, registra pela escrita, a “verdade” oral que ouviu
durante a sua vida nessa região, marcando um lócus de enunciação particular, pertencente ao povo
da região da fronteira Brasil/Paraguai.
Palavras-chave: Mitos; lendas; Obras Completas; Hélio Serejo.
ABSTRACT
The Obras Completas (2008) by Hélio Serejo allow studies under different biases: the historical,
political, economic, cultural, etc. The latter is the focus of this work that intends to stick to the
rescue of the mythic, legends, folklore and beliefs of this sul-mato-grossense writer's narrative. This
rescue would provide the folkloric side of the legitimacy of the region, strengthening the
community in their beliefs and myths, particularly improving the achievement of a specific
repertoire, the register of what is markedly the constitution of our folk culture. The writer through
the legends / myths / beliefs register by writing, the oral "truth" that he heard during his life in this
region, marking a particular locus of enunciation, from the people of the bordering region,
Brazil/Paraguay.
Keywords: Myths; legends; Obras Completas; Hélio Serejo.
1. INTRODUÇÃO
Uma das principais características da literatura é que vida e literariedade
estão enleadas. Mas para que um fenômeno efetive-se como literatura é
necessário o espírito soprar sob a pena ou fazer vibrar a voz. (FERNANDES,
2002)
Para aqueles que foram criados no interior, nos rincões perdidos desse imenso país, com
certeza tem guardado na sua memória uma história, um causo, contado por um avô, um tio mais
velho, ou uma figura lendária que tenham conhecido. Momentos de prosa transcorridos à beira do
fogo, ou na rede debaixo de uma árvore frondosa ou nas rodas da partilha do mate chimarrão ou
tereré. Dessas tantas histórias, causos, mitos, crendices e lendas foram soprados sob a pena de Hélio
Serejo, que tanto viveu, viu, ouviu, e fez questão de registrar na palavra escrita, a preciosidade que é
a literatura oral popular.
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A tradição oral, com seus mitos e lendas foi arrebatada pela cultura letrada e transformada
em linguagem escrita. A habilidade de dar outra dimensão aos fatos ouvidos, aos acontecimentos
quotidianos, tornando-os instigantes, reelaborando-os em letra impressa é a função do escritor.
Hélio Serejo é este escritor. Um observador incansável das prosas contadas à beira do fogo, nas
rodas de tereré, ambiente profícuo à manifestação da literatura popular e oral. Adentremos a esse
universo possibilitado pela edição das Obras Completas (SEREJO, 2008).
As Obras Completas (SEREJO, 2008) de Hélio Serejo permitem estudos sob diferentes
vieses (histórico, político, econômico), porém iremos nos ater nesse artigo ao lado cultural, mais
precisamente o lado folclórico, no resgate dos mitos, lendas, e crendices presentes na sua narrativa.
A fim de compreender a natureza do mito, há a necessidade de examinar a concepção das
suas formas mais típicas, mais clássicas, bem como as sociedades na qual o mito faz parte da vida
cultural. Se perguntarmos a uma tribo indígena se o mito é verdade, teremos como resposta uma
afirmativa. Isso se deve ao fato de que o homem simples não separa o mundo à sua volta de si
mesmo, já que crê que o que o circunda é uma extensão de si próprio, por conta de sua cosmogonia.
Essa “ainda-inseparabilidade” se nos afigura não tanto fruto do sentido
instintivo de unidade com o mundo natural e da concepção espontânea da
utilidade na própria natureza quanto, precisamente, a incapacidade de
distinguir qualitativamente entre a natureza e o homem (MIELIETINSKI,
1987, p. 191).
Verifica-se que não haveria a personificação universal dos mitos, bem como das crenças
primitivas se não houvesse uma humanização ingênua do meio ambiente natural. Essa não divisão
entre sujeito e objeto faz parte da natureza do pensamento primitivo, no qual o desenvolvimento dos
conceitos abstratos é deficitário, o pensamento lógico é pouco diferente dos elementos emocionais,
afetivos, motores. Esses aspectos são facilitadores e motivadores de ritos, crenças, e lendas. No
entanto, os mitos não podem ser reduzidos à organização do mundo do homem primitivo, com
finalidade organizadora, harmonizadora a fim de reconstituir a desordem e o caos. “A
transformação do caos em cosmo constitui o sentido fundamental da mitologia (...)”
(MIELIETINSKI, 1987, p. 196). O mito é explicativo e sancionador de uma ordem social e
cósmica, é harmonizador das relações de grupos, e é também determinado por interesses sociais,
seja ele, de tribos, de povos, de cidades, de estados.
Dentre as várias definições do mito, e das diversas concepções (explicativa, psicológica,
ideológica), “o mito se define como representações fantásticas do mundo, como sistema de imagens
fantásticas de deuses e espíritos que regem o mundo, ou como narração, como relatos dos feitos
dos deuses e heróis” (MIELIETINSKI, 1987, p. 199).
Na outra ponta contrária do mito concebido como verdade, está a concepção ocidental de
que o mito é imaginação, criação que surge com o intuito de dar respostas a fatos e fenômenos
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naturais de cunho sobrenatural. Ou seja, o mito nesse parecer, é uma explicação coerente para um
fato com feições sobrenaturais. “No mito residiria o ‘falso conhecimento’, funcionando como uma
saída brilhante da dúvida, quando o homem depara com um evento inusitado” (FERNANDES,
2007, p. 201). Explicar e criar respostas dá ao mito característica de rito, de objeto, de crença. Faz
com que ganhe ares de respeito e dele surjam simpatias, preces, orações que se perpetuam, já que a
função do ritual é a preservação do que foi vivido.
Na característica de natureza humanizada do mito percebe-se que este tem o intuito de
preservar a natureza das “ações civilizatórias”. Isso explica eles habitarem as matas, os rios, os
corixos, enfim, espaços da natureza; e no seu oposto o homem civilizado morar nas casas, nos
ranchos, nas fazendas, nos vilarejos.
Essa aproximação entre Natureza e Cultura no mito faz perceber que ele não quer preservar
a cultura, mas defender a natureza do homem que a destrói. Nós estudiosos fazemos o trabalho
inverso: intentamos resgatar a cultura de um povo através dos seus mitos, das suas crenças. Ao
entender a cultura como um feixe composto de informações, transmissões, memórias,
esquecimentos, “somente aquilo que foi traduzido num sistema de signos pode vir a ser patrimônio
da memória” (FERREIRA, 2003, p. 75). Na narrativa, no grande texto, podemos resgatar a memória
de um grupo, e nele, podemos fazer o resgate dos mitos, que é também um tipo de consciência, uma
forma de memória coletiva. Atentamos nas Obras Completas (2008) de Serejo, uma preocupação
no registro das histórias orais, uma ocupação em registrar na palavra escrita, um repertório colhido
na vivência de atento voyer que foi esse escritor sul-mato-grossense.
2. MITOS E LENDAS, A ORALIDADE REGISTRADA NA ESCRITA
Otávio Gonçalves Gomes, escritor de Onde cantam as seriemas (1988), obra que também é
dica de leitura e deve ser fonte de pesquisa, escreveu sobre Serejo: “Hélio Serejo não é só poesia
caipira, e pintura de paisagem sertaneja não. É contista primoroso. Mas até nesse gênero utiliza os
motivos caboclos, o colorido, a música e a beleza agreste dos nossos sertões” (SEREJO, 2008), na
orelha de “O homem mau de Nioaque”. O escritor tem um modo pessoal de contar histórias ao
modo dos ervateiros, ao lado do fogo, na tapera do sertão, seja no calor, na chuva fina, mas sempre
tomando chimarrão, conversando com o pai, os peões, os fugitivos, sem pressa, desfiando detalhes,
dramatizando passagens, envolvendo ouvintes, deixando-se conduzir pelo contar da história.
Histórias de gente, de animais, de coisas.
Hélio Serejo escrevia com amor ao verdadeiro, tratou de temas como o nativismo, o amor à
pátria, à terra, às suas coisas. Foi incansável cantor do seu estado, o Mato Grosso e depois Mato
Grosso do Sul. Temas como a paz entre os homens, a humanidade, a sinceridade, a justiça, a moral,
a religião, sempre estavam no seu repertório. Mesmo se definindo como um católico convicto e
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fervoroso, que tinha Deus como verdade inquestionável, aceita que os homens tenham outras
crenças. Quando escreve Lobisomem (SEREJO, 2008, V. I) explica: “não critiquei e não condenei,
portanto, as variações encontradas em outros povos, que compreensíveis e até lógicas, devemos
sinceramente agasalhar e respeitar” (SEREJO, 2008, V. I, p. 143). E por outro lado, registra respeito
às crendices populares como em Prosa Xucra (SEREJO, 2008, V. I): “Acenderam, então, por
ordem do quarteirão, dois fogos na terra pisoteada. Um de cada lado da tarimba. Assim o defunto
teria luz. Que velar um ente humano, nas escuras, nessa hora extrema, é coisa que leva o cristão
para as profundezas do inferno” (SEREJO, 2008, V. I, p. 288).
Já na obra Rodeio da saudade (SEREJO, 2008, V. III), ao descrever o pássaro joão-de-barro,
afirma: “Diz o caboclo, na sua crença rude e confortadora, que o teu grito traz sempre felicidade. Se
tu rondas o terreiro, a alegria virá, por certo, bater na nossa porta. Quantos não deixaram, ao relento,
a prole numerosa!” (SEREJO, 2008, V. III, p. 289). Quando retrata o juá, uma fruta que segundo
ele, resiste ao fogo do sol de das queimadas, expõe:
O carreteiro solitário e amoroso, com ele maduro, tira a prova do seu amor.
Atira três no braseiro, porém um de cada vez, se são os estouros, a china de
seus sonhos lhe é fiel, se falha um, está ele debochando e possui um outro
amor; falhando todos, é simplesmente tábua de salvação, um cara sem sorte,
que será encostado num canto, tão logo surja o príncipe encantando, aquele
que teria de vir um dia, porque o papel de tinta acusara da simpatia da noite
junina (SEREJO, 2008, V. III, p. 291).
Na obra Zé Fornalha (SEREJO, 2008, V. IV), ao informar que é tido como tradição ser da
árvore cabriúva a cruz da qual deve ser fincada sobre uma cova, indaga ao leitor: “Por que cruz de
cabriúva? Para resistir à ação destruidora de tempo? Não! A cabriúva afugenta maus espíritos.
Cemitério com cruz de cabriúva nunca é assombrado” (SEREJO, 2008, V. IV, p. 137).
As Obras Completas (SEREJO, 2008) estão repletas de mitos e lendas da região da fronteira
Brasil/Paraguai. De acordo com Hélio Serejo, lenda é uma “narrativa na qual a história está
deturpada pela tradição [...] Vem da escrita milenar esta afirmativa: nas lendas há sempre um fundo
de verdade” (SEREJO, 2008, V. 8, p. 73). O escritor por meio das lendas registra pela escrita, a
“verdade” oral que ouviu durante a sua vida nessa região, marcando um lócus de enunciação
particular.
Contas do meu rosário (SEREJO, 2008, V. IV), no subtítulo “Mitos e lendas de Mato
Grosso”, Hélio registra vários mitos e lendas como: “Pé-de-garrafa”: um monstro amedrontador de
uma perna só, cujo casco é endurecido no formato parecido a um fundo de garrafa, que vive nas
matas assombrando o homem que trabalha com a poaia. A crença é que o monstro confunde o
poaieiro imitando a voz humana fazendo com que esse se perca na mata. “Cabeça-de-boi”: era um
monstro que surgia na região sulina mato-grossense, anterior à Guerra do Paraguai, que
transformava o seu tamanho numa fração de segundos. Em tamanho pequeno praticava diabruras
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como afugentar os bezerros e os porcos. No tamanho grande se unia ao demônio para praticar
perversidades. Porém, quando começou a Guerra do Paraguai, não se viu mais o cabeça-de-boi. Ele
não teria resistido aos tiros dos canhões. Quanto ao conhecido “Curupira Serejo pontua que existe
sobre este duas versões. A menos aceitável é de ser uma índia velha. Magra de pele enrugada e
olhos esbugalhados. A outra é um espírito das selvas, que recebe também o nome de caipora, um
habitante do mato que rouba crianças para alimentá-las com frutas doces. Em Cuiabá, no Mato
Grosso, o curupira é representado por anõezinhos nus de pele clara e olhos azuis que vivem na beira
dos rios e colinas floridas. De acordo com o clima da região podem ser às vezes bonitos, graciosos e
ágeis, ou feios, desengonçados e moles. Já o “Negrinho-d’água” é o guardador dos rios e peixes, e
por ter muito ciúme deles, ninguém pode colocar a mão ou destruir. Ele corta a linhas dos anzóis,
vira os barcos para defender o que esta sob seus cuidados. Aqui verificamos o lado do mito com
finalidade organizadora, como mencionamos no início dessa discussão. Ou seja, o mito como
harmonizador a fim de reconstituir a desordem e o caos na natureza.
A temática lenda aparece também no livro Lendas da erva-mate (SEREJO, 2008, V. V), que
apresenta quatro histórias: O sabiá incentivador; O jaburu; Lenda da erva-mate; A transformação de
Yari em pé de erva-mate. “Lenda da erva-mate” conta a história da bela Kaá Yari, a grande senhora
dos ervais e deusa dos ervateiros. Ela ajuda os trabalhos com a erva-mate ocorram com sucesso.
Para isso o ervateiro deve, na semana santa, ir a uma igreja e pedir a deusa em casamento, jurando
jamais se afastar dos ervais e da deusa. Para merecer o respeito da deusa deve lutar com arma
branca com feras enfurecidas e serpentes traiçoeiras, enfrentar a fúria do vento e do fogo, e ter que
carregar sobre os seus ombros um peso equivalente a três vezes o seu próprio peso. Se vencer a tudo
isso terá as núpcias com a protetora dos ervais. Ao lado da divina protetora o ervateiro tem sucesso
desde o corte, ao peso final da erva. Porém, se a Deusa é traída por outra mulher, a desgraça cairá
sobre o ervateiro fazendo-o cair em ruína e viver para o resto de seus dias atormentado pela
vingança de Kaá Yari. Já a lenda “A transformação de Yari em pé de erva-mate” conta que o
cacique pai de Yari, ao receber Jesus, São João e São Pedro no seu rancho e bem tratá-los, Jesus
indaga o que pode fazer por ele. O velho pede proteção, dia e noite, para a amada filha a fim de
protegê-la dos “mesquinhos e tentadores olhares” (SEREJO, 2008, V. V, p. 71). E Jesus atende o
pai dizendo que transformará a filha em símbolo de bondade que consolará os aflitos e enfermos. E
Jesus sentencia: “Tua filha será transformada numa encantadora árvore, verde de formas
arredondadas, que espargirá um perfume característico, nos dias de canícula ou nas noites
suavíssimas de luar” (SEREJO, 2008, V. V, p. 71). E transforma a bela, meiga e encantadora Yari
num pé de erva-mate. Interessante aqui ressaltar o aspecto religioso convivendo harmoniosamente
com o mito e a lenda.
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Na obra Lendas do Estado de MS (SEREJO, 2008, V. VIII), aparecem várias lendas. No
subtítulo “Lenda do cipó fronteiriço”, figura diversos tipos de cipó e suas especificidades. O cipóamarelo é próprio para sepultura isolada porque alegra o defunto. O cipó-amargo é veneno mata os
animais que o comem. O cipó-cabeludo é remédio para nefrite infecciosa e cura dor no peito. O
cipó-caboclo, ou cipó-capa-homem é afrodisíaco, faz mulher ficar rindo à toa. O cipó-chumbo é
purgante. Cipó-de-cobra cura picada de toda espécie de bicho rastejante. Cipó-cruz se plantado no
cemitério vela dos mortos, se for usado por mulher sardenta acaba com as sardas. Cipó-de-sapo se
preparado como armadilha atrai insetos e os mata ao colher seu néctar. Cipó-suma, ou cipó dos
porcalhões, se preparado como chá cura “porcarias de mulher à-toa” (SEREJO, 2008, V. VIII, p.
77), e sífilis. Cipó-tiririca ou soga-de-bugre serve de amarrio e laço rústico para toda a eternidade.
Cipó-vassoura ou timbopeba é matéria-prima para vassouras. Rancho varrido com ela é rancho de
caboclo feliz, afugenta formiga e bichos peçonhentos.
Na mesma obra, Serejo conta a “Lendas do tapês” (SEREJO, 2008, V. VIII, p. 79). Os tapês
são os caminhos que dividem uma ranchada ervateira. Eles são divididos em tapê-guassú (estrada
maior); tapê-hacienda (caminhos que cortam a estrada maior); tapê-pói (trilhos que partem dos tapêhacienda). Os tapês formam o labirinto da ranchada no qual os ervateiros vão deixando escorrer
pelo chão, o sangue da dor e das dificuldades do mundo bruto da erva. Conta a lenda, que para
abater a dor e o sofrimento, o ervateiro faz ecoar da garganta um grito, denominado “mbureio” que
ecoa pelos tapês “reproduzindo o eco cem mil vezes” (SEREJO, 2008, V. VIII, p. 80). O grito deve
retornar a quem o emitiu pela força do vento, afugentando o desalento e dando ao ervateiro novas
forças. Se o “mbureio” não tem retorno, resta ao ervateiro abandonar a ranchada. Desse modo, o
“mbureio” tanto pode ser esperança de dias melhores, como indício de uma desgraça, mesmo assim
o peão do erval não o deixa de emitir, porque está preso em suas gargantas “aquele desejo, quase
irrefreável, de gritar. Abrir a boca e soltar o grito emocionante. Ficar escutando o eco ir se
distanciando cada vez mais” (SEREJO, 2008, V. VIII, p. 81), porém há sempre o receio de que o
retorno não aconteça e a lenda se cumpra.
Outra lenda que merece destaque nessa obra é a lenda do “Redemunho”. Segundo Serejo,
redemunho da fronteira, a lenda antiga afirma, é coisa de endoidecer qualquer cristão, porque
sempre, quando ele aparece, vem tocado por Satanás, que está na outra banda, defendendo o que é
seu, contra os intrusos” (SEREJO, 2008, V. VIII, p. 91). O homem crédulo do sertão tem medo de
redemunho. No mês de março traz seca, miséria e desolação. No mês de agosto assusta, causa
pandemônio.
Ainda na obra citada no parágrafo acima, existem muitas outras lendas, que mereceriam ser
destacadas, cito aqui a “Mula-sem-cabeça”, que é conhecida nacionalmente, mas que Serejo traz sua
versão da lenda no MS. Segundo ele, a lenda sul-mato-grossense da mula-sem-cabeça tem a
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seguinte versão: uma mulher de belo corpo, cabelos longos e olhos negros se apaixona por um
padre e com ele se casa. Na primeira sexta feira após o casamento ela foi atacada ferozmente por
um cachorro preto e se transformou em mula-sem-cabeça. Desse modo, toda mulher que se casa
com padre corre o risco de se transformar num monstro. Mula-sem-cabeça é pandemônio, é dotada
de inteligência que ataca e mata pessoas que tentam solucionar o seu mistério. “Quando ela aparece
rente à fronteira, pressentindo a aproximação de ser humano, oculta-se na primeira sanga que
encontra, onde só é vista pelo vento furacão, que é seu companheiro de malfeitos” (SEREJO, 2008,
V. VIII, p. 117). Interessante aqui é perceber as nuances que diferenciam a lenda nacionalmente
conhecida, e a versão sul-mato-grossense, e Hélio Serejo permite a exploração desse aspecto.
Esses são apenas alguns exemplos da riqueza dos mitos e lendas da região do Mato Grosso
do Sul que Hélio Serejo deixou registrados nas suas obras. Fica aqui o convite para que mais
estudiosos se debrucem sobre essa infinidade de temas lendários registrados nessa obra, em
particular.
Considero também de salutar importância dar um destaque especial ao tema folclore, que é
apresentado por Serejo nas peculiaridades específicas da região. Para exibir um pouco do folclore
regional, a obra Caraí, apresenta “O lado folclórico” no qual Serejo pontua “apelidos de peão do
erval, campeiro, pescador, carreteiro, roceiro, chofer, amansador de burros, tropeiro, mascate e
caçador que viveram nos tempos de ouro da erva, na região fronteiriça do Estado de Mato Grosso
do Sul” (SEREJO, 2008, V. VI, p. 107). Aparecem diversos apelidos, alguns deles merecem
destaque por seu quesito irônico como por exemplo: “Orangotango”: homem que trabalhou na
ranchada Ajuricabamirim, propriedade do pai de Serejo, que era um monstro de feiúra e que tinha o
sonho de ter para si uma companheira. Acabou por encontrar a mulher que tanto sonhava. Uma
mulher desengonçada, corcunda, capenga. Porém, o homem se zangou quando passaram a chamá-la
de bruxa. “A Chanoca era mesmo um monstrengo (reconhecia isso) mas, sendo sua companheira,
precisava defendê-la... e por ela brigava e matava, se preciso fosse, porque el bienquerer és obra
Del Seño. (SEREJO, 2008, V. VI, p. 108). Outro exemplo é “Touro Sentado”: um paraguaio que
trabalhava na ranchada Panambi-Verá de Francisco Rojas. O tamanho físico avantajado de 154
quilos não impedia que fosse um “atacador de grande produção. Trabalhava sentado num toco de
peroba. O peso não lhe dava condição de executar o ataqueio de pé” (SEREJO, 2008, V. VI, p.
108). Também outro interessante apelido é “Junta Cisco”: carreteiro da Mate Laranjeira que tinha
um pé e o joelho paralítico. Ao caminhar ia arrastando o que encontrava pela frente causando muito
riso (SEREJO, 2008, V. VI, p. 111). Esses são apenas alguns dos exemplos figurados na obra
relativo a apelidos.
Hélio Serejo apresenta ainda como exemplo de folclore um morcego: o Andirá-Açu. De
aspecto horripilante apavora qualquer cristão com seu vôo rasante. Relata que nos ervais, esse
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mamífero noturno é um pesadelo. “Peão de erval supersticioso, não fica em ranchada onde aparece
o andirá-açu” (SEREJO, 2008, V. VI, p. 115). Há a crença de que o morcego traz malefícios como
envenenar o sangue de mulher grávida fazendo o filho nascer aleijado, peludo ou com dois sexos.
“Para que a desgraça não acontecesse, poucos dias antes do parto, a cunha deveria tomar um chá
feito com sua própria urina, que limparia o sangue fazendo com que a criança nascesse perfeita e
bonita” (SEREJO, 2008, V. VI, p. 116). Outra figura interessante é Cunhã Tarová, do folclore
guarani. Uma louca e endemoninhada mulher dos ervais paraguaios e brasileiros, que voava “quase
rente ao solo, milhares e milhares de quilômetros por minuto” (SEREJO, 2008, V. VI, p. 125).
Guardava as riquezas das fronteiras das “pátrias irmãs”. A figura de Cunhã Tarová administra as
chuvas e refreia as enchentes, “ensina o caminho certo ao homem perdido, que abranda a
tempestade, que cura a peste, que alimenta o faminto com frutas do mato” (SEREJO, 2008, V. VI,
p. 125).
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todos esses exemplos pelos quais passamos no decorrer deste trabalho,
percebemos uma humanização ingênua do meio ambiente natural, e isso é que personifica os mitos
universalmente. A dificuldade de separação do sujeito e objeto constitui a natureza do pensamento
primitivo. O pensamento lógico é ligado aos elementos emocionais, afetivos, motores, facilitando e
motivando os ritos, crenças, e lendas. Porém, como já abordamos anteriormente, os mitos não se
reduzem apenas à organização do mundo do homem primitivo, com o intuito de reconstituição da
ordem e do caos como afirma Mielietinski (1987, p. 196), mas é também construído por interesses
sociais, étnicos, políticos. Explicar e criar respostas dá ao mito característica de rito, de objeto, de
crença. Toda a força que deles brota ganha proporção respeitosa que se perpetua, que é levada de
geração a geração, preservando o que já foi vivido. Hélio Serejo em sua obra registra a oralidade
passada de geração em geração. Transforma em linguagem escrita o que ouvia ajudando que essa
riqueza cultural se preserve ao invés de se perder no tempo.
É importante deixar registrado que esses são apenas alguns exemplos do lado folclórico
presente em Serejo. Julgo ser um trabalho de extensão mapear todos esses aspectos míticos,
folclóricos, das crenças e das lendas no escritor sul-mato-grossense. Caberia um trabalho de fôlego
como uma dissertação de mestrado, ou ainda, tese de doutoramento, para dar conta de fazer um
mapeamento detalhado e preciso desses aspectos em toda a coletânea das Obras Completas
(SEREJO, 2008), almejamos que este trabalho desperte para tal.
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REFERÊNCIAS
FERREIRA, Jerusa Pires. Armadilhas da memória e outros ensaios. Cotia, SP: Ateliê Editorial,
2003.
FERNANDES, Frederico Augusto Garcia. A voz e o sentido: poesia oral em sincronia. São Paulo:
Editora UNESP, 2007.
_______. Entre histórias e tererés: ouvir da literatura pantaneira. São Paulo: Editora UNESP, 2002.
MIELIETINSKI, E. M. A poética do mito. Trad. Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: ForenseUniversitária, 1987.
SEREJO, Hélio. Obras Completas. Campo Grande/MS: Instituto de História e Geografia de Mato
Grosso do Sul, 2008.
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GLAUCE ROCHA: DESAFIOS CRÍTICOS DO ARQUIVO E DA MEMÓRIA ARTÍSTICOCULTURAL EM MATO GROSSO DO SUL 7
Marcia Maria de Brito (PG-UFMS/CAPES/REUNI)
Edgar Cezar Nolasco (UFMS/CNPq)
RESUMO
A presente comunicação tem o intuito em divulgar a pesquisa em andamento sobre o espaço cultural Glauce
Rocha, da cidade universitária UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em Campo Grande, no
estado de Mato Grosso do Sul, fazendo uma breve menção à atriz em questão. A pesquisa visa analisar, de
forma concisa, o arquivo e a memória do acervo artístico-cultural do espaço citado, por meio de algumas
manifestações culturais como peças teatrais, musicais, espetáculos de dança e sessões de cinema, assim como
resgatar a importância do trabalho artístico-cultural de Glauce Rocha. Para tanto, tomaremos como suporte
crítico obras como: Mal de Arquivo, de Jacques Derrida; Planetas sem boca, de Hugo Achugar; Os Arquivos
Imperfeitos, de Fausto Colombo; Arquivos Literários, de Eneida Maria de Souza e Wander Mello Miranda;
A Trama do Arquivo, de Wander Melo Miranda; A Arqueologia do saber, de Michel Foucault e Glauce
Rocha: atriz, mulher, guerreira, de José Octávio Guizzo. Esperamos, dessa forma, traçar um perfil do que se
entende por memória e cultura locais em Mato Grosso do Sul.
Palavras-chave: Arquivo; literatura; estudos culturais; memória;
ABSTRACT
A presente comunicação tem o intuito em divulgar a pesquisa em andamento sobre o espaço cultural Glauce
Rocha, da cidade universitária UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em Campo Grande, no
estado de Mato Grosso do Sul, fazendo uma breve menção à atriz em questão. A pesquisa visa analisar, de
forma concisa, o arquivo e a memória do acervo artístico-cultural do espaço citado, por meio de algumas
manifestações culturais como peças teatrais, musicais, espetáculos de dança e sessões de cinema, assim como
resgatar a importância do trabalho artístico-cultural de Glauce Rocha. Para tanto, tomaremos como suporte
crítico obras como: Mal de Arquivo, de Jacques Derrida; Planetas sem boca, de Hugo Achugar; Os Arquivos
Imperfeitos, de Fausto Colombo; Arquivos Literários, de Eneida Maria de Souza e Wander Mello Miranda;
A Trama do Arquivo, de Wander Melo Miranda; A Arqueologia do saber, de Michel Foucault e Glauce
Rocha: atriz, mulher, guerreira, de José Octávio Guizzo. Esperamos, dessa forma, traçar um perfil do que se
entende por memória e cultura locais em Mato Grosso do Sul.
Keywords: Arquivo; Literatura; Estudos Culturais; Memória;
1.INTRODUÇÃO
A escolha em estudar o arquivo e a memória no espaço cultural Glauce Rocha, passa a
existir por meio da necessidade primeira em resgatar e tornar mais visível a cultura fronteiriça de
nosso Estado, como também, em manter vivo o trabalho da atriz Glauce Rocha, dentro do contexto
cultural brasileiro, em especial o sul-mato-grossense. O espaço cultural Glauce Rocha é o órgão
responsável pela realização de eventos na UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul,
distribuídos em diversas categorias, tais como: formaturas, seminários, encontros e congressos,
eventos culturais nas áreas de música, dança e teatro. O espaço foi inaugurado em 1971 com o
7
O artigo faz parte de uma pesquisa maior que a autora desenvolve junto ao PPGMel/UFMS, intitulada” Espaço
Cultural Glauce Rocha: arquivo e memória no palco artístico-cultural em Mato Grosso do Sul”, sob orientação do Prof.
Dr. Edgar César Nolasco (UFMS/CNPq).
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espetáculo teatral Oxil O Super Herói de autoria de Cândido Alberto de Fonseca e Geraldo
Espíndola e direção de Humberto Espíndola.
2. MEMÓRIA E CULTURA LOCAIS: DESARQUIVANDO O ESPAÇO CULTURAL
GLAUCE ROCHA
Mas a cultura e o cultivo da memória têm tido, desde a antiguidade, uma
mesma atividade: a da comemoração. (ACHUGAR, 2006. p.173)
Nesta comunicação, propomos pensar em um estudo da memória através da cultura local, ou
seja, melhor pensar que, toda a preservação da cultura local está ligada à capacidade de mobilização
regional e nacional dos meios intelectuais e físicos. É pertinente lembramos que devido o fato de
estarmos numa região fronteiriça somos de toda forma, sujeitos híbridos de corpo e mente, ou
melhor, de corpo e cultura, constituídos ora em partes paraguaias e ora bolivianas. Somos o arquivo
sul-mato-grossense que remete a Foucault, ou seja, “o domínio das coisas ditas” (FOUCAULT,
2010, p. 147), tanto de lá quanto de cá. E a respeito da memória cabe citarmos algumas palavras de
Antonio Candido, no momento que o crítico metaforiza como malandragem, o modo de ser desse
grupo social e a dialética da ordem e desordem, como o princípio estruturador do texto. Onde “As
Memórias são ‘um documentário restrito, pois que ignora as camadas dirigentes, de um lado, as
camadas básicas, de outro’” (CANDIDO apud SANTIAGO, 1989, p.218). Imaginar a cultura é
pensar em terras, natureza, água, comidas, músicas, idiomas e também no modo de ser e agir de um
povo. É transitar num mundo híbrido, mestiço e fronteiriço, que sempre é acometido com
transformações diversas, segundo lembra o intelectual Terry Eagleton em sua obra intitulada
Depois da Teoria:
O conceito de cultura cresceu como uma crítica à sociedade de classe média,
não como um aliado seu. Cultura tinha a ver com valores, em vez de preços;
com a moral, em vez de o material; com o elevado, em vez de filisteu. [...]
Dizia respeito ao cultivo de poderes humanos como fins em si mesmos, em
vez de por algum ignóbil motivo utilitário. [...] Era o abrigo precário onde
podiam se refugiar os valores e as energias para as quais o capitalismo não
tinha nenhum uso. [...] No entanto, lá pelas décadas de 1960 e 1970, cultura
também estava começando a significar filme, imagem, moda, estilo de vida,
marketing, propaganda, mídia. (EAGLETON, 2005, p.45)
A difusão desses novos produtos culturais se dá a luz dos pensamentos do estudioso Hugo
Achugar em sua obra Planetas sem boca, o sujeito social pensa ou produz conhecimento, - como é
o caso do povo sul-mato-grossense – a partir de sua “história local”. E que essa história local, é o
lugar teórico de onde se fala geograficamente, e encontra-se também configurado pela memória.
Memória essa classificada como local, mesmo atravessada pelo nacional, pelo regional e pelo
internacional. É preciso que o outro entenda que existe uma memória para cada lugar, e que estas
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memórias trabalham em conjunto com os acontecimentos da época. É pertinente destacarmos o
intelectual Silviano Santiago em seu texto “Para além da história social” e sua ideia de memória nos
trópicos onde,
Talvez seja correto afirmar que a memória histórica no Brasil é uma planta
tropical, pouco resistente e muito sensível às mudanças no panorama
socioeconômico e político internacional. Uma planta menos resistente e mais
sensível do que, por exemplo, as nascidas na Argentina, terra natal de Funes,
o memorioso. (SANTIAGO, 2004, p. 148)
Começamos nossa reflexão abordando a questão da miscigenação, e do fronteirismo, além
da própria imigração e migração, que se constitui o povo do estado de Mato Grosso do Sul. Vale
lembrarmos aqui o estudioso Edgar Cézar Nolasco, em seu texto “Luto e Melancolia no Canto da
Seriema do Cerrado”, quando metaforiza a formação da identidade cultural do sul-mato-grossense,
através da condição fronteiriça fielmente descrita nas músicas “Seriema” e “Chalana”. Segundo
Nolasco,
[...] da “Seriema” à “Chalana”, do centro à fronteira, o que temos aí
espelhado é nossa condição de homem fronteiriço que produz uma cultura
híbrida, multicultural, transculturada, que converge do centro para a margem
e da margem para o centro, isto é, de dentro para fora e de fora para dentro
nas mesmíssimas proporções. A identidade cultural sul-mato-grossense se
constrói nessa condição intervalar. (NOLASCO apud CADERNOS DE
ESTUDOS CULTURAIS. vol.2. n.3, 2010, p. 40)
O leitor fará uma breve viagem no ritmo do trem pantaneiro, para conhecer um pouco de
nossa cultura local. Tomemos aqui algumas reflexões pensadas em relação à fronteira, para melhor
ilustrar a paisagem dessa viagem, a partir do intelectual Cássio Eduardo Vianna Hissa em sua obra
A mobilidade das fronteiras,
Como imaginar uma fronteira que, entre dois mundos distintos, possa
construir a transição desses opostos? Como imaginar a fronteira como o que
também integra, em vez de somente dividir? A fronteira não seria, assim, por
sua própria natureza que incorpora o limite, o ambiente da demarcação
precisa? (HISSA, 2006, p.34-35)
Diferentemente de outros estados do Brasil, Mato Grosso do Sul é sem dúvida um dos que
mais se destaca, justamente devido a sua relação fronteiriça com a Bolívia e o Paraguai. Ou seja, a
mobilidade existente na fronteira é tanto cultural, social, física quanto imaginária, assim como seus
povos. E com isso, não podemos nos esquecer, que dentro dessa fronteira também encontra-se o
limite e nele podem habitar “um ‘outro’ e um ‘eu’, que se vigiam mutuamente’”. (HISSA, 2006,
p.20) Segundo Hissa,
A fronteira coloca-se à frente (front), como se ousasse representar o começo
de tudo onde exatamente parece terminar; o limite, de outra parte, parece
significar o fim do que estabelece a coesão do território. O limite, visto do
território, está voltado para dentro, enquanto a fronteira, imaginada do
mesmo lugar, está voltada para fora como se pretendesse a expansão daquilo
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que lhe deu origem. O limite estimula a ideia sobre a distância e a separação,
enquanto a fronteira movimenta a reflexão sobre o contato e a integração.
(HISSA, 2006, p.34)
O povo sul-mato-grossense é composto de sujeitos originários de diversos estados e países.
Muitos deles da região Sudeste, inclusive de São Paulo, mais especificamente de Bauru, e assim
como a Ferrovia Noroeste do Brasil, instalaram-se aqui e fizeram história. A miscigenação se
completa com a culinária, a música, resquícios latino americanos, vindos da Bolívia, como a
Saltenha, e oriundos também do Paraguai como a Sopa e a Polca. Estado rico, abençoado e
hospitaleiro, onde conta com a presença até mesmo de imigrantes da ilha de Okinawa, no Japão,
que toda semana na Feira Central de Campo Grande, se fazem presentes com a sua culinária, mais
especificamente o tradicional prato denominado de sobá. E pensando, agora, a partir desse breve
histórico e na possibilidade de existência de várias memórias, que retomamos ao uruguaio Hugo
Achugar onde nos revela que,
A memória ritualizada do poder é e tem sido a memória oficial. Mas memória
oficial não é necessariamente igual a memória pública ou memória coletiva.
Nesse sentido, deve-se distinguir tanto entre memória popular e memória
oficial. A memória pública – na presente apoteose dos meios de comunicação
– não é uma memória construída pelos Estados nacionais nem pela sociedade
civil, mas pelo próprio sistema dos meios de comunicação que tampouco é,
necessariamente, um sistema controlado pelo Estado. Mas, também, é
possível entender a memória pública como o faz Koonz, quando afirma que
“a memória pública é o campo de batalha no qual os dois tipos de memória (a
memória oficial e a memória popular) competem pela hegemonia”.
(ACHUGAR, 2006, p. 180)
Dentre os povos que caracterizam a cultura do Estado, os indígenas têm uma certa
particularidade, pois desempenharam um papel importante na Guerra do Paraguai e souberam
resistir ao tempo e a história. Mesmo sendo alvos de investidas do governo em 1912, “que visava
incentivar a sua catequização a fim de aproveitá-los como mão-de-obra ‘pacífica e ordeira’ nas
fazendas de gado, nos ervais e nas usinas de açúcar.” (COSTA MARQUES apud OLIVEIRA, 2005,
p.103) Suas contribuições vêm com o uso de nomes indígenas em cidades como “Aquidauana”,
bairros como o “Amambaí”, até em Parques como o “Parque Indígena” e na culinária com o “Feijão
Guandu”. Destacamos neste ponto um trecho de uma entrevista realizada com um índio de nome
Capitão Ireno8, sobre a história dos índios em Mato Grosso do Sul,
Os índios guaranis e kaiowás sofreram muito com a guerra do Paraguai...
depois sofreram por causo do trabalho nos campos de erva.. eh!... por aqui
existe muita erva mate que o branco sempre negociou... a erva é natural
daqui, e os índios a conheciam... eram os Kaiowá que trabalhavam para
eles... os Kaiowá plantavam, colhiam e transportavam o mate... foi o mate
que chamou o branco pra cá, por isso o mate é importante para ele... Para o
índio o mate sempre foi precioso... índio vive com o tereré na mão... tereré e
8
Capitão ireno índio Kaiowá idoso, o mais sábio de todos. Entrevistado para uma pesquisa sobre o modo de vida dos
Kaiowás e Terenas em Mato Grosso do Sul.
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milho são as coisas que o índio sempre cuidou... Milho tem dois tipos: o
saboró que é da gente, sagrado, e duro que serve pra vender... com o saboró
nós fazemos o xipaguaçu que é a pamonha assada, boa, boa... (parágrafo 5).
(Capitão Ireno apud MEIHY, 1991, p.39-49)
Assim, pensando que o índio encontra-se já a algum tempo, numa condição de minoria,
podemos destacar o que a indiana Gayatri C. Spivak, afirma sobre as condições do subalterno para
se expressar. Segundo Spivak para o “verdadeiro grupo subalterno, cuja identidade é a sua
diferença, pode-se afirmar que não há nenhum sujeito subalterno irrepresentável que possa saber e
falar por si mesmo [...]”. (SPIVAK, 2010, p.61) Assim Spivak nos fala sobre o assunto:
Consideramos agora as margens (pode-se meramente dizer o centro
silenciosos e silenciado) do circuito marcado por essa violência epistêmica,
homens e mulheres entre camponeses iletrados, os tribais, os estratos mais
baixos do subproletariado urbano. De acordo com Foucault e Deleuze [...], os
oprimidos, se tiverem a oportunidade [...], e por meio da solidariedade
através de uma política de alianças, podem falar e conhecer suas condições.
(SPIVAK, 2010, p.54)
Muitas vezes somos hijo, brother, muchacho, guri, moleque, piá, soltamos pipa, empinamos
papagaio, brincamos com bexiga, soltamos balão, tudo isso sem a perda da nossa identidade, ao
contrário, nós a recriamos diariamente, através das manifestações culturais locais no Estado. E são
essas manifestações em Mato Grosso do Sul, que é preciso pesquisar, registrar e desarquivar. A
riqueza cultural deve ser ouvida, vista, pensada, vivida e dividida entre os seus sujeitos. Sobre essas
questões remetemos as ideias de Eneida Maria de Souza em sua obra Crítica Cult, onde
O descompasso sempre foi motivo de diferenciação entre culturas,
considerando-se que é sempre mais fácil optarmos por uma defesa do
semelhante e do mesmo do que do diferente e do outro. A alteridade constitui
um dos inimigos invisíveis do pensamento conservador e acomodado, pois a
mera constatação de sua existência já provoca um sentimento de repulsa e de
fechamento entre aqueles que recusam o diálogo. (SOUZA, 2007, p.12)
O sujeito - o povo sul-mato-grossense - passou da condição de mero espectador e já
consegue perceber, identificar e fazer uso das suas origens, sustentavelmente falando, onde os
espaços ora delimitados, num Estado híbrido, fronteiriço e mestiço, agora pertencem não mais a
Polis9, mas ao outro lado da moeda Grega.
2.1 A cultura sul-mato-grossense
O Estado de Mato Grosso do Sul é repleto de diferentes manifestações culturais como o teatro
(Grupo GUTAC), a dança (Toro Candil, Ginga Cia de Dança, Isadora Duncan), a música (Grupo
Sarandi Pantaneiro), e o cinema, uma vez que serve de ponte a fronteiras nacionais e internacionais.
9
C.f http://www.mundodosfilosofos.com.br/tragedia-grega-e-polis.htm. O sentido do termo polis não quer dizer apenas
um local socialmente organizado, antes disso, para os gregos antigos, a polis era uma maneira de compartilhamento de
concepções práticas da vida cotidiana.
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Sua identidade cultural é híbrida, algo como um país poliglota, onde desde o gaúcho, até o
paraguaio, tomam tereré, comem churrasco aos domingos, e sobá as quartas-feiras, embalados ao
som de chamamé. A língua cultural não tem idioma, e sim bom senso. É o respeito ao outro,
tomando como ponto de partida a mistura de raça, de fronteira, de local. Talvez possamos ingerir o
que diz o estudioso Homi K. Bhabha, em sua obra O Local da Cultura com relação a esse processo,
onde “O objeto da perda é escrito nos corpos do povo, à medida em que ele se repete no silêncio
que fala a estrangeiridade da língua”. (BHABHA, 2003, p 231)
Na cultura sul-mato-grossense fica evidente a falta de identificação, de porto, de rumo definido,
pois ora somos brancos, ora índios, ora paraguaios, ora bolivianos e com esse conflito local, a
cultura surgiu tal qual foi idealizada, ou seja, sem rg, sem cpf e sem cep. Melhor dizendo
características típicas de uma cultura fronteiriça. Segundo o estudioso José Francisco Ferrari,
“Entendemos que a nossa cultura é uma cultura de fronteira, logo todas as produções culturais
advindas desse locus são fronteiriças, mesmo quando não tratam diretamente do assunto”.
(FERRARI apud NOLASCO & BESSA-OLIVEIRA, 2010, p. 73) E sobre essa questão da história
local, cabe destacar mais uma vez algumas ideias de Hugo Achugar onde,
A “história local” de um sujeito social não é a mesma “história local” de
outro, mesmo que ambos pertençam à mesma comunidade; ou dito de outra
forma, não somente se produz em função de uma “história local”, como
também em função do “posicionamento” – os “interesses locais e concretos”
– dentro das ditas histórias locais. Os familiares dos “desaparecidos não têm
o mesmo posicionamento” dos militares, muito embora todos, de algum
modo, “compartilhem” a mesma “história local” da ditadura, pois tanto uns
quanto os outros têm interesses locais diferentes e muito concretos.
(ACHUGAR, 2006, p.29)
A cultura local em Mato Grosso do Sul é como uma representação de viagem a uma cidade,
onde a visita de forma apressada nos faz parte da cultura de massa, como bem explica a intelectual
Eneida Maria de Souza nessa passagem de texto,
[...] passar os olhos superficialmente sobre os lugares – e não aprofundar nos
pormenores significativos sobre os lugares – traduziriam um certo tipo de
generalização do saber, que não se detém no particular, comportamento
próprio de quem vive em culturas “menos avançadas”. Segundo esses
viajantes, a “universalidade de superfície” constitui a atitude intelectual
freqüente do brasileiro [...]. (SOUZA, 2007, p.76-77)
Estudar as manifestações culturais locais hoje no Estado se enquadra bem nas palavras de
Canclini, de como “seria analisar as manifestações que não cabem no culto ou no popular, que vem
de seus cruzamentos ou em suas margens”. (CANCLINI, 2008, p.283) É entrar na mata, sem temor
e sem juízo, pois como já é sabido, o Brasil um dia também foi o Paraguai. Essa informação
histórica nos remete ao intelectual Edgar Cézar Nolasco, onde de maneira ímpar nos explica,
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Vir de um lugar que um dia pertencera a outro revela a condição nômade e
transitória do sujeito fronteiriço que caracteriza o sul-mato-grossense, e
também narra a construção dessa história e o processo de transmissão,
contaminação e empréstimo sem lei que marca o corpo das produções
culturais locais. (NOLASCO apud CADERNOS DE ESTUDOS
CULTURAIS. vol.2. n.3, 2010, p. 47)
É essa hibridação, essa fronteira, essa mestiçagem, nas manifestações locais que fazem do
Mato Grosso do Sul um Estado rico e bem aventurado culturalmente. É “[...] o povo, essa nação, é a
continuação desse lugar que está sempre em movimento”. (NOLASCO apud NOLASCO &
BESSA-OLIVEIRA, 2010, p.57) Ainda segundo o Nolasco,
[...] Foi sempre procurando manter um olhar distendido sobre as negociações
entre as diversidades culturais, um olhar sobre a diversidade e a hibridação
que assinalam o corpo de nossa cultura fronteiriça, que compreendemos que
o lugar, o local correspondia ao conceito de différence derridaiano.
(NOLASCO apud NOLASCO & BESSA-OLIVEIRA, 2010, p.58)
Para Nolasco, a cultura sul-mato-grossense devido a sua condição fronteiriça e sem lei,
apropria-se da insígnia de uma cultura grileira10 por excelência. Segundo Nolasco,
A cultura local sul-mato-grossense, enquanto um arquivo em palimpsesto
aberto para fora e para dentro ao mesmo tempo, de modo a sobreporem-se
camadas sobre camadas culturais, põe o lugar e o não-lugar, num exercício de
vórtice, numa maquinaria desejante de funcionamento onde um trabalha
contra o outro. Enquanto o lugar-arquivo guarda, capitaliza, acumula,
consigna, territorializa, prende-se à raiz cultural em busca de uma pertença
(cultura), de forma a nunca se apagar totalamente; o não-lugar, por sua vez,
desterritorializa, não fixa raiz, é não-identitário, anti-relacional e a-histórico.
Podemos dizer que, enquanto lugar está enraizado à cultura local, à história,
preso a uma memória ancestral, o não-lugar volta-se para o efêmero, o
provisório, os movimentos voláteis e descontínuos.” (NOLASCO apud
NOLASCO & BESSA-OLIVEIRA. 2010, p.60)
3. GLAUCE ROCHA – UM ARQUIVO EM CENA
A biblioteca e/ou arquivo pessoal constitui uma história de
vida. (SANTOS apud MIRANDA, 1995, p.105)
Seguindo a linha de pensamento de Jacques Derrida, a qual vê o arquivo em sua forma espectral,
mais como uma impressão e menos como um conceito, podemos dizer que trabalhar a questão do
arquivo, ou melhor, das manifestações culturais no espaço cultural Glauce Rocha,é necessário e
complexo ao mesmo tempo. Porque, segundo Derrida, “não há arquivo sem um lugar de
consignação, sem uma técnica de repetição e sem uma certa exterioridade. Não há arquivo sem
exterior”.(DERRIDA, 2001, p.22) Consignação, repetição e exterioridade devem estar medindo
nossa reflexão sobre o espaço cultural Glauce Rocha.
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Termo utilizado por Edgar Nolasco, em seu ensaio intitulado Contrabando Cultural, para designar este tipo de
mobilidade cultural.
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A problemática maior constitui-se em tratar o arquivamento não apenas como reflexo do
passado, enquanto nossa intenção aqui é, sobretudo, pormos o arquivo em movimento, fazer girar
suas memórias, como a uma “pulsão de morte que destrói seus arquivos antecipadamente”.
(DERRIDA, 2001, p.21) Essa proposta de arquivamento não é para esquecermos, mas para
lembrarmos das manifestações dentro do contexto cultural sul-mato-grossense e compreendê-los
como manifestações culturais locais específicas de uma cultura fronteiriça. Lembrar, esquecer:
arquivar para desarquivar – nesse processo caminha nossa reflexão com o espaço em tudo.
Na esteira das ideias de Derrida, em sua obra Mal de Arquivo: uma impressão freudiana, é
chegado o momento da reestruturação conceitual do que se denomina até o momento por arquivo, e
as manifestações culturais do espaço cultural Glauce Rocha rumam para esse caminho. Queremos
destacar, as impressões culturais de tudo aquilo, ou parte, do que o espaço consigna. O arquivo é
tratado aqui por nós também por outro viés, como uma questão do inconsciente e do virtual, ou seja,
para além do seu estado físico.
O arquivo do espaço cultural Glauce Rocha é aquele em que o passado clama por se perpetuar
no futuro. As manifestações culturais música, a dança, o teatro e o cinema podem ser discutidos e
passarem da condição de privados para públicos rapidamente, como num piscar de olhos. Público e
privado fundem-se na discussão sobre o arquivo, assim como dentro e fora, etc. Um arquivo lembra
a imagem de um museu sempre aberto e em movimento. Partindo desse princípio faremos o uso
dentre outras, as ideias de Jacques Derrida, como uma das melhores formas de discutirmos e
refletirmos a cerca do arquivo, onde segundo Derrida,
Foi assim, nesta domiciliação, nesta obtenção consensual de domicílio que os
arquivos nasceram. A morada, este lugar onde se de-moravam, marca essa
passagem institucional do privado ao público, o que não quer sempre dizer do
secreto ao não-secreto. (É o que se dá, por exemplo, em nossos dias, quando
uma casa, a última casa dos Freud, transforma-se num museu: passagem de
uma instituição a outra). (DERRIDA, 2001, p.13)
Esses registros pertencentes ao passado geram uma série de questionamentos relativos ao futuro,
ou seja, o que estaria por vir após o desarquivamento destas manifestações culturais? Quais seriam
as novas interpretações que faríamos após a sua abertura? Onde e como elas estão guardadas?
Como lê-las, criticamente, sem antes exumá-las do espaço e trazê-las para o espaço público?
Seguindo ainda na descrição acerca do arquivo, cabe-nos aqui mencionar outras maneiras
possíveis de pensá-lo mesmo que de forma breve, como é o caso do filósofo Michel Foucault, do
intelectual Fausto Colombo, da crítica cultural Eneida Maria de Souza, de Wander Melo Miranda,
da historiadora e psicanalista Elisabeth Roudinesco, de Leonor Arfuch.
O filósofo Michel Foucault diferentemente de Jacques Derrida, não faz uso da palavra espectral,
em seus estudos e reflexões a respeito do arquivo, mas nos leva a entender que o sentido de arquivo
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para ele, seria, entre outras coisas, o “domínio das coisas ditas”, ou seja, o arquivo estaria para o
plano dos enunciados. Mesmo refletindo dessa forma, onde o que foi dito, torna-se uma
representação quase plástica do arquivo, ele consegue se aproximar por demais de Derrida, cujo
sentido de arquivo vai para o caminho do espectral, para além do físico. Para Foucault,
É evidente que não se pode descrever exaustivamente o arquivo de uma
sociedade, de uma cultura, ou de uma civilização: nem mesmo, sem dúvida, o
arquivo de toda uma época. Por outro lado, não nos é possível descrever
nosso próprio arquivo, já que é no interior de suas regras que falamos, já que
é ele que dá ao que podemos dizer – a ele próprio, objeto de nosso discurso –
seus modos de aparecimento, suas formas de existência e de coexistência,
seus sistema de acúmulo, de historicidade e de desaparecimento [...].
(FOUCAULT, 2010, p.148)
Fasto Colombo, por sua vez, em sua obra Os arquivos imperfeitos - memória social e cultura
eletrônica, nos trás a questão da evolução tecnológica como forma de um possível arquivamento da
memória, ou seja, uma espécie de “arquivo informático”. O arquivo para Colombo está
representado no plano físico, pelas possíveis formas de arquivamento midiático. Explica-nos ele que
para que ocorra a memorização, se faz necessário à utilização de quatro categorias provisórias de
um processo, sendo elas: em primeiro lugar a gravação, em segundo lugar o arquivamento, em
terceiro lugar o arquivamento da gravação e, por último, a gravação do arquivamento.
Para Eneida Maria de Souza e Wander Melo Miranda, na obra organizada Arquivos
Literários, a questão do arquivo passa pela importância do rascunho/lembrete, além das
transformações tecnológicas como a máquina de escrever/computador, o processo de criação de
textos e armazenamento/conservação de acervos. Sobre esse processo, Melo Miranda nos comenta:
A prática arquivística define-se, assim, pelo valor diferencial que congrega e
permite, ao mesmo tempo, a subsistência de enunciados e sua regular
transformação. Daí não ser o arquivo descritível em sua totalidade, mas com
fragmentos, regiões e níveis distintos com maior com maior clareza em
virtude da distância temporal que dele nos separa. (MIRANDA apud
SOUZA; MIRANDA, 2003, p.36)
A historiadora e o psicanalista Elisabeth Roudinesco, em A análise e o arquivo, trata do
tema arquivo ligado a princípios da história e da psicanálise. Roudinesco levanta questionamentos
como o poder do arquivo, o arquivo inexistente e o “arquivo de si”:
Existe em todo historiador, em toda pessoa apaixonada pelo arquivo uma
espécie de culto narcísico do arquivo, uma captação especular da narração
histórica pelo arquivo, e é preciso se violentar para não ceder a ele. Se tudo
está arquivado, se tudo é vigiado, anotado, julgado, a história como criação
não é mais possível: é então substituída pelo arquivo transformado em saber
absoluto, espelho de si. Mas se nada está arquivado, se tudo está apagado ou
destruído, a história tende para a fantasia ou o delírio, para a soberania
delirante do eu, ou seja, para um arquivo reinventado que funciona como
dogma. (ROUDINESCO, 2006, p.09)
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Leonor Arfuch em seu texto “A auto/biografia como (Mal de) Arquivo”, discute a biografia
como forma de se pensar o arquivo. Para Arfuch “o arquivo e a biografia são construídos a partir
desse eixo indissociável, já que a simples lembrança ou vivência – como o texto, a fotografia, o
objeto – trazem consigo o tempo e o lugar”. (ARFUCH apud SOUZA; MARQUES. 2009, p.373)
Nessa discussão, para ela:
O arquivo, no entanto, transforma o privado em público; joga com a
revelação do segredo, aquilo que se esconde em uma fotografia, uma
dedicatória, uma linha de texto, uma carta – para Borges, as correspondências
em um jogo de alusões e elipses, decifráveis somente para os envolvidos, por
isso, pouco interessante para os estranhos. O biógrafo não estará, por este
prisma, distanciado do detetive ou do romancista. (ARFUCH apud SOUZA;
MARQUES, 2009, p.373)
Dentro desse percurso narrativo, onde também, em certos momentos, é preciso como lembra
a intelectual Eneida Maria de Souza, “não se deixar seduzir pela poeira dos arquivos”, (SOUZA,
2007, p. 108) no decorrer desta pesquisa.
3.1 – O Bios espectral em Glauce Rocha
Ao suscitarmos um texto biográfico de Glauce Rocha, nos resta optar entre dois eixos
teóricos, segundo a estudiosa Eneida Maria de Souza. Ou seja, tratar sobre a relação da amizade,
mesmo aquela imaginária, entre amigos com interesses em comum, ou, trabalhar a questão
biográfica, a vida e a obra, o tradicional da análise textual.
Em relação a questão biográfica, talvez pudéssemos trabalhar algumas informações sobre
Glauce Rocha, na esteira do intelectual Franciso Ortega, pela questão da amicitia (amizade/aliança),
que vivem através dos anos. Segundo Ortega,
A amicitia é, por um lado, uma relação baseada na afeição livre, o que exclui
associações econômicas, comunidades religiosas e jurídicas e relações de
parentesco. Eram consideradas, por outro lado, como formas de amicitia, as
associações políticas [...] e como amicitiae as relações dos poderosos com os
seus adeptos. (ORTEGA, 2002, p.47)
Ou quem sabe, possamos nos valer também do conceito de amizade, foucaltiano, para discorrer
sobre Glauce Rocha, onde a amizade para Foucault “é um convite, um apelo à experimentação de
novos estilos de vida e comunidade”. (FOUCAULT apud ORTEGA 1999, p.26) Onde as personas
da atriz possam se expressar e tornarem-se presentes.
Em ambos os casos falar da atriz Glauce Rocha sempre é desafiante, pois nos remete à questão
do outro, e como falar do outro, ou pelo outro? Diana Irene Klinger, classifica esse processo
(escritas de si, escritas do outro), como duas tendências da narrativa contemporânea (retorno do
autor e a virada etnográfica). Klinger elege o filósofo Michel Foucault, dentre outros teóricos, em
sua “escrita de si”, para melhor desenvolver as suas reflexões.
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E sobre a questão biográfica e crítica biográfica, nos pontua o intelectual Edgar Nolasco, no
Caderno de Estudos Culturais em seu texto “Políticas da crítica biográfica”, a existência de uma
relação muito estreita entre a vida própria e a vida alheia. Nolasco se vale de vários estudiosos,
dentre eles Jacques Derrida, para pontuar sua assertiva.
Em meio a esse embate é que iniciamos nossa conversa com e sobre Glauce Rocha, pois
acreditamos que uma vez aberta as cortinas de sua história, esse processo automaticamente tornarse-á algo como um diálogo entre as partes, onde ao mesmo tempo em que eu subtraio informações,
eu as compartilho.
Ao tentarmos abordar algumas passagens da vida e da obra da atriz Glauce Rocha neste texto, é
pertinente lembrarmos que de uma maneira ou de outra, estaremos sempre tentando “mencionar”
algo que supostamente tenha ocorrido, por “diferentes modos, em sua história ou experiência de
vida”, mas nunca chegaremos a “contar” de fato, pois a nossa escrita nunca será a mesma da atriz,
assim como nossa fala.
A intelectual M. Angenot em seu texto A vida como narração, na obra de Leonor Arfuch
intitulada O espaço biográfico: dilemas da subjetividade contemporânea, trás um questionamento
acerca desta questão da vida,
Como falar de uma vida humana como de uma história em estado nascente se
não há experiência que não esteja mediada por sistemas simbólicos, entre
eles, os relatos, se não temos nenhuma possibilidade de acesso aos dramas
temporais da existência fora das histórias contada a esse respeito por outros
ou por nós mesmos? (ANGENOT apud ARFUCH, 2010, p.111-112)
E quando nos deparamos com a probabilidade de uma escrita autobiográfica, a história muda de
figura, pois ela “é sempre uma re-presentação, ou seja, um tornar a contar, pois a vida a que
supostamente se refere é, por si mesma, uma construção narrativa”. (MOLLOY, 2003, p. 19) Neste
caso jamais podemos nos esquecer que estamos lidando com uma figura pública, militante e de
renome nacional e regional, que é Glauce Rocha.
Nosso propósito não é o de biografar a atriz, mesmo porque alguns autores já o fizeram
como é o caso de José Octávio Guizzo em sua obra Glauce Rocha – atriz, mulher, guerreira e
Aldomar Conrado em sua obra Glauce Rocha, mas de pontuar alguns aspectos que rondam o
espectro de Glauce Rocha e seu monumento.
Pretendemos, conforme o título deste texto sugere dar início a exumação do que foi a vida
da atriz Glauce Rocha nos palcos. Muitas pessoas ainda se perguntam sobre o súbito
desaparecimento da atriz, sua morte estúpida e triste. Ficaram órfãos de Glauce Rocha, a classe
artística, o povo sul-mato-grossense, em especial os campo-grandenses, enfim, o Brasil. Glauce
Rocha serviu de referência para as garotas de sua época, principalmente em Campo Grande, foi diva
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dos rapazes enamorados e esperança para toda uma população que via, por meio de sua imagem,
uma projeção de sucesso nacional, como de fato o foi.
Podemos ensaiar um possível fechamento, meio que à revelia da vida e da obra da atriz
Glauce Rocha, abrindo para uma discussão que retoma a questão do arquivo: seria o próprio
individuo detentor do seu arquivo? Até que ponto avançar em busca de informações e respostas,
sem ultrapassarmos o limite da fala do outro?
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TRANSGRESSÃO DA LINGUAGEM NA OBRA A ULTIMA TRAGÉDIA DE
ABDULAI SILÁ
Nágila Kelli Prado Sana (G-UEMS)
Ana Paula Macedo Cartapatti Kaimoti (UEMS)
RESUMO
Este trabalho analisa a obra A última tragédia (1995), do escritor guineense Abdulai Silá, destacando o modo
peculiar como, no romance, apresentam-se os usos da língua do colonizador e dos nativos. Nesse sentido, a
partir da presença híbrida da linguagem na obra, a narrativa estabelece um diálogo com os problemas
identitários que fazem parte da situação de Guiné Bissau como ex-colônia portuguesa que apenas
recentemente conquistou sua independência política. Considerando que “a língua num país colonizado
transcende a função comunicativa do discurso e adquire um significado profundamente cultural” (BONNICI,
2005, p. 33), partimos da hipótese que a presença estética da língua crioula guineense ao longo do
desenvolvimento da narrativa aponta para uma postura anticolonialista que procura rever, no lugar da ficção,
a trajetória de um país que enfrenta ainda resíduos pós-coloniais.
Palavras-chave: Literatura guineense; pós-colonialismo; resistência.
ABSTRACT
This paper analyzes the Guinean Abdulai Silá’s novel, A última tragédia (1995). Our aim is to highlight the
particular uses of the colonizer’s language and native’s languages along the narrative. Firstly, these uses
present a hybrid language which establishes a dialogue with the identity problems that are part of the Guinea
Bissau state as a former Portuguese colony that has only recently gained their political independence.
Considering that “language in colonized country transcends the communicative function of speech and takes
a deep cultural meaning” (BONNICI, 2005, p. 33), our research presupposes that the esthetic use of Guinea
Creole’s language during the narrative points to an anti-colonial stance that seeks to fictionalize and to
review the development of a country that still faces postcolonial residues.
Keywords: Guinean Literature; post-colonialism; resistance.
1. INTRODUÇÃO
Guiné-Bissau é um país localizado na África Ocidental que, durante três séculos, constituiu
a colônia da Guiné Portuguesa e apenas em 1974 teve sua independência reconhecida. Inúmeros
conflitos e guerras civis fizeram parte da sua história durante todos esses anos, criando uma
constante instabilidade política. Embora um país com pequena extensão territorial, segundo o INEC
(Instituto Nacional de Estatísticas e Censos) essa extensão é de aproximadamente 36.125 km²,
apresenta grande diversidade cultural e linguística. Dessa maneira, sua população de 1.181.641
habitantes (INEC, 2002) divide-se em cerca de “20 etnias e 22 línguas” (GRIMES, 1988, p.240).
Mesmo que não reconhecida, a língua mais falada no país é o crioulo, que mistura a língua
portuguesa do ex-colonizador às diversas línguas faladas pelo povo guineense. Sendo assim,
Intumbo (2004, p.5) considera que o crioulo indica “... o surgimento de uma língua híbrida, com
características formais de ambas as línguas em contato, sendo geralmente a língua do dominador a
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fonte da maioria do léxico e as línguas de substrato, fonte de algumas estruturas e interferências
fonético–fonológicas”.
Esse hibridismo faz-se presente na linguagem do romance de Abdulai Silá, A ultima
tragédia, objeto de estudo da primeira etapa da pesquisa descrita neste artigo. Silá é considerado o
autor do primeiro romance guineense, Eterna Paixão (1994) e, na sequência, publicou as obras A
última tragédia (1995) e Mistida (1997). Foi co-fundador do Instituto Nacional de Estudos e
Pesquisas Guineense e co-fundador da primeira editora privada, a Ku Si Mon Editora, além de
participar da fundação da revista cultural Tcholona. Silá também participou ativamente dos
movimentos de organização do país após a independência, inclusive como chefe de uma das
brigadas de alfabetização desse período, sob a orientação do educador brasileiro Paulo Freire.
De forma geral, a obra de Silá apresenta uma reflexão sobre a situação anterior do país como
colônia e faz uma revisão da trajetória construída pela nação após a independência, algo que se
vincula, no caso do romance estudado, com a presença híbrida das línguas faladas em GuinéBissau. Por essa razão, o texto do autor aponta para um projeto estético comprometido com uma
visão política que pode ser vislumbrado no depoimento a seguir: “É minha convicção que a
literatura pode, sem ser doutrinária nem tão pouco estereotipada, contribuir para a mudança cultural
que se impõe, sem a qual continuaremos por muito tempo fazendo tanto mal a nós mesmos” (SILA,
2010, p. 6).
2. A LÍNGUA HÍBRIDA E O RESÍDUO PÓS-COLONIAL
A língua crioula é uma mescla da língua portuguesa do dominante “superstrato” e da língua
do dominado “substrato”. Esse contato entre as línguas é responsável pelo termo usado pelo
filólogo português Leite Vasconcellos para definir crioulo como aquilo que foi “criado”, no
particípio passado do verbo criar. Além disso, esse termo também foi aplicado para se referir aos
espanhóis africanos que nasciam nas colônias. Partindo disso, é possível considerar que o crioulo
faz parte de um processo de hibridização no qual duas culturas diferentes unem-se e “criam” o
novo.
No âmbito dos estudos pós-coloniais, considera-se que os conflitos entre colonizador e
colonizado acontecem também na linguagem. Assim, esse processo de hibridação indica que a
formação do dialeto crioulo demonstra uma resistência à aceitação da língua e da cultura impostas
pelo colonizador e expõe uma subversão dessa última por meio da mistura das línguas e das culturas
dos dominados à língua portuguesa.
Dessa maneira, segundo Bonnici, “A língua num país colonizado transcende a função
comunicativa do discurso e adquire um significado profundamente cultural” (2005, p. 33). A
interação entre a cultura imperial e a nativa, no entanto, deixa suas marcas mesmo quando a ex96
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colônia alcança sua independência política. Essas marcas são conhecidas, na área de estudos citada
acima, como “resíduos pós-coloniais” (BONNICI, 2005, p. 49).
Além disso, os conceitos de ab-rogação, apropriação e lacuna metonímica, que fazem parte
do arcabouço teórico do pós-colonialismo, esclarecem de forma muito produtiva o papel do
hibridismo linguístico na obra de Sila, expondo o quanto a presença dos vocábulos crioulos, sem
tradução para o português, em meio à narrativa em língua portuguesa, demonstra uma apropriação
autônoma da linguagem do dominador. No contexto do romance, essa apropriação adquire um
aspecto transgressor, isto é, como pedras no meio do caminho, os termos crioulos introduzem, na
língua portuguesa hegemônica, suas próprias marcas, abrindo espaço para a divulgação do discurso
do subalterno, o colonizado, ao expor as lacunas entre a língua do colonizador e a do colonizado
(BONNICI, 2005).
3. A ÚLTIMA TRAGÉDIA
A narrativa de A última tragédia desenvolve-se no período colonial, quando o país ainda
estava sob o domínio português. A personagem principal da obra é Ndani, cuja trajetória também
representa alegoricamente aquela que Guiné-Bissau deve seguir de colônia portuguesa à nação
independente. Segundo o feiticeiro de Biombo, da aldeia natal da protagonista, ela tem o corpo
habitado por um espírito mau. Perseguida por essa razão, Ndani vai para a cidade onde se torna
criada na casa de portugueses.
Ali, sua cultura nativa choca-se com a do colonizador e Ndani tem seu nome trocado para
Maria Daniela, além de ser alfabetizada na língua portuguesa e catequizada na religião católica.
Como fechamento desse processo de dominação cultural, ela é violentada pelo patrão. Ndani volta
para o interior do país e ali vive dois casamentos: o primeiro como a sexta esposa do régulo de
Quinhamel, representante tanto da tradição oral da cultura nativa como da resistência à colonização,
para o qual ela deve levar status, já que é letrada, e, por fim, com o Professor, único amor de Ndani,
com o qual fará seu último deslocamento e viverá sua última tragédia
Situado na Guiné-Bissau colonial, o enredo já expressa os resíduos consequentes desse
período de dominação cultural e política, os quais marcam o caminho percorrido por Ndani e atam
as pontas do passado e do presente da nova nação, como podemos observar na citação seguinte, na
qual a patroa portuguesa da personagem discorre sobre o papel da religião católica no processo de
colonização:
O padre disse que os europeus vieram à África para salvar os africanos. Estas
a ouvir Daniela? O padre ainda disse que dantes esta salvação consistia em
levar os negros para longe, lá para as Américas, onde não teriam nem as
máscaras nem as estatuetas que veneravam, nem as árvores sagradas... Mas
depois viu-se que este não era o melhor método e então tivemos nós os
europeus que vir para a África ensinar a religião cristã e salvar as vossas
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almas.... Manteve-se de pé junto a Ndani, aliás, Daniela, e mandou levantarse. Com toda calma, colocou-lhe o fio a volta do pescoço. Ajeitou o crucifixo
por forma a ficar bem vista, no centro do peito da rapariga, entre os dois
seios.... Ndani levou a mão até o peito e pegou o crucifixo. Era pesado para o
tamanho que tinha. Lembrou-se de um colar algo parecido com um chifre de
cabra-mato no lugar do crucifixo, que seu pai lhe colocara ao pescoço poucos
dias depois de os Djambakus ter dito que ela era portadora de um mau
espírito no corpo. O pai tinha obtido o colar do mesmo djambaku. No
entanto, poucos dias depois perdera o colar junto com o chifre...
E aquele objeto que acabara de receber de Dona Linda, tinha também algum
poder? Qual? (SILA, 2006 p.40-41)
Nesse trecho, é evidente o tanto de dominação e resistência que o choque cultural apresenta
na narrativa. Por um lado, Ndani perde seu nome africano e precisa carregar uma cruz católica no
pescoço, por outro, sua lógica nativa interpreta esse objeto europeu de acordo com os parâmetros de
sua primeira formação religiosa tribal. Simultaneamente, o narrador abre espaço para termos da
língua crioula que convivem ali, embora, e não por acaso, em menor número, com os da língua
portuguesa. Qual será a consequência desse encontro para Ndani? Em que medida o processo de
dominação cultural implicará no apagamento de sua identidade nativa? Essas perguntas ligam a
personagem aos resíduos que o período de colonização portuguesa deixou em Guiné-Bissau.
Esse encontro tenso entre culturas profundamente diferentes aparece nos trechos a seguir
que expõem os valores contrastantes em conflito e o início da diáspora da personagem, dentro de
sua própria nação, que, dominada pelo europeu, torna-se também estrangeira:
– Sinhora, quer criado?
Esta era uma das frases da língua dos brancos que aprendera quando decidira
ir para Bissau arranjar trabalho, trabalho de criado, numa casa qualquer de
brancos. A idéia nascera num dia que para ela se tornará inesquecível depois
de um longo djumbai11 com uma das madastras (SILÁ, 2006, p. 22).
... O fato de ela a ter molhado deve ter sido uma atitude talvez normal entre
os brancos, uma reacção que ocorre provavelmente sempre que se vê pela
primeira vez uma rapariga desconhecida colada ao portão quando se regam
plantas. Lembrou-se de a madrasta ter dito uma vez que os brancos tinham
uma afeição especial por essas coisinhas coloridas e frágeis que chamam de
flor, que vendem muito caro, algumas delas parecidas com badjiki12, mas
que não serviam pra nada não davam sequer pra comer (SILÁ, 2006, p. 24).
Nesse contexto, a materialidade híbrida da narrativa, que apresenta a língua nativa sem
oferecer tradução, expõe ao leitor o impasse no qual as personagens se encontram: Ndani não pode
traduzir e interpretar as atitudes, os princípios, de um povo, os brancos, que procura submetê-la, ao
mesmo tempo em que os termos, os valores, da cultura local resistem na solidez dos vocábulos
nativos, pontualmente presentes no texto, enigmáticos para quem não domina o idioma: “djumbai”
e “badjik”, nos trechos citados.
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Djumbai: conversa
Badjiki: planta comestível.
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A intraduzibilidade dos termos crioulos refere-se a um elemento de resistência, um
obstáculo posicionado no meio do texto, que mantém o lugar de uma cultura, a africana, guineense
e oral, que insiste em não morrer, embora todos os esforços sejam feitos para que ela se apague.
Nesse sentido, é possível perceber o quanto a narrativa transgride os valores culturais do
colonizador, tornando-se uma tentativa de reafirmação identitária que apresenta uma visão crítica
tanto do discurso dos brancos em terras africanas quanto do africano frente à dominação colonial.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A última tragédia é um texto híbrido, em que a língua do colonizador, lado a lado com as
línguas nativas e elementos da tradição oral das diferentes etnias guineenses, inclusive mitos e
lendas, compõe uma narrativa transgressora.
Nessa primeira etapa do trabalho, notamos que essa transgressão está presente nas mudanças
semânticas sofridas no léxico do português, a partir da presença dos termos crioulos, e que exigem
conhecimento da cultura guineense para sua compreensão, o que se apresenta como evidente caso
de ab-rogação do português padrão europeu. Ao misturar modelos de valores e linguagens que
criam uma nova paisagem textual, o texto de Silá renova o lugar do colonizado frente ao dominador
e abre lacunas que expõem os usos culturais da língua e o posicionamento do texto literário como
lugar no qual se torna possível essa renovação.
Inicialmente, pode-se notar que esses aspectos mostram lugares nos quais a narrativa resiste
à perda ou diluição da identidade cultural da comunidade guineense. Sendo assim, podemos admitir
como hipótese geral que a transgressão da língua na obra assume um papel relevante no processo de
afirmação da identidade nacional guineense, ainda que problematizada, construindo, no lugar da
ficção, uma nova realidade linguístico-cultural, tornando-se lugar de reflexão sobre os anseios
libertários da população.
REFERÊNCIAS
BONNICI, T. Conceitos-chave da teoria pós-colonial. Maringá: Eduem, 2005.
GRIMES, B. F. Ethnologue: languages of the World. Summer Institute of Linguistics, Dallas, TX,
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http://www.stat-guinebissau.com/>. Acesso em: 22 mar. de 2011.
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português. Coimbra: Universidade de Coimbra, 2007. 124 p. Dissertação (mestrado) – Linguística
Descritiva: Línguas em Contacto, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra,
2007.
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______.Guine Bissau: Um retalho de línguas e culturas. Trabalho apresentado no VIII Congresso
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SILÁ, A. A última tragédia. Rio de janeiro: Ed. Pallas, 2006.
______. O livro como arma. O Marrare: Revista da Pós-Graduação em Literatura Portuguesa, Rio
de Janeiro: Instituto de Letras/UERJ, ano 10, n. 13, 2º semestre 2010, p. 161-168. Entrevista
concedida a Érica Cristina Bispo.
SILVA, M. A. Tradição da transgressão: língua portuguesa e identidade cultural em Luandino
Vieira. Cadernos de Letras da UFF: Dossiê: Literatura, língua e identidade, no 34, Rio de Janeiro,
n. 34, p. 225-236, 2008.
VASCONCELLOS. J. L. Antroponímia portuguesa. Lisboa: Imprensa Nacional, 1928.
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REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
A DRAMATURGIA DO ATOR NA COMMEDIA DELLA’ARTE
Marcus Villa Góis (UEMS)
RESUMO
Discutimos a literatura na Commedia dell’Arte, especialmente o que se considera dramaturgia, focando na
noção de dramaturgia do ator em dois contextos: uma literal na qual o ator escreve seus textos e outra teatral
na qual ele cria sua cena. Apresentamos esta noção a partir de fragmentos de roteiros e da iconografia da
Commedia dell’Arte. A pesquisa bibliográfica deu-se através da localização, leitura e análise dos canovacci
encontrados em Barni e Testaverde. Discutimos a “dramaturgia do ator” a partir de noções de Barba e de De
Marinis, a criação do roteiro teatral, através de imagens da Commedia dell’Arte, foi feita com base em
Mastropasqua – Molinari; a passagem do roteiro ao texto indicada por Scala e de roteiro à cena realizada por
Biancolelli foram analisadas com base nos apontamentos de Taviani. Conclui-se que a literatura na
Commedia dell’Arte estava intrinsecamente ligada à prática cênica e ao ator.
Palavras-chave: Teatro; Dramaturgia; Commedia dell’Arte; Canovacci; Ator.
ABSTRACT
Literature is discussed in Commedia dell’Art specially what is considered dramaturgy, the focus is in the
notion of actor´s dramaturgy in two contexts: the first one is when the actor writes his texts, named literal,
and the other one when he creates his scene. This dramaturgy is presented from fragments of screenplays and
pictures of Commedia dell’Art. The bibliography research was done through the finding, reading, analyzing
the canovacci finded in Barni and Testaverde. The “actor’s dramaturgy” is discussed by Barba and De
Marinis, and the creation of the theater screenplay, through images of Commedia Dell’Art, is done based in
Mastropasqua – Moliari. The passage of a theater screenplay to the text indicated by Scala, and from this
screenplay to a scene, realized by Biancolelli, were analyzed based in the appoints of Taaviani. The
conclusion is that literature in the Commedia dell’Art was deeply connected to the practice and to the actor.
Keywords: Theatre; Dramaturgy; Commedia dell’Art; Canovacci; Actor.
A Commedia dell’Arte surgiu na Itália entre os séculos XVI e XVIII, trata-se de um teatro
feito por grupos que se pretendiam profissionais, já que nos deixaram contratos entre atuantes nos
quais se comprometiam a permanecer como uma “fraternal companhia” por ao menos um ano. Não
menos importante foi o fato de muitos dos seus personagens usarem máscaras, por exemplo:
Arlequim, Pantaleão, Doutor, Capitão, Briguela, Putinela, Covielo, entre outros. Outra característica
fundamental parece ter sido o fato dos atores interpretarem de maneira improvisada. Muitos foram
os escritos dos atores, mas poucos na forma teatral conhecida hoje; o grande legado foi os roteiros a
partir os quais os atores improvisavam.
Para que se inicie um exame da literatura na Commedia dell’Arte, antes de tudo, devemos lembrar
que ela é múltipla e variada. Os atores/autores publicaram diversas formas de textos: tratados
teatrais como De la reformation du Theatre de Luigi Riccoboni; orações de celebração aos seus
colegas, o caso de Adriano Valerine a Vicenza Armani; poesias como Rime de Isabela Andreini;
zibaldoni, formado pelas falas dos personagens, mas sem amarração em um texto dramático, como
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I Prologhi de Domenico Bruni; canovacci, ou seja, roteiros; e os textos dramáticos com todas as
falas dos personagens escritas. Desses textos, podemos considerar dramaturgia, por conter
personagem, fábula e ação, somente os dois últimos: os canovacci e os textos dramáticos.
Abriremos um parêntese para mencionar a noção de dramaturgia para Aristóteles, no capítulo VI de
sua Poética:
O elemento mais importante é a trama dos fatos, porque a tragédia não é a
imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade ou de infelicidade.
Pois boa ou má fortuna dependem da ação, e a própria finalidade da vida é
uma ação e não uma qualidade. Ora os homens possuem tal ou tal qualidade,
conforme o caráter, e são bem ou mal aventurados pelas ações que praticam.
Daqui se segue que, na tragédia, não agem os personagens para imitar
caracteres, mas assumem caracteres para que efetuem certas ações; por isso
as ações e a fábula constituem a finalidade da tragédia, e a finalidade é de
tudo o que mais importa (ARISTÓTELES, 1966, p.77).
Neste trecho Aristóteles revela a importância da “trama dos fatos”, ou seja, da fábula, e afirma que
os personagens “assumem caracteres para que efetuem certas ações”. Para Aristóteles, em outro
trecho, são seis as partes da tragédia, em ordem de importância: fábula, caráter, pensamento,
elocução, música e espetáculo. As ações seriam determinadas pelo pensamento que “consiste em
dizer o que faz parte de tal assunto e a esse convém”. O objeto imitado é exatamente a fábula, o
caráter e o pensamento. Enfim, o que deve ser imitado pelo ator é a fábula, o personagem e a ação.
A elocução, que consiste no “enunciado dos pensamentos por meio das palavras”, é o modo como o
ator imita. A música e o espetáculo seriam os meios com os quais ele imita. Se haverá elocução, ou
não, nesta imitação é algo que deve ser decidido pelo autor, ele decidirá se haverá a representação
da tragédia ou não. Quanto ao espetáculo, Aristóteles afirma: “o espetáculo cênico é mais
emocionante, mas é menos artístico e menos próprio da poesia. Na verdade, mesmo sem
representação e sem atores pode a tragédia manifestar seus efeitos”. Esta “tragédia” poderia ser
chamada hoje de dramaturgia.
Como referência à literatura na Commedia dell’Arte foram apresentados os textos
dramáticos e os zibaldoni escritos por atores/ autores nos anais do VI Congresso da ABRACE
(Associação Brasileira de Pesquisa e Pós-Graduação em Artes Cênicas) e pode ser conferido na
internet em: http://portalabrace.org/vicongresso/etnocenologia/ Marcus%20Villa%20G%f3is%20%20Corpus%20para%20a%20pesquisa%20contemp
or%e2nea%20em%20Commedia%20dell
%92Arte.pdf.
Zibaldoni foram os textos que continham monólogos ou diálogos escritos por atores da
Commedia dell’Arte a partir das suas experiências pessoais, criados, a primeira vista, para auxiliar
na interpretação “improvisada” de outros atores. No entanto, desses não podemos retirar uma fábula
ou história com início, meio e fim, somente podemos perceber situações sem o desenvolvimento
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dos personagens ou trama. O ato de escrever o texto completo foi uma tendência que se amplificou
no decorrer das décadas na Commedia dell’Arte, e certamente foi essa uma das causas da sua dêsconfiguração e do seu desaparecimento.
Feitas as devidas ressalvas, podemos passar à identificação do que seriam os canovacci da
Commedia dell’Arte. Esses escritos não correspondem às expectativas com as quais costumamos
encarar textos dramáticos. Poucas são as probabilidades de encontrar as falas, de perceber a forma:
nome do personagem, seguido do texto que ele falará. Não encontraremos nos canovacci da
Commedia dell’Arte as falas dos personagens, a não ser em alguns momentos em “Selva de
Conceitos Cômicos” de Plácido Adriani (TESTAVERDE, 2007, p.757 e p.802), no qual ele coloca
monólogos no final do roteiro como apêndice. Para ser mais exato encontramos, às vezes, pequenas
falas no meio das ações em alguns roteiros.
Curioso é verificar que o termo canovaccio, segundo o dicionário Gabrielli da língua
italiana, publicado por Carlo Signorelli, em Milão, em 1994, significa:
1. Tecido de cânhamo, grosso e robusto, para lustrar. 2. Tela ou tecido ralo
para bordar com lã, seda ou outros. 3. fig. Rastros escritos de comédia
improvisada (a soggetto) // por extensão trama, desenho, rascunho. Do
francês canevas, do antigo chanevas, de chaneve, “canapa” (GABRIELLI,
1989, p.329).
Ou seja, a etimologia de canovaccio vem de um tecido fabricado a partir do cânhamo, planta
conhecida cientificamente como Canabis sativa.
Os canovacci da Commedia dell’Arte também são conhecidos como “scenari”, ou seja,
literalmente: cenários. Segundo o mesmo dicionário Gabrielli, scenario quer dizer:
1. O complexo das cenas, constituídas das rotundas e das coxias, que formam
o ambiente fictício no qual se desenvolve uma ação teatral ou no qual é
rodada uma ação cinematográfica ou televisiva. 2. Por extensão paisagem. 3.
(teatr.) Na Commedia dell’Arte, trama, canovaccio da ação cênica que servia
de guia aos atores para a atuação improvisada. Do tardo latim: scaenāriu(m),
espaço para as cenas (GABRIELLI, 1989, p.1882).
Acredito que podemos seguir nomeando os canovacci da Commedia dell’Arte como trama
ou roteiros. Estes roteiros são de difícil compreensão nos nossos dias, muitas vezes é difícil até
mesmo descobrir qual o sentido, o significado coerente para a compreensão da cena por tratar-se
somente de uma trama, um tecido que se liga em várias direções. Conforme Barni, tradutora de
Flaminio Scala para o português do Brasil, até mesmo a tradução pode complicar a compreensão do
significado da representação. Os roteiros de Scala são compostos:
de uma sumária descrição da ação, que já passou por uma espécie de
‘codificação técnica’ [...] mais completo do que costumam ser as rubricas de
praxe [...] a distância temporal e cultural cria ulteriores dificuldades de
compreensão da língua de partida e, conseqüentemente, à sua tradução na
língua de chegada. No que concerne à língua ‘italiana’ utilizada por Scala, de
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que língua está falando? Afinal, aquela era ainda uma época de incertezas
lingüísticas (SCALA, 2003. p.46-7)13.
Muitas são as coleções de roteiros existentes, Annamaria Testaverde indicou seiscentos e
oito títulos, destes, foram apresentados setenta e três roteiros completos (TESTAVERDE, 2007).
A coleção de roteiros de Flaminio Scala O Teatro das Fábulas Representativas, ou A
Recriação Cômica, Pastoral e Trágica: Dividida em Cinqüenta Jornadas foi editado pela primeira
vez em Veneza por Pulciani em 1611. Esta foi a primeira e única coleção de roteiros editados
escritos por um ator da Commedia dell’Arte, somente Scala escreveu seus próprios roteiros. Neste
caso, e veremos na conclusão que essa é a forma ideal, o roteiro nasceu das representações com os
seus atores, ele desejou transmitir por escrito as histórias para que fossem úteis a atores ou
diletantes futuros.
Na biblioteca Casanatense em Roma proveniente do Cardial Girolamo Casanate estão
localizados os Manuscritos 1211 e 1212 de Basilio Locatelli, Da Cena de Sujeitos Cômicos. Esta
coleção, com dois volumes, é a única datada – 1618/22. “Na dramaturgia de Leone Allacci (1666) a
coleção pertenceu, em 1654, ao médico e acadêmico Umorista romano Vincenzo Buzzi”
(TESTAVERDE, 2007, p.179). Basilio foi um acadêmico e cômico diletante provavelmente
próximo ao ambiente cultural do Cardial Barberini, sua coleção é de 103 roteiros.
Na biblioteca Corsiniana em Roma estão localizados os Manuscritos 45G5 e 45G6. São dois
volumes, com um total de cem roteiros e pertenciam a Mauricio de Savoia (1593-1657)
patrocinador da Academia dos Desiosi de Roma. Cada roteiro é classificado (comédia, tragicomédia
e comédia pastoral) e é acompanhado por um desenho em aquarela.
Também na biblioteca Casanatense em Roma estão localizados os Manuscritos 4186 de Ciro
Monarca, Das Obras Regias, são quarenta e oito roteiros. Talvez a coleção de Ciro Monarca tenha
tido a colaboração de Marco Napolioni (Flaminio) da companhia dos Estensi que traduziu mais de
vinte tragédias, comédia e Obras Regias do espanhol dentre as quais uma de Lope da Vega e duas
de Calderon della Barca transformando-as posteriormente em roteiros.
Na biblioteca Vaticana em Roma encontra-se o Código Vaticano Latino 10244, com 12
roteiros manuscritos. “Pertenceu provavelmente ao marechal Lorenzo Colonna (1637-89), mecenas
apaixonado, cultor e organizador de espetáculos com estrepitosas invenções cenotécnicas”
(TESTAVERDE, 2009, p. 625). Nessa mesma biblioteca encontram-se também o Código
Barberiniano Latino 3895, com 18 roteiros manuscritos, que “pertenceu provavelmente a Urbano
Barberini, terceiro príncipe de Palestrina, apaixonado cultor de teatro e mecenas” (TESTAVERDE,
2009, p. 653).
13
A exceção dos textos de Scala, todas as outras traduções do italiano foram feitas por este autor.
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A biblioteca do museu Correr de Veneza é detentora dos Manuscritos Correr 1040 que são
parte da coleção de Teodoro Correr (1750-1830), nobre veneziano colecionador de obras de arte.
Provavelmente os cinqüenta e um roteiros manuscritos provêm da biblioteca da família Soranzo.
Na biblioteca Nacional de Florença, com o código II.I.90 estão presentes vinte e dois roteiros
manuscritos dos séculos XVI e XVII. O antígrafo deste código foi localizado no manuscrito 2800
da Biblioteca Riccardiana de Florença.
Na biblioteca Nacional de Nápoles, sob os códigos XI.AA.40 e XI.AA.41, encontramos
Gibaldoni di soggetti da recitarsi all’impronto, alcuni proprij e gli altri da diversi raccolti di Don
Annibale Sersale, conte di Casamarciano. São 183 roteiros manuscritos, recolhidos por Annibal
Sersale conde Casamarciano no final do século XVII.
Na biblioteca Comunale Augusta de Perugia encontram-se os manuscritos classificados em
A,20, Selva overo Zibaldone di Concetti Comici (1734), recolhidos por Placido Adriani, monge
beneditino, ator diletante e autor de outras obras teatrais. Em a Selva de Conceitos Cômicos, além
dos roteiros, que são vinte e dois, existem prólogos, canções, lazzi, poesias que podiam ser inseridas
internamente à ação.
Com prevalência de comédias, mas também com tragédias e pastorais, os roteiros de
Flaminio Scala são antecedidos por um argumento que resume ou narra os fatos anteriores e por
uma lista de personagens e coisas para a cena. Como sugere o título dado por Scala à sua coleção –
Fábulas Representativas – podemos observar um roteiro como uma unidade orgânica, e assim
extrair dele uma fábula. Somente no caso de Scala os roteiros surgem das experiências teatrais
práticas dos atores (TAVIANI, 1982, p.224-5). Esta prática colocava entre as cenas, ou mesmo
durante as cenas, ações acrobáticas, versos cantados, passos dançados ou notícias da corte. O fato
dos roteiros terem sido criados juntamente com os atores tem influência decisiva na qualidade da
dramaturgia.
Passemos à análise de um trecho de um roteiro de Scala para compreendermos o quanto um
roteiro é subjetivo. Escolhemos este trecho por já havermos trabalhado com ele, mas muitos outros
contêm devaneios. Se pensarmos que uma dramaturgia com todas as falas escritas permite diversas
interpretações de um ator, o que não dizer de um roteiro?
Tentaremos criar imagens a partir das palavras, elas poderão se transformar em gestos,
movimentos e expressões em cena. Vejamos um trecho de O Pedante de Flaminio Scala:
(...) O Pedante diz que, se ela tiver de se aliviar de alguma vontade, não deveria recorrer a forasteiros, mas sim a
pessoas da casa, e conhecidas, e com destrezas de palavras oferece a si próprio para a sua satisfação, prometendo
apaziguá-la com o marido. Isabela, alegre, entra para se reconciliar com o marido.
PEDANTE: que percebeu que Isabella sem sombra de dúvida vai satisfazê-lo; alegre sai.
PEDROLINO: que apartado ouviu tudo, diz que o Pedante é um reles, e que a patroa está disposta a satisfazê-lo; nisto.
FLAMÍNIA: da janela, pergunta a Pedrolino por Horácio; nisto.
CAPITÃO: vê Flamínia, pergunta a Pedrolino sobre a jovem. Pedrolino: que ela é filha casadoira, e que converse com
ela, que ele irá em casa entreter as pessoas de modo que ele possa estar à vontade para lhe falar (SCALA, 2003. p.320).
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Como uma primeira observação, podemos nos perguntar se Isabela entra em casa com a
intenção de satisfazer o Pedante, ou não. Pois para a atriz é importante, já que ela terá de criar suas
falas de acordo com essa intenção. Ele promete “apaziguá-la com o marido”, ela entra “para se
reconciliar com o marido”, logo concluímos que ela quer livrar-se de dever um favor ao Pedante.
Ou seja, não irá satisfazê-lo, mesmo que Scala tenha escrito que ela entra “alegre” em casa. A
tarefa da atriz será de informar que irá se reconciliar com o marido sem, no entanto, dar a entender
ao Pedante que ela não irá satisfazê-lo. Será uma árdua tarefa para esta atriz, mas também para o
Pedante que deve, “com destrezas de palavras”, oferecer a si próprio.
Diferente de um texto dramático com as falas escritas, o roteiro possui uma imagem
primordial que remete à ação dramática, ou seja, antes que as imagens do roteiro derivem em uma
fábula elas ilustram uma ação cênica. Enquanto as imagens de um texto dramático, com as falas
escritas, nos remetem diretamente ao conteúdo de uma fábula ou história, as imagens de um roteiro
de Commedia dell’Arte nos remetem ao teatro. No primeiro caso, ao ler um texto dramático, nos
perguntamos o que está acontecendo, ou o que acontecerá aos personagens. No segundo caso nos
perguntamos o que deve acontecer na cena para que a aquela ação seja crível. O trabalho do ator
não se conclui com a memorização das falas, antes ele deve criá-las e para isso ele deve
compreender as ações dramáticas. O roteiro é pleno de ações dramáticas que os personagens devem
cumprir. Podemos pensar estas ações representadas como um quadro, ou ainda, imagens das cenas
compostas para o palco que formam um cenário (incluindo os atores), uma organização, uma
situação. Esta situação pode se transformar, deixar de ser figura e passar a compor o fundo do
quadro, caso surja outro personagem, ou mais raramente outra situação, desorganizando o que havia
sido construído. Por exemplo, quando, apartado, Pedrolino ouve tudo, quer dizer que ele já tinha
entrado em cena, mesmo antes de qualquer referência. Ele já havia transformado a situação cênica
de: duas pessoas dialogam; para: duas pessoas dialogam e uma ouve escondido.
Em outro momento, enquanto Pedrolino cria uma cena, um monólogo que prevê uma
traição, Flaminia surge na janela. Ela “pergunta a Pedrolino por Horácio; nisto. Capitão: vê
Flaminia”. “Nisto” é uma palavra bastante recorrente nos roteiros de Scala que indica a passagem
da figura ao fundo da composição. Uma situação criada, como em um quadro onde se pode observar
uma cena. Este quadro é um nó de tensão dramática onde será acrescido um elemento, mas não sem
traumas. Este elemento trará o conflito. É a própria imagem do teatro.
O termo dramaturgia como um substantivo em posse do ator – dramaturgia do ator – foi
utilizado por Marco De Marinis no livro, por ele organizado, chamado Drammaturgia dell’Attore,
da coleção Teatro Eurasiano.
Se pode falar não figuradamente de uma dramaturgia do ator pensando não
somente no ‘ator que escreve’ mas na construção do papel e do espetáculo,
no processo criativo do ator, concebido como um trabalho de composição, de
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tecelagem e de montagem, e por isso dramatúrgico, que tem por objeto as
ações, físicas e verbais, e se desenvolve em vários planos (DE MARINIS,
1996, p.07).
Neste livro, a partir, principalmente, de entrevistas com os atores do Odin Teatret, se discute
o modo de enunciação da dramaturgia do ator criada através das partituras físicas e das subpartituras. Para Barba a expressão dramaturgia do ator se refere a um dos níveis de organização do
espetáculo, é uma faceta do tecido dramatúrgico, alcançado pelos atores através dos exercícios nos
quais se busca uma interpretação interiorizada e a complexidade das emoções.
A noção de dramaturgia do ator passa pela criação das falas dos personagens pelos atores,
em um momento de improvisação. Assim, esta dramaturgia relaciona-se aos roteiros criados por um
autor, mas de maneira invisível, já que as falas não foram escritas. Além desta acepção, podemos
pensar a dramaturgia do ator como parte da dramaturgia de um espetáculo. A montagem do
espetáculo seria criada a partir das ações compostas pelo ator e editadas pelo diretor. O trabalho de
criação do espetáculo, narrado por Eugênio Barba no verbete Montagem do seu Dicionário de
Antropologia Teatral, prevê que os atores construam uma série de partituras corporais, regidas por
princípios trans-culturais do corpo-mente em cena. Essas partituras seriam re-contextualizadas pelo
diretor para a criação da dramaturgia do espetáculo.
Acreditamos, assim, na possibilidade de ver a dramaturgia do ator como um trabalho de
composição de partituras corporais que foram construídas a partir de ações dramáticas, assim como,
inversamente, é possível observar algumas seqüências de imagens e imaginar para elas uma
dramaturgia.
Observemos as figuras de As Desgraças de Arlequim Apaixonado (fig. 01 e 02) que ilustram
uma comédia recitada na França no final do século XVI e fazem parte da coleção Fossard. São 18
pranchas reunidas pelo Barão Nicodemus Tessin, ministro da Suécia em Paris, conservadas no
Drottningholms Teatermuseum de Estocolmo. Podemos retirar dali um roteiro, como devaneou
Mastropasqua em 1970.
Pantaleão apaixonado faz a corte para dona Lucia com a ajuda de Arlequim e
Zanni, mas é rejeitado. Por sua vez, Arlequim está apaixonado por
Francisquinha que também o rejeita deixando-o morrer de amor: a serva tem
um flerte com Pantaleão. Descobrindo o flerte Arlequim se veste de
cavalheiro para desafiar Pantaleão, mas esbarra em D. Lucia e não resiste à
tentação de fazer a corte. Horácio, apaixonado por Lucia, percebe a corte e dá
pauladas em Arlequim. Este se recompõe e enfrenta Pantaleão que lhe cede
novamente Francisquinha, mas dessa vez grávida. Pantaleão obriga Arlequim
se casar com Francisquinha. Depois do casamento Arlequim percebe que
Francisquinha tem 8 filhos de Pantaleão. Ele leva os filhos ao pai para que os
mantenha financeiramente. Pantaleão o bota para correr, mas sua filha
Lucrecia intervém e promete a Arlequim uma compensação
(MASTROPASQUA-MOLINARI, 1971, p.91-125).
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As imagens da coleção Fossard possuem detalhes ricos de ação dramática e podem ser descritos em
outra seqüência: Pantaleão canta uma serenata (fig. 1.2), mas precisa de um ponto para não errar
(fig. 1.1), coisa que certamente faz diversas vezes; Arlequim é um servo e pode ser muito mais
devasso em seu amor por Francisquinha, Pantaleão observa a cena (fig. 2.7); Francisquinha percebe
a presença de Pantaleão se envergonha e acaba o namoro com Arlequim que morre de amores,
outros servos o consolam (fig. 1.6). Pantaleão corteja Francisquinha, Arlequim quer se vingar
(fig.2.6). Ele, então, veste uma armadura ao contrário, coloca uma panela na cabeça e monta em um
burro, talvez sob os conselhos de Horácio (fig.2.1). Lucrecia o aconselha a não ir à luta, com o dedo
em riste, Arlequim coloca os ombros para frente em atitude desafiadora a Zanni Corneto que está
atrás (fig. 2.4). No caminho faz a corte a D. Lucia e coloca uma mão no seu ombro, como resposta
ganha uma mão na coxa, a parte séria dos enamorados patrões mistura-se à comicidade dos servos,
eles são observados por um capitão invisível, pois está enrolado em sua capa, e delator (fig. 1.7).
Horácio sente-se traído e ameaça Arlequim; Doutor assiste a cena (fig. 1.8). Arlequim se desarma.
Pantaleão está pronto para briga com a faca na mão, tipo: “me segura, se não eu mato” (fig. 2.3).
Pantaleão vai até a casa de Francisquinha (fig. 1.5) ameaçar Arlequim (fig. 2.8). Francisquinha
manda Zanni alertar Arlequim e levar uma prova, cria-se uma confusão para se esconder (fig. 1.4).
Arlequim deve mudar de atitude, embebeda-se resignado e é observado por Pantaleão (fig. 1.3).
Este recebe Arlequim e faz o seu matrimônio com Francisquinha, grávida (fig. 2.2). Ela possui oito
filhos, devem entrar em cena um a um, ele arruma-os numa sacola e leva para o pai Pantaleão (fig.
2.5).
108
Fig. 2.3
2.1
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Fig.Fig.
2.1 2.3
Fig. 1.1
Fig. 1.3
Fig.
Fig.
2.22.4
Fig. 1.2
Fig. 1.4
Fig. 2.7
Fig.
Fig. 1.5
1.7
2.5
Fig. 2.8
Fig. 2.6
Fig. 1.8
Fig. 1.6
Figura 01: As desgraças de Arlequim enamorado. Coleção Fossard reunida pelo Barão Nicodemus Tessin, ministro da Suécia em
Paris. Figuras localizadas no Drottningholms Teatermuseum de Estocolmo.
Figura 02: As desgraças de Arlequim enamorado. Coleção Fossard reunida pelo Barão Nicodemus Tessin, ministro da Suécia em
Paris. Figuras localizadas no Drottningholms Teatermuseum de Estocolmo.
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A partir de figuras concretas os atores podem criar diversas dramaturgias. Nessas imagens,
porém, percebe-se ainda “um obscurecimento das fronteiras entre os gêneros: dança e pantomima,
circo, teatro musical e falado se associam” (LEHMANN, 2007, p.38). Se pudéssemos observar
essas imagens como pertencentes a um espetáculo pós-moderno, poderíamos dialogar com
Lehmann que cita Schechner, quando afirma: “Não é mais o ‘enredo’ que constitui a ‘matriz
geradora’, mas sim aquilo que ele chama de ‘jogo’”. O jogo esteve presente, certamente, no
processo que levou Scala a escrever os seus roteiros. Quanto aos outros roteiros, escritos por
amadores que não viam no teatro uma profissão, não podemos afirmar se a imaginação de seus
autores teve origem no jogo cênico ou se a adaptação de textos clássicos foi a única inspiração.
Em um único caso Flaminio Scala escreveu as falas de um roteiro. Trata-se de O Marido,
roteiro já traduzido por Roberta Barni. Quanto ao texto dramático com todas as falas escritas ele
chamou de O Falso Marido, publicado em Veneza, em 1618. Do roteiro ao texto houve algumas
alterações. Os atos, de três passaram a cinco. O nome dos personagens se desconectou dos nomes
típicos: Pantaleão se torna Demetrio Aliprandi; Graciano passa a se chamar Gervasio Grifone;
Oracio se transforma em Lépido; Isabela em Porcia; Flaminia em Julia; Capitão Espavento em
Flávio; Pedrolino em Scaramuccia e Arlequim em Trápola. Se no roteiro lemos [Pedrolino: diz ter
sonhado que Horácio havia chegado; vê-o, afagam-se]. No texto temos:
Scaramuccia: estes sapatos estão tão apertados que precisarei fazer o que diz
a canção: se me faz mal a ponta, atrás eu quero cortar. Mas quem é aquele
que está lá naquele canto camuflado?
Lépido: que fazes nobre homem?
Scaramuccia: aquele não fala comigo.
Lépido: olá, olá, o Scaramuccia.
Scaramuccia: tenha fé que ele fala comigo. O que o senhor disse, ô homem,
que negocio tem com Scaramuccia?
Lépido: muito mais do que você acredita: ouça.
Scaramuccia: Quem diabos será, agora? Não tenho dívidas, que eu saiba,
nem este parece um guarda, se bem que esse capuz puxado sobre os olhos
não me dão muito boas referências. Quero dar boa impressão: ô homem, com
licença, retire a capa do rosto se quiser falar comigo.
Lépido: Meu Scaramuccia, não me espanto que você não me reconheça, pois
eu não sou mais aquele Lépido de antes.
Scaramuccia: ai de mim, o que ouço? Ai de mim, o que vejo? Senhor
Lépido, é o senhor? É o senhor o meu patrão? Sou eu Scaramuccia? Sonho,
durmo ou estou acordado? Scaramuccia,volte a si, abra os olhos que este é o
seu patrão, este é Lépido, diga que é ele mesmo. O meu senhor Lépido que
bons ventos o trazem a esta cidade? (TAVIANI, 1982, p. 236)
Neste exame, depois de enfocarmos os roteiros, apresentamos uma série de figuras que
retratam com precisão os personagens em cena. Dessas figuras também criamos o roteiro, criando,
por assim dizer, um caminho inverso da cena ao roteiro. Depois apontamos um exemplo de um
percurso dramático do roteiro ao texto. Mas como podemos imaginar a ação cênica, o jogo entre os
atores, o tempo da cena? Domenique Biancolelli, famoso Arlequim, escreveu o que podemos
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entender como o caminho feito do roteiro à cena. Ele escreveu um documento rico de imagens, o
mais perto de um subtexto que um ator de Commedia dell’Arte poderia nos deixar.
Ato I: na minha primeira cena saiu do estúdio, enquanto chegam Trivelino e
o meu patrão. Cumprimento-lhe e ele me vê, falo com ele em latim e ele me
escarnece. O doutor chama sua filha, Eularia, ela chega e o meu patrão,
Otávio, fica tão feliz de vê-la que se sente mal e desmaia. Faço os meus lazzi
de desesperação, dizendo em um latim ruim que antes de morrer deve
recordar-se de me dar o meu salário. O meu patrão é levado embora.
Chega Pantaleão dizendo-me ter se esposado com Diamantina e mostra-me
ela: eu faço lazzi (quero cair morto ou desmaiado, mas não consigo), depois
tiro a casaca, chego um pouco mais pra lá, me deito sobre a casaca, e finjo
que morri. Pantaleão me levanta e me apóia à parede, mas quando se gira, eu
vou embora, e ele, olhando de novo na direção em que me deixou, fica
surpreso por não me ver. Depois eu me meto de novo no mesmo lugar e ele,
espantado, me vê novamente. Repito duas ou três vezes este lazzo, dando-lhe
medo. Pantaleão tentando entrar em casa termina por cair sobre a porta, que
se abre, e assim termina o ato.
Ato II: nesta cena o Doutor me interroga, mas enquanto ele fala, eu me dirijo
a Diamantina: cruel e cujos belos olhos tantas vezes me enganou, não abusará
mais da minha bondade! Prefiro arrancar meus olhos com meus próprios
dedos. Enquanto gesticulo o Doutor me dá a mão de Diamantina, e eu, então,
digo: eis então essa mão perjura que tantas vezes me ofereceu um excelente
prato de macarrão, ou um pedaço de queijo parmesão, que tantas vezes tocou
a minha para certificar-me da sua fidelidade, e deve ser dada a um velho
como Pantaleão, não, nunca, antes a comerei com meus próprios dentes.
Diamantina, assustada, a retira, e eu: desculpe-me, senhora, me deixei levar
pelo furor, etc.
Esta cena se desenvolve entre mim e Otávio. Nós dois estamos sentados num
banco, contando um ao outro as nossas penas, depois eu me levanto e Otávio,
com seu peso, faz o banco virar e cai no chão.
Nesta cena exprimo a Diamantina todo o meu despeito e o meu ciúme. Ela
procura me fazer pensar, sem conseguir, e diz à parte: oh que belos olhos,
que bela boca, que bela figura! Eu, pensando que tira sarro de mim, a rejeito,
ela me reprova, eu me afasto imitando a sua perfídia e saiu com muita raiva
dela. Enquanto Otávio fala a sua bela (que quer vesti-lo de mulher e tirou sua
saia para dar a ele) eu chego e faço o gesto de baixar minhas calças para fazer
as minhas necessidades (TAVIANI, 1982, p.221).
O personagem interpretado por Biancolelli parece desenvolver a sua improvisação a partir
de um acordo inicial, isto é, a partir de um roteiro onde baseia suas ações. Não parece adaptar-se
cada vez aos diversos momentos do espetáculo numa livre improvisação. De fato, não parece uma
improvisação, suas ações são muito bem marcadas, ainda que suas falas possam variar bastante. Isto
indica para nós o trabalho do ator profissional que deve partir de um roteiro para criar suas ações
cênicas e somente depois, improvisando, fixar sua cena e sua dramaturgia.
Findamos ao perceber que por não fazer uso exclusivo do texto dramático, com todas as falas dos
personagens, os cômicos dell’arte não se colocavam a problemática da hierarquização dos
elementos teatrais: texto, gesto, cenário. Os espetáculos não foram compostos por um autor, mas
por muitos. Os atores foram ao mesmo tempo autores e esta função confundia-se também com a do
diretor. A figura do chefe cômico (Scala, por exemplo) tinha a função de escrever os roteiros
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adaptados de outras obras e de criar, junto com todos os atores, a seqüência a ser apresentada.
Concluímos fechando a discussão no teatro contemporâneo: “O diretor só será obrigado a apagar-se
perante o autor enquanto se aceitar que a linguagem das palavras é superior às outras” (DERRIDA,
1971, p.155). Os atores podem criar a dramaturgia dos seus personagens a partir de roteiros. O
repertório deve ser composto tanto de textos memorizados quanto de gestos e situações coletivas. O
teatro possui uma linguagem própria que precisa ser compreendida em um universo de línguas,
dialetos, vocabulários, linguajares e idiossincrasias. A criação coletiva, o jogo cênico, gestos,
músicas, acrobacias e todos os códigos que possam reforçar o conteúdo de um diálogo, devem ser
usados pelo ator, se houver meios.
REFERÊNCIAS
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DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1971.
LEHMANN, Hans-Thies. Teatro Pós-Dramático. São Paulo: Cosac Naify, 2007.
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MOLINARI, Cesare. La Commedia dell’Arte. Milano: Arnoldo Mondadori Editori, 1985.
__________Attori-autori della Commedia dell’Arte. In: Quaderns d’Italià 2, 1997. P. 21-37.
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PORTICH, Ana. A Arte do Ator entre os Séculos XVI e XVIII. Da Commedia dell’Arte ao Paradoxo
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SCALA, Flaminio. A Loucura de Isabela e outras Comédias da Comédia dell'Arte. Trad. Roberta
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TAVIANI, Ferdinando; SCHINO, Mirella. Il Segreto della Commedia dell'Arte. Ùltima edição:
2007. Firenze: La Casa Usher, 1982.
TESTAVERDE, Anna Maria. I Canovacci della Comedia dell’Arte. Torino: Giulio Einaudi, 2007.
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O CRIOULISMO DE HÉLIO SEREJO: UMA REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA DO REGIONALISMO NO MATO
GROSSO DO SUL
Leoné Astride Barzotto (UFGD)
Noraci Cristiane Michel Braucks (UFGD/CNPQ)
RESUMO
Temos encontrado em Contos Crioulos (1998) uma noção regionalista de crioulismo, própria do autor sulmatogrossense Hélio Serejo. Nos contos Amor pelo crioulismo e Isso também é crioulismo, percebemos a
complexidade do crioulismo serejeano. As coisas próprias da região abarcam a paisagística – de
“originalidade arrebatadora”, as crenças religiosas, a fauna e a flora, bem como as expressões linguageiras e
as diferentes etnias que convergem na fronteira do Brasil com o Paraguai no Mato Grosso do Sul. Diante
disso, procuramos estabelecer diferenças com outras terminologias geradas a partir do verbete crioullo,
usadas nas Américas. Abordando o caso da língua crioulo nas Antilhas, e a discussão teórica acerca de
crioulidade e crioulização, procuramos estabelecer algumas balizas teóricas do crioulismo de Hélio Serejo,
em sua proximidade com a noção de regionalismo enquanto dimensão constituinte da identidade fronteiriça.
Palavras-chave: Literatura; crioulismo; regionalismo; Hélio Serejo.
ABSTRACT
We have found in Contos Crioulos (1998) a regionalist concept of crioulismo, the author's sulmatogrossense Helio Serejo. In tales Amor pelo crioulismo and Isso também é crioulismo, we perceive the
complexity of crioulismo by Serejo. Things own of region as landspace, religious beliefs, vegetation and
animals, as well as the language expressions and different ethnicities converge on the border of Brazil with
Paraguay in Mato Grosso do Sul. Thus, we seek to establish differences with other terminologies generated
from the crioullo word, used in the Americas. Contrasting with the case of crioulo language in the Antilles,
and the theoretical discussion about crioulidade and crioulização, we seek to establish some theoretical
beacons of crioulismo by Hélio Serejo, in its proximity with the concept of regionalism while part of border
identity.
Keywords: literature; crioulismo; regionalism; Hélio Serejo.
1. INTRODUÇÃO
Contos Crioulos (1998) do autor Hélio Serejo revela-se uma literatura rica em aspectos
regionalistas do Mato Grosso do Sul. Tomamos aqui a perspectiva de regional apresentada por
Dilma Castelo Branco Diniz e Haydée Ribeiro Coelho em que é possível afirmar, junto a Afrânio
Coutinho, que “toda arte é regional” (DINIZ E COELHO, 2005, p. 417, apud COUTINHO). Ou
seja, a arte e, portanto a literatura, revela questões específicas e interrelacionadas de ordem política,
antropológica, econômica, religiosa, entre outras, da região cultural de onde surgem. Por região
cultural, toma-se aqui a ideia de ciclos culturais uma vez que a divisão regional geográfica não
assegura o regionalismo de uma obra literária, embora inicialmente esteja ligado a ela.
1.1 “O mais Matogrossense de todos os Matogrossenses”14
14
Título de prémio recebido por Hélio Serejo em 1952, pela Associação Matogrossense de Estudantes.
113
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Para Hélio Serejo, o ser fronteiriço significa mais do que viver numa cidade de fronteira;
significa “respirar” os “ventos” que vem de outros lugares e que convergem na fronteira.
Eu sou o homem desajeitado e de gestos xucros que veio de longe. Eu sou o
homem fronteiriço que na infância atribulada recebeu nas faces sanguíneas os
açoites desse vento, vadio e aragano, que, no afirmar da lenda avoenga, nasce
nas terras incaicas, no recôncavo do mar, varre o altiplano boliviano, penetra
o imenso aberto do Chaco Paraguaio, para depois, exausto do bailado
demoníaco, numa cólera e estrupício de tormenta, arrebentar, cortante e
gélido, na cidade de Ponta Porã, a Princesa da Fronteira, sentinela avançada
das terrarias matrogrossenses (REIS, 1980, p. 16).
Assim, Hélio Serejo destaca-se na literatura do Mato Grosso do Sul pela forma como
apresenta a região da fronteira Brasil-Paraguai. A paixão do autor por essa região marca sua obra,
podendo ser observada em Contos Crioulos (1998), onde o autor narra histórias de sua própria
vivência nas fazendas de erva-mate de seu pai, ainda na primeira metade do século passado. Por
isso, a literatura deste “escravo apaixonado do nativismo” (SEREJO, 1998, p. 36), como o próprio
autor se denomina, revela-se uma expressão artística sui generis das “coisas crioulas”.
O olhar de Serejo esteve, desde o nascimento, voltado para a região sul do antigo Estado do
Mato Grosso. Nascido em 1912 em Nioaque, o ainda menino Hélio se acostumou com a vida nas
fazendas. A infância foi passada, em boa parte, na companhia de Guavira, um cavalo petiço. Já na
juventude, o autor aprendeu todo o trabalho braçal da erva-mate, e ajudou o pai na administração de
fazendas no extremo sul da região, onde hoje se localizam as cidades de Mundo Novo, Tacuru e
Ponta Porã.
A maneira enamorada como Serejo descreve as paisagens da região, sua fauna e flora, e as
diferentes etnias que (con)viveram na fronteira, revela o ponto de vista de um observador que não
está distanciado da realidade. Ao contrário, Hélio Serejo apresenta-se como um “vivenciador” que
decide transpor sua realidade e inscrevê-la artisticamente.
A carreira de Hélio Serejo como escritor conta com a produção de 41 obras e vasto trabalho
jornalístico. Foram inúmeros programas de rádio, todos a favor de sua terra natal. Teve trabalhos
publicados em Portugal, Uruguai, México e Paraguai. A lenda “Por que o Jaburu é triste” foi
incluída no Dicionário Internacional de Lendas, publicado na Inglaterra. Seu trabalho também
chegou à televisão ― a TV Record apresentou uma montagem do conto “Lua do Brejo”. O tema do
escritor foi sempre o mesmo, o folclore e a vida no Mato Grosso. Entre os prêmios que ganhou,
destacamos o título de “O Mais Matogrossense de todos os Matogrossenses”, em 1952 pela
Associação Matogrossense de Estudantes, e a 18ª cadeira da Academia Matogrossense de Letras,
em 1973, cujo discurso de posse é uma importante fonte autobiográfica de Hélio Serejo (REIS,
1980, p. 91-103).
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O prefácio e a Apresentação à edição de 1998 de Contos Crioulos, de Enilda Mougenot
Pires e Nelly Barbosa Macedo, respectivamente, trazem um panorama completo da riqueza da obra
de Serejo, em sua dimensão regionalista. Os aspectos pontuados pelas autoras nos indicam uma
amostra do que encontraremos na leitura do livro de contos− a vida cabocla.
Em todos os contos, a trama vem da vida cabocla que é sua característica
mais forte. “Que mundo é esse em que me encontro?” É um filme do sertão
mato-grossense. Existe aqui o prazer de transitar entre paisagens que
inspiram-no. Ou de criar imagens rigorosamente nativistas... (SEREJO, 1998,
p.11).
1.2 O caso do crioulo antilhano e o crioulismo embriagador de Hélio Serejo
A palavra “crioulismo”, de uso comum na linguagem do autor Hélio Serejo, tem origem na
palavra francesa créole (do latim criare, educar), usada no período colonial para designar os
descendentes franceses nascidos na América. Por isso, o termo surge nas colônias francesas na
América Central, sendo posteriormente utilizado em diferentes regiões do continente sul-americano
com variação de sentido. Tais variações são conhecidas no Brasil, onde crioulo pode ser usado para
designar pessoas e coisas de determinadas regiões do Rio Grande do Sul; e qualquer indivíduo
negro no Rio de Janeiro. (VIANNA, 2005, p. 103).
Eurídice Figueiredo (1998) apresenta o caso do criollo (espanhol) nas ilhas Martinica e
Guadalupe na região das Antilhas, cujas terras foram colonizadas pelos franceses . Nessa situação
original, o criollo designa a língua gerada desde o período colonial, cenário de miscigenação.
Com a chegada de grandes levas de escravos nas plantações de cana-de-açúcar, os negros
aprenderam o francês com os outros escravos negros já instalados nas fazendas. A partir daí,
surgem variantes do francês, faladas pelos negros crioulos, gerando o criollo, doravante crioulo.
Acredita-se inclusive, que o dialeto tenha aproveitado variantes da própria língua francesa, uma vez
que vieram para as regiões colonizadas, pessoas oriundas de diversas regiões da França. Assim, o
crioulo nas Antilhas tornou-se a língua dos negros, até mesmo porque a maioria dos habitantes das
ilhas é negra.
O caso específico da construção de um dialeto paralelo à língua francesa nas colônias de
Martinica e Guadalupe remete a um fenômeno comum às situações de diáspora – a crioulização da
língua. Essa expressão, assinada por Édouard Glissant (1928-2011), designa o fenômeno cultural
que surge da integração de diferentes expressões linguísticas e culturais, especialmente nas regiões
colonizadas, devido o fluxo de migrantes e viajantes, tão próprios do período colonial (VIANNA,
2005, p 106).
A colonização promoveu a convergência de diversos sujeitos transplantados de sua terra
natal para as colônias, como foi o caso das pessoas que migraram para as Américas, forçosa ou
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voluntariamente, gerando uma relação de contato entre diferentes costumes, modos de pensar e
tradições culturais. Tal ligação vai além da mestiçagem dos povos, uma vez que transpõe a
previsível mistura biológica da miscigenação, enquanto cria regiões culturais e linguísticas
totalmente inesperadas. A crioulização também vai além da transculturação, visto não se limitar a
obviedade conceitual de troca entre as culturas geográficas, mas superando a troca pela convivência
sem diluição das diferenças.
Com isso, percebemos que é no território geográfico que acontece o encontro das diferenças,
propiciando que elas se afinem e se ajustem, gerando uma situação cultural e linguística nova. À
medida que a crioulização se constitui, o território já é transcendido pelo lugar; o lugar já não é
palpável, sendo real no imaginário dos sujeitos e da sociedade gerada num determinado território
concreto. No sistema colonial, o lugar está sob a influência do sistema colonial da mesma maneira
que o território. Assim, o espaço de aproximação, ou contato, é também de conflitos por conta das
relações de poder. Isso significa que na colônia, enquanto espaço ao mesmo tempo do colonizador e
do colonizado, o colonizado criou e manteve seu dialeto próprio, adaptado ao lugar de sua vivência,
não sucumbindo por completo ante a dominação colonial (VIANNA, 2005, p. 114-116).
Dessa forma, entende-se como a vivência do lugar oponha-se ao discurso colonial centrado
na cultura europeia. É no descentramento da cultura europeia e no testemunho da heterogeneidade
das culturas nacionais, como sintetiza Núbia Hanciau (2005), que surge uma nova língua,
descentrada e híbrida. Enquanto nova língua, a língua crioula ou crioulizada é vinculada, mas
diferente da língua colonizadora, indicando uma não assimilação completa, por parte dos
colonizados, da língua e de todo o arcabouço cultural europeu que nela está embutido. Portanto, o
dialeto crioulo não apenas indica que há resistência, como é por si só resistência ao projeto colonial.
Como a língua crioulizada nem sempre é conhecida pelo colonizador, ficando no domínio dos
colonizados, torna-se uma presença desestabilizadora da pretensa homogeneidade do colonizador,
bem como de seu poder15.
Diante disso, podemos estabelecer algumas semelhanças e diferenças com o crioulismo de
Hélio Serejo. De um lado, o crioulismo serejeano inclui uma língua híbrida (BARZOTTO, 2009),
gerada numa situação de intensa mistura cultural. Os traços de guarani, espanhol, linguajar gaúcho e
paraguaio mesclados poeticamente ao português forjaram a língua fronteiriça do autor sul-matogrossense. Porém, há uma mistura de outros aspectos da cultura que são, por conseguinte,
15
No caso da língua crioula em Guadalupe e Martinica, o crioulo não se estabelecesse como língua oficial. O poder
colonial nunca esteve aberto à realidade subalterna, impondo sua língua como forma de dominação. Por isso, ao longo
da história, e até os dias de hoje, observa-se um relação ambígua da população de Martinica e Guadalupe com a
diglossia francês/crioulo. Essa relação ambígua com a língua em Martinica e Guadalupe representa muito bem a
problemática da língua como parte constituinte da identidade humana. A ambiguidade certamente marca a as
representações do “ser” daquelas pessoas, e indica que ainda é preciso haver superação sobre os velhos estereótipos
herdados do colonialismo.
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constituintes da identidade na fronteira, sua realidade específica. São aspectos paisagísticos e
culturais, marcados a todo tempo pelo uso de uma língua híbrida, própria do autor.
Dessa forma, a língua híbrida na obra serejeana tem a função, à semelhança do crioulo
antilhano, de subverter a padronização linguística, própria das pretensões unívocas coloniais.
Assim, o discurso colonial que ainda ecoa nos países outrora colonizados, como é o caso do Brasil,
é trazido à tona na literatura de Hélio Serejo. A visitação de sua obra promove o desvelamento de
muitas das implicações desses processos, oferecendo indicativos de resistência e revide aos sistemas
que pretendem a dominação cultural, e por meio dessa, controle político e econômico.
As palavras de origem ameríndia que infiltram suas obras constituem uma
característica extremamente relevante, suscitando a intenção de harmonizar e
equilibrar os valores sociais impostos, pois a língua híbrida é muito mais do
que um recurso poético ou um estilo do autor; é, acima de tudo, um
instrumento de denúncia, de sobrevivência e garantia da posteridade de uma
dada realidade porque nela o registro da história se faz possível. Como se
pode negar a importância de uma escrita literária de caráter híbrido uma vez
que três quartos da população do planeta têm suas vidas marcadas pela
experiência do colonialismo? (BARZOTTO, 2009).
1.3 Ainda a crioulidade
O caráter de mescla, próprio do crioulismo que Hélio Serejo apresenta, em Contos Crioulos
(1998), aproxima-se ainda das noções de crioulidade discutidas pelos teóricos latino-americanos
Édouard Glissant, Jean Bernabé, Patrick Chamoiseau e Raphaël Confiant.
Uma marca da crioulidade é a importância de um retorno às raízes ― a identidade rizoma16,
como defendido por Gilles Deleuze e Félix Guattari. Para desconstruir e reconstituir as identidades
da identidade crioula, identificando os processos de dominação cultural e política que tais
identidades sofreram. Esta tem sido uma estratégia contemporânea não só de resistência, mas de
promoção da liberação efetiva da colonização, histórica e atual.
A síntese dessa discussão teórica pode ser encontrada no artigo-manifesto Eloge de la
créolité, publicado em 1989. No Eloge (1989) o conceito de crioulidade aparece como sinônimo de
mestiçagem. Tal conceito se torna questionável por ser historicamente associado à bastardia,
reforçando os preceitos coloniais de depreciação dos indivíduos nascidos da mistura da raça
européia com a raça negra. Entretanto, o termo crioulo também é problemático por que teve seu
sentido alterado ao longo tempo, ora representando brancos nascidos nas colônias, ora os negros,
em nada se relacionando com mestiçagem de raças. Aqui se faz relevante a concepção de Fernando
Ortiz acerca de transculturação, onde a mestiçagem cultural é comparada à biológica. Para esse
autor, assim como indivíduo gerado trará traços de ambos os genitores, sempre se distingue em
16
Na botânica, rizoma corresponde a um sistema de raízes de esparramação horizontal, opondo-se à raiz única de
sistema vertical (BONNICI, 2005, p. 50). Édouard Glissant retoma a imagem de rizoma (de Deleuze e Guatari) como
metáfora de oposição e resistência ao discurso vertical e totalitário colonizador – a raiz única.
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relação a cada um dos dois. Isto significa que a cultura fruto da mestiçagem de culturas
(transculturação) é uma cultura nova – a neoculturação (FIGUEIREDO, 1998, p. 105).
A noção de crioulidade está vinculada a esse caráter aglutinador de diferenças. No Eloge o
crioulo é "veículo original de nosso eu profundo, de nosso inconsciente coletivo, de nosso gênio
popular" (FIGUEIREDO, 1998, p. 104 apud BERNABÉ, CHAMOISEAU, CONFIANT). O
paralelo brasileiro é traçado por Gilberto Freyre em Casa-grande e senzala (1933), ao demonstrar
que nós americanos carregamos marcas da miscigenação, quando não na cor da pele, certamente na
internalização cultural.
Os teóricos indicam um fenômeno quase natural da condição humana, que é a capacidade de
misturar-se, enredar-se, e a partir daí, resistir à ideia do dominante que se propõe como única,
uniforme e superior. Essa relação complexa, dita crioula, não suprime conflitos gerados pelo
contato das diferentes culturas, e visões de mundo, bem como das compreensões diferentes a
respeito de como resistir à dominação, e até mesmo, da disposição à resistência.
Paradoxalmente, o encontro crioulizado de diferentes culturas “acena como uma esperança
histórica de reconciliação dos povos em um mundo marcado por guerras e fenômenos de
uniformização e estandardização culturais” (VIANNA, 2005, p. 120). Retomamos conclusões de
Benjamin Abdala Júnior, “é das formas misturadas, crioulas, diríamos, que é possível promover
uma coexistência contraditória, onde cada unidade considerada não se anule na outra; ou então se
feche nas perspectivas da guetização ou dos fundamentalismos” (ABDALA JUNIOR, 2004, p. 19).
O crioulismo de Hélio Serejo aponta para a complexidade em que está implicada a
convergência cultural nos termos de crioulidade. Em “Isso também é crioulismo”, o autor inclui em
seu próprio conceito de crioulismo uma simpatia para encontrar objetos perdidos. Essa inclusão
remete ao tema recorrente em Contos Crioulos do folclore e do misticismo. A abrangência é ampla,
de maneira que é possível recolher um
minuncioso registro folclórico que compreende ainda glossários, descrição de
festas como o cururu, a marujada, a Festa do Divino, coletâneas de refrões, o
folclore do papo, da saudade, do fogo, da cachaça, das florestas;
características dos índios kilnikinaus, dos chamacocos, dos araés, dos
guaicurus (SEREJO, 1998, p. 27).
A partir das palavras do próprio autor, identificamos os principais traços que delineiam o
crioulismo de Hélio Serejo.
Sorví, com muita sofreguidão, o selvático, o descampado, os cômoros, os
brejais infindáveis [...] o vento sulino anunciando chuva [...] o barulho
cantante da queda d’água no coração das brenhas, e o luar que branqueja a
vastidão. Viví, intensamente, esses momentos, formadores todos do
crioulismo embriagador” (SEREJO, 1998, p. 35).
2. CRIOULISMO E REGIONALISMO
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O crioulismo de Hélio Serejo foi forjado pela própria admiração do autor pela vida sertaneja
na região sul-mato-grossense. Ele mesmo reconhece o seu crioulismo como uma “tendência
nativista”, “tal como registra a literatura Hispano-Americana” (SEREJO, 1998, p. 145). Com isso,
Serejo remete aos seus conhecimentos literários, e sua reflexão a respeito da literatura enquanto
registro de aspectos regionalistas, ou “nativistas” de uma determinada região.
Dessa forma, movido pelo crioulismo, Serejo irá descrever detalhadamente a vida das
fazendas ervateira, locais de sua vivência. Tudo que o diz respeito ao cotidiano da maneira de viver,
de pensar, de crer, de falar, de executar as tarefas relativas à lida da erva-mate, está descrito e
caracterizado como algo próprio da região.
O velho pilão, o catre mal trançado, o arreio cacareco, o gamaleão, o maroto
chapéu carandá, o poncho descolorido, soltando fiapos, a forma de rapadura,
o ferro de brasa para passar a roupa, a mariquinha, carote, o panelão de ferro
desbeiçado, o porongo guardador de água, a caneca de latão, o resto de
cobertor para se defender do frio, o sapatão de couro de anta e centenas de
outros pertences são marcas indestrutíveis do CRIOULISMO (SEREJO,
1998, p. 145).
Entretanto, é na descrição da flora e fauna da região que se concentra o acento poético da
literatura de Hélio Serejo. É justamente nessa tônica marcante que a definição de crioulismo, nas
palavras do próprio autor a respeito do assunto, delineia um correspondente com a paisagística da
região sul-mato-grossense.
No conto “Isso também é crioulismo”, onde Serejo descreve a “árvore dos ninhos” e a planta
“Tatiá”, vemos a predileção do autor pelas belezas naturais da região.
Do matuto, do sertanejo, do charrua, do campechano e do CRIOULO dotado
de fascinação, nada balançou tanto o meu coração de fronteiriço e de
bugre, como a “árvores dos ninhos”, pelo excêntrico, compactação
clorofilada, originalmente paisagística, graciosidade e beleza (SEREJO,
1998, p. 165 – grifo próprio).
Em “Amor pelo crioulismo” encontra-se um caráter transcendente na relação de Hélio
Serejo com a natureza da região.
Vivi, sem queixumes, apoiado tão somente no amor desmedido pela sertania,
pela selvatiqueza, enfim, pela obra do Sublime Criador.
Por esse motivo tornei-me – dádiva de Deus – um escravo apaixonado do
nativismo. Sempre agradeço, de mãos postas, ao Pai Celestial, pelo dom
gratificante.
Quedo-me, invariavelmente, orgulhoso de possuir essa virtude... virtude de
permanecer entontecido com os amanheceres e a magia do “sol se pondo”, no
instante em que o poderoso astro se afora nas sombras da noite que se
avizinha. (SEREJO, 1998, p. 36).
Diante disso, vislumbramos junto a Diniz e Coelho (2005), o regionalismo como uma
expressão, de certa forma, nacionalista. Ou seja, há um desejo de que os valores locais sejam
conhecidos e reconhecidos em toda a nação, e que sejam identificados, de algum modo, como
valores nacionais.
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A literatura tem desde muito cedo no Brasil, oferecido obras com caráter regionalista, com o
intento de marcar o nacional. Esse é o caso dos escritores românticos, como José de Alencar (O
sertanejo), Alfredo Taunay (Inocência), Euclides da Cunha (Os sertões) e Guimarães Rosa
(Grandes sertão: veredas), entre outros. Embora, o regional seja apresentado desvirtuadamente
(como o índio europeizado de José da Alencar), dão início a um regionalismo particularista, que
privilegia características locais.
Além de remeter ao local, a literatura regionalista pode também assumir caráter universal,
ou individual. Vidas Secas “ultrapassa em muito o seu significado regional: é o eterno drama do
homem oprimido pelas circunstâncias, que luta assim mesmo para afirmar a dignidade de sua
condição” (DINIZ; COELHO, 2005, p. 425, apud ALMEIDA).
Dentre o caráter universal encontramos as implicações do mundo globalizado atuante sobre
o local. Por isso, quando focamos na região cultural que serve de fundo para a produção artística, e
é por ela representada, abordamos o regionalismo não apenas nas questões locais. Antes, assumimos
que
tratar do regionalismo hoje implica revisitar posições cristalizadas e
contemporâneas, refletir sobre o regionalismo e a globalização e destacar
suas diferentes perspectivas, tais como a política, a antropológica e a literária,
que estabelecem um relacionamento entre si. (DINIZ; COELHO, 2005, p.
416).
Nesse sentido, retomamos aqui a perspectiva pluridimensional das “zonas de contato”
apresentada por L. Barzotto (2010). A hibridação está presente também na cultura regional, visto
ser essa “zona de contato”, nas palavras de M. L. Pratt (1992), onde culturas díspares convergem
conflituosamente, devido às relações de dominação e subordinação. Assim, a hibridação é a
essência do entre-lugar regional. Entretanto, ao expor a experiência regional, a literatura pode
apresentar questões regionais que também são de ordem mundial, tornando-se uma literatura
transnacional. Isso faz com que se aproximem as literaturas de autores de diferentes contextos,
como por exemplo, Guimarães Rosa e Mia Couto.
3. CONCLUSÃO
Contos Crioulos (1998), de Hélio Serejo, representa um significativo acerco para a
afirmação identitária do regionalismo sul-matogrossense. Tanto ao destacar aspectos peculiares à
lida da erva mate, como descrever detalhadamente a paisagem natural da região, ou ainda quanto ao
marcar a obra com uma língua única e de uso local – forjada por origem plural, Serejo afirma o
regional sul-matogrossense.
O regionalismo é, em Hélio Serejo, o que ele próprio designa crioulismo. E esse crioulismo
não é uma unidade estanque, mas uma dimensão híbrida, própria das regiões de fronteira. As
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riquezas naturais são espelho de uma fonte inesgotável de indícios de uma história local que
também foi marcada pelos ecos da colonização.
Por
isso,
aspectos
da
polarização
colônia-metrópole/
colonizador/colonizado,
opressor/subalterno também são destacáveis na obra de Hélio Serejo. O local, o nacional e o global
estão imbricados em texto literário, a exemplo do que aconteceu e ainda persiste, na literatura
produzida em outras regiões do Brasil.
O crioulismo de Hélio Serejo como desenho artístico incomparável, diante do qual não
extenuamos de vislumbrar os detalhes, os traços exatos, e os imprecisos, que são capazes de nos
gerar sempre novas impressões, novas nuances... Obra de arte de um exímio “pintor” que se disse
“homem desajeitado, de gestos xucros”.
REFERÊNCIAS
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comunitarismos. In: ______. (Org.). Margens da cultura: mestiçagem, hibridismo e outras
misturas. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 9-20.
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Dourados (v.4, n.7, jan./jun. 2010), Dourados, MS: UFGD, 2007.
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CELLIP, 2009.
DINIZ, D. C. B.; COELHO, H. R. Regionalismo. In: FIGUEIREDO, E. (Org.). Conceitos de
Literatura e Cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005, p. 415-431.
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Universidade Federal Fluminense, 1998.
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FUNDAMENTOS PARA UM ESTUDO DA FORTUNA CRÍTICA DE
THIAGO DE MELLO
Pollyanna Furtado Lima (PG-UFAM)
RESUMO
Este artigo propõe discutir alguns fundamentos para um estudo de fortuna crítica. Trata-se da etapa
preliminar para uma leitura das primeiras recepções de Thiago de Mello. Para tanto, apresentaremos as
possibilidades metodológicas para a organização do material bibliográfico, a partir de análise comparativa de
alguns modelos como, por exemplo, a coleção Fortuna Crítica dirigida por Afrânio Coutinho. Outro ponto
relevante são as diferentes concepções do perfil da crítica literária brasileira presente nos estudos de Afrânio
Coutinho, Antonio Candido e Flora Süssekind. Quanto à perspectiva, temos os pressupostos teóricos sobre o
sistema literário, discutidos por Pascale Casanova em A República Mundial das Letras. De acordo com
análises preliminares, as tensões nas relações entre autor e crítico, na noção de escritor nacional e universal,
de popular e clássico estão presentes num dos primeiros textos sobre a obra de Thiago de Mello. Como parte
da mostra do material analisado, apresentaremos o texto de Álvaro Lins e comentaremos alguns dos aspectos
discutidos por Casanova.
Palavras-chave: Thiago de Mello; Fortuna Crítica; Literatura Brasileira Contemporânea.
ABSTRACT
This paper aims to discuss some foundations for the study of literary criticism. It is concerned to a
preliminary stage for a reading of the very first Thiago de Mello’s acceptance. So that, it is presented the
methodological possibilities for the organization of bibliographic material, from a comparative analysis of
some models, for instance, the collection Fortuna Crítica (Critical Fortune) directed by Afrânio Coutinho.
Another relevant issue is the different conceptions of the profile of Brazilian literary criticism presented in
Afrânio Coutinho, Antonio Candido and Flora Süssekind’s studies. Concerning to the perspective, the
theoretical assumptions about the literary system are discussed by Pascale Casanova in A República Mundial
das Letras (The World Republic of Liberal Arts). According to preliminary analysis, the tension in relations
between the author and critic, on the notion of national and/or universal writer, popular and/or classical are
present in Thiago de Mello’s first acceptance. As part of the sample of the analyzed material, an Álvaro
Lins’s text is introduced and commented according to the aspects previously discussed by Casanova.
Keywords: Thiago de Mello; Literary Criticism; Contemporary Brazilian Literature .
1. INTRODUÇÃO
Neste artigo discutiremos alguns fundamentos para um estudo de fortuna crítica. Tratase da etapa preliminar para a leitura da recepção da obra poética de Thiago de Mello. Como a
produção literária de Thiago é extensa, delimitamos o trabalho entre os textos críticos da primeira
década de sua carreira literária e sobre o gênero poético.
O ponto de partida consiste no levantamento da bibliografia passiva, começando pelos
textos reunidos na 2ª edição de Vento Geral17, depois estendendo para a pesquisa exploratória de
natureza documental e reunião de todo material encontrado sobre o poeta. Porém, a análise do
17
O livro Vento geral, segunda edição, reúne poemas de Thiago de Mello desde 1951 até 1981 e também apresenta
parte da fortuna crítica do autor.
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corpus se restringe a uma parte do conjunto de textos, devido ao limite de tempo disponível para
este tipo de trabalho durante o curso de mestrado.
Nessa etapa, foram escolhidos textos escritos entre os anos 50 e 60, que compreende
respectivamente os anos em que Thiago de Mello estreou na literatura com Silêncio e Palavra
(1951) até a publicação da primeira edição de Vento Geral, em 1960.
A estrutura deste artigo constitui-se de apresentação das possibilidades metodológicas
para a organização dos textos, o que será discutida na seção “Fortuna crítica e epistemologia”.
Aspectos referentes ao papel e as características da crítica literária brasileira moderna serão
apresentados em “Crítica brasileira moderna”. A perspectiva sobre o sistema literário será tratada
em “A crítica e o sistema literário”. E para finalizar, uma prévia análise de um artigo de Álvaro Lins
sobre o livro Silêncio e Palavra, de Thiago de Mello.
2. FORTUNA CRÍTICA E EPISTEMOLOGIA
Como metodologia, iniciamos com leituras das obras de fortuna crítica, visando
compreender os critérios de organização e seleção. Até o momento, foram encontrados seis livros
da Coleção Fortuna Crítica, organizado por Afrânio Coutinho, com a colaboração de Sônia Brayner
nos estudos de Carlos Drummond de Andrade, Graciliano Ramos, Cassiano Ricardo e Manuel
Bandeira; Eduardo Coutinho, nos estudos sobre José Lins do Rego, e o próprio Afrânio reúne a
fortuna de Cruz e Souza. Há também a Fortuna Crítica de Affonso Ávila, edição institucional do
arquivo mineiro. Quanto a textos inéditos, há teses A fortuna crítica de Macunaíma: primeira onda
(1928-1936) 18.
Conforme foi levantado, estes trabalhos, em sua maioria, restringem-se à compilação
dos textos mais representativos sobre os autores consagrados, como nos estudos dirigidos por
Afrânio Coutinho. Logo na nota de introdução, ele destaca a importância do trabalho para a
preservação da memória nacional, do patrimônio cultural, reunindo textos que poderiam
desaparecer definitivamente e também por constituir um valioso material para consulta de
estudantes das faculdades de Letras. Nesta nota, fica implícita sua concepção de literatura, o que
será comentado adiante.
O que nos parece problemático é que ele não expõe diretamente a metodologia de
trabalho, mas diz que a fortuna crítica “inclui o que há de melhor publicado e é matéria de estudo
obrigatório na compreensão e interpretação da poesia brasileira.” (COUTINHO, 1978, p. 10) O seu
trabalho não propõe uma reflexão a partir da seleção dos textos e não oferece, explicitamente, os
pressupostos teóricos que sustentam a sua visão crítica. No entanto, está implícita em seus
18
Tese de Doutorado defendida na USP em 2006 por José de Paula Ramos Junior.
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enunciados, uma visão de literatura como atividade autônoma, relegando as condições históricas
apenas como uma moldura que se pode enquadrar à obra literária.
A autora Brayner, sob orientação de Coutinho, selecionou um conjunto de textos
separados em três partes: os depoimentos, os estudos de caráter geral e a abordagem específica. Na
primeira parte, há entrevistas, textos sobre literatura de autoria do próprio Drummond e poemas
metalinguísticos. Na segunda, textos de poetas, escritores e estudiosos de outros domínios do
conhecimento. Na terceira, todos os textos são escritos por estudiosos da literatura com uma
metodologia especializada.
No quinto volume, Sônia Brayner abre a nota preliminar dos estudos sobre Manuel
Bandeira. Ela comenta que “o estudo procura espelhar diversas facetas da fortuna crítica de
Bandeira, selecionando o que há de mais representativo na crítica brasileira.”(BRAYNER, 1980, p.
10) Ela oferece também documentos da vida do poeta, de suas ideias e concepções, seguindo o
mesmo critério do primeiro volume no tocante ao depoimento. E apenas cita a existência de um
documentário cinematográfico – O poeta do castelo, segundo a autora, rico em informações
pessoais.
O quarto volume foi organizado pelo próprio Afrânio Coutinho que, em sua nota
introdutória, reforça o objetivo da coleção como subsídio aos estudiosos de letras brasileiras.
Reforça ainda que o critério de seleção considera a qualidade crítica e depois o valor histórico, os
aspectos documental e de depoimento. A organização é formada por uma parte introdutória, que
localiza o autor na história literária, uma cronologia e a sua bibliografia ativa e passiva. Em seguida,
os depoimentos do autor ou sobre ele, reportagens biográficas. Uma segunda seção dedica-se a
reproduzir estudos de caráter geral e um terceiro, estudo de caráter específico sobre livros ou
parciais. “Através dos juízos de seus críticos, é a própria literatura brasileira que nos mostra os
trabalhos reunidos, sem falar de uma evolução da própria crítica, tanto do ponto de vista dos
princípios quanto nos aspectos metodológico.” (COUTINHO, 1979, p. 5)
Outros livros da coleção seguem com maior ou menor proximidade a mesma forma de
organização. Não há diferença acentuada quanto aos critérios de seleção. A maioria deles inclui de
resenhas a estudos mais elaborados; de depoimentos sobre o autor a entrevistas em jornais ou
revistas. Troca de correspondência entre o autor e outras personalidades também constitui material
de apreciação. Outro aspecto, é o fato dos autores destes textos serem figuras destacadas no meio
literário conforme o entendimento do organizador. Em sua maioria, impera o argumento de
autoridade, havendo uma posição até certo ponto ortodoxa sobre quem são aqueles que podem falar
sobre literatura.
Apesar da análise não oferecer uma reflexão quanto aos pressupostos metodológicos, a sua
forma de organização nos oferece um modelo bem estruturado. Deste modo, para a análise da
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fortuna crítica de Thiago de Mello foi adotado parte deste modelo, adaptando alguns aspectos que
foram convenientes para atender as especificidades de nossa abordagem.
Outro estudo de caráter compilatório é a Fortuna crítica de Affonso Ávila, introdução de
Melânia Silvo de Aguiar19. A obra além de conter textos representativos sobre a literatura do autor
apresenta um aspecto biográfico, pois também registra momentos da vida do poeta, ilustrado com
fotografias e imagens de documentos pessoais. Este trabalho, assim como o de Afrânio Coutinho,
tem como objetivo central a preservação da memória e do patrimônio literário nacional. O visual e a
ligação entre biografia e obra literária são aspectos bastante destacados neste trabalho.
Na tese A fortuna crítica de Macunaíma: primeira onda (1928-1936)20, ao contrário dos
anteriores, apresenta um caráter reflexivo sobre os documentos críticos. Parte deles foi transposto
por escâner no corpo do trabalho, o que valoriza o aspecto visual dos documentos. Além da
recuperação de textos, o autor analisa os juízos estéticos expedidos, destacando suas perspectivas
ideológicas nacionalistas associadas à fase do modernismo, momento em que se buscavam soluções
estéticas e culturais, mas com implicações sociais e políticas no período de modernização do Brasil.
As inferências do autor acerca do nacionalismo na literatura modernista nos orientaram na reflexão
deste trabalho, bem como na solução de transposição dos documentos.
Como não foram encontrados até o momento estudos que tratam especificamente dos
critérios metodológicos para a construção da fortuna crítica, os trabalhos encontrados nos servirão
de modelo preliminar. A reunião não é arbitrária. É possível perceber alguns critérios
epistemológicos no conjunto destes trabalhos. Por esta razão, construímos nossa metodologia a
partir de leituras comparativas. É possível perceber que os critérios variam, mas apresentam pontos
de convergência. No caso da coleção Fortuna crítica de Afrânio Coutinho, destacamos o aspecto
didático e conservador do estudo. Coutinho deixa claro o seu interesse de que o material compilado
sirva de material de consulta e ainda expressa sua visão conservadora da crítica literária. Já no
estudo de Affonso Ávila, destacamos a ênfase aos materiais biográficos e uma visão de que a
verdadeira compreensão da obra literária passa necessariamente pela investigação biográfica. Já na
tese de José de Paulo R. Jr., destacamos a visão crítica do estudioso frente ao seu objeto de estudo.
Deste modo, o presente trabalho adotará o ponto de partida destes estudos, distinguindo-se,
contudo, quanto ao objeto e perspectiva de análise, mais interessada numa abordagem reflexiva,
buscando situar o autor dentro de um panorama da primeira recepção crítica de sua obra.
2.1. Crítica brasileira moderna: diferentes perspectivas
19
Edição comemorativa dos 40 anos de publicação do ensaio Resíduos Seiscentistas em Minas de Affonso Ávila pela
Secretaria de Estado de Cultura de Minas Gerais e Arquivo Público de Minas, 2006.
20
Tese de José de Paula Ramos Junior.
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Para compreender alguns aspectos da crítica brasileira moderna, sintetizaremos algumas das
opiniões de três estudiosos da literatura: Antonio Candido, Afrânio Coutinho e Flora Süssekind. O
primeiro por privilegiar a sua visão da formação da crítica brasileira. O segundo por suas
considerações sobre a atividade crítica no modernismo. A terceira por discutir o perfil da crítica
entre as décadas de 40 e 70, dando destaque às diferenças de concepção entre Candido e Coutinho.
Antonio Candido, num valioso estudo sobre a formação da literatura brasileira, considera o
romantismo uma fase decisiva para o desenvolvimento de uma literatura nacional. Afirma ser esse
um momento de busca da libertação dos cânones estrangeiros para o surgimento de recursos
originais. Os valores fundamentais do período eram a criação de uma literatura nacionalista; da
valorização dos aspectos locais, dos costumes do povo, dos traços raciais; a adoção do índio como
tema poético e do interesse pelo passado literário para definição da corrente e dos autores novos.
Segundo ele, a crítica deste período teve um papel essencial no despertar da consciência literária
brasileira.
(...) Devemos, pois, entender por crítica, no período estudado [romantismo],
em primeiro lugar as definições, interpretações gerais da literatura brasileira;
em seguida, os esforços para criar uma história literária, superando a crítica
estática e convencional do passado; finalmente, as manifestações vivas da
opinião a propósito da arte literária e dos produtos atuais. (CANDIDO, 2009,
p. 655)
O que Candido chama de crítica estática, trata-se daquela que apreende a literatura de forma
isolada e compartimenta os gêneros literários como construções estanques. Uma crítica que, nas
palavras de Lafayette Rodrigues Pereira, consiste na aplicação “das regras aristotélicas e horacianas
aos produtos do engenho humano; era uma operação mecânica que consistia em comparar o texto,
isolado de suas afinidades históricas com as máximas recebidas.” (Idem, p. 659)
Candido comenta que, apesar das limitações no romantismo, ela foi à consciência da
fundação da nossa literatura; logo, de justificação de sua existência e proclamação da sua
originalidade. O que teve grande importância do ponto de vista histórico, pelo amparo aos
escritores, orientando-os, confirmando-os, contribuindo para o próprio desenvolvimento romântico.
Ressalta ainda que esta mudança ocorreu, porque o Brasil estava vivendo uma fase propícia tanto no
campo literário quanto no campo político. As antigas fórmulas e valores do neoclassicismo não
mais atendiam as necessidades expressivas e as aspirações dos escritores da época. Os ideais
românticos se somaram a própria estruturação política e cultural do Brasil, ou seja, a busca da
independência política propiciaria a busca por uma independência literária.
O que chama a atenção nos textos de Antonio Candido é a sua capacidade de avaliar os
fenômenos literários do passado, sem impor a sua visão atual, buscando a compreensão mais
autêntica o quanto possível. Tudo isto tendo a consciência das limitações que a própria condição de
pesquisador dos fenômenos literários se impõe. Ele avalia sua própria visão, a fim de não causar
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demasiada distorção ao olhar sobre o momento histórico. De suas observações cuidadosas, ele
extrai, dentro do conjunto de limitações dos críticos românticos, contribuições basilares na
literatura: os esforços de se criar uma literatura nacional. Outro ponto forte está na visão da
literatura como sistema, algo que uma perspectiva puramente estética é incapaz de avaliar.
A concepção crítica literária de Antonio Candido teve influência do método de Silvio
Romero, no que tange a valorização do contexto social. Contudo, Candido se diferencia deste por
não cair numa crítica sociológica, pois considera a necessidade de se rever os pressupostos
metodológicos e buscar a superação do paradoxo entre crítica intrínseca e extrínseca. Para Antonio
Candido, o crítico deve encarar os elementos contextuais como dados intrínsecos à obra, para que
sua atividade seja apenas crítica.
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em conta
o elemento social, não exteriormente, como referência que permite identificar,
na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma sociedade
determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo historicamente;
mas fator da própria construção artística, estudado no nível explicativo e não
ilustrativo.
Neste caso, saímos dos aspectos periféricos da sociologia, ou da história
sociologicamente orientada, para chegar a uma interpretação estética que
assimilou a dimensão social como fator de arte. Quando isto se dá, ocorre o
paradoxo assinalado inicialmente: o externo se torna interno e a crítica deixa
de ser sociológica, para ser apenas crítica. (CANDIDO, 2008, p. 16-17)
Antonio Candido criou seu próprio método de interpretação da obra literária. Em Dialética
da Malandragem, analisa Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida e
dá início a uma vertente crítica que durante os anos 1969-1970, teve grande fecundidade. Segundo
Flora Süssekind, em diálogo com ele, foram produzidos “alguns dos melhores trabalhos de análise
literária, no campo da crítica universitária, no país.”(SÜSSEKIND, 2002, p. 30) A sua abordagem
crítica surge como contracorrente da vertente estética, encabeçada por Afrânio Coutinho.
2.2. A crítica no modernismo
Ao contrário de Candido, Afrânio Coutinho pensa a literatura como uma atividade
independente das formações históricas. Segundo ele, a verdadeira crítica deve desprezar ou, ao
menos reduzir ao máximo, as circunstâncias históricas, detendo-se aos elementos estéticos. Embora
sua concepção nos pareça um tanto restrita, trata-se de um nome forte na crítica acadêmica e suas
contribuições não devem ser ignoradas.
Em seus estudos publicados em A literatura no Brasil21, faz um balanço da crítica
modernista e considera que nas três fases do movimento, a atividade crítica teve formas de atuação
diferentes. Em cada fase houve a predominância de um determinado gênero literário sobre os
21
Série de estudos publicado em cinco volumes com a direção de Afrânio Coutinho.
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demais. Neste sentido, a fase heróica tem a poesia como destaque; a segunda, o romance e a
terceira, a da crítica literária.
Na primeira fase de 1922 a1930, ele diz que não houve uma crítica propriamente dita.
Assumindo um papel sociológico, ela era coletiva e aparecia nos manifestos ou nas próprias obras e
revistas do movimento. Entre as figuras de Tristão de Athayde, João Ribeiro e Nestor Victor, o
primeiro teve pouca participação, ao passo que os dois últimos desprezaram o modernismo quase
por completo.
Na segunda fase de 1930 a 1945, as aspirações de conhecimento da terra e formação da
nacionalidade cederam lugar à crítica social, política e com apelo à ação. Segundo Afrânio
Coutinho, predomina neste momento a ideia política da vida brasileira, a crítica doutrinária e
extremista, desprezando as preocupações estéticas. E ainda que a questão maior é o conflito dos
reacionários contra os revolucionários.
A terceira fase a partir de 45 é o momento de realização da crítica literária. Segundo
Coutinho, esta foi uma fase de amadurecimento e de maior preocupação estética. A crítica neste
momento é a que Afrânio chama de os rodapés, exercida no jornal, oscilando entre a crônica e o
noticiário. O embate entre a crítica não especializada com a dos críticos formados pelas faculdades
de Filosofia e Letras do Rio de Janeiro e de São Paulo, criadas respectivamente em 1938 e 1934,
provocaria um verdadeiro processo de renovação da crítica. Afrânio Coutinho concebe a crítica
como atividade reflexiva, intelectual, de natureza da ciência, o que, segundo ele, não coincidia com
as atividades dos rodapés.
Afrânio teve um papel importante nesse processo. A criação das faculdades de Filosofia e
Letras propiciou a expansão da crítica especializada. Substituindo a atividade então de jornalista,
por uma atividade profissional.
No Brasil, um estudo crítico, publicado em livro, é designado como ensaio, e
ensaísta o seu autor. São assim, por exemplo, o livro de Augusto Meyer sobre
Machado de Assis e o de Mario de Andrade, Aspectos da literatura brasileira.
São livros de crítica, mas se referem como de ensaio. É que, no Brasil, crítica
é geralmente entendida somente aquela que se exerce nos jornais, a chamada
crítica militante, periódica, regular, no registro ou comentário dos livros do
momento. (COUTINHO, 119-120, V.6)
Nas palavras de Afrânio percebe-se um tom de ressentimento quanto ao fato de a crítica ser
dominada pelos colunistas, enquanto a crítica acadêmica se restringe aos espaços acadêmicos, tendo
um público minoritário. Este descontentamento alimentou uma campanha de combate aos rodapés.
Sobre este aspecto, Flora Süssekind discute a seguir.
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2.3. A formação da crítica no Brasil
Flora Süssekind faz um estudo da formação da crítica brasileira entre as décadas de 40 e 70.
Ela observa que ao longo de décadas, o modelo de crítica foi sendo substituído, passando do
colunista ao acadêmico até surgir o teórico literário.
Entre 40 e 50, a crítica era exclusivamente formada por “homens de letras”, geralmente
bacharéis e que não tinham uma formação especializada. Em forma de resenha ou crônicas, a
produção era publicada nos jornais, em suplementos literários. Os textos eram caracterizados pela
brevidade, numa linguagem coloquial e livre de métodos. Entre o fim dos anos 50 até os 70, com a
criação das faculdades de Letras, surge uma segunda forma de crítica, a acadêmica. O embate entre
a crítica de rodapé e a crítica acadêmica ocasionou a perda de prestígio da primeira em favor da
segunda.
Outra divergência, só que dentro da crítica universitária, é entre Afrânio Coutinho e
Antonio Candido, ambos exemplos paradigmáticas, mas que por diferenças ideológicas e
metodológicas, se distanciaram. O primeiro por adotar uma visão puramente estética da literatura. O
segundo, por desenvolver uma visão dialética, que compreende os fenômenos literários relacionado
ao contexto social de produção. Para Afrânio, a constituição de um “sistema literário” não é um
problema. Trata-se de registrar as diferentes manifestações literárias que se sucederam no Brasil. Já
Candido o interesse não está na literatura que circula no país, mas sim no momento em que ela
passaria a constituir sistema por aqui. A literatura brasileira se configura no decorrer do século
XVIII, encorpando o processo formativo que vinha de antes e continuou depois. Da tensão entre os
acadêmicos com os rodapés, mais a necessidade de refletir sobre os próprios pressupostos, surge no
início dos anos 70, o crítico teórico, que tem como exemplo Luiz Costa Lima, Roberto Schwarz e o
próprio Antonio Candido.
Podemos perceber que Flora Süssekind se inclina para o método dos contrários de Antonio
Candido. E fica a orientação de que a crítica atual é dedicada à teoria e construção dos seus próprios
métodos, baseada nos valores da cultura acadêmica e literária. Deste modo, o texto reforça ainda a
intuição de que a perspectiva criativa de Candido nos será fecunda por se aproximar dos estudos de
Pascale Casanova.
2.4. A crítica e o sistema literário
No seu ensaio crítico, Pascale Casanova debate diversos conceitos e problemas, abrindo
caminho para uma compreensão diferente dos fenômenos literários. Ela procura descrever o mundo
literário a partir de um observatório para gerar a possibilidade de superação da visão crítica comum
que ignora ou desconhece as leis que regem esse universo de lutas constantes e de contestação da
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autoridade com modificações das relações de força e das hierarquias literárias. (CASANOVA,
2002, p. 18)
Dentre vários aspectos, a autora trata do problema da literatura como um bem espiritual e
suas implicações nas bolsas de valores da literatura e das hierarquias que surgem da distribuição
desigual do capital literário. Sobre este problema, ela debate as variáveis que formam o capital
literário, o prestígio linguístico das línguas consagradas literariamente, das tradições e dos recursos
acumulados por um espaço literário, a independência política do território, a proximidade ou a
distância dos centros literários, a existência de um espaço literário consolidado.
Outro aspecto é o problema dos escritores nacionais e internacionais, o que nos interessa em
especial nesta pesquisa, que irá se desdobrar na noção de fábrica do universal. A formação de um
sistema literário e a consolidação de um escritor depende de critérios definidos nos centros e das
instâncias de consagração.
Na outra parte do livro, ela trata dos espaços literários dominados que não possui seus
recursos próprios, suficientes para reivindicar sua independência. Dentro deste meio, o drama do
escritor excêntrico está dividido em duas estratégias de luta dentro do espaço literário nacional:
assimilação e dissimilação. A assimilação é a diluição de qualquer diferença original em um espaço
literário dominante e a dissimilação é a afirmação de uma diferença a partir, sobretudo de uma
reivindicação nacional.
Dentro dos casos de assimilação ela descreve a trajetória de escritores de diversas
nacionalidades que escolheram apagar as marcas de sua nacionalidade, para surgir como escritor
universal. Este é o caso de Samuel Beckett, irlandês que se muda para Londres a fim de consagrarse como escritor. E também o caso de Henri Michaux, suíço que parte para Paris com o mesmo
objetivo. Mas ela trata ainda de exemplos de autores que tiveram no processo de assimilação um
radical apagamento de suas origens chegando a ser mais franceses que os próprios franceses,
exemplo do romeno Cioran.
No caso dos escritores rebeldes, trata do percurso de afirmação da diferença como soluções
inovadoras e revolucionárias no campo literário. Esta questão está ligada à necessidade de
afirmação do nacionalismo nos países dominados. Uma pátria dominada, do ponto de vista literário,
não tem a chance de acumular seus próprios recursos, posto que o processo de assimilação da
literatura dominante impede a formação de valores estéticos originais. “Só produções literárias
declaradas e constituídas como especificas e nacionais podem permitir acabar com a dependência
dos escritores do espaço literário (e político) dominante.” (CASANOVA, 2002, p. 270) Por isto, as
idéias nacionalistas do romantismo e da fase de 22 e 30 do modernismo representam a tentativa de
romper com esse sistema. Estas e outras questões discutidas nortearão a análise do primeiro texto
sobre o primeiro livro de Thiago de Mello.
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3. SILÊNCIO E PALAVRA E A ACOLHIDA DE ÁLVARO LINS
A primeira crítica de Silêncio e Palavra foi publicada em março de 1952 com o título
Silêncio, Palavra e Arte Poética
22
(LINS, 1981, p.17-25). Seu autor era um dos mais influentes
críticos brasileiros da década de 40, Álvaro Lins. Sua leitura está estruturada da seguinte forma: a
primeira parte situa o poeta no tempo e trata da determinação da forma pelo tema; a segunda trata
dos aspectos formais do texto e das soluções lexicais; a terceira destaca o léxico e analisa o poema
Romance do Salatiel e o quarto consagra Thiago como um dos grandes poetas de sua geração.
Na primeira, em que trata da determinação da forma pelo conteúdo, abre o texto citando
versos do poema Rumo para iniciar suas ponderações. Abruptamente apresenta aspectos
biográficos, destacando a decisão de Thiago de abandonar uma carreira promissora (medicina) para
se dedicar integralmente a atividade incerta (literatura).
(...) Assim, o que desejo pôr em destaque, primordialmente, no caso deste
poeta tão moço – e que, não obstante, devemos já colocar, pelo valor do seu
primeiro livro, numa posição das mais altas – é um tal gesto com que, na hora
do jogo decisivo, enfrentou o risco de perder a vida num sentido para ganhá-la
em outro reino. E já começou a ganhar, com efeito, nesse jogo perigoso, que é
a opção, que é o gesto de renunciar aos bens concretos em troca de algo
distante ou mesmo indefinível (...) (LINS, 1952, p. 17)
Quando Lins apresenta o dilema pessoal de Thiago, ele está colocando um problema tantas
vezes ignorado sobre a natureza do sistema literário. Como argumenta Pascale Casanova, esse
sistema regido por leis e jogos de força, em grande parte, retira dos escritores excêntricos a
possibilidade de alcançar o mesmo reconhecimento dos escritores do centro. Afinal, trata-se de um
jovem do interior do Amazonas, de um lugar cuja tradição literária é muito recente e carece de
recursos próprios, além da distância dos centros (Rio de Janeiro e São Paulo) que o coloca numa
situação de desvantagem. O crítico não pormenoriza este aspecto, porém destaca os atributos
pessoais de Thiago para que sua condição de poeta vindo da província fosse encoberta pela imagem
do gênio forte, de caráter elevado, o que seriam as suas primeiras credenciais, além da própria obra,
para entrar neste universo tão fechado. Seguindo argumentos que se alternam entre o aspecto
biográfico e o texto literário, comenta o trabalho que Thiago realizou com Geir Campos nas
Edições Hipocampo. O tom elogioso reforça o capricho e o bom gosto do jovem escritor.
Depois monta um quadro poético distintivo das gerações do modernismo. Segundo Álvaro
Lins as gerações de 22 e 30 constroem seus projetos estéticos partindo do tema para a forma. Ao
passo que a geração de 45 parte da forma para o conteúdo. Sendo assim, ele destaca em Thiago de
Mello os aspectos formais de sua obra: a rara ciência lexical, uma firme e elegante estrutura
sintática, como também os valores e processos rítmicos do verso; exceto a utilização das rimas, que
22
O texto foi publicado pela primeira vez no jornal em março de 1952 e depois publicado no livro Vento Geral, de
Thiago de Mello.
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são escassas, mas que não tira o valor, pois Thiago compensa com o uso da métrica. Neste momento
ele está destacando recursos formais da literatura clássica, logo, recursos não originais, mas que
foram retomados na segunda e terceira fase do modernismo.
(...) a única maneira, segundo Antonio Candido, de superar a dependência
constitutiva da América Latina é a “capacidade de produzir obras de primeira
ordem, influenciadas, não por modelos estrangeiros imediatos, mas por
exemplos nacionais anteriores [...] No caso brasileiro, os criadores do nosso
Modernismo derivam em grande parte das vanguardas européias. Mas os
poetas da geração seguinte, nos anos de 1930 e 1940, derivam imediatamente
deles – como se dá com o que é fruto de influências em Carlos Drummond de
Andrade ou Murilo Mendes [...]. (CANDIDO, 1989 apud CASANOVA,
2002, p. 285)
Mais adiante, Lins faz previsões sobre o futuro do poeta e seu argumento recai sobre a
literatura e seus temas, deixando escapar uma visão que oscila entre a crença no universalismo e a
ideia de nacionalidade. “Digo isto porque se me afigura também visível, no talento do Sr. Thiago de
Mello, a possibilidade de apresentar mais tarde, com a experiência vital, uma temática rica e forte. E
chegará ele, de fato, a desenvolver ao máximo uma tal possibilidade? Esperamos que sim.” (LINS,
1952, p. 22) Se por um lado, a temática dos poemas de Silêncio e Palavra, gira em torno de
assuntos considerados universais como o amor, a morte, a paisagem marítima, a linguagem, por
outro, carece de temas fortes e ricos. Esses temas carregados de experiência vital são os eventos
nacionais, dos quais o primeiro livro não explora abertamente.
(...) a sua tendência para uma poesia em profundidade, feita de meditação
individualizada como de essência filosófica não-didática.
Pois bem: nem a natureza física, nem as paisagens, nem quaisquer outros
objetos de natureza humana ocupam lugar considerável no seu lirismo. (Idem,
23)
Nos países dominados do ponto de vista literário, a busca por temas nacionais e construção
de recursos formais a partir da própria tradição local são condições para o processo de diferenciação
e, por sua vez, de independência estética.
Produzir essa expressão original é fabricar a diferença, ou seja, criar recursos
específicos. Como as fundações literárias estão ligadas às fundações
nacionais, os escritores das primeiras gerações empregam todos os meios à
sua disposição – literários e/ ou políticos-nacionais – para agrupar e
concentrar essas riquezas literárias. (CASANOVA, 2002, p. 272)
Lins fala da influência da cantiga de amor da poesia trovadoresca e cita o poema Senhora
como exemplo do culto divino à mulher amada. E também da paisagem natural e referências
marítimas, mas como transformação no interior do poeta. Do caráter subjetivo, intimista,
personalista de sua lírica, sem monotonia, e da capacidade para se lançar no plano da meditação
filosófica.
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Na terceira, ele se dedica a analise de Romance de Salatiel e considera o mais completo e
bem acabado dos poemas de Thiago de Mello. Dividido em três partes: O velório, O sepulcro e
Epílogo. Na primeira a presença do morto entre os vivos em septissílabo. Na segunda; Salatiel não é
mais nada e o ritmo se reduz a hexassílabo.
Na última parte, em frases de grande efeito Álvaro Lins diz:
Poetas principais da nossa literatura moderna: estou tentado a pedir-vos um
lugar, ao vosso lado, para o poeta de Silêncio e Palavra. Com vinte e seis
anos, e um só livro publicado, o Sr. Thiago de Mello bem demonstra,
todavia, que já se acha em condições de situar-se na primeira linha da nossa
poesia contemporânea. (LINS, 1952, p. 25)
Assim ele encerra uma de suas críticas, que como tantas outras, deram grande visibilidade a
obra resenhada.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Após discutir alguns fundamentos de um estudo de fortuna crítica, é possível extrair
elementos para a leitura da recepção crítica de Thiago de Mello, o que será realizado num outro
momento. Só para iniciar, apresentamos a análise parcial do texto de Álvaro Lins, na perspectiva
crítica do sistema literário de Pascale Casanova.
As noções de nacionalismo, de processos de assimilação e dissimilação da literatura
européia aparecem nos enunciados de Álvaro Lins. Contudo a tensão entre uma concepção nacional
e outra universal da literatura, a ideia de dominação contra a de liberdade de criação, o impede de
desenvolver com segurança os argumentos de defesa do seu ponto de vista. Há passagens confusas e
ambíguas que sugerem este conflito interno. Talvez uma orientação dialética, como a do Antonio
Candido, lhe faltasse para dar clareza a essas contradições.
Se por um lado, ele valorizava a obra e a figura do jovem Thiago de Mello, poeta vindo da
província, por outro, se mantinha preso aos pressupostos da literatura dominante, se inclinando para
uma visão encantada da liberdade criadora. Ao contrário do que Afrânio Coutinho diz sobre sua
postura inicialmente estética e posteriormente política. Na verdade esta contradição se apresenta
num mesmo momento. Pelo menos é o que se pode perceber no texto analisado. Ora estético, ora
político, parecendo confuso sobre suas posições. Nesse momento, grande parte do seu prestígio
literário havia reduzido em função da mudança de perfil da crítica, como nos acrescentou Flora
Süssekind.
As contradições entre a ideia de escritor nacional e internacional; de local e universal; ainda
precisam ser exploradas. Porém limitações de tempo impuseram a necessidade de interromper, não
definitivamente, o percurso das leituras e análises dos textos. Contudo, outras questões serão
acrescentadas a esta reflexão, o que certamente será apresentado numa outra oportunidade.
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REFERÊNCIAS
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310p. Dissertação (Doutorado em Literatura Brasileira), Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
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USP. Disponível em: www.teses.usp.br. Acesso em: 22 de outubro 2010.
SÜSSEKIND, Flora. Papeis Colados. Rio de Janeiro: Editora da UFRJ, 2003.
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O CRÍTICO DE RUBEM BRAGA
Priscila Rosa Martins (PG-UEL/CAPES)
RESUMO
Davi Arrigucci Jr. dedicou parte de seus estudos à obra de Rubem Braga. Neste entremeio, fez alguns
apontamentos importantes que valem ser revisados no que diz respeito ao estudo da crônica. No presente
ensaio, a partir da leitura e revisão dos trabalhos de Arrigucci Jr.a respeito de Braga, bem como, revendo as
alterações feitas nas crônicas para que pudessem ser qualificadas como contos por ArrigucciJr., em Os
melhores contos de Rubem Braga (1988), discute-se o papel do crítico literário, sua importância e influência
na divulgação da literatura. Com este material, é possível visualizar que a interferência direta de Arrigucci
Jr.não modifica substancialmente a obra de Braga, porém fortifica sua autoridade como crítico e editor; tendo
em vista que em vida, o autor publicou várias vezes suas crônicas sem optar pela mudança no gênero. É
possível ainda perceber que as alterações visam uma atualização da escritura do cronista, dando preferência
para o aparecimento de ênclises; preocupação com a extensão dos textos, e ainda o desaparecimento de
repetições – procedimento que o escritor costuma marcar em seus textos e que conduzem a uma leitura
poética da obra.
Palavras-chave: Rubem Braga; Crítica Literária; Davi Arrigucci Jr.
ABSTRACT
Davi Arrigucci Jr. dedicated a part of his studies to the works of Rubem Braga. Through the time he made
some important notes which worth to be revisited when their subject is the chronicle. In the present essay the
role of the critic and its importance and influence on literature diffusion will be discussed by reading and
reviewing the works of Davi Arrigucci Jr. on Rubem Braga, and also by reviewing the alterations done on
Braga’s chronicles for they to be classified as short stories by ArrugucciJr. in The best short stories of
Rubem Braga (1988). Examining this material and considering that in hiscareer Braga did republish several
times his chronicles without ever changing their genre, it is possible to see that the direct interference of
Arrigucci Jr. does not modify substantially the work of Rubem Braga but it strengthens the authority of
Arrigucci Jr. as critic and editor. It is possible to realize that the alterations of the texts aim to update the
writing of the chronicles writer by making some style choices, concerning about the extension of the texts
and by eliminating repetitions – which the writer habitually remark in his texts and that lead to a poetic
reading of the work.
Keywords:Rubem Braga; Literary Criticism; Davi Arrigucci Jr.
1. INTRODUÇÃO
No hay, enla vasta Biblioteca,
dos librosidénticos
(Jorge Luiz Borges)
Davi Arrigucci Jr. dedicou parte de seus estudos à obra de Rubem Braga. Neste entremeio,
fez alguns apontamentos importantes que valem ser revisados no que diz respeito ao estudo da
crônica. Destaca-se desta produção o livro Os melhores contos de Rubem Braga (1988) que parece
configurar, entre as obras do cronista, uma anomalia; porém configura de maneira distinta a obra
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REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
crítica de Arrigucci. Dizemos “anômala”, pois estes “contos” sãocrônicas de Rubem Braga
selecionadas por Arrigucci que sofreram alterações. Estas, feitas pelo próprio Braga, foram
realizadas seguindo o seguinte princípio; diz o autor: “Peguei toda a referência que havia à coisa de
momento e tirei, deixei só a história principal, mais enxuta assim, aí virou conto mesmo”.
(BRAGA, Encontro Marcado, 1985).
Muito já ouvimos sobre a discussão que há entre aproximações e afastamentos destes dois
gêneros no decorrer da História. Facilita demarcar estas diferenças, quando estamos diante de
autores que se propuseram a escrever conto e crônica, considerando estrutura, tema, etc.; porém, o
caso Braga, inquietante até hoje, evoca com essa obra mais dúvidas sobre estas demarcações e põe
em jogo alguns pontos que serão discutidos neste ensaio.
2. O CONTO
A professora Nádia Gotlib (2006) procurou tratar em linhas gerais o surgimento do gênero
conto, remetendo a sua origem oral, passando por algumas de suas formas (como o maravilhoso);
trabalhou com as questões de nomenclatura e ainda fez algumas considerações acerca de autores
como Poe, Cortázar, Quiroga, Machado e Clarice. Sua conclusão deste estudo está anunciada desde
seu princípio: “são modos peculiares de uma época da história. E modos peculiares de um autor,
que, deste e não de outro modo, organiza sua estória, como organiza outras, de outros modos, de
outros gêneros. [...] O que faz também, de cada conto, um caso... teórico” (GOTLIB, 2006, p.82-3).
Alfredo Bosi (1974), ao se deter nos aspectos do conto contemporâneo, faz sua análise
aproximando conto e crônica, pois considera que estão no mesmo “nível narrativo”, porém
denomina crônica para marcar um certo desdém do texto e, talvez, separar aqueles que não
alcançaram o trabalho linguístico necessário e exigido para se tornar material literário, mas faz uma
ponderação interessante: é o conto deste momento, considerando pós-1930, que se parece à crônica,
pois a substância narrável, partiria de um narrador e seu fluxo de experiência. Assim, coloca em
suas primeiras páginas: “Aquém da tensão, o conto não passa de crônica eivada de convenções,
exemplo da conversa ou da desconversa média, lugar-comum mais ou menos gratuita. Ou ainda,
requentado maneirismo” (BOSI, 1974, p.9).
3. A CRÔNICA
Em “Fragmentos sobre a crônica” (1987), David Arrigucci Jr. define como “um relato em
permanente relação com o tempo, de onde tira, como memória escrita, sua matéria principal”
(ARRIGUCCI JR., 1987, p.51). Um gênero que tematiza em sua narrativa o homem comum, sem
grandes ações e peripécias, que “vive uma história menor, aquém dos grandes acontecimentos”
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(ARRIGUCCI JR., 1987, p.55). No ensaio em questão, ao analisar autores como Machado de Assis
e José de Alencar, Arrigucci Jr. se volta sempre para Rubem Braga, identificando nele a grande
desenvoltura da crônica. Esta admiração perpassa ainda pelo trabalho que teve o autor em se deter
ao gênero, enquanto para outros a crônica era uma espécie de estudo para uma suposta verdadeira
literatura. Por isso é em Braga que Arrigucci Jr. aponta a elaboração da linguagem, a força poética,
uma melhor expressão de um intimismo através de diálogos com o leitor e ainda um elogio pelas
escolhas de temas que fez destes miúdos do cotidiano.
O professor ressalta a potência do texto literário que provém do velho Braga, seu narrador,
considerado alter ego, que à imagem dos antigos contadores de histórias, retrata suas experiências
justamente em um espaço contraditório para elas: o jornal. Sua prosa chã, como a de Manuel
Bandeira, evoca imagens de um passado em meio a passarinhos, árvores frutíferas e liberdade, em
contraponto a este espaço presente que é, geralmente, o limite de um apartamento numa grande
cidade. Segundo ele, configura-se em uma luta vã a tentativa do cronista em registrar estes instantes
mundanos que serão roídos pelo tempo. A linguagem, que não é retrato da fala, mas não deixa de
ser coloquial, tem
um vocabulário escolhido a dedo para o lugar exato; uma frase em geral
curta, com preferência pela coordenação, sem temer, porém, curvas e enlaces
dos períodos mais longos e complicados; uma sintaxe, enfim, leve e flexível,
que tomava liberdades e cadências da língua coloquial, propiciando um ritmo
de uma soltura sem par na literatura brasileira contemporânea
(ARRIGUCCIJR., 1988, p.6).
Ao olhar para o estrangeiro, o professor encontra em James Joyce um ponto em comum com
o cronista: a epifania – uma espécie ou grau de apreensão do objeto que poderia ser identificada
com o objetivo do texto, enquanto uma forma de representação da realidade.
3.1 As Melhores
Foram selecionadas trinta e nove crônicas que contemplam as mais variadas formas de
narrar construídas em diferentes estruturas: com diálogos, narrador em primeira, terceira pessoa;
que abordam os mais diversos assuntos: as lembranças da infância, histórias de amor, do bairro, de
uma passante; sobre a convivência com os amigos, uma cidade do interior, viagens.
A borboleta amarela é o livro de origem de oito crônicas, sendo este o que mais contribuiu
na seleção. Davi Arrigucci Jr. já expressava admiração por ele, afirmando ser “um dos melhores de
Braga” (ARRIGUCCI JR., 1987, p.65). Seis textos provêm de Ai de ti, Copacabana, seguido de A
cidade e a roça e A traição das elegantes com cinco cada um.Vinte três crônicas destas
selecionadas aparecem também na maior seleção, as 200 crônicas escolhidas.
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Infelizmente não foi possível identificar o livro de origem de cinco crônicas, e apontamos o
motivo pela mudança que sofreram, provavelmente em seus títulos – atitude que Braga já tomava ao
republicar as crônicas. Todas aparecem sem a indicação de cidade, mês e ano; não à toa, já que a
relação íntima da crônica é com seu calendário; revestidas pelo gênero conto, pressupõe-se que
seria a primeira marcação a ser suprimida. Chama a atenção o não aparecimento de crônicas que
retratam o escritor diante de sua escrita, suas dificuldades em procurar um tema/assunto para
desenvolver, ou ainda, relacionadas com o público leitor, quando hipoteticamente respondia cartas
que recebia, algo recorrente em sua escrita. Este fato leva-nos a crer que estes tipos de textos são,
para Arrigucci Jr., algo típico e exclusivo do gênero, que só merecem destaque enquanto crônica,
como afirmava:
Há momentos em que a crônica teima em não sair, claramente por falta de
assunto, gerando-se no limite a situação embaraçosa, literariamente tão
moderna, do comentário ou relato diante da ausência do fato, [...] quando o
assunto se torna tênue, se esgarça ou falta inteiramente, que Braga mostra
melhor sua garra de cronista, precisamente agarrando-se a um “puxa-puxa”,
como o chamou certa vez Manuel Bandeira, e imprimindo ao gênero seu
modo de ser tão característico (ARRIGUCCI JR., 1987, p.56).
A seleção também não contempla as crônicas de guerra marcadas intrinsicamente por um
período histórico, bem como crônicas de viagem, como as que Braga escrevera no Rio Grande do
Sul e no Paraná.
A organização parece se dar ao acaso, pois não seguem nenhuma sequência identificável: os
títulos não estão em ordem alfabética, os textos não estão organizados por data, não há relação nos
temas apresentados, nem seguem a ordem em que foram publicadas em livro por Braga. Quanto à
sua extensão, possuem entre duas a quatro páginas, o que demonstra uma apreciação pelos textos
mais extensos, pois desconsidera crônicas sintéticas, como “O pavão”, “A tartaruga” e “A palavra”,
de A borboleta amarela.
3.2 Algumas mudanças
R.B., como assinava, costumava rever seus textos antes de republicá-los. Escrevia em seus
livros notas indicando os jornais e revistas que havia publicado as crônicas; quais tinham sofrido
alteração, o motivo desta; em que cidades ou países esteve durante a produção de cada texto; quais
editoras estavam envolvidas no processo; período que compreende a publicação dos textos;
organização que deu para eles e até expressava a opinião de amigos (Fernando Sabino, Otto Lara
Resende) sobre seu trabalho. Como já exposto, a mudança mais recorrente era nos títulos, não só
das crônicas; o que poderíamos dizer para “desgosto” de Arrigucci Jr. que tanto aclamava o título
do livro A cidade e a roça por condensar de forma prática os dois extremos de sua teoria sobre
Braga
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exprime os pólos de atração do imaginário do autor, para quem eles nunca
andam separados. É que essas histórias compõem um espaço amplo e
mutável, uma espécie de geografia sensível, obediente aos desígnios da
memória e da emoção, em cujos mapas uma pequena cidade da infância –
Cachoeiro de Itapemirim – se gruda naturalmente aos grandes centros do
vasto mundo. (ARRIGUCCIJR., 1988, p.21)
Em sua quarta edição, ele passa a se chamar O verão e as mulheres, que segundo a
advertência da própria editora esclarece: “O autor disse ao editor que não aguentava mais aquele
título frio que em má hora ele (o autor) escolhera em 1956 para este punhado de crônicas”. Já na
nota habitual, o autor reforça: “tomei coragem para mudar o título. É muito ruim, além de lembrar
A cidade e as serras, de Eça de Queirós”.
Considerando este procedimento recorrente adotado por Braga, ressalta-se o trabalho
filológico e minucioso em identificar com exatidão as alterações e revisão que cada crônica recebe
em uma nova publicação, e posteriormente as alterações para vir a ser conto. Por isso, não nos
atentamos às alterações de grafia que cada palavra sofreu no decorrer dos anos. Para esta pesquisa,
foi comparado a 2.ed. d’Os melhores contos de Rubem Bragacom a 24.ed. das 200 crônicas
escolhidas (2005). Deixamos registrado aqui a grande perda que temos em não dispor as primeiras
edições ou mesmo pesquisar nos textos datilografados. Buscamos como saída, então, identificar a
“coisa de momento”, como citada no início deste texto, para tentar mapear as mudanças e as
possíveis transformações de crônica para conto.
Vale lembrar que Arrigucci Jr. não foi o primeiro a referenciar Braga como contista, Alfredo
Bosi já em O conto brasileiro contemporâneo (1974) retratava a escrita do autor como moderna,
“de uma forte concisão no arranjo da frase e de uma alta vigilância na escolha do vocabulário,
marcas da sua modernidade em termos de um Realismo crítico” (BOSI, 1974, p.15), equiparando-o
com escritores como Marques Rebelo e Graciliano Ramos.
Nesta pesquisa, deparamo-nos com um grande número de alterações na pontuação (vírgulas
desaparecem ou transformam-se em pontos finais), na colocação dos pronomes (sendo alternado o
desaparecimento de ênclises e próclises), no apagamento de palavras repetidas e referências
pessoais (Era por estar ali um Braga por Era por estar ali eu). Houve redução de frases
coordenadas para sentenças simples, revisão na concordância sujeito-verbo-objeto, mudança no
aspecto verbal (houve por havia; pegou-os por pegara-os), substituição de adjetivos (gentil por
amável) e ainda marcação de maiúsculas (nos contos, quando o personagem recebe voz, sua entrada
se dá sempre por letras maiúsculas, já nas crônicas, são palavras como “centro” [da cidade], que são
escritas com maiúsculas). De todas as formas, este levantamento de dados constitui um corpus
muito incerto e frágil, pois condiz somente às edições analisadas. Alguns destes textos
correspondem fielmente com a publicação que aparece na seleção de Arrigucci Jr. com edições
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posteriores. Todavia ressalta-se que esta comparação foi de extrema importância para poder afirmar
com veemência que a mudança não está no texto intrinsicamente, e sim, na capa que o reveste.
Entretanto é possível identificar a proposta de Braga em, ao menos, sete crônicas. Em
“Coração de mãe” e “História de pescaria” são retiradas as remissões a nomes próprios (Maurício
Lacerda, Mário Rodrigues e Antônio Torres, na primeira e; Raymundo Castro Maya e Betty Faria,
na segunda). Em “Negócio de menino” é ocultada a informação que o menino-personagem era filho
de um amigo do narrador e é, ainda, suprimido parte do diálogo, podendo apontar um motivo: evitar
repetição na representação de insistência da criança. “Tuim criado no dedo”, “Visita de uma
senhora”, “Um braço de mulher” e “Lembrança de Zig” sofrem, primeiramente, mudança em seus
títulos, passando para “História triste de tuim”, “Visita de uma senhora do bairro”, “Lembrança de
um braço direito” e “Histórias de Zig”, respectivamente. Destas duas últimas, é a segunda que
recebe mais recortes em seu corpo, por abordar justamente a história de um dos cachorros da
família Braga e sua ligação com cada integrante dela. É apagado o nome de Cachoeiro, que vira
“cidade” e retirado o tio Maneco da narrativa. Na primeira, a auto referência ao próprio Braga vira
pronome de primeira pessoa, como já exposto acima.
A crônica “Marinheiro na rua” tem dois cortes: o primeiro é a referência a dois times de
futebol do Rio de Janeiro (Flamengo e Botafogo). O segundo, que dentro da análise não foi possível
apontar ou sugerir o motivo, é a supressão do parágrafo final:
Mas suas luzes estavam acesas; e eu senti confusamente que, estirada
em sua rede, minha triste amada receberia bem cedo a brisa do mar, e
despertaria, e se sentiria feliz em viajar para muito, muito longe, feliz, sem
pensar em mim, sem precisar de mim. (BRAGA, 2005, p.450)
Deste corpus analisado, não sofreram alterações: “O cajueiro”, “O afogado”, “O mato” e
“Do Carmo”. Em uma rápida leitura, isto demonstra que para Braga, a passagem da crônica para o
conto está mais que intimamente relacionada com o ocultamento desta marca autobiográfica.
Rastros estes que em uma leitura literária podem, se não o são sempre, ser lidos como constituição
de seu fazer estritamente literário. O ato de recortar estas passagens vai ainda de encontro com a
perspectiva de extensão que aparenta considerar Arrigucci Jr. em sua seleção.
3.3 QUEM CONTA UM CONTO
Flora Süssekind (2003) ao fazer um diagnóstico da crítica literária brasileira percebe que a
partir de 1970 a crítica universitária tendeu a uma diluição de contornos que mantinha com sua
antepassada, a crítica de rodapé. Nessa década surge o crítico-teórico, como Luiz Costa Lima, e o
crítico-ensaísta, como Davi Arrigucci Jr. Este novo crítico, o ensaísta, tende a ter “um texto sempre
em suspenso, em contínua reflexão sobre quem o escreve, sobre a própria forma, sobre seus objetos,
argumentação e pressupostos” (SÜSSEKIND, 2003, p.36). Produz um “texto-que-brilha”, e no caso
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de Arrigucci Jr., tem uma escrita que “mimetiza amorosamente a que comenta” (SÜSSEKIND,
2003, p.40), o que parece retomar a definição de crítica de Álvaro Lins, para quem ela era um novo
gênero literário de criação.
Os objetos de estudo de Arrigucci Jr. constituem um corpus de impossibilidade e de busca
incessante, o que compactua com a ideia de que a crítica não esgota a obra literária propiciando um
eterno retorno à obra. A escolha por Braga se justifica do mesmo modo que os estudos sobre Pedro
Nava, Manuel Bandeira e Gabeira: “a afirmação do universo da experiência em meio a um
cotidiano fragmentário e impessoal” (SÜSSEKIND, 2003, p.46). Além disso, suas escolhas
parecem privilegiar “obras menos tratadas nos estudos da literatura brasileira” (SANTOS, 2002
apud BARBOSA, 2010, p.4) e é deste modo que vemos a publicação d’Os melhores contos, em
1985, pois proporciona a inserção da obra de Rubem Braga também no âmbito acadêmico,
compactuando com a demanda editorial dos anos de 1980 que se preocupava muito mais com a
vendagem do que com a análise literária. A escrita de Arrigucci Jr. também se mostra propícia para
o período já que não é carregada de termos que dizem respeito somente aos universitários; é,
segundo Süssekind, uma escrita que encanta. Pode-se afirmar que este encantamento provém destas
primeiras impressões de leitor que ele expõe no início de suas análises. Luiz Guilherme Barbosa
(2010) afirma que o próximo passo é a incorporação de outras vozes críticas, seguindo pela
retomada de suas impressões. O texto, construído a partir de uma “sintaxe de perseguição”, é
formulado na “repetição insistente e diferenciada de imagens conceituais, de metáforas, de
tentativas de definição para um mesmo objeto” (BARBOSA, 2010, p.4-5). Estrutura esta que
também se percebe nos textos dedicados às crônicas de Braga.
Por outro lado, a publicação da obra analisada dá a possibilidade a Arrigucci Jr. de incluir
em sua obra crítica uma obra literária, já que é ele, com seu “poder” de crítico, que fornece o status
de literatura ao nomear as crônicas como contos. Neste sentido, parece ser uma tentativa de ir contra
o ensaio de Antonio Candido, A vida ao rés-do-chão (1992), publicado em 1981, quando afirma que
a crônica é, sobretudo, um gênero menor, indigno de qualquer prêmio literário. Tendo em vista este
ponto, o trabalho de Arrigucci Jr. é pretencioso, pois assume a incumbência de separar o joio do
trigo, afastando de sua seleção aquelas que seriam, de acordo com sua própria teoria da crônica,
fruto genuíno do gênero (crônicas sem assunto, respostas ao leitor, etc.) e mostrando que é da mão
do mesmo autor que florescem os contos, dignos em sua literariedade. Desta forma, é grandioso o
trabalho do crítico que ao selecionar as crônicas constrói e afirma um cânone de Braga, visto que
esta seleção se repete em outras escolhas.
Se para Flora Süssekind o professor Davi Arrigucci Jr. aparenta ser um crítico admirável em
suas análises, toma-se o cuidado em afirmar o mesmo neste trabalho com os contos, pois se o tom
de sua crítica é sempre uma reflexão da linguagem literária, aqui ela vai de encontro, mostrando-se
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o crítico uma espécie de “descobridor” da literatura de Braga. Detalhe este que já repudiava Roland
Barthes (1970), pois a crítica “não consiste em ‘descobrir’, na obra ou no autor observados, alguma
coisa de ‘escondido’, de ‘profundo’, de ‘secreto’, que teria passado despercebida até então”
(BARTHES, 1970, p.161). Retirar a literatura de Braga do gênero crônica é profanar seu sistema, é
uma tentativa de apagar a grande incógnita de seu texto (ser literatura no jornal), logo podemos
afirmar que esta atitude interfere também na leitura da obra.
Barthes, ao falar do exercício crítico, remete-se ainda à Idade Média para abordar as quatro
funções que recebiam aqueles que eram encarregados de “reconduzir a matéria absoluta”:
o scriptor(que copiava sem nada acrescentar), o compilator (que nunca
acrescentava coisas suas), o commentator (que só intervinha por si próprio no
texto recopiado para o tornar inteligível) e afinal o auctor (que dava suas
próprias ideias, apoiando-se sempre sobre outras autoridades)” (BARTHES,
1970, p.229).
Para ele, a atividade crítica inicia-se pelo compilator no simples ato de citar, de recortar o
texto, porém é com mais força que se afirma a atividade crítica em um commentator, pois é ele “um
transmissor, reconduz uma matéria passada” (BARTHES, 1970, p.229). Contudo, na tarefa que
parece se aproximar intimamente a de um editor, Davi Arrigucci Jr. salta para a próxima função e se
assume como auctor dos contos de Braga apoiando-se em sua própria obra crítica (“Onde andará o
velho Braga?”, “Fragmentos sobre a crônica” e “Braga de novo por aqui”), visto que a alteração
significativa não está no texto intrinsicamente, mas sim na capa que recebeu.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS: SOMA E MULTIPLICAÇÃO
É necessário afirmar que a publicação d’Os melhores contos de Rubem Braga tem um
aspecto matemático: a multiplicação de sua obra. Se o crítico tinha como ponto de partida trinta e
nove crônicas já publicadas, o escritor lhe devolve, no mínimo, dez outras novas que trazem o
mesmo fio narrativo, porém com uma apresentação, formulação e desenvolvimento desta narrativa
de modo diferente. Refazem (crítico e escritor), neste sentido, uma nova obra para o autor.
Ampliam a Biblioteca de Babel e ainda têm o cuidado de esconder alguns de seus exemplares.
Contudo a assinatura de Arrigucci, neste caso, retrata sua vocação como editor, como
apontam os estudos do sociólogo Pierre Bourdieu (2005), em A economia das trocas simbólicas.
Funcionaria como uma apropriação por parte do crítico de uma obra literária que teria mais valor
justamente por conter sua assinatura, a de um crítico, pois é com ela que Arrigucci Jr. tenta retirar a
poeira do menos literário que é acusada a crônica e mostrar-se decifrador “de signos
imperceptíveis”, sendo capaz “de revelar aos próprios autores os signos que soube descobrir”
(BOURDIEU, 2005, p.112), estabelecendo relações e conferindo valores a estas obras que analisa e
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seleciona em face de sua própria imagem. Entretanto, enquanto exerce sua função de acadêmico no
campo de produção, que é a de justamente legitimar as obras, apaga o que a obra traz de
marca do sistema de posições em relação às quais se define sua originalidade,
e contém indicações acerca do modo com que o autor pensou a novidade de
seu empreendimento, ou seja, daquilo que o distinguia, em seu entender, de
seus contemporâneos e de seus antecessores (BOURDIEU, 2005, p.112).
Ressalta-se por vezes este fato, pois Rubem Braga não deixa afetar o seu fazer literário após
a publicação de seus contos, mantendo-se como um cronista por excelência.
REFERÊNCIAS
ARRIGUCCI JR., Davi. Fragmentos sobre a crônica. In: ______. Enigma e comentário. São Paulo:
Companhia das Letras, 1987.
______. Braga de novo por aqui. In: BRAGA, Rubem. Os melhores contos de Rubem Braga. São
Paulo: Global, 1988.
BARBOSA, Luiz Guilherme. Infância, crítica, inversão:a imaginação da poesia contemporânea na
crítica de poesia de Davi Arrigucci Jr. REEL, Vitória, n.6, s.2, 2010. p.1-14.
BARTHES, Roland. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1970.
BOSI, Alfredo. Situação e formas do conto brasileiro contemporâneo. In: ______. O conto
brasileiro contemporâneo. São Paulo: Cultrix, 1974.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2005.
BRAGA, Rubem. 200 crônicas escolhidas. Rio de Janeiro: Record, 2005.
______. Encontro Marcado. Realização Museu Nacional de Belas Artes, Fundação Nacional PróMemória, Ministério da Cultura, Produção e Direção: Araken Távora. Disponível em:
<http://www.almacarioca.net/encontro-marcado-rubem-braga/>. Acesso em 18 janeiro 2011.
______. Os melhores contos de Rubem Braga. São Paulo: Global, 1988.
CANDIDO, Antonio. A vida ao rés-do-chão. In: ______. A crônica: o gênero, sua fixação e suas
transformações no Brasil. São Paulo: Editora da UNICAMP, 1992.
GOTLIB, Nádia Batella. Teoria do Conto. São Paulo: Ática, 2006.
SÜSSEKIND, Flora. Papéis colados. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2003.
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O AMOR EM RETROSPECTO: DUAS MULHERES DE BRAGA
Rafaela Godoi Bueno Gimenes (G-UEL/CNPq)
Luiz Carlos Santos Simon (UEL)
RESUMO
Primeiro Pierina; Joana veio depois, por curiosidade. “‘Pierina existiu mesmo?’”, pergunta uma leitora;
existiu, revela o eu através da crônica; de carne e osso, mas existe até hoje, eternizada, em vários livros de
Rubem Braga. Há muito tempo, uma pergunta não saía da cabeça: Pierina persistiu? Ao tentar respondê-la,
uma rival é encontrada: Joana. Mas quem é Joana? Qual a relevância dessas mulheres na intimidade do eu do
cronista? É significativo salientar que o interesse por Pierina surgiu pela primeira vez em uma crônica de A
traição das elegantes, de 1967, e teve confirmação com outras de O conde e o passarinho, de 1934. Este
artigo pretende traçar uma linha do tempo que visa à análise da intimidade e se há gradações em relação aos
sentimentos do eu com o passar dos anos. Para tanto, tivemos como base reflexões teóricas sobre a
intimidade que incluem desde Habermas a Giddens. Há também algumas considerações sobre a crônica
retiradas de um livro organizado por Beatriz Resende e ensaios de Davi Arrigucci Jr. que exploram não só o
gênero em questão, mas, principalmente, Rubem Braga.
Palavras-chave: Rubem Braga; crônica; intimidade; mulher; Giddens.
ABSTRACT
First Pierina; Joana comes after, out of curiosity. “Has Pierina really existed?” ask a lady reader; reveals the
chronic “I” that really there was Pierina; in the flesh, but there is until today, eternalized, in many books of
Rubem Braga. For many time, a question has always been in my mind: has Pierina persisted? When trying to
answer it, a rival is found: Joana. But, who is Joanna? What is the importance of those women in the
intimacy of the “I” of the chronist? It is important to highlight that the interest for Pierina arose for the first
time in a chronic of A traição das elegantes, in 1967, and was confirmed in others of O conde e o passarinho
in 1934. This article intends to trace a time line which objective is to analyze the intimacy and if there is with
the pass of the years graduations of the chronic “I”’s feelings. Therefore, we were based on teoric reflections
about intimacy which include from Habermas until Giddens. There are also some considerations about the
chronic extracted from a book organized by Beatriz Resende and Davi Arrigucci Jr’s essays, that explore not
only chronic genre, but mainly Rubem Braga’s.
Keywords: Rubem Braga; chronic; intimacy; woman; Giddens.
Analisar a sucessão dos anos em determinadas crônicas, em um gênero ligado
intrinsecamente a ele, ao tempo. Este artigo possui o objetivo de, mais do que observar o tempo,
debruçar-se em mulheres nomeadas de Rubem Braga, em duas delas: Pierina e Joana, nesta ordem.
E por que o estudo está concentrado em apenas duas das várias mulheres desse cronista? Por que
Hélice23 e Norka24 não desfrutam distinção semelhante? Preferência; mas não só isso. Antes de
explicar as escolhas empregadas e a própria metodologia da pesquisa, é indispensável discorrer,
mesmo que brevemente, sobre o gênero em questão.
Do Grego “krónos”, o “vocábulo ‘crônica’ mudou de sentido ao longo dos
séculos. Empregado primeiramente no início da era cristã, [...] a crônica se limitava a registrar os
23
24
“Uma certa americana”, A traição das elegantes, p. 102.
“Era loura, chamava-se Norka”, Recado de primavera, p. 9.
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eventos, sem aprofundar-lhes as causas ou dar-lhes qualquer interpretação” (MOISÉS, 1974, p. 1312). A mudança de significado da palavra crônica ocorreu, segundo Afrânio Coutinho, ao que parece,
no século XIX, “não havendo certeza se em Portugal ou no Brasil. [...] crônica passou a significar
outra coisa: um gênero literário de prosa” (1971, p. 109).
A intenção ao esclarecer o vínculo estreito da crônica com o tempo está
justamente no fato de que visamos compreender a relevância de Pierina e Joana com o passar dos
anos; traçando, assim, uma espécie de linha do tempo amorosa. Ressaltamos ainda a relação
temporal com tal gênero literário através de um trecho de Margarida de Souza Neves que, além de
esclarecer aspectos sobre a história da crônica, mostra como ela pode, muitas vezes, ser História:
Freqüentadores assíduos das crônicas coloniais, os historiadores
recentemente descobriram o fascinante universo dos cronistas modernos que,
ao contrário de alguns de seus predecessores, abdicam de assumir como
tarefa primordial o registro pretensamente objetivo do acontecido para abrir
espaço ao comentário pessoal, ao olhar subjetivo, à busca do significado do
efêmero e do fragmentário, ainda que mantendo paradoxalmente em comum
com os cronistas de todos os tempos o desejo de, através da crônica,
condensar na letra o tempo vivido. Na forma como no conteúdo, a crônica é
sempre, e de formas muito distintas, um texto que tematiza o tempo e,
simultaneamente, o mimetiza. (NEVES, 2001, p. 17, grifo nosso.)
As crônicas coloniais, citadas por Neves, eram basicamente registros de eventos.
Foi apenas com os cronistas ditos modernos que o gênero ganhou status literário. Não podemos
esquecer, é claro, da influência de autores românticos e realistas, como José de Alencar e Machado
de Assis, para a consolidação da crônica; na época, folhetim.
Com Arrigucci Jr. e seus “Fragmentos sobre a crônica”, temos a confirmação dos
vários significados dessa palavra, incluindo aspectos relevantes para o desenrolar de nossa pesquisa:
“Todos [os significados da palavra crônica], porém, implicam a noção de tempo. [...] Um leitor
atual pode não se dar conta desse vínculo de origem que faz dela uma forma do tempo e um registro
da vida escoada” (1999, p. 51). Arrigucci complementa evocando o próprio processo da escrita:
“Lembrar e escrever: trata-se de um relato em permanente relação com o tempo, de onde tira, como
memória escrita, sua matéria principal, o que fica do vivido” (grifo nosso). Assim, para a construção
deste estudo, levamos em consideração que “a crônica pode constituir o testemunho de uma vida”
(ARRIGUCCI Jr., 1999, p. 52); entretanto, não podemos confundi-la com a própria vida do
cronista.
Podemos agora justificar de alguma forma o motivo de termos escolhido Pierina,
e não Hélice, e Joana, e não Maria nem Ruskaia. Ambas surgem constantemente em seus livros, às
vezes lado a lado, num mesmo parágrafo. A questão que logo nos inquietou foi o aparecimento
incessante dessas mulheres. Buscamos decifrar a importância na intimidade do eu do cronista;
desejamos também verificar as possíveis gradações em relação aos sentimentos do eu com o passar
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dos anos, das décadas. Afinal de contas, o espaço que existe entre o primeiro vestígio de Pierina e
Joana e o último é de, mais ou menos, trinta e três anos – de 1934 a 1967.
Já a metodologia diz respeito à coleta de dados. Procuramos em livros publicados
de Rubem Braga crônicas que pelo menos citassem o nome de uma ou de outra. Os livros
pesquisados foram: O conde e o passarinho & Morro do isolamento, O verão e as mulheres, O
homem rouco, Um pé de milho, Ai de ti, Copacabana, A traição das elegantes, Recado de
primavera, 1939 – Um episódio em Porto Alegre, A borboleta amarela, Um cartão de Paris,
Aventuras, Dois repórteres no Paraná e As boas coisas da vida. Destes livros, localizamos onze
crônicas, sendo que uma delas, “Ruão” (set./1950), deixamos de lado por se referir à Joana d’Arc e
não à Joana de Ouro Preto ou à Joana carrasca.; são elas: “As carrascas”, “O conde e o passarinho”,
“A moça chamada Pierina”, “Visitação a São Paulo”, “Receita para mal de amor”, “Sobre o amor,
etc.”, “O novo caderno”, “A casa”, “Era loura, chamava-se Norka” e “Sizenando, a vida é triste”.
Não vamos, por uma questão de limite de caracteres e tempo, aprofundar o estudo
em crônicas que fazem apenas referência ao nome de Pierina ou Joana. Encaixá-las-emos na linha
do tempo a fim de que tenhamos um panorama completo da intimidade trabalhada por Anthony
Giddens, relacionando as datas e o que é dito nos textos literários para elaborarmos uma conclusão
consistente sobre a retrospectiva que aqui se intenciona.
Segue abaixo a linha do tempo das obras pesquisadas:
Nasce
R.B.
O conde e
o passarinho
A borboleta amarela
O homem rouco
A cidade e a roça
(O verão e as mulheres)
|_____________|____________|_____________|_________________|
1913
1936
Ai de ti, Copacabana
1949
A traição das elegantes
1953
Recado de primavera
1956
Morre R.B.
|______________________|__________________|________________|
1960
1967
1984
1990
Como consta na linha do tempo acima, tomando como ponto de partida o
nascimento do escritor e como de chegada a sua morte, notamos que Pierina e Joana aparecem pela
primeira vez no livro publicado em 1936 e deixam de aparecer em publicação de 1967. Vale notar
que não tivemos acesso às crônicas não publicadas em livros e que estão, no momento, em acervo
na Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
Fizemos outra linha do tempo, agora com as crônicas trabalhadas:
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“As carrascas”
“Sobre o amor, etc.”
“O novo caderno”
“O conde e o passarinho”
“Visitação a São Paulo”
“A casa”
|___________|_______________|____________|___________|___________|
maio/34
fev/35
maio/48
maio/49
“Sizenando, a vida é triste”
“Era loura, chamava-se Norka”
nov/54
maio/57
“A moça chamada Pierina”
“Receita para mal de amor”
|____________________________|__________________________________|
junho/58
maio/60
1967
É necessário salientar que as duas primeiras crônicas fazem parte de um mesmo
livro, O conde e o passarinho; a terceira e a quarta também, O homem rouco; as duas últimas
integram A traição das elegantes. Além disso, notamos que, quando há duas crônicas num mesmo
livro, uma fará referência à Pierina e a outra, à Joana. Excluindo as crônicas “A casa” e “Sizenando,
a vida é triste”, que fazem parte de um mesmo livro, A borboleta amarela, embora nas duas não
haja Pierina, apenas Joana. Finalmente, concluídas as apresentações e justificativas, vamos às
análises.
A primeira a ser estudada é “A moça chamada Pierina” do livro A traição das
elegantes de 1967. No início, há a pergunta de uma leitora: “‘Pierina existiu?’” (BRAGA, 1967, p.
110). É imprescindível para esta pesquisa esclarecer a relevância da crônica ter começado com o
questionamento de outrem. A linguagem adotada pelos cronistas, por Braga, “[...] se reveste,
inicialmente, de um tom coloquial, primeiro de quem conversa consigo mesmo, depois com o
amigo íntimo ou a pessoa em dado instante querida, finalmente com o leitor desconhecido”
(CANDIDO; CASTELLO, 1964, p. 359). Neste caso, o leitor deixa de ter um papel de ouvinte e faz
suas próprias demandas ao cronista, enviando-lhe cartas, questionando e, até mesmo, reclamando da
crônica do dia anterior. Chamaremos a pessoa que causa certa influência na produção escrita do
cronista de outro. De acordo com Paula Sibilia, “[...] toda comunicação requer a existência do
outro, do mundo, do alheio, do não-eu, por isso todo discurso é dialógico e polifônico, inclusive os
monólogos e os diários íntimos” (2008, p. 32). Ao contrário do que afirma Arrigucci Jr., quando
explica que por trás “[...] de todo narrador, na sua prosa há sempre um autor implícito que supõe um
outro, no caso o ouvinte, mais que o leitor” (1979, p. 160), presumimos que o outro-participativo,
como a própria nomenclatura já denuncia, não é um ouvinte comum e passivo, mas aquele que,
curioso ou insatisfeito, contata o autor. A crônica “A moça chamada Pierina” nada mais é do que a
resposta para essa outra pessoa – é a crônica “dialógica”, emprestando o termo de Sibilia. É
significativo ainda apontar para o fato de que a probabilidade de essa leitora ser fictícia existe – a
leitora como um recurso quando “a crônica não baixa”. Terminada essa elucidação, continuemos.
A crônica apresenta, em linhas gerais, toda a história de Pierina. O eu confirma
que ela existiu: “Sim, amável leitora, Pierina existiu. Chamava-se Pierina mesmo.” (BRAGA, 1967,
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p. 111.) Nesta crônica é instigante salientar como a figura de uma garota de “dezesseis ou dezessete
anos” é caracterizada. O primeiro aspecto é o modo indiferente e distante com que ela, em 1967, é
retratada: “[...] Pierina aparecia uma vez ou outra em uma crônica para animá-la e dar-lhe graça.”
(BRAGA, 1967, p. 111.) Em outro parágrafo, quando exalta a proeza de ter-lhe acertado os seios
com um aviãozinho de papel assim como, mais tarde, êxito semelhante seria o do foguete que
chegou à Lua, admite na melancolia habitual do “velho Braga” que: “[...] os seios de Pierina eram
para mim remotos e divinos como a Lua” (1967, p. 111). Remotos, pois Pierina, como a Lua, era
vista da janela, à distância, e divinos, por serem justamente remotos, inimagináveis ao toque.
Analisando ainda esse distanciamento com relação à Pierina, notamos: “E pouco
mais houve, ou nada. [...] eu era um rapaz solteiro de vinte e um anos e tinha um namoro muito
mais positivo que esse de Pierina com uma jovem alemã de costumes muito menos austeros que os
seus.” (BRAGA, 1967, p. 112.) A partir do excerto acima, somos obrigados a explicar que, segundo
consta na crônica, o eu não chegou, em nenhum momento, a travar diálogo ou até mesmo contato
íntimo com Pierina, pois era “filha de pai italiano bigodudo e mãe gorda e severa” (BRAGA, 1967,
p. 111). Além do mais, suas conversas eram realizadas da janela: “[...] de sua janela de sobrado para
a minha janela em um terceiro ou quarto andar de um hotelzinho que havia ali perto da Ladeira da
Memória” (BRAGA, 1967, p. 111) e o único encontro que marcaram “junto à fonte da Memória”
(p. 112) não deu certo – o pai de Pierina havia aparecido.
Necessário informar que, como está escrito no começo de “A moça chamada
Pierina”, o eu a conheceu em São Paulo, capital, em meados de 1934. Vale notar também que a
Ladeira da Memória se encontra no centro dessa cidade, sendo um lugar histórico perto do Vale de
Anhangabaú. Soa até mesmo engraçado saber que o único encontro de Pierina com o eu foi num
lugar chamado “Memória”. Como já destacamos neste artigo, a crônica possui relação estreita com
o tempo e com a própria memória. Arrigucci Jr. afirma que “[...] é ela [a crônica] o registro dos
instantâneos da vida moderna, das novidades avassaladoras, dos rápidos acontecimentos, dos
encontros casuais, dos estímulos sempre chocantes, do cotidiano das grandes cidades [...]” (1999, p.
63). Para fechar essa idéia, já tão explorada por nós, Arrigucci declara que o “[velho Braga] está
sempre um pouco à margem e à distância, ruminando numa rede seu passado capixaba, suas
viagens, seus amores, sua velha casa, e de olho no presente transitório dos acontecimentos” (1999,
p. 65). Nossa intenção está voltada exatamente para a observação dessa transitoriedade, mas em
relação à intimidade.
Já demonstramos como esta crônica rememora, em 1967, fatos passados da vida
do eu, de 1934, de uma forma distante demais. “Pierina entrou por uma crônica, saiu pela outra,
acabou-se a história.” (BRAGA, 1967, p. 112.) Ansiávamos contestar as informações dadas pelo eu,
já que as aparições de Pierina não são assim tão limitadas, e, enquanto buscávamos resquícios de
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Pierina, encontramos Joana – sua rival. As duas, lado a lado, numa crônica de maio de 1934: “As
carrascas”, de O conde e o passarinho, livro publicado apenas em 1936.
Antes de continuar com nossas análises e prosseguirmos no rastro das mulheres de
Braga, é indispensável buscarmos alguns esclarecimentos de Giddens, alguns de Habermas e outros
de Sennett. Inicialmente, precisamos tratar da diferença entre público e privado, pois a crônica nada
é mais do que um texto público, publicado em jornal, e, portanto, ao acesso de qualquer pessoa.
Para Habermas, “só à luz da esfera pública é que aquilo que é consegue aparecer, tudo se torna
visível a todos.” (1984, p. 16.) Mais adiante, quando disserta sobre o início da imprensa na metade
do século XVII, declara que os “jornais políticos” começaram a aparecer diariamente: “[...] uma
parte do material noticioso disponível é periodicamente impresso e vendido anonimamente –
passando a ter, assim, caráter público” (HABERMAS, 1984, p. 35). Deste modo, a crônica é
pública, já que seu meio de publicação não é o livro, mas sim, desde o seu início como folhetim, o
jornal. Indo de acordo com a concepção de Habermas, Sennett define público como algo “aberto à
observação de qualquer pessoa”, sendo que privado seria “uma região protegida da vida definida
pela família e pelos amigos” (1998, p. 30). Afirma que esta concepção do século XVII é muito
semelhante ao uso que fazemos atualmente. Giddens vai mais a fundo em sua definição sobre a
intimidade. Em seu livro, A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas
sociedades modernas, o autor afirma que ela “[...] é acima de tudo uma questão de comunicação
emocional, com os outros e consigo mesmo, em um contexto de igualdade interpessoal” (1993, p.
146). Algumas páginas depois, acrescenta: “intimidade significa a revelação de emoções e ações
improváveis de serem expostas pelo indivíduo para um olhar público mais amplo” (GIDDENS,
1993, p. 154).
Quando
esbarramos
em
crônicas
de
Rubem
Braga,
notamos
textos
predominantemente líricos e presenciamos determinadas “confissões”. Entretanto, apesar do que
consta no livro O show do eu de Sibilia, alertando para o fato de que nas sociedades
contemporâneas os “limites do que se pode dizer e mostrar” estão se alargando, dificilmente, nas
produções de Braga, encontraremos confissões demasiadamente íntimas. Mesmo assim, os
relacionamentos íntimos que permeiam as crônicas serão percebidos e expostos para “um olhar
público mais amplo”. É o caso da relação do eu com Pierina, que se iniciou em 1934 e persistiu em
sua memória até 1967.
Em “As carrascas” (maio/1934), ao comentar o fato de quatorze mulheres se
inscreverem para um concurso de carrasco, ou seja, de executor de pessoas condenadas à morte, em
uma capital européia, talvez Budapeste, o eu brinca com o significado da palavra “carrasca” e
compara essas quatorze mulheres com Joana e depois, para nossa surpresa, com Pierina:
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Bonitas? Com certeza, não. As bonitas fazem sua matança livremente, todo o
dia. [...] Há sorrisos que enforcam; outros guilhotinam, outros eletrocutam. E
navalham, atiram, envenenam, esfolam. Nas tardes velhas de Ouro Prêto,
Joana, Joana de Ouro Prêto, me enforcava livremente. Eu não conseguia
nunca saber se ela estava rindo ou sorrindo, se era doce ou amargo, de mim
ou para mim. Sentia o enforcamento no pescoço, e a voz morria, Joana!
(BRAGA, 1961, p. 26.)
Há uma comparação entre a carrasca Joana e a carrasca Pierina e, mais do que
simplesmente apontar a primeira aparição de Pierina em ordem cronológica, optamos por desvendar
qual dessas carrascas foram mais persistentes, contribuindo para a produção literária do cronista:
“Joana era um pecado mortalíssimo. Sua doçura me arruinou. Já Pierina é venial, amplamente
venial. Sei que ela tem muita e má danação, mas é danação de purgatório, perdoável. Ela me
apunhala, essa carrasca, e eu morro.” (BRAGA, 1961, p. 27.)
Fato importante, a crônica “As carrascas” foi escrita em São Paulo, exatamente no
mesmo ano e local revelados em “A moça chamada Pierina”. Outro aspecto que confirma nosso
retrato desse amor em retrospecto concretiza-se no fragmento a seguir, quando o eu faz referência à
feiúra das quatorze mulheres comparando com a feiúra da mãe de Pierina – “gorda e severa”: “Sois
tão ignóbeis que, ao vosso lado, a mãe de Pierina me parece um anjo, o mais lindo anjo das janelas
do Braz.” (BRAGA, 1961, p. 28.) Pierina de fato existiu; sua mãe também. Mas quem é Joana?
Quem é essa mulher que faria um anjo de Aleijadinho “transferir sua residência do limbo para o
inferno, e ainda dizendo que era com muito prazer e muita honra” (BRAGA, 1961, p. 27)? Uma
mulher fatal, uma carrasca. A curiosidade instalara-se em nós e, além de Pierina, desejávamos
Joana; talvez para uma vingança contra a que ousava dividir parágrafo com Pierina, a venial
Pierina.
Foi quando, por desgosto ou ironia, visualizamos a importância de Joana.
Enquanto Pierina, nos livros pesquisados, possuía apenas três crônicas citando seu nome, excluindo
“As carrascas” em que as duas se manifestam, Joana ganhava por três – sendo citada, assim, em seis
crônicas e ocupando não apenas uma linha ou duas, mas muitas vezes dois ou três parágrafos.
Pierina, é verdade, tem uma crônica só para si, embora a crônica tenha sido a resposta para uma
leitora. Pierina perde. Joana, a mulher de nome comum, não o nome de origem italiana de Pierina,
triunfa; alguns podem dizer ainda que Joana é qualquer uma, um pseudônimo para a “mulher do
instante”, mas a sua vitória continua sendo inegável.
É relevante esclarecer que na crônica “O novo caderno” (novembro/1954), do
livro O verão e as mulheres, há referências à Joana e ao seu surgimento: “Conheço Joana há algum
tempo, mas só há poucos dias tomei nota de seu telefone [...]” (BRAGA, 1949, p. 89). Essa crônica
é sobre um caderno de endereços e telefones. Como esse tipo de caderno era muito utilizado
antigamente, envelheciam e, desgastados, precisavam ser passados a limpo – tarefa trabalhosa e
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repetitiva: “É um trabalho fatigante: tenho de me esforçar para fazer boa letra, e chego à conclusão
de que conheço muita gente, especialmente começando por A, L e M. Mas a fadiga não é apenas
física; é também sentimental” (BRAGA, 1949, p. 88), já que o eu deverá escolher quem sai do
velho para participar do novo caderno ou ir diretamente para o lixo. Joana é transferida “à tinta para
a primeira linha da página da letra J, e escrevo seu nome devagar, como quem faz um carinho”
(BRAGA, 1949, p. 89). Ao mesmo tempo em que o eu acarinha Joana e transfere seu nome à tinta,
ou seja, com certa permanência para o novo caderno; o eu questiona a durabilidade disso: “Joana,
daqui a um ano, um ano e meio, quando este caderno estiver sujo e velho, com que mão, Joana,
escreverei teu nome no caderno novo?” (BRAGA, 1949, p. 89). Talvez tenhamos que admitir que
ela é o amor ou a “mulher do momento”. Joana, o codinome que protegeria o nome de todas as
outras mulheres: “[...] esse número talvez não vá para outro caderno, mas fique preso na minha
memória entretanto infiel, como um remorso ou uma saudade”. (BRAGA, 1949, p. 89).
Realmente, talvez essa Joana não tenha resistido aos anos, mas outras certamente
resistiram. Suponhamos que as Joanas sejam várias. Outra Joana aparecerá em crônica datada de
1957, apenas três anos depois, e outras aparecerão em 1958, 1960 e a última, conforme a nossa
pesquisa, em 1967. Apenas não podemos confirmar com veemência se foi uma ou se foram duas ou
três Joanas, ficam as hipóteses. Entretanto, deixando de lado a crônica motivada pelo outroparticipativo, a última aparição de Pierina acontece em maio de 1949. Durante o período de 1949 a
1967, surgem cinco crônicas com Joana: uma delas, “A casa” de 1957, cita seu nome duplamente e
em letras garrafais: “[...] onde ele [o cidadão triste] possa bradar, sem medo nem vergonha, o nome
de sua amada: JOANA, JOANA!” (BRAGA, s.d., p. 45, grifo nosso.) Uma referência bem rápida,
embora revele muito: revela o nome da amada e ponto de exclamação.
Caminhando por essa linha, de Joana como o símbolo de mulher amada, citamos
uma crônica publicada em junho de 1958 – “Sizenando, a vida é triste”; ao travar “diálogo” com
Sizenando e divagar, o eu demonstra seu ciúme em relação à ela: “[...] ou que minha amada Joana
esteja neste minuto saindo do Sacha’s e entrando no carro daquele stompanato25 de Botafogo”.
(BRAGA, s.d., p. 95). Em outro trecho, o ciúme, para quem ainda não havia notado, fica claro: “A
esta hora Joana deve estar no carro daquele palhaço, toda aconchegada a ele, meio tonta de uísque,
vai para o apartamento dele – um imbecil que não sabe uma só palavra de esperanto! A vida é triste,
Sizenando.” (BRAGA, s.d., p. 96).
Em outra crônica, “Sobre o amor, etc.”, de maio de 1948, publicada em O homem
rouco, há um parágrafo dedicado à Joana. A crônica, resumidamente, tem como foco pessoas
apaixonadas que não dividem as mesmas sensações; por exemplo:
25
Alusão a Johnny Stompanato, gangster americano cuja data de morte coincide com a data de publicação da crônica.
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Chamem de louco e tolo ao apaixonado que sente ciúmes quando ouve da sua
amada dizer que na véspera de tarde o céu estava uma coisa lindíssima, com
mil pequenas nuvens de leve purpura sobre um azul de sonho. [...] Ele,
porém, na véspera estava dentro de uma sala qualquer e não viu céu nenhum.
Se acaso tivesse chegado à janela e visto, agora seria feliz em saber que em
outro ponto da cidade ela também vira. Mas isso não aconteceu, e ele tem
ciúmes. (BRAGA, 1949, p. 13.)
O apaixonado sente que sua amada foi infiel, pois presenciou algo que ele não
teve a oportunidade de ver. O eu cede outros exemplos ao falar do reencontro de antigos amigos que
não se vêem mais. O eu esclarece que quando um amigo volta de longe, trazendo consigo uma
infinidade de histórias, “nós” tentamos fazer o mesmo, mas percebemos que a conversa só se
manterá se nos agarrarmos a velhas besteiras, às histórias em comum. Joana surgirá na crônica
como o modelo de mulher amada. O eu de Braga dirá que “naufragamos a todo instante no mar
bobo do tempo e do espaço, entre as ondas de coisas e sentimentos de todo dia” (BRAGA, 1949, p.
14) e que:
A mais bela criança que vemos correr ao sol não nos dá um prazer puro; a
criança devia correr ao sol, mas Joana devia estar aqui para vê-la, ao nosso
lado. Bem; mais tarde contaremos a Joana que fazia sol e vimos uma criança
tão engraçada e linda que corria entre os canteiros querendo pegar uma
borboleta com a mão. Mas não estaremos incorporando a criança à vida de
Joana; estaremos apenas lhe entregando morto o corpinho traidor, para que
Joana nos perdoe. (BRAGA, 1949, p. 15.)
Já vimos em “A casa” que Joana é o símbolo de mulher amada. “A casa” foi
escrita em 1957 e “Sobre o amor, etc.”, em 1948, e nas duas ela é a pessoa amada.
Vale ressaltar, agora que chegamos ao fim, que não questionamos se Joana
realmente existiu – como fez a leitora de “A moça chamada Pierina”; até mesmo porque o cronista
não poderia mais sanar tal dúvida com uma resposta em forma de crônica. Ficamos apenas com a
esperança de que tenha, sim, realmente existido – talvez não como una e indivisível, mas como a
representação dos diversos amores de Rubem Braga.
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Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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______. “A moça chamada Pierina”. In: ______. A traição das elegantes. 2.ed. Rio de Janeiro:
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______. “As carrascas”. In: ______. O conde e o passarinho. 4.ed. Rio de Janeiro: Sabiá, 1961.
______. “O novo caderno”. In: ______. O verão e as mulheres. 9.ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.
______. “Sizenando, a vida é triste”. In: ______. Ai de ti, Copacabana. 9.ed. Rio de Janeiro:
Record, s.d.
______. “Sobre o amor, etc.”. In: ______. O homem rouco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1949.
CANDIDO, Antonio; CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: história e
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COUTINHO, Afrânio. A literatura no Brasil. 2.ed. Rio de Janeiro: Sul Americana, 1971. v. 6.
GIDDENS, Anthony. A transformação da intimidade: sexualidade, amor e erotismo nas sociedades
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(Org.) Cronistas do Rio. 2.ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2001.
SENNETT, Richard. O declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
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SIBILIA, Paula. “Eu, eu, eu... você e todos nós”. In: ______. O show do eu: a intimidade como
espetáculo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
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CHOQUE ENTRE FICÇÃO E REAL:
RELEITURAS HISTÓRICAS NOS CONTOS DE FERNANDO BONASSI
Raquel Medina Dias (PG-UFMS)
RESUMO
Estudar a ficção brasileira contemporânea, numa perspectiva histórica e social, a partir da análise dos contos
de Violência e paixão (2007), de Fernando Bonassi, é o objetivo desse trabalho. Lançada ao desafio, ao
propor estudos sobre a arte hodierna, a crítica à literatura produzida no final do século XX e início do XXI,
vale-se, muitas vezes, da repercussão imediata de cada autor, por não haver distanciamento que o passar do
tempo proporciona (COSTA PINTO, 2004). Nesse contexto, convém mencionar que o objeto de estudo em
questão foi publicado pela primeira vez na antologia Geração 90: manuscritos de computador, organizada
pelo contista Nelson de Oliveira, em 2003 e, posteriormente, publicado na obra Violência e paixão, em 2006.
Nessa configuração de tempo, o presente trabalho aponta algumas possibilidades de releituras históricas,
numa perspectiva social, como sendo matéria da narrativa dos contos da obra em estudo, e indicá-las como
possíveis tendências da ficção brasileira. Dessa forma, situar referida obra no contexto da literatura brasileira
contemporânea.
Palavras-chave: Literatura Contemporânea; Sociedade; Ficção; História.
ABSTRACT
Studying the Brazilian contemporary fiction, in an historical and social perspective, starting from analysis of
tales of Violência e Paixão, (2006), by Fernando Bonassi, is the goal of this work. Accepted the challenge by
proposing studies on art today, the literature criticism produced in the late twentieth century and the
beginning of XXI, it is often the immediate response of every author, no distance that over time provides
(COSTA PINTO, 2004). In this context, it is worth mentioning that the object of study in question was first
published in the anthology Geração 90: manuscritos de computador, that was organized by Nelson de
Oliveira, in 2003 and subsequently published work on Violência e Paixão, in 2007. In this time
configuration, this work shows some possibilities of historical rereadings, in a social perspective, as matter
of tales narrative of the work concerned, and display them as a potential trends in Brazilian fiction. In this
way, situate such work in the contemporary Brazilian literature.
Keywords: Contemporary Literature; Society; Fiction; History.
1. INTRODUÇÃO
Bem alertou Manuel da Costa Pinto, na introdução de sua obra Literatura Brasileira
Hoje (2004): “Escrever a história do presente é sempre arriscado – e isso também vale para a
literatura”. Torna-se instigante, assim, a investigação de tendências que levem a compreender as
razões que tornam notáveis ou valorativas algumas produções literárias do nosso tempo. A técnica
do impacto, a violência, o cenário urbano, a miséria são algumas das matérias que revestem a
narrativa contemporânea.
Ainda, de acordo com Costa Pinto (2004), Bonassi nunca esconde sua intervenção autoral,
suas mediações literárias e sua empatia moral, isso feito através da captação das imagens
suburbanas que apresentam as deformações impostas pela miséria. Tudo isso impregnado pela
“náusea de quem testemunha uma situação revoltante e por uma tentativa de resgatar vestígios de
lirismo nessas vivências massacradas” (idem, p. 140).
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Nesse raciocínio, então, os narradores de Bonassi observam o mundo do ponto de vista do
desempregado, da prostituta, do mendigo, do carcerário e também de outras elites: juiz, políticos.
Dessa forma, portanto, denunciando os estados de miséria, desigualdade, de corrupção,
discriminação, etc, ratificando o compromisso social da sua arte.
2. FICÇÃO: RELEITURAS EM MADALENA
Catártica, não menos impactante na sua estrutura, que tematiza essa literatura, apresenta
dessa forma, a relação da arte com a realidade. Rinaldo de Fernandes (sd), em seu ensaio sobre o
conto brasileiro do século XXI, menciona o trabalho da professora Beatriz Jaguaribe da UFRJ,
destacando a retomada do “realismo estético” ou “choque com o real” feita pela literatura e outras
artes contemporâneas. Essa modalidade é definida pela professora como “a utilização de estéticas
realistas que visam suscitar um espanto de efeito catártico no espectador ou leitor” (JAGUARIBE
apud FERNANDES, sd). O corpo das palavras encenando a realidade, chocando-se com o real nas
páginas que se desdobram um cenário de violência e impetuosidade.
Nessa situação o conto a seguir, Madalena, reproduz ou recria a personagem bíblica Maria
Madalena, sob uma ótica hiper-realista e numa perspectiva contemporânea. Salientamos que o
termo Contemporâneo segue a abordagem apresentada pelo Professor Dr. Antonio Rodrigues
Belon, a “contemporaneidade, na sua concepção de tempo que acompanha o homem” (BELON,
2009, p.142), tingida por experiências violentas das injustiças sociais.
Madalena
Bati perna. Arrastei asa. Arranquei roupa. Bebi, fumei, pequei de arreganhar.
Me perdi de não me achar mais. Desci direto. Sem-vergonha não era pouca.
Motivo passou longe. Se queriam tinham, mas dinheiro antes. Fui até com
gosto, que no meu gosto mando eu. Fingi também. Nunca me agrado.
Quando convinha. E só assim. Fiz foi de tudo, que tudo é o cada um de nós
faz... antes do resto... do fim... hoje. Nem me arrependo! Se é o que vocês
querem saber... para mim o inferno é aqui. Delícia. Então? Não vão atirar
essas pedras? Vou ter de ficar aqui o dia inteiro? (BONASSI, 2007, p. 18)
De acordo com texto bíblico, a personagem Madalena é levada ao templo pelos doutores
da lei da época, para ser apedrejada, por ter cometido adultério e a única fala da personagem no
episódio é: “Ninguém, Senhor.”, (Lc 8: 11), após ser indagada se alguém havia a condenado. Ao
contrário da personagem bíblica, a personagem Madalena, no conto, apresentada numa perspectiva
contemporânea, é ré-confessa, não demonstra arrependimento, nem humildade ao se apresentar aos
seus narratários.
Nota-se que há uma recontextualização de fatos históricos. A personagem Madalena é
recriada no plano ficcional num outro tempo e espaço. A personalidade, nos dois contextos reflete o
momento histórico. A ficção bonassiana nasce das experiências humanas, ou seja, como uma
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“narrativa histórica comporta elementos e procedimentos da elaboração ficcional, assim como a
ficção reelabora componentes derivados de fontes históricas.” (BARBIERI, 2003, p. 99).
3. FICÇÃO E REALIDADE: 111
No mesmo plano, representando tempos de terror, um marco histórico que simboliza a
tragédia brasileira de fim de século.
111
Haja o que houver a que tempo for será a noite mais preta de todas as noites
negras em que os deuses das chances dormem pesadamente e sobrevoam
corvos insanos dos piores Demônios do Brasil terra de contrastes e chacinas
convocando a face carcomida da morte violenta dentes à mostra quando
homens da lei entram para o que der e vier deixando cem gramas de alma no
esgoto da covardia contra homens desprezíveis cujas nucas explodem feito
ovos e braços inúteis pedem clemência sob camas já tampas de sarcófago. Só
mesmo cães assustados salvam-se, mascando genitálias. (BONASSI, 2007, p.
22)
O título do conto “111” faz alusão ao número de detentos mortos na chacina do Carandiru,
em 1992. Ressalta-se que Fernando Bonassi foi roteirista do filme Estação Carandiru, de Hector
Babenco. Ainda na entrevista concedida ao IHU ON-Line26, Fernando Bonassi revela:
Durante a realização do roteiro do filme Carandiru, realizei algumas oficinas
literárias na cadeia. O que mais me surpreendeu foi o abandono intelectual
em que se encontram aqueles homens. Raras cadeias têm programas de
educação e quando têm, na maioria das vezes, são reacionários. Nunca sofri
ameaças. As visitas no Carandiru eram extremamente protegidas pelas
lideranças da cadeia quando lá se encontravam, pois eram a única conexão
com o mundo real, fora das muralhas. (IHU ON- LINE, sd)
No plano formal do texto, observa-se a ausência de pontuação, o que revela o grau de
intensidade da representação da violência contra os presos, bem como a preocupação do autor com
a situação social do carcerário. Ainda na mesma entrevista, ao ser indagado sobre a banalização da
criminalidade e da influência do PCC nas cadeias, destaca que, para a mudança desse quadro, é
preciso humanizar as cadeias “separando-se quem comete delitos graves dos leves, adotando a
remissão de pena para quem estuda e a devida preparação do preso para a volta a vida social27.”
Ainda sobre a tragédia de 1992, mencionamos a peça teatral Apocalipse 1,11, de Fernando
Bonassi, baseada também na chacina do Carandiru. É interessante destacar dois pontos nesse
contexto. O primeiro é o fato, óbvio e relevante, 1,11, como fragmentação de 111. Outro detalhe é o
nome Apocalipse, que, segundo a acepção fornecida pelo dicionário Aurélio (2006) e pela própria
bíblia, além de ser o último livro do Novo Testamento, contém revelações sobre os destinos da
humanidade.
26
ibidem
27
Bis is idem
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Pois bem, diante disso, vale destacar o versículo 11 do capítulo 1, do referido livro que
integra a bíblia: “Escreva num livro tudo o que você está vendo. Depois mande para as sete
igrejas: Éfeso, Esmirna, Pérgamo, Tiatira, Sardes, Filadélfia e Laodicéia.” (Ap. 1, 11 – grifo nosso).
De acordo com a tradução da bíblia, editora Paulus, (BALANCIN; STORNIOLO, 2005, p.
1517), as sete igrejas mencionadas se referem às sete comunidades da Ásia. Metaforicamente,
representa os povos do mundo inteiro, já que, “sete é o número simbólico e indica totalidade
(...)”(idem).
O autor do livro Apocalipse (bíblia) usa linguagem metafórica: imagens, figuras, números,
regiões específicas para se referir ao mundo, tendo em vista o momento de tensão em que foi escrito
(perseguições, mortes, injustiças sociais). O autor do livro (São João) pretendeu mostrar o real e
criar estratégias de ação para mudar a situação. Era um alerta aos povos. (ibidem, p. 1516). Esses
objetivos se familiarizam com as pretensões do autor de 111.
Nesse último conto também são utilizadas imagens metafóricas: imagens sombrias do
início do século (noite preta, noites negras); animais que remetem ao terror (corvo); figuras das
injustiças (Demônios do Brasil); contraste entre as diferentes classes (homens da lei e homens
desprezíveis); cenas do horror e desespero (nucas que explodem feito ovos, cães mascando
genitálias); desumanização e covardia (cem gramas de alma no esgoto da covardia contra homens);
vozes e súplicas (braços inúteis pedem clemência).
De acordo com Manuel da Costa Pinto, a ficção de Fernando Bonassi apresenta fortes
traços do realismo dos autores dos anos 70. Desses últimos herda tal tendência, porém, com uma
“representação mais intensa da violência (policial ou criminosa, mas também psicológica,
simbólica” (COSTA PINTO, 2004, p. 140).
Servindo-nos como uma continuidade das revelações dos destinos da humanidade, o São
João do século XXI escreve num livro tudo o que está vendo, num espaço determinado, mas que
metaforiza qualquer lugar do Brasil e lança aos olhos da sociedade. É uma arte de denúncia do
horror social, das desigualdades, das perseguições. Dessa forma, segue à risca a proposta no livro
bíblico Apocalipse 1,11.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra em estudo trata-se de uma arte mediadora da experiência humana, feita através de
uma linguagem de molde hiper-realista. Distante daquele realismo do final do século XIX, marcado
pela filosofia positivista e determinista, o realismo aqui, inspirado no realismo dos anos 70, surge
com mais intensidade na representação da realidade no plano estético. É a historia na ficção. E
quando falamos em história, referimo-nos à história Contemporânea, marcada pelas experiências
humanas (violência, injustiças sociais).
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Na narrativa percebe-se um percurso nos trânsitos da história, sendo recriada a partir de
experiências humanas, na ficção. Ocorre uma conivência entre história e ficção, pois de acordo com
Barbieri (2003), “a história não começa nos fatos, mas na palavra escrita”. Ficção e realidade se
tornam coniventes nesse cenário. Os acontecimentos se alinhavam nas palavras e formam o corpo e
alma do texto, para a compreensão e denúncia dos fatos da história hodierna.
REFERÊNCIAS
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57. ed. São Paulo: Paulus, 1991.
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REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS – ANO 2, v.1 – ISSN: 2179-4456 – agosto de 2011
A DIALÉTICA DA MALANDRAGEM REVISITADA
EM O XANGÔ DE BAKER STREET.
Renato Oliveira Rocha (G-UNESP/FAPESP)
Gabriela Kvacek Betella (UNESP)
RESUMO
Utilizando o conceito de influência, bastante explorado por Sandra Nitrini (2000), a proposta deste trabalho é
verificar a caracterização dos personagens principais de O Xangô de Baker Street (1995) e de Macunaíma, o
herói sem nenhum caráter (1928) – Sherlock Holmes e Macunaíma – como malandros nos respectivos
romances, herdeiros da picaresca espanhola, gênero que tomou um novo significado na literatura brasileira,
conforme assinalado desde os anos de 1960 por Antonio Candido em seu célebre ensaio “Dialética da
malandragem” (2010). Com essa base teórica analisamos a composição dos malandros, cujo ponto de partida
está voltado para a questão do nacional, do brasileiro. Embora as distâncias no tempo e de estilo separem os
protagonistas criados por Jô Soares e Mário de Andrade notamos no interessante procedimento de recriação
do consagrado detetive inglês de Arthur Conan Doyle e na releitura de aspectos do folclore brasileiro uma
convergência de interesses no que diz respeito à representação do caráter nacional.
Palavras-chave: Romance brasileiro; Literatura Comparada; malandragem; picardia.
ABSTRACT
Using the concept of influence, well explored by Sandra Nitrini (2000), the purpose of this study is to verify
the characterization of the main characters of O Xangô de Baker Street (1995) and Macunaíma, o herói sem
nenhum caráter (1928) – Sherlock Holmes and Macunaíma – as rogues in their novels, heirs to the Spanish
picaresque, a genre that has taken on new meaning in Brazilian literature, as pointed out since the 1960s by
Antonio Candido in his famous essay “Dialética da malandragem” (2010). With these theories, we analyze
the composition of the tricksters, whose starting point is the question facing the country, the Brazilian.
Although the distances in time and style of separating the protagonists created by Jô Soares and Mário de
Andrade, we have noticed the interesting procedure of re-creation of the renowned English detective created
by Arthur Conan Doyle and the reinterpretation of aspects of Brazilian folklore a convergence of interests
with regard to representation of the national character.
Keywords: Brazilian romance; Comparative Literature; trickery; picardy.
1. INTRODUÇÃO
Em seu romance de estreia na literatura, O Xangô de Baker Street (1995), Jô Soares trouxe à
cena o consagrado detetive Sherlock Holmes e seu fiel escudeiro, o doutor Watson, criados por
Arthur Conan Doyle, para desvendar crimes ocorridos no Rio de Janeiro, em fins do século XIX.
Entre outras análises e aferições possíveis acerca do romance, nos deteremos na figura do detetive e
na maneira como o autor recompôs um personagem consagrado nos romances policiais e revisou as
características que fazem dele a encarnação da ordem, da lógica e do método, na forma de um
malandro – ou neopícaro – dos trópicos.
A forma de representação do malandro aparece pela primeira vez na literatura brasileira com
Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida. O romance, publicado
primeiro em folhetins entre 1852 e 1853, depois em livro, inaugurou a maneira de pensar e retratar
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certos aspectos relativos às transgressões e à desordem da sociedade brasileira. No sentido de evitar
que se tomem por verdadeiras certas filiações, é Antonio Candido quem nos diz que “Leonardo não
é um pícaro, saído da tradição espanhola; mas o primeiro malandro que entra na novelística
brasileira" (CANDIDO, 2010, p. 22). Ainda que se insista no fato de que Mário de Andrade tenha
apostado na herança espanhola, o seu Macunaíma pode ser lido através da teoria formulada por
Antonio Candido, que rejeita as características do pícaro e aposta nos traços nacionais para uma
linhagem de tipos comuns a várias culturas, cujas características foram incorporadas tanto pela
nossa literatura quanto pela tradição oral. Nesse quadro estariam dispostos, no âmbito nacional,
alguns sujeitos associados aos tricksters, como o saci-pererê, Pedro Malasartes e alguns animais
como o macaco, a raposa, o jabuti, enfim, vários pequenos enganadores ou trapaceiros cujo
propósito é utilizar a sagacidade natural e a esperteza para tirar vantagem sobre os outros ou
simplesmente se livrar de juízos, penas, castigos ou admoestações, graças à criatividade das
situações e do discurso.
Macunaíma, o “herói de nossa gente”, reforça o caráter simbólico e nacional desse tipo de
personagem, oferecendo-lhe uma dimensão que ultrapassa tanto o caráter folclórico quanto o de
protagonista de romance de costumes. Mário de Andrade faz vingar na literatura a representação de
um tipo nacional, ainda que suas origens sejam mescladas a partir da pesquisa sobre os mitos
indígenas e da recriação que traz Macunaíma para o mundo urbano em plena efervescência do final
da década de 1920.
2. A MALANDRAGEM EM O XANGÔ DE BAKER STREET
Normalmente, o pícaro tem como uma de suas características um projeto de ascensão social,
já que aparecia na literatura como “(...) um tipo inferior de servo, sobretudo ajudante de cozinha,
sujo e esfarrapado” (CANDIDO, 2010, p. 20). De certo modo, Macunaíma tem um projeto – a
busca pela muiraquitã; em O Xangô de Baker Street, a solução dos crimes por parte de Sherlock
Holmes também pode ser vista como um meio de passar de uma condição a outra. No entanto, em
nenhum dos dois casos os personagens são servos, e nem sequer aparecem subordinados a alguém.
A rigor, nenhum dos dois trabalha. Portanto, ambos podem ser vistos como releituras bastante
modificadas do pícaro tradicional (cujo terreno mais fértil foi o da Espanha do século XVI), ainda
mais se acrescentamos outras características do suposto modelo: a origem humilde, a falta de meios,
o abandono, o choque com a realidade que proporciona a reação através da mentira, do roubo e da
falta de escrúpulos como defesa contra a adversidade material.
Na explicação de Antonio Candido, o pícaro nasce ingênuo e se transforma devido à
brutalidade da vida; Leonardo, nosso anti-herói das Memórias, além de não ser propriamente
largado na vida, “nasce malandro feito, como se se tratasse de uma qualidade essencial, não um
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atributo adquirido pela força das circunstâncias.” (CANDIDO, 2010, p. 22). Nem é preciso dizer
que Macunaíma, nosso anti-herói moderno, também nasce pronto e, embora saia mundo afora, não é
abandonado. Quanto à recriação de Sherlock Holmes, além de não possuir nenhum traço de
desamparo na sua caracterização, sofre uma transformação, ao que tudo indica, temporária, como se
o ensejo brasileiro fosse mais uma experiência a assimilar. Uma questão remanescente para
Macunaíma e Sherlock nos chama a atenção para outro aspecto da picaresca: teriam os anti-heróis
do século XX aprendido algo com as aventuras que viveram? A pergunta talvez se responda quando
lembramos que, ao contrário do pícaro, o malandro das Memórias não amadurece graças ao
percurso que o ensinaria e o faria refletir sobre sua trajetória.
Outro traço da picaresca clássica que se desfaz em Macunaíma e em O Xangô de Baker
street é a autobiografia. Esta, que seria uma característica essencial, não ocorre em ambos os
romances. Mário de Andrade deu a um papagaio a função de narrador das aventuras do herói de
nossa gente; Jô Soares narra em terceira pessoa, porém deixa em suspenso Watson como narrador
para as aventuras de Sherlock Holmes, exatamente como de fato o personagem se assume nas
histórias de Arthur Conan Doyle. Na trama de O Xangô a atriz francesa Sarah Bernhardt, que fazia
excursão pelo Brasil em 1886, sugere ao amigo do detetive:
– [...] Virou-se, dirigindo-se, em inglês, para Watson: – E este querido
doutor, como vai? Espero que tenha levado a sério minha sugestão de
escrever em livros as fantásticas aventuras de seu amigo.
– Tenho pensado nisso, madame. Por enquanto, falta tempo (SOARES, 2006,
p. 112).
No capítulo 23, quando partiam do Rio de Janeiro de volta a Londres, após o fracasso nas
investigações sobre o crime e sobre o assassino, Sherlock Holmes viu que o amigo fazia anotações
em um pequeno caderno. Indagado sobre o conteúdo dos escritos, o doutor Watson diz:
– [...]. Estou finalmente seguindo o conselho de madame Sarah Bernhardt.
Vou passar a escrever todos os seus casos. A francesa tem razão, essa
brincadeira deve render umas boas libras. O que acha? Já tenho até o título:
As aventuras de Sherlock Holmes (SOARES, 2006, p. 339).
A fala do amigo de Holmes dá a impressão ao leitor de que o romance teria sido narrado
pelo doutor Watson, assim como nas histórias de seu “pai” verdadeiro, Conan Doyle.
No romance de Jô Soares, a personagem central tenta se adaptar ao Rio de Janeiro do século
XIX. Logo em sua chegada ao Brasil, ainda nas águas do porto de Recife, Holmes tenta se adequar
aos trópicos. Sua primeira atitude é sugerir ao doutor Watson – para quem a capital do Brasil era
Buenos Aires – que trocasse o chá inglês pela água-de-coco:
– [...]. Em vez de chá, é melhor experimentar essa água-de-coco que os
marinheiros acabaram de trazer a bordo. Dizem que é refrescante e deliciosa.
– Fico com o chá. Basta a diarréia que tive em Calcutá quando experimentei
suco de manga com leite.
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– Watson, às vezes me espanta a sua falta de capacidade de se adaptar às
circunstâncias. Por mim, já me sinto um nativo (SOARES, 2006, p. 60).
No trecho acima temos o primeiro contato do detetive com as terras brasileiras e, ao fazê-lo
trocar o chá pela água-de-coco, o autor inicia o processo de abrasileiramento do mais circunspecto
dos ingleses que, mais ao final, ficará parecido com um malandro carioca. Esse processo de
transformação pode representar, guardadas as proporções, a assimilação do elemento literário
importado e seu desenvolvimento na ficção brasileira, percurso que teria como resultado o romance
de Jô Soares, disposto a reunir vários componentes estrangeiros (além dos personagens, o enredo do
tipo policial) integrados com caracteres muito peculiares do meio e da época de formação do autor.
O produto final estaria exibindo em detalhes as etapas da absorção do modelo, como evidência da
homologia que existe entre os conceitos de influência e recepção produtora (NITRINI, 2000, p.
181).
Se, na tentativa de recuperar a muiraquitã, Macunaíma, no capítulo 6 (“A francesa e o
gigante”) disfarçou-se de francesa, o narrador de O Xangô de Baker Street nos conta que Sherlock
Holmes era o rei dos disfarces, para desespero do doutor Watson. No capítulo 16 o delegado Mello
Pimenta esperava pelo detetive para juntos colherem informações em um hospício sobre as
características de um doente mental (acreditavam ser esse mal que acometia o assassino). O policial
se depara com a figura de um velho marinheiro de carregado sotaque português. Ao ver o espanto
do delegado com a indiscrição do disfarce, Sherlock Holmes se explica: “(...) Achei melhor não
chamar muito a atenção nesta fase das investigações (...)” (SOARES, 2006, p. 240). Vale lembrar
que o disfarce é um dos truques mais utilizados pelos ardilosos nas tramas clássicas para ludibriar
os mais inocentes. Se a rapsódia de Mário de Andrade permitiu ao herói fingir-se de mulher para
conseguir seu intento, assim como poderia acontecer numa lenda amazônica, o protagonista de Jô
Soares aparece disfarçado para contribuir com a ironia sobre a falência do disfarce detetivesco
naquele contexto. Percebemos, nos dois casos, a utilização de um elemento de enredo no sentido de
provocar uma atualização do mesmo.
3. MALANDROS
Tanto Macunaíma quanto o Sherlock Holmes de Jô Soares são malandros no que diz
respeito ao ser brasileiro. Se é inegável a qualidade literária do livro de Mário de Andrade, por tudo
o que representa, devemos admitir que as técnicas de composição puderam influenciar outros
escritores. Sabe-se que Mário de Andrade escreveu sua rapsódia com base nos relatos do alemão
Koch-Grünberg e no folclore brasileiro; Jô Soares foi buscar nos costumes do século XIX e em
relatos de viajantes o mote para inserir no mais inglês dos ingleses o espírito brasileiro. É através
desse personagem que o autor denuncia uma série de inadequações sociais, identifica falhas do
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pensamento da época, aponta incongruência nos costumes, como na passagem em que Sherlock
Holmes, sem compreender as vestimentas ao estilo europeu, pede a Salomão Calif que lhe faça
quatro ternos de linho branco, para surpresa do alfaiate:
– Mas ninguém que seja de qualidade usa disso por aqui – argumentou Calif.
– É coisa para o zé-povinho – argumentou Guimarães Passos.
– Pois inaugurarei a moda – afirmou, teimosamente, o inglês.
(SOARES, 2006, p. 183-184 – grifo nosso).
Sherlock Holmes ainda complementa: “– E branco, não se esqueça. Não entendo como
vocês ainda não usam roupas mais leves, adequadas ao calor dos trópicos” (SOARES, 2006, p.
184). As falas deste personagem trazem à tona o pensamento nacionalista e remetem ao típico
malandro carioca. Foi necessário importar o detetive consagrado na literatura inglesa para mostrar
que até mesmo ele se comportou naturalmente como um brasileiro, o que não acontecia com certos
“homens de bem” vestidos com autêntica lã inglesa.
Outro aspecto interessante em ambos os romances é a versão que os autores dão para hábitos
do brasileiro. Em Macunaíma, a invenção do truco e do futebol, por exemplo, têm correspondência
com a versão dada por Jô Soares para a invenção da caipirinha. No capítulo 5 (“Piaimã”),
Macunaíma e Maanape tentavam despistar o gigante devorador de gente, Venceslau Pietro Pietra. E
foi assim que surgiu o jogo do truco:
Maanape não queria jogar o mano mesmo, pegou desesperado em seis caças
duma vez, um macuco um macaco um jacu uma jacutinga uma picota e uma
piaçoca e atirou no chão gritando:
– Toma seis!
(...)
Então Maanape ficou com muito medo e jogou, truque! o herói no chão. Foi
assim que Maanape com Piaimã inventaram o jogo sublime do truco
(ANDRADE, 2007, p. 56).
Em O Xangô, Jô Soares dá uma versão para a invenção da caipirinha. Sherlock Holmes
estava indisposto após provar das delícias culinárias da terra, quando o médico-legista Saraiva
sugeriu-lhe uma dose de cachaça para curar a indisposição. Watson, percebendo o forte cheiro do
líquido, pediu ao dono do botequim açúcar e limões para amenizar o efeito da aguardente. Sem
entender o que acontecia, perguntavam-se sobre a nova receita:
– E que mixórdia é aquela que eles estão fazendo?
– Não sei, uma invenção daquele caipira ali – disse, apontando para o
chapéu de vaqueiro de Watson.
– Qual deles, o grandão? – perguntou o rapaz, indicando Sherlock
Holmes, todo de branco.
– Não, o caipira grande está só bebendo. Quem preparou foi o
menorzinho, o caipirinha – respondeu o proprietário, batizando
assim, para sempre, a exótica mistura. (SOARES, 2006, p. 230-231).
É preciso assinalar outra diferença entre a tradição picaresca e os malandros da literatura
brasileira, para valorizar a comparação entre Macunaíma e O Xangô de Baker Street. A inovação
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que ocorre nos dois romances brasileiros diz respeito a certos tipos de desvio do objetivo principal
do protagonista. Conforme assinala Mario González,
O pícaro clássico padece normalmente de uma auto-repressão sexual, própria
de seu contexto histórico, que evolui para a misoginia ou, ao menos nas obras
do núcleo, para formas implícitas ou explícitas do proxenetismo sustentador
do mais tradicional machismo. [...] (GONZÁLEZ, 1994, p. 312).
Seguindo a linha inaugurada nas Memórias de um Sargento de Milícias, a rota da trama é
desviada por causa da mulher. É sabido que Macunaíma gostava de “brincar” e que namoradas não
eram um problema para ele. Suas aventuras amorosas são motivo para mudanças de percurso. No
Rio de Janeiro recriado por Jô Soares, Sherlock Holmes perde de vista seu objetivo principal (a
investigação dos crimes em série) e preocupa-se com objetivos imediatos – o namoro com Anna
Candelária, o que propicia aventuras marginais à história principal, como por exemplo, a prisão do
detetive durante um encontro mais acalorado com Anna.
4. CONCLUSÃO
A leitura de O Xangô de Baker Street à luz das transformações sofridas pela picaresca não
apenas é possível, mas também permite encarar a obra de Jô Soares sob dimensões legítimas do
ponto de vista do estudo da intertextualidade e sobretudo da influência estrangeira no romance
contemporâneo brasileiro. Utilizando-se do detetive Sherlock Holmes, o autor deu nova roupagem
às suas aventuras e se apropriou de algumas características do tipo e das tramas nas quais participa
para promover um novo elemento, como que saído da realidade brasileira. A comparação com
Macunaíma torna-se válida na medida em que o procedimento de ambos os autores está voltado
para a particularidade brasileira. Se Jô Soares explicita suas fontes, demarcando o terreno
percorrido pela composição do romance, Mário de Andrade não dá muitas chances ao leitor
despreparado, pois sua assimilação de modelos da tradição literária universal não somente
demonstra sua ampla erudição como torna fascinante a aproximação de elementos, conforme se
pode constatar através da leitura de O tupi e o alaúde, de Gilda de Mello e Souza.
Mantendo coerência com seu tempo, no qual as pistas literárias podem contribuir para
aguçar a curiosidade de alguns leitores, assim como a intertextualidade pode ser motivo para
formação de outros, O Xangô de Baker Street pode se enquadrar na definição precisa de Sandra
Nitrini: “Muitas obras literárias encarnam tradições, condensam e vitalizam sistemas de convenções
e simbolizam outras obras” (NITRINI, 2000, p. 138). Mais que isso, o romance de Jô Soares integra
um tipo de representação da sociedade brasileira à atitude consciente e oportuna de revisar
livremente as fontes históricas e literárias, partindo de modelos estrangeiros e exemplos nacionais.
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REFERÊNCIAS
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Janeiro: Ouro sobre Azul, 2010. p. 17-46
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de suas correspondências na literatura brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 1994.
NITRINI, Sandra Margarida. Literatura comparada: história, teoria e crítica. 2. ed. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2000.
SOARES, Jô. O Xangô de Baker Street. 37. reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
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A MEMÓRIA DE UM “FILHO PRÓDIGO”: ANÁLISE DO POEMA DE
JOAQUIM CARDOZO
Samuel Carlos Melo(PG-UFMS/CAPES)
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo efetuar análise do poema “Filho Pródigo”, do poeta pernambucano Joaquim
Cardozo (1897 – 1978), da coletânea “Mundos Paralelos” (1970) reunida em Poesias Completas, publicada
em 1971. Para isso, primeiramente, se fará uma breve introdução com informações sobre o poeta, o seu
contexto de produção e a relevância de sua figura para outros poetas para, por fim, partir para análise do
poema já citado, observando a peculiaridade de sua construção e o possível efeito de sentido oriundo dessa
estrutura. Com isso, crê-se que esta análise poderá contribuir não só para a leitura do poema em questão,
mas, também, da poética de Joaquim Cardozo, ainda de escasso estudo.
Palavras-chave: Joaquim Cardozo; literatura brasileira; poesia brasileira.
ABSTRACT
This work has as objective the analysis of the poem "Filho Pródigo" from poet from Pernambuco Joaquim
Cardozo (1897 - 1978), from the compilation "Mundos Paralelos"(1970) collected in Poesias Completas,
published in 1971. To do this, first, be made with a brief introduction about the poet, the context of its
production and its relevance for other poets to figure finally starting to analyze the poem cited above, noting
the peculiarity of their construction and possible sense effect resulted from this structure. Thus, it is believed
that this analysis can contribute not only to read the poem in question, but also the poetics of Joaquim
Cardozo, still scarce study.
Keywords: Joaquim Cardozo; Brazilian literature; Brazilian poetry.
1. INTRODUÇÃO
Joaquim Cardozo nasceu em Recife, no dia 26 de agosto de 1897, num grande sítio
localizado em terras do histórico engenho Madalena, falecendo em Olinda, no dia 4 de novembro de
1978. Além de poeta, Cardozo foi contista, desenhista, professor universitário, engenheiro civil e
editor de revistas especializadas em arte e arquitetura. De acordo com Everardo Norões, trata-se de
um verdadeiro “humanista”:
Engenheiro e matemático; poliglota conhecedor de 15 idiomas; sintonizado,
desde a juventude, com todas as inovações da ciência e da literatura;
humanista permanentemente preocupado com as grandes questões brasileiras;
poeta que utilizou recursos de uma temática regional sem desprender-se do
sentimento de universalidade: Joaquim Cardozo foi uma espécie de homemuniverso, um humanista no sentido mais clássico (CARDOZO, 2008, p. 11).
Fernando Py acrescenta sobre a biografia do poeta:
Fez o curso primário com o irmão mais velho, José Maria, o qual, à época,
escrevia versos, e que faleceu muito môço. Mais, tarde, passou Cardozo ao
Ginásio Pernambuco,no curso secundário, logo abandonado devido a uma
recente lei de ensino; fez, então, os preparatórios na Escola de Engenharia de
Pernambuco. Ao ser sorteado para o serviço militar, em 1919, abandonou
igualmente o curso de engenharia; somente nove anos depois retomaria o
curso e obteria o diploma de engenheiro civil. Entre os vários trabalhos de
engenharia realizados estão as estruturas de equilíbrio de alguns projetos de
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Luiz Nunes, arquiteto carioca que fundou, no Recife, a DAU (Divisão de
Arquitetura e Urbanismo) (PY, 1972, p. 161).
Em 1940, Cardozo chega ao Rio de Janeiro e passa a trabalhar com arquitetos modernos
como Fernando Brito, Jorge Moreira, Marcos Konder e, principalmente, Oscar Niemeyer. De
acordo com Py (1972), Cardozo foi convidado por Niemayer para trabalhar e “[...] colaborou com
vários outros engenheiros, seus auxiliares (entre os quais Samuel Rawet e Victor Fadul), na
execução dos edifícios do centro cívico de Brasília: palácios do Parlamento, do Planalto, da
Alvorada, do Itamarati e etc.” (p. 162).
2. O POETA E SUA PRODUÇÃO
Há registros de poemas de Joaquim Cardozo desde 1925. No entanto, o seu sentimento de
timidez e modéstia, registrado por Drummond no prefácio de Poemas (1947), contribuiu para que
sua primeira obra só fosse publicada em 1947, aos 50 anos de idade, por iniciativa de amigos:
[...] O primeiro livro de Cardozo, Poemas, foi publicado por iniciativa de
alguns amigos, em 1947, pela Editora Agir. Contém quarenta e duas peças.
Prelúdio e elegia de uma despedida apareceu em 1952, pelas Edições
Hipocampo, em tiragem limitada. Signo estrelado (Livros de Portugal, 1960)
compõe-se de vinte e oito títulos. O bumba-meu-boi O coronel de
Macambira, foi publicado pela Civilização Brasileira em 1963, na coleção
“Poesia Hoje”, volume 1, e já teve três representações: em Pernambuco,
pelos estudantes da Escola de Belas Artes, em Juiz de Fora pelo TUFF e na
Guanabara pelo TUCA. Recentemente a Editora Agir publicou outro bumbameu-boi de Cardozo: De uma noite de festa (1971). (PY, 1972, p.162)
Poemas (1947) é a reunião de textos escritos ao longo de mais de duas décadas (1925-1947).
Tal produção, aparentemente, escassa, rendeu a Joaquim Cardozo o rótulo dado por Manuel
Bandeira de um “poeta bissexto”, como relata Drummond:
Este livro reúne todas as poesias de Joaquim Cardozo, escritas de 1925 a
1947. São quarenta e três apenas. Justifica-se o título de “poeta bissexto” que
ao autor conferiu Manuel Bandeira, sabido como bissexto é, essencialmente,
o poeta de produção raríssima. Já foge à classificação, contudo, no que toca
aos temas de sua necessidade, que não são os típicos do poeta escasso: a dor
amorosa (uma delas particularizada) e a vida corriqueira. Os temas de
Joaquim Cardozo são, antes, a Província e o Espírito (CARDOZO, 2008, p.
35).
Para Antônio Houaiss (apud PY, 1972, p.161) tal “bissextismo”, na verdade, refere-se ao
ineditismo da obra. O mesmo Houaiss, em prefácio às Poesias Completas (1972), considera
Joaquim Cardozo como poeta dos de maior relevância entre os surgidos após os anos de 1930
Constam na bibliografia de Cardozo 13 obras: Poemas (1947); Pequena antologia
pernambucana (1948); Signo Estrelado (1960); Coronel de Macambira (1963); De uma noite de
festa (1971); Poesias Completas (1971); Os anjos e os demônios de Deus (1973); O capataz de
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Salema, Antonio Conselheiro, Marechal, boi de carro (1975); O interior da matéria (1976); Um
livro aceso e nove canções sombrias (1981, póstumo).
Tendo o Nordeste, em especial, o Recife, como matriz para o desenvolvimento de sua
poética, Cardozo construiu uma poesia em que o metafísico, o onírico e o sobrenatural figuram
atrelados a uma sensibilidade social, numa sintaxe que visa ultrapassar o real, conforme afirma
Everardo Norões:
Por não permitir que ‘o espírito geométrico, presente em sua profissão de
engenheiro, envolvesse em um cinturão racionalista o ser da história’,
conforme assinalou tão bem César Leal, Joaquim Cardozo incorporou à sua
poesia os achados da ciência de sua época. Ao buscar ultrapassar o real,
rompeu os cânones da Física, empreendendo a viagem mítica cujo itinerário
se desvela na “Visão do último trem subindo ao céu”, parte do longo poema
intitulado Trivium, em cuja elaboração o poeta consumiu 18 anos
(CARDOZO, 2008, p.12).
Fernando Py discorre sobre as características de Cardozo, destacando o tratamento de obra
sobre questões sociais:
O que distingue, essencialmente, a poesia de Cardozo é sua constante
preocupação no tratamento do tema, seja o Nordeste convulso, miserável,
sedento de evolução social, seja o amor, e nele, uma atitude de
confraternização, de entrega, de integração não exatamente na natureza
circundante, mas de caráter racional, intelectual, de modo que o espírito e a
matéria sejam um só; seja o mesmo espírito, livre, sejam as especulações
sobre a existência e o pensamento humanos; seja esse mesmo espírito em
associação com as diárias contingências do fazer/dizer, lembrando, até certo
ponto, a dualidade que existe entre a obra acabada e as infinitas
possibilidades de uma obra em constante progresso (PY, 1972, p. 164).
Em texto intitulado Joaquim Cardozo e a Crítica, Maria da Paz Ribeiro Dantas, ao concluir
artigo em que traz opiniões de alguns críticos sobre as características da obra de Cardozo, afirma
que:
Considerando-se a diversidade de fases da obra de Joaquim Cardozo, em que
as opiniões citadas foram emitidas, como também as formações heterogêneas
de seus autores, destaca-se o que há de comum na maioria delas: a empatia
pela obra e o reconhecimento de um poeta em quem a consciência da
linguagem alcançou um alto grau de elaboração. Expressando uma temática
que reflete a preocupação com a terra e com o homem, Cardozo manteve tal
preocupação em equilíbrio com as exigências de uma poesia voltada também
para o rigor da forma (DANTAS, 2011, sp.)
3. INFLUÊNCIA
Joaquim Cardozo foi uma figura respeitada e admirada em todos os setores em que atuou.
Na poesia, destaque-se a influência que exerceu sobre três grandes poetas brasileiros: Manuel
Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto. São diversos os registros em
que esses poetas, ao mesmo tempo em que apresentam a poesia de Cardozo, relatam sua admiração
pelo poeta.
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Em carta escrita à Gilberto Freyre, datada em 12 de dezembro de 1925, Rio de Janeiro,
Manuel Bandeira expõe suas primeiras impressões sobre o poeta conterrâneo seu:
Do texto só li o artigo de Joaquim Cardozo [...] Quero ir bem devagarinho. O
artigo de Cardozo... Aquele sacana me deixou o coração numa podreira. Que
sujeito penetrante, vai entrando por a gente adentro, me conte alguma coisa
dele. [...] Você me faz o favor de dar a ele este exemplar do meu livro? [...]
(VICENTE, s.d., p.199).
Em “O que distingue um grande poeta”, manuscrito sem data com o poeta José Mário
Rodrigues, Carlos Drummond de Andrade faz a seguinte consideração sobre o poeta
pernambucano:
Se me perguntassem: “O que distingue o grande poeta?”, eu responderia:
“Ser capaz de fazer o poema inesquecível”. O poema que adere à nossa vida
de sentimento e reflexão, tornando-se coisa nossa pelo uso. Para mim,
Joaquim Cardozo, entre os muitos títulos de criador, se destaca por haver
escrito o longo e sustentado poema “A nuvem Carolina”, que é uma de
minhas companhias silenciosas de vida (CARDOZO, 2008, p. 34).
No Correio das Artes, de João Pessoa-PB, em um artigo intitulado “Honras à Amizade”,
datado em 07 de setembro de 1997, João Cabral de Melo expõe sua admiração pelo poeta e frisa a
importância de Joaquim Cardozo na construção de sua poética:
Joaquim Cardozo foi um dos maiores poetas que conheci. No Recife, não tive
oportunidade de conviver com ele, que havia sido expulso de lá pelo governo
do estado. Mas, quando me mudei para o Rio, em fins de 42, passamos a
conviver diariamente. Foi o homem mais culto que conheci na minha vida.
Sabia até chinês. E isso dentro da modéstia que lhe foi sempre característica
(CARDOZO, 2008, p.41).
Segundo João Cabral, Cardozo estava sempre compondo um poema. Para ele, mesmo sem
ser modernista, a poesia de Joaquim Cardozo alcançou o verdadeiro estilo moderno no Brasil, e
acrescenta: “É o maior pernambucano que conheci. Encorajei-me a escrever poesia pernambucana
por causa do Cardozo. (CARDOZO, 2008, p. 41).
Apesar de ter se destacado na poesia (e em outros campos que atuou) ao ponto de impactar
três grandes poetas como Drummond, João Cabral e Manuel Bandeira, fato que é possível notar nos
comentários antes citados, Joaquim Cardozo foi, e continua sendo pouco lido, com seus poemas
merecendo pequena atenção da crítica literária nacional, em comparação aos seus coetâneos.
4. ANÁLISE
“Filho Pródigo” foi publicado em “Mundos Paralelos” (1970), coletânea de textos reunida
em Poesias Completas, publicada em 1971:
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FILHO PRÓDIGO
Minha mãe! Aqui estou.
Velho, doente, já bem próximo da morte.
À espera de um trapo de terra, de um molambo de lama
Para cobrir o meu corpo contra o frio do vento,
Que, feito em chuva, penetrará na terra de minha última carne.
E tu, minha Mãe! se estiveres n’algum lugar
De tua grande ilusão, não chores.
Cada vivo morre uma parte da morte de cada próximo.
E o seu fim total terá quando morrerem todos os seus mortos;
E o morto? Morre também em cada um dos vivos que morre.
Minha Mãe, aqui não estou para te chamar
Mamãe, e para te pedir que venhas me perdoar;
Estou aqui para te dizer que sempre estive em ti
E que fui uma parte das muitas que tiveste:
A parte mais humilde, mais simples, mais amarga. . . mais triste
E, ao mesmo tempo, a mais severa, mais dura, mais firme e resoluta.
Minha mãe, dentro de mim, comigo, morrerás de novo.
Trata-se de um poema composto por 17 versos distribuídos em quatro estrofes irregulares
(primeira com sete versos, segunda com três, terceira com seis e a última com apenas um verso) que
não apresentam um esquema métrico e rímico regular, ou seja, são versos livres e brancos. O
vocabulário utilizado em sua construção é simples, contendo palavras de sentidos comuns, em que
se pode notar a presença de um regionalismo, a palavra “molambo”.
Feita essas observações gerais sobre a estrutura do poema, inevitavelmente esta análise
partirá da consideração da significância do título do poema. Como se pode notar, “Filho Pródigo”
faz referência à “Parábola do Filho Pródigo”, passagem bíblica contida no capítulo 15 do evangelho
segundo o apóstolo Lucas, especificamente do versículo 11 ao 32. Assim, tendo logo de início uma
referência de grande influência na cultura ocidental, mostra-se relevante iniciar a análise pelo cotejo
com o texto bíblico.
Neste texto o apóstolo relata uma parábola que teria sido proferida por Jesus em resposta aos
Fariseus e Escribas que murmuravam ante a sua relação próxima com os pecadores. A narração
consiste na história de um homem que tinha dois filhos e, certo dia, o mais novo resolve requerer
parte de seus bens que lhe eram de direito e partir para uma terra distante, onde gasta tudo de uma
forma dissoluta. Ao encontrar-se na miséria, retorna à casa do pai, humilhado, pedindo-lhe perdão.
O pai, ao ver o retorno do filho, alegra-se, o veste com a melhor roupa e faz um banquete para
comemorar a volta do filho que julgava morto. O filho mais velho indigna-se por, mesmo sendo fiel
ao pai, nunca ter sido merecedor de tamanha festa. O pai o contesta, explicando que o mais velho
sempre esteve com ele e teve parte de tudo que era seu, porém o outro estava morto e ressuscitou.
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Ou seja, trata do retorno homem pecador arrependido e a alegria de Deus (pai) ao recebê-lo e
perdoá-lo.
É frequente o aproveitamento de textos bíblicos pela literatura. São diversos os exemplos em
língua portuguesa. Destaquem-se poemas de Luís de Camões, como o soneto “Sete anos de pastor
Jacó servia”, Machado de Assis, com Isaú e Jacó, e, mais recentemente, o tão polêmico O
Evangelho segundo Jesus Cristo, do português José Saramago.
Ao estabelecer um cotejo entre “Filho Pródigo” e o texto do evangelho de Lucas, é possível
notar que há uma tensão no poema de Joaquim Cardozo que decorre da existência de modificações
em relação à parábola a qual faz referência, como a análise agora tentará demonstrar.
A primeira modificação já pode ser observada no primeiro verso da primeira estrofe do
poema: “Minha mãe! Aqui estou.”. Note-se que nesse verso tem-se um “eu” que evoca a sua mãe.
Essa menção de uma “mãe” se repete no sexto verso da primeira estrofe, no primeiro e segundo
verso da terceira estrofe e no último verso do poema. Assim, observe-se que, diferentemente da
parábola bíblica, em que o filho se dirige ao pai, no poema de Cardozo é à mãe que o filho chama.
Uma mãe que, ao contrário do Pai da parábola, em que o filho sabia exatamente onde encontrar, não
se tem certeza de onde esteja (“se estiveres n’algum lugar”, verso seis da primeira estrofe).
Ainda na primeira estrofe, nota-se que também, diferentemente da parábola, “o filho
pródigo” do poema se apresenta ao estar próximo da morte (“Velho, doente, já bem próximo da
morte”, verso dois), ou seja, um “eu” ainda vivo em direção ao fim, enquanto no texto bíblico o
filho estava morto para o pai e, ao retornar arrependido, “ressuscita” (alegoria ao arrependimento
dos pecados perante Deus e à vida eterna). Outro ponto para destaque está em que, diferentemente
da história bíblica em que o filho é recebido pelo pai como em um estado de “molambo”
(decorrente da vida pecadora) e o este pede que lhe vistam com as mais belas roupas e jóias
(versículo 22), no poema, o filho se diz estar “à espera de um trapo de terra, de um molambo de
lama” (verso três, primeira estrofe). Note-se não só a inversão, mas também uso pelo “eu” das
palavras “trapo” e “molambo”, que têm seu sentido ligado a “panos velhos”, às palavras “terra” e
“lama”, causando um efeito em que a morte (representada em metonímia por “terra” e “lama”)
aparece como vestimenta miserável, proteção contra a vida (“frio do vento”, verso quatro da
primeira estrofe).
Na terceira estrofe, atente-se, primeiramente, para os versos um e dois: “Minha Mãe, aqui
não estou para te chamar/ Mamãe, e para te pedir que venhas me perdoar”. Nesses versos é possível
observar que, ao contrário da parábola, em que o filho retorna e pede desculpas ao pai por ter
pecado contra ele, no poema o filho deixa claro que não veio pedir perdão. Em seguida, nos versos
três e quatro, a fala do filho prossegue, evidenciando mais uma diferença: “Estou aqui para te dizer
que sempre estive em ti/ E que fui uma parte das muitas que tiveste”. Aqui, percebe-se que
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enquanto na parábola trata do retorno do filho que se ausentou do pai, o filho pródigo do poema de
Cardozo afirma que sempre esteve com a mãe. Nos versos cinco e seis, o filho apresenta-se de
caráter oposto ao da parábola: “A parte mais humilde, mais simples, mais amarga... mais triste/ E,
ao mesmo tempo, a mais severa, mais dura, mais firme e resoluta”. Enquanto o texto bíblico relata
que o filho viveu “dissolutamente”, o filho do poema diz ter sido “humilde” e “resoluto”.
Feito essas considerações sobre as modificações existentes no poema em relação à parábola,
evidencia-se a existência de um processo de desconstrução do texto bíblico. Para aprofundamento
desse processo, observe-se a segunda estrofe:
Cada vivo morre uma parte da morte de cada próximo.
E o seu fim total terá quando morrerem todos os seus mortos;
E o morto? Morre também em cada um dos vivos que morre.
Considerando as demais estrofes do poema de Joaquim Cardozo, percebe-se que a segunda
parece “estranha”. Enquanto nas outras é possível identificar o discurso melancólico de um “eu”
próximo da morte para sua mãe, nesta, o discurso é outro, explicativo, numa construção semelhante
à dos silogismos: “[...] raciocínio dedutivo estruturado formalmente a partir de duas proposições,
ditas premissas, das quais, por inferência, se obtém necessariamente uma terceira, chamada
conclusão (p.ex.: ‘todos os homens são mortais; os gregos são homens; logo, os gregos são
mortais’) (HOUAISS, 2001).
Posto isso, destaque-se outro ponto que se mostra relevante para o início de uma
interpretação: a recorrência do vocativo “minha mãe” e do verbo estar. É notável que, com exceção
da segunda, todas as estrofes iniciam-se com o vocativo “minha mãe”. Ele ocorre duas vezes na
primeira estrofe (verso um e seis), duas vezes na terceira (verso um e no dois como “Mamãe”) e no
único verso da última estrofe. Já o verbo estar aparece duas vezes na primeira estrofe (verso um no
presente e em primeira pessoa com o advérbio de lugar “aqui” e verso seis no futuro em segunda
pessoa com “n’algum lugar”) e três vezes na terceira (os versos um e três no presente e em primeira
pessoa, sendo que naquele há a presença de uma negativa, e no final do verso três no pretérito
perfeito e em primeira pessoa com o pronome oblíquo “ti”).
Assim, percebe-se que há na estrutura do poema um movimento reiterativo, de “retorno”.
Primeiramente, isso se nota pela posição da segunda estrofe que, se considerarmos a última estrofe
(de um único verso) uma parte desmembrada da terceira estrofe, divide o poema ao meio. Assim,
sua construção explicativa, quase lógica, semelhante a um “silogismo”, implica uma releitura da
primeira estrofe, considerando o que foi dita nesta segunda. Em segundo lugar, a recorrência do
vocativo “minha mãe” e do verbo estar, materializando e reiterando a presença do “filho pródigo” e
sua mãe.
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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dessa forma, percebe-se que o poema de Cardozo tece uma consideração sobre a memória.
Tendo como referência a parábola do filho pródigo, o poema utiliza-se de um processo de
desconstrução do texto bíblico, em que a narração do retorno à vida do filho que havia “morrido”
para pai (na concepção cristã, uma alegoria à vida eterna) dá lugar ao retorno à morte, na memória.
A mãe, já morta, retorna pela memória do filho para participar de sua morte (morrendo novamente,
última estrofe). O filho, por sua vez, diz “aqui estou” por estar retornando a uma morte já vivida em
parte (também na memória) na morte de sua mãe. Uma espécie de clico que é expresso, como já foi
dito, na estrutura do poema.
REFERÊNCIAS
BÍBLIA SAGRADA com Cantor Cristão. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida.
Revista e Atualizada no Brasil. 2. ed. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil, 2006.
CARDOZO, Joaquim. Poesias completas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.
________________. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2008.
DANTAS,
Maria
da
Paz
Ribeiro.
Joaquim
Cardozo
e
a
Crítica.
Em:
<http://www.joaquimcardozo.com/paginas/joaquim/depoimentos/critica.htm>. Acesso realizado
em: 09 de Janeiro de 2011.
HOUAISS. Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Instituto Antônio
Houaiss, 2001. Versão 1.0 CD-ROM. Produzido por Editora Objetiva Ltda.
PY, Fernando. Capítulo V. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de. (Org.). Poetas do
Modernismo: antologia crítica.Vol. IV. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p.159-213.
PY, Fernando. Capítulo V. In: AZEVEDO FILHO, Leodegário Amarante de. (Org.). Poetas do
Modernismo: antologia crítica.Vol. IV. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972. p.159-213.
VICENTE, Silvana Moreli. Cartas provincianas. São Paulo, s.d. p. 198-200. Tese (Doutorado em
Literatura Brasileira)- Campus de São Paulo, Universidade de São Paulo.
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O ENTRE-LUGAR DO CONTO “O TROVÃO ENTRE AS FOLHAS” DE AUGUSTO ROA
BOASTOS
Silvia Morais Silva (G-UFGD)
Leoné Astride Barzotto (UFGD)
RESUMO
Para o crítico e escritor pós-colonial, o indiano Homi K. Bhabha (2003), a hibridização ocorre no local
cultural, no ‘entre-lugar’ deslizante, espaço intersticial, marginal e estranho, passível de mudanças. Tal
conceito é descrito por Bhabha como ‘locus da enunciação’, um terceiro espaço do discurso, que não
pertence somente ao conquistador nem somente ao conquistado, mas a ambos. Esse ‘terceiro espaço’ e esse
discurso fazem surgir a natureza híbrida do sujeito e de sua enunciação. A hibridização pode ser política,
cultural, étnica, linguística, etc. Esse pressuposto teórico servirá como base principal para analisar a
ocorrência do ‘entre-lugar’ do sujeito latino americano no conto ‘O trovão entre as folhas’ de Roa Bastos,
com vistas a perceber o poder emancipatório desse terceiro lócus de enunciação e configurar sua existência.
A metodologia utilizada será através de leituras e levantamentos de dados que comprovem esse “entre-lugar”
de forma aprofundada.
Palavras-chave: Entre-lugar; Roa Bastos; Literatura Latino-Americana.
ABSTRACT
For the critic and writer post-colonial Indian Homi K. Bhabha (2003), hybridization occurs in the local
culture, the “between-place” slide, interstitial space, marginal and alien, subject to change. This concept is
described by Bhabha as a locus of enunciation,a ‘third space’ of discourse, not only belongs only to the
conqueror or conquered, but to both. This 'third space’ that speech and give rise to the hybrid nature of the
subject and its enunciation. The hybridization can be political, cultural, ethnic, linguistic, etc. This theoretical
assumption will serve as the primary basis for analyzing the occurrence of the 'between-place' in the subject
of Latin American short story 'The thunder in the leaves' Roa Bastos, in order to realize the emancipatory
power of the third locus of enunciation and configure its existence. The methodology will be through
readings and survey data showing that "between-place" in depth.
Keywords: Between-place, Roa Bastos, Latin American Literature.
1. INTRODUÇÃO
Por meio dos estudos psicanalíticos de Jacques Lacan 28 surgem os conceitos de ‘Outro’ e
‘outro’. Em um diálogo cultural explícito o Outro (com maiúscula) enfoca o desejo do poder,
enquanto o outro (com minúscula) está submerso no discurso do poder. Neste contexto, o ‘Outro’
representa o colonizador europeu ou neocolonizador, que desempenha o papel de sujeito/agente, ao
passo que o ‘outro’ é o sujeito/oprimido, que muitas vezes sofre no papel de colonizado,
objeto/paciente, subalterno, e, com isso, reitera a identidade do sujeito imperial e a sua própria
alteridade.
O processo de outremização fabrica o outro que, excluído, existe por meio do impacto do
discurso opressor. Para a crítica pós-colonial a outremização se apresenta em três estágios: (1) o
Outro (europeu/norte-americano) fabrica o outro (negro, indígena, pobre, asiático, latino, etc.) pela
28
Jaques Lancan (1901-1980) foi o seguidor que mais contribuiu e deu continuidade às obras de Sigmund Freud
(criador da psicanálise).
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exploração do território; (2) o outro é degradado pelo colonizador quando é chamado de preguiçoso,
depravado, selvagem, violento e, involuntariamente, este indivíduo começa a internalizar tal
discurso, tornando-o mais forte, e com isso se anula cada vez mais, pois perpetua uma ideologia de
degeneração; (3) o hiato do discurso eurocêntrico entre ‘nós’-europeus e ‘eles’-colonizados,
homogeneíza os sujeitos nativos como um único elemento a ser dominado e ‘civilizado’, de forma
que ‘eles’ seriam todos os indivíduos iguais para o europeu, ou seja, todos seriam alvo de
domesticação e controle.
Outro/outro são constructos do imperialismo, de seu discurso opressivo e de suas práticas e
só se mantém na realidade colonial e pós-colonial pela imposição da força da dependência cultural,
política, econômica e financeira gerada da metrópole para a colônia ou ex-colônia, e também pela
ideologia neo-imperialista propagada pelos seus representantes com estratégias mais fortes de
dominação e exploração de novos povos e novos territórios.
Entretanto, todo esse esquema imperial pode ser invertido pelo sujeito oprimido no
momento em que ele decide revidar, resistindo aos estereótipos e às estratégias usurpadoras usadas
pelo colonizador ou neocolonizador. Esta inversão acontece a partir da subjetificação do mesmo,
exatamente no instante em que ele deixa de ser objeto de controle e se torna agente de sua história e
de seu território, decide e age, enfrentando os estratagemas de exploração, mesmo que em
desvantagem socioeconômica. Para realizar tamanha façanha, o indivíduo também utiliza algumas
estratégias de resistência e, acima de tudo, de sobrevivência.
Analisando o “Outro/outro” deparamos com a hibridização – esse conceito tem
proporcionando “mesclagem” no mundo ocidental , ele está se mesclando de tal forma que o
conceito de indivíduos “puros” no sentido cultural, social, e étnico parece não existir. No entanto,
há uma rejeição com relação a hibridização, isso ocorre porque muitos híbridos não tem consciência
de sua mistura e com isso acabam colaborando com processos fanáticos de absolutismo como o
religioso, etc. Mas observando por outra proporção, a aceitação desse processo híbrido surge no
sentido de evitar fundamentalismos, vêm com o intuito de enfrentar suas diferenças promovendo o
respeito e não a anulação.
Esse conceito (hibridização) não se trata de um fenômeno moderno, porém é reforçado e
exposto com o advento da colonização e da pós-colonização. Sua finalidade é nomear algo ou
alguém cuja sua formação seja mista, heterogênea, constitui assim, a identidade do duplo,
contrapondo à concepção do conceito “puro, único, autêntico”. Foi a partir do século XX que esse
termo começou a ser aderido fortemente nos estudos culturais.
No âmbito acadêmico esse termo tem sido abordado com mais ênfase, com o intuito de
absorver as mais variadas nuanças culturais valorizando o diferente, a alteridade do novo sujeito
que está construindo esse novo mundo. “O hibridismo não é, portanto, resultante de um contínuo
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processo de transculturação e a identidade híbrida não é mais nenhuma das identidades originais,
embora guarde traços dela” (CARREIRA, 2005).
Segundo Homi Bhabha (2003) e Silviano Santiago (1978) essa hibridização seria um
terceiro lócus de enunciação, uma zona de contato onde culturas diversas se encontram e formam
uma terceira cultura híbrida, misturada onde conflitos e transculturações ocorrem e resolvem ou não
seus problemas. Bhabha enfoca o entre-lugar cultural geral, onde o colonizador se encontra com o
colonizado, lugar que não é só de um nem só de outro, mas de ambos, mesmo que estejam em
conflito, já Santiago assevera a perspectiva sobre o “entre-lugar” o discurso latino americano,
contextualizando várias culturas e etnias.
Essa zona de contato citada anteriormente (PRATT, 1992) chamada de lugar intersticical ou
espaços sociais onde culturas díspares se encontram, havendo o choque geralmente entre o sujeito
subordinado e o sujeito opressor, num cruzamento cultural, implicando assimilação, resistência, e
transformação de ambos os lados, passando por um constante processo de engajamento, mudanças,
contestação refletidas na literatura. Neste sentido Bhabha (2003, p.24) cita o seguinte:
É nesse sentido que a fronteira se torna o lugar a partir do qual algo começa
a se fazer presente em um movimento não dissimilar ao da articulação
ambulante, do além que venho traçando: Sempre, e sempre de modo
diferente, a ponte acompanha os caminhos morosos ou apresentados dos
homens para lá e para cá, de modo que eles possam alcançar outras
margens... A ponte reúne enquanto passagem que atravessa.
Dessa forma, pretendemos apresentar fatos do discurso do “Outro/outro” e analisar a
ocorrência do ‘entre-lugar’ do sujeito latino americano a partir da análise de ‘O trovão entre as
folhas’ com vistas a perceber o poder emancipatório desse terceiro lócus de enunciação e configurar
sua existência. Para esse fim, deveríamos lembrar que é o “inter”- o fio cortante da tradução e da
negociação, o entre-lugar – que carrega o fardo do significado da cultura. Ele permite que se
comecem a vislumbrar as histórias nacionais, do “povo”. E, ao explorar esse Terceiro Espaço,
temos a possibilidade de evitar a política da polaridade e emergir como os outros de nós mesmos.
A seguir temos um breve resumo sobre a biografia do autor, sobre o conto, e logo após, vêm
uma contextualização da obra abordando conceitos como metonímia, intertextualidade,
subalternidade e subjetificação com o conceito de “Outro/outro”, e por último concluiremos com
uma definição mais específica acerca do que seria de fato essa hibridização – entre-lugar, e
apontaremos onde ela está presente no conto mencionado de Roa Bastos.
2. BIOGRAFIA DO AUTOR
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Roa Bastos, natural de Assunção-Paraguai, nasceu em 13 de junho de 1917 e faleceu em 26
de abril de 2005. Passou sua infância em Iturbe (pequena região de Guairá) entre uma cultura
bilíngüe (guarani e castelhano). Durante sua carreira de escritor Roa Bastos recebeu prêmios
internacionais como o Prêmio Cervantes (1989). Escreveu o melhor livro da literatura paraguaia e
um dos melhores da latino-americana: "Eu o Supremo" (uma obra que retrata magistralmente a
figura de José Gaspar Rodrígues de Francia um ditador que comandou o Paraguai durante 27 anos).
Foi considerado, portanto, um dos mestres literários do século, tendo sua obra traduzida para 25
idiomas.
Ele teve influências distintas com relação à cultura. Quando criança foi instruído pelo pai
(ex-seminarista) no latim e no grego, recebendo uma formação humanística que incluía São
Gerônimo, Santo Agostinho, etc. Na adolescência, recebeu orientações do tio Monsenhor
Hermenegildo Roa, nessa época teve acesso à autores de clássicos Greco-latinos, espanhóis e
demais europeus. Além dessa diversidade, ele ainda teve acesso à memória coletiva paraguaia,
marcada profundamente pela influência da língua guarani; se por um lado o pai tentava conduzi-lo à
herança oriental, a mãe contava-lhe histórias da bíblia em guarani e alguns camponeses contava-lhe
“casos” com esse mesmo idioma.
Com fortes convicções ideológicas, foi correspondente na Europa durante a Segunda Guerra
Mundial, e acabou obrigado a exilar-se na Argentina e depois na França por mais de 40 anos
(durante o regime do ditador paraguaio Alfredo Stroessner 1954-1989). Autorizado a visitar o país
em três ocasiões durante seu exílio, o escritor foi definitivamente expulso em 1982 e só regressou à
sua terra natal após a derrubada do ditador Stroessner. Além do exílio Roa Bastos também foi
marcado pela guerra entre Paraguai e Bolívia (1932-1935), pelo controle da zona desértica do
Chaco, na qual participou como assistente de enfermagem, aos 15 anos. Ao fim do conflito, iniciou
sua carreira no jornal paraguaio "El País", onde chegou a chefe de redação e correspondente em
Londres, após a Segunda Guerra Mundial. Durante toda sua vida ele trabalhou como jornalista,
correspondente, roteirista de cinema, carteiro, dramaturgo e professor.
O título de “um dos principais autores latino-americanos” não veio por menos, Augusto Roa
Bastos embora não se considerasse um escritor profissional, tinha o dom de aclarar enigmas da
escrita mesmo que estive ocultos e obscuros, conseguia juntar os ecos das histórias dos
antepassados ou tempo da história com o tempo do mito, para ele o ato de escrever era considerada
uma tarefa difícil, porém o ato de ler era algo muito mais comprometedor, “[...] antes de aprender a
escribir hay que aprender a leer. La escritura no es sino La objetivización del texto ya presente y
múltiple que cada uno lleva en El espíritu.” (ROA BASTOS, citado por DOBARRO, 1990a, p.2).
Contudo a recuperação do escrito era remetida através da tradição literária expressa nos livros, e a
recuperação do “já dito - transmissão oral do feito do povo” era recorrida através da memória.
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Devido à sua diversidade no quesito educação cultural, o autor produziu seus trabalhos com
uma compilação especial, tinha sua própria característica na escrita, retratava o passado com o
presente, trazendo uma escrita moderna através da intertextualidade, para ele uma arte era originária
de outras artes, o diferencial era a essência que cada escritor conseguia transpassar, a intimidade
com o público leitor, portanto, a reunião de fragmentos de outros textos para Roa Bastos era vista
como uma forma de resgatar a herança cultural do passado, seu ponto de vista era similar ao de
ISER (1999), “ou seja, a memória coletiva que não pode ser transmitida geneticamente”. Contudo
a mescla das heranças indígenas e ocidental permitia que Roa Bastos proposse diversas
interpretações da realidade paraguaia em seus textos ficcionais, conseguindo entre outras coisas,
propor novas visões da história.
O Trovão entre as folhas é uma exemplificação dessa característica encantadora na escrita
de Augusto Roa Bastos, nesse conto ele ilustra nos mínimos detalhes a luta de um barqueiro simples
(Solano Rojas - residente em uma comunidade rural e pacata) contra a tortura física e psicológica de
capitalistas frios e violentos. A história começa com a invasão dos capitalistas nesta região, eles
constroem um engenho de açúcar e obrigam os moradores a trabalhar quase que num trabalho
escravo. No final da trama os capitalistas são expulsos, mas retornam com mais homens e armas,
porém o barqueiro acaba com um fim trágico, termina preso e cego, no entanto, permanece com um
símbolo mítico da luta por justiça e liberdade.
Paralelamente, ele começou a escrever poemas e publicou em 1941 sua primeira novela,
"Fulgencio Miranda". O paraguaio era um leitor apaixonado por autores como Rilke, Cocteau e
Faulkner. Retomando, o escritor e poeta paraguaio Augusto Roa Bastos, morreu no dia 26 de abril
de 2005, aos 87 anos, em um hospital de Assunção. Ele faleceu devido a um ataque cardíaco
oriundo de complicações da cirurgia a que foi submetido após cair e bater a cabeça em sua casa,
quatro dias antes de sua morte.
3. RESUMO DO CONTO
O conto O Trovão entre as folhas de Roa Bastos, inicia-se contando a morte do personagem
principal - Solano Rojas, um barqueiro simples, de bom coração, tido como símbolo mítico da luta
pela justiça e liberdade. Solano era um homem de fibra que se indignava com tamanha crueldade
que ele e seus companheiros eram submetidos, tudo em prol do dinheiro, lucro para os poderosos
capitalistas, ambição esta, que custava suor, lágrimas, sangue e até a vida de alguns trabalhadores.
O engenho de açúcar construído na pacata comunidade rural, praticamente os escravizavam, era um
trabalho sem recompensa, não viam a cor dos seus esforços, suas bonificações eram através de vale
– papel branco - responsável pelos mantimentos e roupas que muitas vezes custavam o dobro do
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valor real. O trabalho serviçal era considerado uma praga (fugindo do conceito judaico-cristão), era,
portanto, uma maldição que deveriam suportá-la.
Solano aos 15 anos já trabalhava como um “peão” experiente, desde cedo conviveu com as
atrocidades daquele trabalho, viu inúmeros colegas serem exterminados com pura frieza, caso
demonstrassem alguma insatisfação com o trabalho eram açoitados no tronco até que desmaiassem
ou morressem, outros eram baleados sem dó nem piedade, na frente de amigos e familiares. As
mulheres também eram escravizadas, umas com a própria mão de obra (engenho de açúcar) outras
sexualmente, pois era raro quando os chefes do engenho não as violentavam por pura diversão, em
algumas ocasiões uma mulher era abusada pela tropa inteira. Com a mãe de Solano não foi
diferente, mulher ainda jovem e bonita, ela foi obrigada a ceder aos gostos do patrão, o “verme”
conseguiu dela tudo o que quis, sob ameaça, pois caso se negasse o filho seria morto. Motivos para
sorrir, Solano não tinha, dentro de si predominava a sede pela justiça, um rebelde em busca da
liberdade, desejava apenas que aquele vilarejo se tornasse um lugar calmo, com a mesma paz de sua
fundação.
Ao longo da trama Solano consegue alguns aliados para tentar combater ao regime que eram
submetidos, ele era considerado como a voz da experiência, por algum tempo até formou um
sindicato de trabalhadores, e quando o ritmo de produção decaia os gerentes já sabiam que os
empregados estavam sendo orientados pelo sindicato, ele chegou a ser respeitado por muitos, no
entanto, quando estavam quase apaziguando a cronometragem do trabalho e tentando requerer seus
direitos, o engenho foi vendido para outro dono, ao invés das ordens do fundador Simón Bonaví,
foram impostos perante as ordens do Harry Way, com esse novo inimigo as esperanças da
comunidade foram cessadas.
Como em toda situação Solano acaba sendo traído, e todo seu esforço de nada vale, por fim
ele é capturado e açoitado com cento e dez chicotadas, uma celebração é realizada em torno de sua
derrota, e durante essa festa ele é retirado do tronco por caçadores e levado para mata. Porém, toda
a sua luta não é em vão, um grupo de trabalhadores, descobrem que ele ainda estava vivo e o chama
para incendiarem a fábrica, era a única solução para se livrarem de tamanha crueldade, mas (assim
como nos contos cristão) eles são traídos novamente, e toda a tropa de trabalhadores é presa e
julgada a morte, no entanto, Solano não os desampara, joga sua última carta, sua última tentativa, e
vence, com a ajuda de trinta caçadores o engenho (Ogagassu como também era conhecido) é
incendiado e com isso os capangas de Harry fogem, o feitiço vira contra o feiticeiro, Harry é detido,
fica de joelhos em frente ao Solano suplicando pela vida, tudo em vão, pois acaba pagando as
conseqüências de seus atos, é trancafiado dentro do incêndio e todos assistem sua morte.
Após essa vitória a comunidade vive em paz por uma semana, se organizam e cada um se
dedica no cargo destinado à fábrica, pela primeira vez trabalham com gosto. Porém, apesar de tanta
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luta, tanta força para vencer a injustiça, a história não termina tão linda assim, num belo dia, o
engenho amanhece cercado por dois esquadrões do governo que chegam para vingar a morte de
Harry, alguns trabalhadores resistem, mas as metralhadoras falam por si, outros se rendem e são
presos, já Solano termina com um fim trágico, é preso por quinze anos, e quando é liberto traz
consigo lembranças eternamente amargas, como pagamento deixa os olhos na prisão. Termina
tocando seu acordeom e se recordando das lutas, tem uma vida triste e sozinho, falece a beira de um
barranco quando tirava água para beber, os caçadores o tiram e jogam seu corpo no rio, porém a sua
alma, fica rondando o povoado, se torna o guardião cego e invisível a quem não se pode enganar
porque tudo vê.
Apesar das tristezas que Solano enfrenta, no final da trama ele se encanta por uma moça
corajosa, que também ajuda a queimar a Ogaguassu. Sua contribuição ocorre de uma forma simples,
suas mãos estavam sem armas, mas cobertas de foligem, ela também havia ajudado a salvar a cruel
e sanguínea opressão que se deparavam. Rosto delicado e pequeno, cabelos que pareciam banhados
de lua com o açúcar, fez com que Solano se encantasse e terminasse tocando seu acordeom, se
lembrando da luta e de um amor não correspondido. Essa foi a única paixão do personagem, o
momento em que ele demonstra ternura e paixão por uma mulher.
4. CONTEXTUALIZAÇÃO DA OBRA
O narrador inicia esse conto como se estivesse fazendo um flashback, fala primeiro do
sofrimento e da morte do personagem principal – Solano – para depois voltar a época de sua
infância, juventude, fase adulta e, por fim, a velhice. De início, retrata a presença de Solano como
se fosse uma alma vagando a fim de proteger a comunidade. Porém, as pessoas não o temem, o som
de seu acordeão transmite paz e segurança, pois todos os moradores do vilarejo, conhecem sua luta
por justiça:
...Não o temem e o veneram porque se sentem protegidos pela alma do
passeiro morto / Ali está ele no cruzamento do Rio como um guardião cego e
invisível a quem não é possível enganar porque tudo vê / Monta guarda e
espera. E nada há tão poderoso e invencível como quando alguém desce a
morte, monta guarda e espera. (ROA BASTOS, 2005, p. 213)
Logo no início, como foi citado anteriormente, é exposto uma lacuna metonímica, cujo
efeito é o de abrogação, pois ela se dá no momento em que perguntam de onde origina aquele som
de acordeon, já que a única pessoa que tocava aquele instrumento era o falecido – Solano – ela
ocorre de fato, na réplica de uma senhora quando murmura a seguinte frase: “Aicheyarangá,
Solano!”. É no início do conto que também fica perceptível o gênero poético, a página 203, em
específico, retrata as memórias de Solano com um ar de vencedor apesar da triste sequela que o
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acompanha (cegueira). O personagem lembra das batalhas, das paisagens e através da música
(acordeon) expõe seus sentimentos:
...Pouco a pouco a música se fazia triste, como de luto. Uma canção de
acompanhamento junto ao fogo pagado dum bivaque na noite do destino. Ã
isso tocava o acordeon de Solano Rojas, junto ao rio natal. Não estariam
dialogando por acaso a água escura e o filho cego sobre coisas, lembranças
compartilhadas? (ROA BASTOS, 2005, p. 203)
No parágrafo seguinte, Roa Bastos demonstra sua linguagem poética com muito afinco, ele
fala das características de Solano, retratando-o como um ser humano justo e fiel aos seus
sentimentos:
Ele tinha dentro de si, no seu coração indomável, um lutador, um rebelde que
odiava a injustiça. Isso era verdade. Mas também um homem apaixonado e
triste. Solano Rojassabia que amor é, tristeza, e engendra sem remédio e
solidão. Estava acampanhado e só.( ROA BASTOS, 2005, p. 203)
“O trovão entre as folhas” é de uma linguagem e uma memória riquíssima, o autor seduz o
leitor de uma forma encantadora ao ponto de deixá-lo preso na história com a instigação de saber
onde tamanha imaginação o levará. Neste conto, Roa Bastos consegue fazer com que os ecos dos
antepassados, os mitos, se tornem uma história poética (apesar de tanta tristeza) e realista. As rimas,
a intimidade, a delicadeza e educação que ele utiliza ao desenlace das palavras são admiráveis, uma
exemplificação deste fato já se encontra no início da trama, quando o narrador expressa: “... mas
não dizem que morreu? / - Ele sim. Mas quem toca agora é a alma dele” (2005, p. 200). Nessa frase,
além da predominância do valor poético, é retratada a ab-rogação, mesmo após a morte o barqueiro
Solano se recusa a ficar no esquecimento da população, ele o faz presente, demonstrando de uma
forma diferenciada (através da melodia do acordeom, melodia onipresente, desfiada, nostálgica e
fantasmagórica) a sua personalidade, sua força. Através do personagem Solano, uma lição de vida é
passada, o autor demonstra que nenhuma luta é em vão.
-Não esqueçam Kená, Che ra’y-Kuera, que sempre devemo’ nos ajudar um’
ao outro, que sempre devemo’tar unido. O único irmão de verdá que tem um
pobre Ko’ e ‘outro pobre. E junto’ todo’ nos formamo a mão, o pulso
humilde mas forte trabalhador... (ROA BASTOS, 2005, p. 201)
Há uma intertextualidade com a língua guarani (pequenas falas dos personagens) e o
espanhol a retratar os efeitos da lacuna metonímica, ou seja, a ‘mistura’ do idioma local com o
idioma europeu a fim de produzir uma linguagem híbrida que expresse a hibridação das culturas do
local envolvido no conflito cultural exposto pela narrativa. O discurso poético, por sua vez, em
alguns momentos vêm acompanhado de ironia “Simón Bonaví era baixinho e barrigudo. À sombra
do mulato, parecia quase um anão... era o único que não levava polainas de couro.” (Idem, p. 206),
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malícia e sedução “... no princípio estes se alegraram, porque viam surgir a possibilidade de um
trabalho estável. Simón Bonaví impressionou-os bem com suas maneiras mansas e afáveis” (Idem,
p. 207) ou farsa e ilusão “... os homens trabalhavam como escravos, e era só o começo, mas da
grana com que sonhavam não viam nem cabelo na sopa.” (2005, p. 208).
O narrador, na diegese, utiliza todas as funções de linguagem possível, o repetir com a
mímica “...Isso é fazer a pátria. / - Isso é fazer a pátria” (Idem, p. 207) e a antítese “Sentiam o doce
nos lábios, mas amargo nos olhos onde voltava a ser suco lacrimais, areia doce molhada de lágrimas
amargas” (Idem, p. 210) são uma das opções aderidas. Ele não hesita em expor a violência, o medo
e a dependência que os personagens se deparam “... Cuidado, Ulogio!...- sussurrava o medo nos
trilhos, nas olarias, nos campos, nos galpões. E a cauda de couro trançada estalava na terra, na
madeira, nas máquinas, nas costas suadas dos escravos.” (Ibidem, p. 209). O jogo de palavras que
Roa Bastos cria, no conto, seduz o leitor à várias reflexões, causando muitas vezes alguns
paradoxos entre causa e consequência, como, por exemplo, na fala seguinte:
Os homens, as mulheres e as crianças de Tebikuary-Costa assobraram-se de
que uma coisa tão amarga como seu suor tivesse se convertido nesses
cristaizinhos de orvalho que pareciam banhados de lua, de escamas trituradas
de peixe, de água de orvalho, de doce saliva de bestas. (ROA BASTOS,
2005, p. 210)
Com relação à subalternidade e à subjetificação, os indícios começam a partir da página 205,
quando há a caracterização de como foi o surgimento da usina de açúcar e como os moradores
viviam antes da mesma ser construída:
Antes de estabelecer a primeira usina de açucar em Tebikuary-Costa, a maior
parte do seu povo se encontra espalhada nas acidentadas ribeiras do Rio.
Viviam num estado semi-selvagem da caça, pesca, de seus rudimentares
cultivos, mas pelo menos, viviam em liberdade, se seu próprio esforço, sem
muitas dificuldades e necessidades. Viviam e mordiam insensivelmanete
como os veados, como as plantas, como as estações.( ROA BASTOS, 2005,
p. 205)
Acostumados com uma vida pacata e sossegada, esses moradores foram submetidos a um
trabalho praticamente escravo, o engenho fora criado por Simon Bonaví, pois este alegava que a
construção de tal usina era um exemplo da criação de uma pátria, que era um trabalho estável e
digno, mas tudo ocorreu totalmente ao contrário, Simon usa de sua autoridade (já que era fundador
e considerado o chefe) e começa a abusar da mão de obra de seus funcionários, aquilo que para os
moradores, em princípio, pareceu um sonho que se transformou num tormento, além da imposição
de ordens através da intimidação, Simon usava de violência para amedontrar, a fim de obter lucro,
tudo em torno da ambição. Assim, os moradores ficam relegados aos entraves da subalternidade,
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sem forças ou voz para requerer seus direitos. A seguir, trechos que confirmam a “inocência de um
trabalho descente”, da “corrupção salarial” e “medo” através da pressão psicológica e visual:
Assim nasceu o engenho, Simón Bonavi recrutou os moradores do loca. No
princípio, estes se alegraram, porque viam surgir a possibilidade de um
trabalho estável. Simón Bonavi impressionou-os com suas maneiras mansas e
afáveis. Um homem assim tinha que ser bom e respeitável. (ROA BASTOS,
2005, p. 208)
Levantaram-se os depósitos, algumas vivendas, a delegacia, a mercearia. Os
homens trabalhavam como escravos. E era só o começo. Mas da grana com
que sonhavam não viam nem “cabelo na sopa”, porque o patrão pagava-lhes
com vales. (ROA BASTOS, 2005, p. 208)
Cuidado, Ulogia!... – susurrava o medo nos trilhos, nos trilhos, nas olarias,
nos campos, nos galpões. E a cauda de couro trançada estalava na terra, na
madeira, nas máquinas, nas costas suadas suadas dos escravos. Às vezes
ressoavam os tiros do revólver em tom de intimidação. Penayo queria que
soubessem que ele era tão zambo para os açoites quanto para os tiros. ( ROA
BASTOS, 2005, p. 209)
O personagem Simon Bonaví usava de todas as suas armas para prender seus funcionários,
seja pelo medo, pelas falsas promessas e até pela questão da dependência, tê-los embaixo de suas
asas era muito mais fácil para comandar o trabalho “escravo”, ou seja, a maior política de opressão
era a política do medo.
...Pensavam que era algo bom relacionado com o futuro. Pegavam seus vales,
e iam ao armazén da provedoria que chupava seus salários em troca de
provisões e roupas dez ou vinte vezes mais caras do que seu valor real. (ROA
BASTOS, 2005, p. 208)
A subjetificação inicia praticamente na metade do conto, isso ocorre quando (após muito
sofrimento dos “escravos”) Elágio Penayo, considerado um dos capatazes responsável pelo ritmo de
produção, cronometragem e desempenho dos trabalhadores, é substituído por outro mandante, só
que desta vez ocorre uma leve melhoria, os homens trabalham mais folgados e com melhor
distribuição de tarefas, porém, a usina continua produzindo muito dinheiro e o regime de exploração
na realidade acaba intacto, com pouquíssimas mudanças. Solano, (sempre atento, disposto e
trabalhador) se inspira numa greve que origina o Sul (a fim de obter melhorias) e através dela retira
experiências para mais tarde se tornar o líder de uma revolução no engenho, tudo em prol da justiça
e da liberdade:
Solano Rojas ouvia o arribenho com deslumbrado interesse. Por fim alguém
tinha chegado para dar voz aos seus anceios, incitá-los à luta, à rebelião. O
agitador dos trabalhadores de açucar se deu conta em seguida de que nesse
robusto e nobre rapaz teria seu melhor discípulo e ajudante. Esclareceu-o
sucintamente e trabahran sem decanso. O entusiamo da gente pela causa foi
se estendendo pouco a pouco. Eram objetivos simples e claros, e os métodos
também eram claros e simples. Não era difícil compreendê-los e aceitá-los
porque se relacionavam com seus bscuros desejos e os expressavam
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claramente. / O agitador deixou Solano Rojas a cargo dos trabalhos e foi
embora. (ROA BASTOS, 2005, p. 216)
O resultado dessa luta é positiva, o engenho obtem prejuízos, e para não perder tudo o que
havia conquistado, Simon Bonavi, o vende. No entanto, o próximo proprietário é pior ainda, comete
atrocidades horríveis, sua crueldade o impregnava, o sustinha, era sua melhor qualidade. A partir
desse ponto (posse do Harry Way) a subalternidade retorna com força e poder. A primeira citação, a
seguir, vem retratando a posse de Way e as próximas contem um pequeno exemplo de sua maldade:
A primeira coisa que Harry fez no engenho foi juntar a peonada e os
pequenos agricultores. Não ficou um só escravo sem participar da estranha
assembléia convocada pelo novo patrão. Sua voz trovejou como através de
um tubo de lata amplo e bem alimentado de ar e de orgulhoso desprezo em
direção à centenada de homens encostados contra a parede avermelhada da
usina. Seu carregado sotaque gringo tormou ainda mais incompreensível e
ameaçadora sua ladainha. (ROA BASTOS, 2005, p. 217)
Eu ser prevenido por Dom Simón de que aqui estar se preparar uma greve
para vocês. Eu comprar esta fábrica e eu vir para fazer ela trabalhar. Assim
como meu nome se Harry Way, eu não deixar vivo um só miserável que
pensar em greves ou bobagens dessa classe. / ... Quem não estar de acordo
falar agora mesmo. Me confirmar tudo em seguida. / ... Ouviu-se um grito
sufocado nas fileiras dos trabalhadores. Fora prferido por Loreto Almirón,
um pobre carreiro doente de epilepsia. Seus ataques sempre começavam
assim. Seu rosto estava esverdeado e sua mandíbula caía desengonçada sobre
o peito. / Trazer esse miserável!... Loreto almirón foi trazido arrastado e
colocado na frente de Harry Way. Parecia um morto sustentado em pé. / O
Senhor reclamar?... Mim ensinar para o senhor ser um grvista... – inclinou-se
para um lado e, ao voltar-se, descarregou um murro terrivel no rosto do
carreiro. Ouviram-se quebrar os dentes. A pele estourou no canto da
bochecha. Os que os tinham agarrado pelos braços soltaram-no, e então
Loreto Almirón caiu como um fardo nos pés de harry Way, que ainda lhe
desferiu um feroz chute no peito. (ROA BASTOS, 2005, p. 218)
O ‘bom-amigo’ era o poste. Os chicotes torturadores administravam o
purgante. E o paciente ficava amarrado, abraçado ao poste, com seu lombo
sanguninolento assando-se sob o sol embaixo de uma nuvem de moscas e de
mosquitos. ( ROA BASTOS, 2005, p. 221)
Diante de tanta crueldade, todos se tornam subalternos, inclusive Solano – responsável pela
“revolução” na indústria, suas palavras não eram ouvidas, o terror havia paralisado as pessoas a tal
ponto que os moradores sentiam-se vigiados até nos pensamentos. Como não poderia faltar em toda
situação Way exige que o pivô da greve apareça e Solano acaba sendo traído e paga pelos seus atos,
por sua sede de justiça:
A cada çoite pulava um pequeno jato que resplandecia ao sol. As costas de
Solano já estavam banhadas em um suco escarlate como uma fruta
demasiado madura que dois taguatós implicáveis arrebatavam com seus
compassados moviemntos de asas. Mas Solnao continuava mudo. A boca
sangrva-lhe também com o esforço do silêncio. Só seus olhos estavam
marejados de lamentos raivosos. Mas seu silêncio era mais terrível que o
estampido das chicotadas. / ... Só com cento e dez chibatadas conseguiram
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dobrar Solano, que ficou pendurado no ‘bom-amigo’. (ROA BASTOS, 2005,
p. 223)
A subjetificação vem a ocorrer, enfim, quando descobrem que apesar do castigo, Solano
ainda estaria vivo e o chamam para ajudar a colocar fogo na indústria e a conquistar a tão sonhada
liberdade. Solano (que estava afastado, morando com caçadores) sobe o rio com o intuito de ajudar
seus companheiros, mas, mais uma vez, Solano é traído e seus principais colaboradores são
capturados (ficam presos e julgados à morte), enquanto os capangas ficam de plantão à espera de
Solano para cessar com sua vida. Porém Solano (sempre atento à periculosidade), com a ajuda dos
caçadores ataca e adere ao último plano, colocar fogo no engenho, e como vingança prender o
responsável por tantas desgraças - Harry Way – dentro do estabelecimento. Seu plano é finalizado
com sucesso e a paz volta a reinar no vilarejo, mas por pouco tempo. Todavia, com o gosto da
liberdade por eles mesmos conquistada, os trabalhadores do engenho sentem o fervor de ser sujeito
do próprio destino e não somente objeto do sistema de dominação.
Nesse período, os trabalhadores começam a trabalhar em equipe, começam a colheira por
sua conta depois de terem feito justiça com as próprias mãos Todo seu suor, sangue e sacrifício
haviam sido pagos. Portanto, puseram-se a trabalhar com amor, com gosto, pois sentiam que o
trabalho era uma coisa boa e não uma escravidão à qual eram constantemente objetificados.
Entretanto, após uma semana de paz, o vilarejo amanhece cercado por dois esquadrões do governo
que vinham vingar a morte de Harry Way.
Por fim, a narrativa termina com o contraste da subalternidade e da subjetificação, pois
Solano e todos que se responsabilizaram pela “injustiça” cometida com Way são presos, e cada um
paga pelos seus atos, embora tudo tenha sido cometido em legítima defesa. Entre eles, Solano é o
mais castigado, passa quinze anos na cadeia, e para sair de lá, deixa seus olhos como garantia. Ele
termina sua vida em Ogaguassu, nome dado ao vilarejo, relembrando sua guerra em prol da justiça,
como castigo passa o resto de sua vida cego, mas com o orgulho de que através de sua força e
coragem, o vilarejo ficará livre do trabalho escravo.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O entre-lugar configura o lócus de enunciação, um terceiro espaço do discurso, que não
pertence a nenhum dos lados envolvidos, mas ambos. Como isso ocorreria na literatura? Nos
encontros culturais esse fenômeno ocorre quando surge o choque entre duas ou mais culturas, há
uma revitalização de verdades e valores, é reconhecido quando os conquistadores passam a exercer
um poder se superioridade sob a comunidade explorada, seu objetivo, portanto, é invalidar e
enfraquecer o outro. Contudo, sabe-se que através da reescrita e da leitura, apropriando-se da
linguagem do dominador, o subalterno se torna o dono de sua voz, apresentando um contradiscurso,
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e é tido como dono de uma voz forte e eficaz, capaz de melindrar, invalidar e com isso enfraquecer
os dominadores.
No texto “O entre lugar na Literatura Regionalista: Articulando nuanças culturais”, a
estudiosa Leoné Astride Barzotto aponta uma definição sucinta e prática com relação ao entre-lugar,
definição esta que salienta todas as dúvidas:
O entre lugar é então, um novo espaço à luz das trocas culturais, conflitos e
ambigüidades que emergem diante das relações de poder. Porém, é neste
local que a questão da construção da identidade nacional e de uma
comunidade pode se efetivar uma vez que é amplamente subversivo e
desobediente. Onde a metrópole espera o silêncio, há voz; onde a metrópole
espera conformismo, há inquietação. (2010, p.12)
No conto “O trovão entre as folhas” de Roa Bastos, esse entre-lugar ocorre no momento em
que Simón Bonavi (dominador, opressor) com seus homens explora a pacata cidade de Ogaguassu,
inaugurando, portanto, a usina de açúcar (beira do Rio onde Solano era barqueiro):
“Antes de se estabelecer a primeira usina de açúcar em Tebikuaty-costa,a
maior parte do seu povo se encontrava espalhada nas acidentadas ribeiras do
Rio. Viviam num estado semi-selvagem da caça, da pesca, de seus
rudimentares cultivos, mas logo pelo menos viviam em liberdade, de seu
próprio esforço, sem muitas necessidades e dificuldades. Viviam e morriam
insensivelmente como os veados, como as plantas, como as estações. / Um
dia chegou Simón Bonavi com seus homens. Vieram a cavalo desde São João
de Borja explorando o rio para escolher o lugar. Finalmente, no começo do
vale que se estendia à frente deles desde a curva do rio, Simón Bonaví se
deteve” (p.205)
“Tirou do bolso um mapa bastante amassado e começou a estudá-lo com
concentrada atenção... / - Sim disse Simón Bonavi levantando a cabeça. – Isto
é do fisco. Água, terras, gente. Num estado inculto, mas em abundância. É
tudo de que precisamos. E será de graça, ainda por cima. – Girou o braço
com um gesto de apropriação; um gesto ávido, mas lento e seguro” (p. 206)
“... Levantaremos aqui a usina... isso é fazer pátria... Assim nasceu o
engenho. Simón Bonaví recrutou os moradores do local. No princípio esses
se agregraram, porque viam surgir a possibilidade de um trabalho estável.”
(p.207)
O choque entre as culturas começa nessas instâncias, no momento em que Simón Bonaví
(homem culto, astuto, com traços europeus – louro e de olhos azuis) se apropria das terras da pacata
comunidade (pessoas que segundo Bonaví são incultas, rudes, grossas). Esse contraste de cultura
como se percebe não é apenas físico, mas no sentido intelectual, pois baseados nesses pressupostos
(de que eles – os brancos – são as autoridades do vilarejo) o poder de superioridade começa a ser
explorado com bravura fazendo com que a sociedade “inculta” se torne submissa às ordens, sendo
humilhada, logo, ocorre a ligação com o estágio da subalternidade.
No entanto, a pacata sociedade ao longo do conto recupera sua voz de subalterno desafiando
a subjetificação dos poderosos. É lá em Ogagassu que ocorrem todos os conflitos entre os guaranis
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e paraguaios e entre os estrangeiros que querem oprimir essa comunidade com trabalho escravo e
lucro fácil, por isso ocorre a rebelião, o que significa que eles são sujeitos e não aceitam ser objetos
do sistema, porque lutam e resistem, mesmo perdendo a batalha, Solano (personagem principal, um
guerreiro tido como exemplo) sobrevive em espírito e seu canto na memória de todos, ainda dá
forças para os que ficam a lutar. A seguir trechos das vozes dos oprimidos revertidas em sujeitos
donos de sua ação:
“Entre os poucos que não se deixavam enganar, estava Solano Rojas. Era
talvez e mais atento voluntarioso de todos. Palpava a realidade e entrevia
intuitivamente seus perigos. / Mas faziam pouco caso dele. Os homens
estavam já cansados e maltratados. Preferiam continuar assim a dar pretexto
para que voltassem a subjugá-los pela violência.” (p. 215)
“...Fazia-se chamar de Gabriel. / Trouxe a notícia de que os trabalhadores de
todos os engenhos do Sul estavam preparando uma greve geral para exigir
melhores condições de vida e de trabalho... Ele vinha para conseguir a
participação de Tebikuary-Costa. / - Nossa força depende de nossa união –
repetiu constantemente Gabriel nos conciliábulos clandestinos. – De nossa
união e de saber que lutamos pelos nossos direitos. Somos seres humanos.
Não escravos. Não besta de carga. / Solano ouvia o arribenho com
deslumbrado interesse. Por fim alguém tinha chegado para dar voz aos seres
anseios, incitá-los á luta, à rebelião. / O agitador dos trabalhadores do açúcar
se deu conta em seguida de que nesse robusto e nobre rapaz teria seu melhor
discípulo e ajudante. / O agitador deixou Solano Rojas a cargo dos trabalhos
e foi embora (Resultado = greve, logo a venda do engenho para outro dono).
” (p. 215-216)
“A causa das desgraças eram a fábrica, os equipamentos, o engenho. O
próprio Simón Bonavi, o próprio Harry Way tinham nascido do quisto
vermelho. Tinham sua cor e seu veneno, Destruída a fábrica, tudo voltaria a
ser como antes.” (p. 224)
Essas citações acima mostram quão forte foi a voz dos subalternos em prol de suas
libertações, mostra quão eficaz foram suas recuperações, ao ponto de melindrar ou até mesmo
enfraquecer os dominadores, um fato consumado foram as rebeliões construídas, por Solano e
outros trabalhadores, que tiveram resultado positivo. Contudo, apesar do final ser trágico e
lamentável, eles não se entregam, pelo contrário lutam, perante o silêncio surge a voz, perante o
conformismo, ressurge a inquietação.
REFERÊNCIAS
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eone+o+entre+lugar+na+literatura+regionalista&hl=pt > Acesso em 28 maio. 2011.
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ARCAICO VERSUS MODERNO EM LAVOURA ARCAICA
Silvio do Espirito Santo (PG - UEMS)
RESUMO
Este trabalho tem por objetivo procurar pelos Rastros Trágicos na Literatura Brasileira. Cotejamos o livro
Lavoura Arcaica de Raduan Nassar perante as particularidades específicas da Tragédia Grega.
Palavras-chave: Tragédia grega; literatura brasileira; arcaico; moderno.
ABSTRACT
This study aims to search for Traces Tragic in Brazilian Literature. Comparing the book Lavoura Arcaica by
Raduan Nassar before the particularities of the Greek Tragedy.
Keywords: Greek Tragedy; brazilian literature; archaic; modern.
1. INTRODUÇÃO
Este artigo pretende, a partir da Tragédia Grega, procurar pelos rastros trágicos que
porventura subsistem na literatura brasileira. Para tanto, elenca-se como elemento primordial para
comparação a obra Lavoura Arcaica de Raduan Nassar. Discutiremos a importância da Tragédia
para a história da humanidade, e, seguindo os passos de Aristóteles e pesquisadores atuais, como o
trágico se ratifica numa obra moderna.
Será evidenciado também o grande combate primordial que ocorre no mundo entre as forças
do caos e da ordem, e como isso ocorre no livro de Raduan Nassar. Procuraremos também pelos
pontos convergentes entre a tragédia grega e a tragédia familiar de Lavoura Arcaica; e como,
séculos após o grande florescimento da tragédia, ela ainda viceja na literatura.
2. CONFLITO AMBÍGUO: APOLO E DIONISO
O mundo visível e o invisível compreendem um eterno embate entre forças antagônicas - o
combate entre o caos e a ordem. Esses conceitos podem ser encontrados na gênese de diversas
mitologias: grega, romana, judaico-cristã, oriental, por exemplo. Na mitologia grega, “bem primeiro
nasceu Caos”, a existência indistinta; depois nasceram a “Terra, de amplo seio” e “Eros: o mais belo
entre os deuses imortais” (HESÍODO, 1995, p. 91). Se sempre existiu o caos, a ordem
continuamente esteve circundando o todo. Se, como diz o Gênesis (1,2, p. 3), “no princípio criou
Deus os céus e a terra. E a terra era sem forma e vazia; e havia trevas sobre a face do abismo; e o
Espírito de Deus se movia sobre a face das águas”, lá está o caos - sem forma, nas trevas e no
abismo, e o Espírito de Deus é que dará uma face mais amena para ele. Mesmo que, após muitos
embates, a organização triunfe sobre o caos, é correto afirmar que ainda assim um necessita do
outro para sobreviver, e que subsistem justamente por travarem essa batalha eterna.
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Pode-se reduzir essa representação, conforme afirma Nietzsche em A Origem da Tragédia,
em mundo apolíneo – o da ordem; e mundo dionisíaco, da desordem. Apolo e Dioniso,
representações de forças antagônicas que se complementam. São oposições que não se excluem.
Um não sobrevive sem o outro. Nietzsche afirma que “estes dois instintos impulsivos andam lado a
lado e na maior parte do tempo em guerra aberta, mutuamente se desafiando e excitando” (1978, p.
35). Heráclito, retomado por Jaeger (2001, p. 227), pondera que “só se une o que se opõe; é da
diferença que brota a mais bela harmonia”. A impossibilidade de fugir ao confronto é uma
característica da encruzilhada interna do ser humano, que produzirá conflito qualquer que seja a
solução encontrada. Se evita a contenda, aceita o ordenamento do mundo sem questionamentos,
logo, sofrerá pelo silêncio inquestionável. Se, por outro lado, busca a disputa, enfrentará esse
mesmo determinismo universal, com todos os tumultos que tal decisão carrega no seu interior.
Pessoal, familiar, universal - os enfrentamentos se sucedem. Intimamente cada um decide.
“Apolo quer apaziguar as individualidades quando as separa precisamente, quando entre elas traça
linhas de demarcação que considera como as mais sagradas leis do mundo, quando exige o
conhecimento de si próprio e da medida” (NIETZSCHE, 1978, p. 84). Já para Dioniso, o deus do
vinho “não bastam orações e sacrifícios. O homem não está para com ele na relação, amiúde
friamente calculadora, de dar e receber; ele quer o homem inteiro, arrasta-o para o horror do seu
culto e, pelo êxtase, eleva-o acima de todas as misérias do mundo” (LESKY, 1996, p. 74). Ao ser
humano cabe a escolha, apesar de que em alguns momentos se poderá estar em um ou no outro
lado, instintivamente.
Para os gregos antigos o caminho ideal era “feito de temperança, de proporção de justa
medida, de justo meio” (VERNANT, 2002, p. 42). Com isso a força de Apolo era dominante, pois
alcançava a maioria. Permitia-se apenas que o ser obtivesse a liberação pela via religiosa, através
das celebrações em honra aos deuses. Nessas festas, ainda que impregnadas de excesso, pode-se
perceber o espectro apolíneo, pois se as festas eram um momento de entrega total, as representações
continham organização necessária para que o público alcançasse a catarse. Nietzsche (1978, p. 68)
pondera que o efeito mais imediato da festa religiosa “é o de que as instituições políticas e a
sociedade, ou por outras palavras, os abismos que separam os homens uns dos outros, desaparecem
diante de um sentimento irresistível que os reconduz ao estado de identificação primordial com a
natureza”. Porém, as instituições não imperavam nos primórdios dos festejos, foi depois
que
o Estado conseguiu a primazia de organizar as festividades e, logo, essas se tornaram uma maneira
de dominação estatal “contra todas as desmesuras” (BRANDÃO, 1985, 12), uma grande escola a
céu aberto, enformando espíritos. Era nesse mergulhar, controlado, no caos, que o ser humano vivia
e ainda vive. Sendo essa herança visível tanto no modo de ser apolíneo das famílias quanto no modo
de ser dionisíaco do carnaval.
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Se o choque de forças primordiais espalha-se pela vida em sociedade, impregnando-a com
suas dicotomias, essa vivência entre opostos torna-se a mola propulsora do ser humano. Comprazerse em apreender os limites, ou em excedê-lo, transforma a vida das pessoas. Jaeger (2001, p. 227)
ao retomar os conceitos de Heráclito, afirma que: “é mudando que repousa. A vida e a morte, a
vigília e o sono, a mocidade e a velhice são, no fundo, uma e a mesma coisa. Uma transforma-se na
outra, e esta volta a ser o que era primeiro”, de modo a confirmar a essência da vida –
transformação através dos confrontos, silenciosos e invisíveis ou enérgicos e manifestos. Mesmo
hoje, ainda vigora como lei universal, o embate dos contrários. Essa semente primordial plantada é
que determina a direção que cada ser tomará vida afora. Apolo e Dioniso estão mais vivos do que
nunca, mesmo que com nomes diferentes.
3. TRAGÉDIA GREGA – EM NOME DE DIONISO, O TRIUNFO DE APOLO
Apenas através da religião, dos ritos sacramentais em honra aos deuses – Dionísio o mais
aclamado deles – é que o ser humano podia entregar-se verdadeiramente, como pondera Nietzsche
(1978, p. 43) às “festas de redenção liberadora e dias de transfiguração”. A entrega total culminava
com a apresentação em amplos teatros a céu aberto de textos escritos por autores que concorriam
pela primazia de se sagrarem vencedores dos concursos dramáticos destas festas populares. Os
grandes teatros em honra a Dionísio comprovam a monumentalidade e a fé do povo grego. Dessas
celebrações salvaram-se para a posteridade alguns escritos: as tragédias e as comédias. Para nós, o
vivo interesse reside na Tragédia. O que principiou sendo uma apresentação com o formato de um
coro, “o canto dos bodes”, como eram conhecidos os coreutas, foi se transformando, com o passo à
frente dado por um dos participantes, criando assim o ator, aquele que dialogava com o coro.
Nietzsche (1978, p. 67) conjectura, retomando considerações de Schiller, que “o coro seria
como que a muralha humana de proteção à tragédia para que esta decorresse íntegra, separada do
mundo real, salvaguardando o seu domínio ideal e a sua liberdade poética”. Nesse sentido, Jaeger
(2001, p. 297) pondera que “a representação clara e vívida do sofrimento nos êxtases do coro,
expressos por meio do canto e da dança, e que pela introdução de vários locutores se convertia na
representação integral de um destino humano”. A Tragédia Grega sobrepujava o formato de mera
representação, adquiria um contorno místico, um ritual dividido, uma sensação compartilhada de
unicidade, que, como depreende Albin Lesky (1996, p. 38), “é a concepção do mundo como sede de
aniquilação absoluta de forças e valores que necessariamente se contrapõem, inacessível a qualquer
solução e inexplicável por nenhum sentido transcendente”. Dessa forma, a tragédia servia como
fonte inesgotável de transbordamento das sensações.
A tragédia, que nos primórdios era um espontâneo extravasar das pessoas, quando
encampada pelo Estado, passa a respeitar regras rígidas. Aristóteles (1450a, p. 206) é o primeiro a
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explicar a Tragédia e pondera que “é, portanto necessário que sejam seis as partes da tragédia que
constituam a sua qualidade, designadamente: mito, caráter, elocução, pensamento, espetáculo e
melopéia”. Jaeger (2001, p. 291) assevera que a tragédia “alimenta-se de todas as raízes do espírito
grego; mas a sua raiz principal penetra na substância originária de toda a poesia e da mais alta vida
do povo grego, quer dizer, no mito”. O mito, vasta fonte primordial para a tragédia, é revisitado
muitas vezes, assim era possível extrair argumentos cruciais dele.
Além disso, numa tragédia, existiam “os elementos de surpresa” (SOUZA, 1987, p. 247): a
peripécia, ou peripetéia, “mutação dos sucessos no contrário” 29; havia também o reconhecimento,
ou anagnorísis, “a passagem do ignorar ao conhecer, que se faz para amizade ou inimizade das
personagens que estão destinadas para a dita ou para a desdita” e a catástrofe, ou sparagmós, “uma
ação perniciosa e dolorosa, como o são as mortes em cena, as dores veementes, os ferimentos e
mais casos semelhantes”. Uma tragédia se comporá ainda, conforme o mitólogo Junito Brandão
(1985, p. 11), da ultrapassagem do métron, a medida de cada um, essa desmedida é violência contra
si próprio e os deuses, que provoca o ciúme divino, leva o herói a cometer a hamartía, ou o erro
fatal. A punição é imediata, contra o herói é lançada a cegueira da razão, tudo o que ele fizer recairá
sobre si mesmo e finalmente as garras da moira (destino cego) o alcançarão. Esses componentes
todos levarão à catarse. Brandão (1985, p. 14), ao citar os conceitos de Aristóteles, define que “a
tragédia, suscitando terror e piedade, opera a purgação própria a tais emoções, Por meio de um
equilíbrio que confere aos sentimentos um estado de pureza desvinculando do real vivido”.
Mesmo com as partes catalogadas por Aristóteles, é correto afirmar que, para a autêntica
tragédia, “a simples descrição de um estado de miséria, necessidade e abjeção pode comover-nos
profundamente e atingir nossa consciência com muito apelo, mas o trágico, ainda assim, não tem
lugar aqui” (LESKY, 1996, p. 33). Assim, é presumível inferir que nem toda obra pode ser
considerada uma Tragédia. Nietzsche (1978, p. 68) assevera que “a consolação metafísica - que nos
é dada, pela verdadeira tragédia, - o pensamento de que a vida, no fundo das coisas, a despeito da
variabilidade das aparências, permanece imperturbavelmente poderosa e cheia de alegria”, e mesmo
após tantos séculos essa consolação ainda permanece invariável.
4. RASTROS TRÁGICOS EM LAVOURA ARCAICA
Ainda hoje se pode localizar, em algumas obras da literatura brasileira, influências da
Tragédia Grega. Apenas mudou a ideia de tragédia e do trágico hoje em dia. Essas palavras
incorporaram-se ao vocabulário geral através de uma especificidade única: a urgência das nossas
sensações modernas, ficando longe, cronológica e linguisticamente, da acepção original. Mas
continuamente algum autor ressuscita o sentimento universal do trágico, e quando isso acontece,
29
Esta tríplice lista: peripécia, reconhecimento e catástrofe, advém de Aristóteles, das páginas 210-211 do livro já
citado.
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volta-se a um dos palcos primitivo da arte. Raduan Nassar faz isso em Lavoura Arcaica, recria uma
tragédia nos moldes antigos, mesmo utilizando material complexo e atual. Lavoura Arcaica é a
tragédia da incompreensão gerada pelo exercício do poder tradicional frente à modernidade; mas
pode ser também a luta do matriarcado contra o patriarcado.
Lavoura Arcaica narra a história de uma família de imigrantes árabes do Líbano que mora
numa pequena fazenda. É contada por André, um dos filhos, que abandonou a família e agora,
encontrado pelo irmão mais velho num hotel, revisita os fatos que o fizeram deixar a casa em que
moravam. André descreve a fé que nutria quando era criança: “e assim que eu me levantava Deus
estava do meu lado em cima do criado-mudo, e era um deus que eu podia pegar com as mãos e que
eu punha no pescoço e me enchia o peito e eu menino entrava na igreja feito balão” (NASSAR,
1989, p. 27). André passa por uma metamorfose, da infância para a adolescência, pois começou a se
incomodar com a rigidez organizada das regras paternais, “o amor, a união e o trabalho de todos nós
junto ao pai era uma mensagem de pureza austera guardada em nossos santuários, comungada
solenemente em cada dia, fazendo o nosso desjejum matinal e o nosso livro crepuscular” (ibidem, p.
22).
São os anseios reprimidos que levam André a explorar tanto a própria fazenda quanto a vila
da redondeza. E é esse novo universo que o leva a questionar o pequeno mundo em que vive, “o
mundo pra mim já estava desvestido, bastava tão só puxar o fôlego do fundo dos pulmões, o vinho
do fundo das garrafas, e banhar as palavras nesse doce entorpecimento” (ibidem, p. 47). Da revolta
surge a paixão por Ana, sua irmã. Da paixão concretizada na casa velha, vem a descoberta das
impossibilidades e a fuga. Na volta, conduzido pelo 'irmão-pai', o desfecho. Ana enlouquece, o pai
sabe, por intermédio do filho mais velho, sobre o incesto dos irmãos, mata Ana e se mata. É a
dissolução da família. Contada assim, não se percebe os detalhes do trágico. Fica-se com a
impressão de uma ocorrência trágica, porém tipicamente policial. Contudo, partindo das questões
fundamentais, apontadas por Aristóteles como necessárias para a existência ou não do trágico,
percebe-se em Lavoura Arcaica uma farta colheita desses dados.
Se toda Tragédia Grega tem como fio de Ariadne o mito, em Lavoura Arcaica ele também
se faz presente. No Evangelho de São Lucas (11’ 34, p. 1048) está escrito que “os olhos são como
uma luz para o corpo: quando os olhos de você são bons, todo o seu corpo fica cheio de luz. Porém,
se os seus olhos forem maus, o seu corpo ficará cheio de escuridão”, em Lavoura Arcaica há uma
sentença análoga: “e me lembrei que a gente sempre ouvia nos sermões do pai que os olhos são a
candeia do corpo” (NASSAR, 1989, p. 15). “O mito conserva a sua importância como fonte
inesgotável de criação poética” (JAEGER, 2001, p. 288), Fica claro, portanto, que o mito é mesmo
um dos arcabouços da trama. Lesky (1996, p. 41) pondera acerca da existência da “possibilidade da
situação trágica dentro do mundo do cristão, se dá como em qualquer outro mundo […] aquilo que é
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sofrido até a destruição pode encontrar, num plano transcendente, seu sentido, e, com ele, sua
solução”. E o mito bíblico fica evidente em outras passagens, basta comparar a fuga de André com
a do filho pródigo, ou os sermões parabólicos do pai.
O reconhecimento, passagem da escuridão à luz, em André, ocorre quando o mesmo começa
a perceber as sutilezas entre a teoria e a prática dos sermões paternais. Iohána é um pai à moda
antiga, de feições rudes, de hábitos enraizados. Pouco afeito ao diálogo, a ultrapassar barreiras:
“ninguém em nossa casa há de dar nunca o passo mais largo que a perna” (NASSAR, 1989, p. 55).
O crescimento de André o encaminha aos questionamentos pessoais – passa a observar a família, a
entender as vacilações, diferença entre o discurso da tradição e a realidade vivida. “Pedro, meu
irmão, eram inconsistentes os sermões do pai” (ibidem, p. 48), eis sua anagnórisis. Outros
reconhecimentos podem ser localizados no decorrer do drama: Pedro descobre o incesto dos irmãos;
Ana distingue em André excessos que não admira; o pai reconhece nos filhos uma falha na rígida
educação que administrava. É que no transcorrer da tragédia o reconhecimento pode ser também
“uma relação de hostilidade, casual ou real, que sobreveio ou ameaça sobrevir àquele” (SOUZA,
1987, p. 248).
Decidido a romper os limites que o prendiam às tradições, André evita o verbo poderoso do
pai e cria para si novas regras. Crendo nessa modernidade inventada por ele, acha-se forte o
suficiente e, rompe sua hybris, a fúria contra si próprio, e ultrapassa o seu métron: “tenho dezessete
anos e minha saúde é perfeita e sobre esta pedra fundarei minha igreja particular […] sobre esta
pedra me acontece de repente querer, e eu posso!” (NASSAR, 1989, p. 89). Mesmo em momentos
capitais é possível notar a influência dos mitos bíblicos, sendo essa passagem uma releitura de um
fragmento do Evangelho de São Mateus (17’ 18, p. 980): “você é Pedro, e sobre esta pedra
construirei minha Igreja, e nem a morte poderá vencê-la”. Ao romper os seus limites, sua desmedida
envolve a irmã Ana num relacionamento incestuoso, proibido aos olhos da tradição que regula a
família, mas não no entendimento dos cultores do matriarcado e do caos, para quem o amor era
livre e ilimitado:
Quase por toda a parte o objeto dos seus regozijos era uma licença sexual
desenfreada, cujo fluxo exuberante não se detém respeitoso perante a
consanguinidade, e transpondo os limites da moral, submerge as leis
veneráveis da família (NIETZSCHE, 1978, p. 39).
Eis sua hamartía, o erro fatal: “ela estava lá, branco branco o rosto branco e eu podia sentir
toda dubiedade, o tumulto e suas dores, e pude pensar cheio de fé eu não me engano neste incêndio,
nesta paixão, neste delírio” (NASSAR, 1989, p. 98). Será o erro fatal que produzirá a razão legítima
para a mudança de fortuna.
A peripécia de André ocorre quando ele percebe que Ana não ficaria consigo, destruindo
seus planos: “Ana não me via, trabalhava zelosamente de joelhos o seu rosário, era só fervor, água e
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cascalho nas suas faces, lavava a sua carne, limpava a sua lepra, que banho de purificação!”
(ibidem, p. 132). A peripetéia, juntamente com o erro fatal, precipita a catástrofe que envolve toda
família. O pai – a tradição – mata a filha e sucumbe ao peso das suas contradições. É a “catarse”,
entendida num sentido mais amplo de purificação, purgação, limpeza, alívio. Pode-se dizer que a
modernidade vence, mas o preço é alto: “o alfanje estava ao alcance de sua mão, e, fendendo o
grupo com a rajada de sua ira, meu pai atingiu com um só golpe a dançarina oriental” (ibidem, p.
192).
Outro aspecto interessante em Lavoura Arcaica é a inexistência de um herói ou de uma
personagem com estirpe elevada, como nas Tragédias Gregas. Predomina aqui, como sublinha
Lesky (1996, p. 33), a “considerável altura da queda: o que temos de sentir como trágico deve
significar a queda de um mundo ilusório de segurança e felicidade para o abismo da desgraça
ineludível”. Para todos, indistintamente, haverá o fim de uma ilusão. Para o pai finda um universo
em que “é insensato quem não se submete” (NASSAR, 1989, p. 62). Para Pedro termina a utopia de
suceder o pai no comando de uma família regrada: “abotoe a camisa, André” (ibidem, p. 12). Para
Ana acaba a quimera do matriarcado: “e, de mãos dadas, iremos juntos incendiar o mundo!”
(ibidem, p. 108). Para André, vitorioso no combate cego contra o patriarcalismo e o arcaico, restoulhe nas mãos as brumas do nada: “mas era o próprio patriarca, ferido nos seus preceitos, que fora
possuído de cólera divina (pobre pai!), era o guia, era a tábua solene, era a lei que se incendiava”
(ibidem, p. 193). Portanto, o trágico reside justamente nesse acúmulo de caracteres - “o caso deve
interessar-nos, afetar-nos, comover-nos […] quando nos sentimos atingidos nas profundas camadas
do nosso ser, é que experimentamos o trágico” (LESKY, 1996, p. 33).
5. LAVOURA GREGA – O ARCAICO VERSUS O MODERNO
Duas são as figurações do arcaico e do moderno em Lavoura Arcaica, sendo que nelas o
protagonismo muda de foco. Um dos pontos nevrálgicos, o embate entre pai e filho, ultrapassa o
limite de mero confronto de gerações. Institui uma ruptura na ordem natural das coisas. Iohána e
André. O arcaísmo centrado na força da palavra, na prática sistemática e forçada da ordem de um e
a irrupção do novo no outro, através da quebra do pacto familiar, da rebeldia a um extremo
imponderável. Percebe-se nessa demanda a presença triunfal das forças moderadoras do mundo:
Apolo e Dioniso – “toda ordem traz uma semente de desordem, a clareza, uma semente de
obscuridade” (NASSAR, 1989, p. 160). Nietzsche (1978, p. 84) ajuíza que “Apolo quer apaziguar
as individualidades [...] quando entre elas traça linhas de demarcação que considera como as mais
sagradas leis do mundo”; por outra vertente, Dioniso “devido à força despótica de renovação
primaveril, [...] vai atrair o indivíduo subjetivo, para obrigá-lo a aniquilar-se no total esquecimento
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de si mesmo” (NIETZSCHE, 1978, p. 39). André e o pai viviam nessa permanente cruzada,
reprisando tempos imemoriais.
Um arcaísmo paternal permeia a tragédia familiar, e para opor a essa força dominante um
poder que se equivalesse, André rompe com a tradição e intenta uma saída através da modernidade:
“seria agora o momento de atirar com todos os pratos e moscas pela janela o nosso velho guardacomida, raspar a madeira, agitar os alicerces, pôr em vibração as paredes nervosas” (NASSAR,
1989, p. 68). André promete acordar mais cedo, plantar mais, colher mais: “as coisas vão mudar
daqui pra frente” (ibidem, p. 120); utilizar-se de técnicas desconhecidas: “ao contrário do que se
pensa, sei muito sobre rebanhos e plantações, mas guardo só comigo toda essa ciência primordial”
(ibidem, p. 125).
Seu discurso de mudança é feito para Ana, uma promessa de transformação para que eles
possam ter um futuro juntos. André personifica o novo: “não há tarefa na fazenda que não possa me
ocupar à luz do dia” (ibidem, p. 124). Sua homilia mistura-se à do pai, não prega mais a destruição,
o ócio, a fuga, “cuidarei também das nossas construções, corrigindo a umidade que vaza sobre a
colheita” (ibidem, p. 124). Prega um trabalho ainda mais competente que o do patriarca: “sei como
multiplicar as cabeças do rebanho do pai” (ibidem, p. 122). Crê numa ilusão: uma modernidade
vazia. Quer o novo, que romperá definitivamente com o paternal no que diz respeito ao trabalho, e
quer um elemento mais novo ainda no que se relaciona à Ana, pois o incesto, sobre quem pesa
séculos e séculos de tabus, quer contradizer: “quero uma recompensa para o meu trabalho, preciso
estar certo de poder apaziguar a minha fome neste pasto exótico” (ibidem, p. 125).
O confronto entre pai e filho ocorre paralelamente a um tema preponderante nas tragédias
gregas, que é o confronto entre matriarcado e patriarcado. Ésquilo, com a trilogia que compõe a
“Orestéia”
30
, apresenta de maneira mais contundente essa disputa. Em Lavoura Arcaica têm-se
claramente esse embate na disposição dos lugares à mesa: “o pai à cabeceira; à sua direita, por
ordem de idade, vinha primeiro Pedro, seguido de Rosa, Zuleika, e Huda; à sua esquerda, vinha a
mãe, em seguida eu, Ana, e Lula, o caçula” (NASSAR, 1989, p. 156). O fluxo esquerdo que parte
da mãe é todo representado pelo “estigma de uma cicatriz” (ibidem, p. 156), sendo todos os
componentes vigiados permanentemente. É que “uma das características mais acentuadas do
matriarcado, alicerçada nas deusas-mães, é o amor. O amor materno é o mais primitivo dos amores”
(BRANDÃO, 1985, p. 28). Esse amor é mais livre das amarras apregoadas pelo patriarcalismo,
logo, insinua-se um relacionamento fora dos padrões aceitos como normal entre a mãe e André:
e só esperando que ela entrasse no quarto e me dissesse muitas vezes “acorda,
coração” e me tocasse muitas vezes suavemente o corpo até que eu, que
fingia dormir, agarrasse suas mãos num estremecimento, e era então um jogo
sutil que nossas mãos compunham debaixo do lençol (NASSAR, 1989, p.
27).
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A “Orestéia” é constituída por “Agamemnon”; “Coéforas” e ‘Eumênides” e foram escritas por Ésquilo.
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E, nesse reinado matriarcal, que sobrevém paralelo ao poder exercido pelo pai, ocorre o
amor entre irmãos: André e Ana; André e Lula; ocorre a zoofilia, pois na família matriarcal
“predomina o caos, a natureza, a liberdade, o éros, o amor” (BRANDÃO, 1985, p. 29).
Ora, se em tempos remotos a mulher era o centro do grupo familiar que governava como
autoridade, legisladora, foi perdendo esse predomínio e o homem se tornou o dominador na
hierarquia social. Mas, como afirma Brandão (1985, 28), “a maternidade é natural; e paternidade,
mentalmente adquirida”, e, continua o pesquisador, seguindo Bachofen (1985, 29), “a família
matriarcal é aberta, porque universal; a patriarcal é fechada, porque individual”. Logo, pode-se
afirmar que se existe um local em que sempre se percebe as batalhas entre o arcaico e o moderno,
entre a ordem e o caos, esse é na civilidade hostil de pais e mães, lutando por suas crias e crenças;
uma batalha entre a obediência silenciosa e cega à mãe e outra hostil ou sem contestação, ao pai. E
são esses confrontos que estão no centro das atenções de Lavoura Arcaica.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Séculos nos contemplam quando lemos Homero, Ésquilo, Sófocles, Eurípedes. É venturoso
saber que alguns livros desses autores não tiveram o mesmo fim de uma diversidade de outras
obras, que foram aniquiladas. Mesmo com o tempo, permanece um vivo interesse nesses
sobreviventes, e voltamos a eles como quem procura uma sabedoria há muito tempo perdida.
Cotejar a Tragédia Grega procurando nela por Rastros Trágicos na Literatura Brasileira foi uma
experiência gratificante e árdua. Gratificou quando impôs um salto no vazio sem rede de segurança.
Foi árduo quando confrontou conhecimentos e os testou à exaustão.
A saída foi buscar uma improvisação. Investigamos o texto nativo com afinco, para aí sim,
tentarmos a analogia. Lavoura Arcaica é um livro que se preza a uma empreitada dessas. A
jovialidade do texto perante os grandes trágicos impressiona. Seu apurado vigor foi arma eficiente
para que a pesquisa saísse a contento. Raduan Nassar escreveu o que se pode, efetivamente, nomear
como Tragédia. Sãos muitos os aspectos encontrados em sua obra que figuram, talvez de maneira
diversa, nas obras trágicas. Não há mais aquela celebração dionisíaca, que movimentava multidões.
Os ritos são mais comedidos. Porém, encontramos muitos conceitos chaves apontados por
Aristóteles em Poética e também por outros pesquisadores.
Verificamos elementos primordiais, como a existência do mito, que residia no Novo
Testamento. As fases por que passavam os heróis da tragédia, como reconhecimento, peripécia e
catástrofe, nossa personagem também trilhou. Alguns rudimentos da arte, que notoriamente
existiam à época dos grandes concursos dramáticos, deixaram de existir. Outros, transformados pelo
tempo, ainda foram possíveis de visualizar, como o grande confronto entre ordem e caos, que
adquiriu durante os séculos diversos nomes, por exemplo, o combate entre um redivivo matriarcado
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contra o imperativo patriarcado. Ou o tradicional embate do arcaico contra o moderno.
Características essenciais em diversas Tragédias Gregas, que constam em Lavoura Arcaica.
Buscar então pelos rastros que por ventura tenham deixado os trágicos na Literatura
Brasileira, e especificamente, em Lavoura Arcaica, demonstra o quanto a arte germina, se
desenvolve e prospera, como só é possível verificar com as religiões. A arte carrega consigo a
consolação conveniente. Transforma o desencanto com o que há de desprezível e contraditório na
existência humana e converte em representações ideais que modificam para melhor e de forma
aceitável a vida, nisso em muito diferindo das religiões, pois não há promessas de novos tempos e
sim a possibilidade de usufruir permanentemente do belo e maravilhoso que dela advém. Enfim, em
uma obra trágica pouco importa o ambiente em que se desenrola e qual a ação; também desimporta
o tempo ou a proeminência de autor ou obra. Vale mais que seja digno de fé, e que procure
aproximar as figuras o mais possível de nós.
REFERÊNCIAS
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Paulo: Nova Cultural, 1987.
BÍBLIA SAGRADA: Nova Tradução na Linguagem de Hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,
2005.
BRANDÃO, Junito. Teatro grego: a tragédia e a comédia. 6. ed. Petrópolis: Vozes, 1984.
HESÍODO. O Trabalho e os Dias. Tradução Mary de Camargo Neves Lafer. São Paulo:
Iluminuras, 1995.
JAEGER, Werner. Paidéia: A Formação do Homem Grego. Tradução de Artur M. Parreira. São
Paulo: Martins Fontes, 2001.
LESKY, A. A tragédia grega. São Paulo: Perspectiva, 1976.
NASSAR, R. Lavoura arcaica. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
NIETZSCHE, Friederich. A origem da tragédia. 5. ed. Lisboa: Guimarães, 1988.
SOUZA, Eudoro. In: ARISTÓTELES. Ética a Nicômano & Poética. Tradução e Comentários
Eudoro de Souza. São Paulo: Nova Cultural, 1987.
VERNANT, J. P. As Origens do Pensamento Grego. Trad. Ísis Borges B. da Fonseca. Rio de
Janeiro: Difel, 2002.
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