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Desigualdades e mulheres: perspectivas interdisciplinares sobre o Programa Bolsa Família Regina Célia Tamaso Mioto1 Resenha do Livro: SACCHET, Teresa; MARIANO, Silvana; CARLOTO, Cássia Maria (eds.) Women, Gender, and Conditional Cash Transfers: Interdisciplinary Perspectives from Studies of Bolsa Família. Londres/Nova York: Routledge. 2020. As notícias dos jornais que nos acompanham nesses dias tristes, incertos e sombrios do outono de 2021, determinaram a urgência e a necessidade de trazer a público, por meio da resenha deste livro — Women, Gender, and Conditional Cash Transfers — a importância de se manter aceso o debate acerca das transferências monetárias de renda. Um objetivo perquirido pelas organizadoras que se propõem a contribuir para a reflexão, tanto no Brasil quanto em outros países, à medida que buscam imprimir uma análise atualizada do Programa Bolsa Família sob a ótica feminista em perspectiva ampliada. Os programas de redução da pobreza têm sido as principais iniciativas políticas propostas pelos governos da América Latina nas últimas décadas para combatê-la e, particularmente nesse momento, ganha destaque no contexto da crise política sanitária causada pela covid-19. No Brasil, inicia-se o pagamento da segunda rodada do auxílio emergencial para um número muito menor de brasileiros e brasileiras em relação a 2020, sendo também um valor muito menor e sem garantia de continuidade. Isso ocorre ao mesmo tempo em que a política pública brasileira sofre seus piores ataques e o desmonte da arquitetura do Bolsa Família — considerado um grande projeto nacional de transferência de renda e objeto de análise deste livro — vai sendo corroído e desmantelado. A situação se agrava considerando a ausência de proposições que fazem o país avançar na redução das desigualdades interseccionadas de classe, gênero e raça. 1 Regina Célia Tamaso Mioto é professora do Programa de Pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Santa Catarina, onde é também pesquisadora na área de família e política social, com bolsa de produtividade do CNPq. Possui graduação em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica de Campinas (1973), mestrado em Educação pela Universidade Estadual de Campinas (1989), doutorado em Saúde Mental pela Universidade Estadual de Campinas (1994) e pós-doutorado na Universidade de Perugia-IT. Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 319 Nesse contexto, o livro que ora se apresenta é muito bem-vindo, pois contribui tanto para aprofundar o conhecimento sobre as Políticas de Transferência Condicionadas de Renda, com ênfase especial no Bolsa Família, quanto para fomentar análises e debates acerca do momento atual e a resistir a essa quadra histórica. O livro em pauta se presta a esse predigo, pois tem suas bases fincadas na melhor tradição do pensamento social-crítico que, em suas categorias fundamentais — totalidade, historicidade e contradição —, lança âncora para o conjunto dos nove capítulos apresentados, incluindo a introdução e a conclusão. A obra organiza-se a partir de argumentos centrais que se desenvolvem com particularidades ao longo dos capítulos, considerando que estes, em sua maioria, apresentam análises de pesquisas empíricas realizadas em diferentes regiões do país ou bases de dados nacionais, explorando diferentes dimensões do Bolsa Família. Em uma rica discussão de natureza sócio-histórica, localiza os Programas de Transferência de Renda na América Latina a partir dos anos de 1980, embalados pela redução da responsabilidade do Estado pela proteção social e pelo aumento do papel do mercado, da família e da comunidade na provisão de bem-estar. Enfatiza-se a rápida disseminação do neoliberalismo na região que resultou em retrocessos nos direitos trabalhistas e no aumento da desigualdade social e da pobreza no local. Nesse contexto, as políticas de transferência de renda são vistas como parte de um processo de desmantelamento da proteção social sob o princípio dos direitos sociais e de políticas públicas de caráter universal. A partir daí, alguns argumentos tomam força e subjazem ao conjunto dos capítulos, entre eles aparecendo recorrentemente o reconhecimento de que o Bolsa Família, embora seja uma medida necessária para o alívio da pobreza, é limitado como um projeto de combate a ela, uma vez que não se processa em contextos de mudanças estruturais indispensáveis para a reversão da pobreza. Também é constante o apontamento de que o foco na família, como uma unidade adotada por esse programa, negligencia questões inerentes à desigualdade de gênero. Nesse sentido, no correr da leitura, ganham força as teorias feministas de justiça e gênero que sustentam a ideia de que as questões culturais e políticas referentes à pobreza são essenciais para entender as fontes de desigualdade entre grupos sociais e para definir o combate à pobreza. Nessa direção, os capítulos apontam que o apagamento de tais questões, no planejamento das políticas, acarreta tanto uma limitação na capacidade do programa quanto nas suas possibilidades de promover justiça de gênero. Enfatizam-se as Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 320 interseccionalidades de classe, gênero, raça e geração, apontando as mulheres negras como as mais suscetíveis às vulnerabilidades e com condições inviáveis de superação da pobreza e da exclusão. Com esse enquadre informado por perspectivas teóricas e conceitos, sobretudo feministas, tem lugar a discussão das condicionalidades impostas pelo Bolsa Família e das mulheres nesse processo. As condicionalidades são analisadas, por um lado, por uma perspectiva econômica, evidenciando os efeitos da imposição de condicionalidades, considerando tanto a participação feminina no mercado de trabalho quanto as relações de gênero na família; por outro lado, elas são apontadas como determinantes no aumento da carga de trabalho das mulheres e como fonte de estresse em suas vidas, à medida que a permanência no programa está vinculada ao cumprimento das condicionalidades. Porém, tal cumprimento depende em grande parte da prestação de serviços públicos que, geralmente, são de má qualidade e impõem exigências à prestação dos serviços. Além disso, um destaque especial é dado à questão da percepção das mulheres sobre suas relações com o Estado e sobre a autonomia nesse contexto. No aprofundamento das análises, não ficam de fora as relações que são estabelecidas entre beneficiários e não beneficiárias do programa em suas comunidades, descortinando o universo do constrangimento, do controle e da discriminação social, de gênero e racial que as mulheres podem passar por conta de sua dependência do Estado. Dessa forma, o conteúdo do livro não se atém a descrições e justificativas que marcam muitos textos sobre tais programas, especialmente o Bolsa Família, nem desfia um conjunto de críticas intempestivas e produzidas a priori. Ao lê-lo, verifica-se que seus autores não se esquecem do suposto de que as práticas governamentais se fundamentam em determinadas concepções teóricas acerca da natureza e do papel das políticas sociais nas sociedades modernas. Um esquecimento que Maria Lúcia Werneck Vianna chama atenção em seu artigo publicado em 2005, intitulado A nova política social no Brasil: uma prática acima de qualquer suspeita teórica?, no qual ela resgata a salutar controvérsia em torno de premissas e conceitos que embasam diferentes estratégias de enfrentamento da pobreza, chamando atenção para um duplo processo: o de naturalização de um modelo de política social que passou a dominar no Brasil e o de esvaziamento do debate sobre a questão social no meio acadêmico. Assim, denuncia o tom pasteurizado adquirido pela ciência social brasileira no trato da questão social e das formas de enfrentála. Nas palavras da autora, Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 321 [...] a teoria passa a ser a própria realidade, na medida em que esta se autoexplica. Como se a realidade prescindisse de teorias explicativas, deixando os cientistas sociais a seu reboque. Perplexos, os cientistas sociais correm atrás da realidade e pedem carona na sua autoteorização, ao invés de, como no passado, se sobreporem a ela, decodificando-a no plano da reflexão (VIANNA, 2005, p. 131). Com essa recorrência à Viana, enfatiza-se o caráter reflexivo contido no livro. Reflexão que se faz através de uma análise das entranhas dos programas de transferência de renda e da realidade brasileira. Esta, atrelada à desigualdade estrutural do país que se expressa pelos seus eixos fundamentais de classe, gênero e raça/etnia. Portanto, este livro não se apresenta como uma versão pasteurizada dos Programas de Transferência de Renda e, afora o trocadilho, é um livro em inglês, porém não é um livro para inglês ver, como diz a expressão popular. No arco da discussão sobre as desigualdades, especialmente com foco nas mulheres, trava-se um diálogo profícuo com a produção teórica nacional e internacional sobre a matéria do livro e com as contribuições do debate feminista no mundo contemporâneo. Nesse diálogo, observa-se a convergência dos autores em torno de algumas questões fundamentais no debate da desigualdade, particularmente das mulheres, que são a família, a relação com o mercado de trabalho e com o Estado. Sobre a família, converge-se em uma perspectiva de entendê-la como organizada a partir de uma hierarquia de gênero e geração e que, na condição de instituição, apresenta obstáculos aos interesses das mulheres em relação à sua independência. Essa condição está atrelada às responsabilidades femininas concretizadas na família, as quais se traduzem nas demandas/atribuições de realização do trabalho reprodutivo não remunerado, especialmente do cuidado, tendo como consequência o limite e o controle de oportunidades e possibilidades de autonomia das mulheres e de ampliação dos direitos disputados no mundo do trabalho e na política. Acerca das relações com o mercado de trabalho, realça-se o fato de as mulheres enfrentarem distintas desigualdades qualitativas e quantitativas em distintas ocupações. Além disso, a expressiva informalidade no trabalho no Brasil não pode ser desconsiderada quando se trata de pobreza e de mulheres na pobreza. Sobre o Estado, a tendência nas interpretações converge sobre vários aspectos, entre eles as ações estatais se destacam. Para os(as) autores(as), as políticas públicas, particularmente na perspectiva dos direitos, afetam de formas muito diferentes o cotidiano e a cidadania de homens e mulheres. Nesse sentido, reafirma-se que o acesso universal a serviços públicos de qualidade, na área da reprodução social, contribui significativamente para abrandar o tempo gasto pelas mulheres no trabalho de cuidado e Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 322 melhorar suas condições de vida. Essas questões, entre outras que dão direção ao livro, enfeixam-se sob a pergunta subjacente ao debate feminista, apontada na conclusão desta obra: qual seria o quadro de proteção social mais adequado para reduzir as desigualdades entre homens e mulheres, prevenir a pobreza feminina e promover a autonomia das mulheres? Nessa perspectiva, o livro incorpora o debate da desigualdade de gênero e da situação das mulheres, especialmente das mulheres pobres e, entre elas, as negras. Com isso, situam-se esse debate no campo do presente e do futuro em relação aos constrangimentos herdados do passado. Fornecem elementos para se entender a desigualdade como um fenômeno complexo que se manifesta por várias dimensões. Está demarcado tanto pela sua natureza estrutural, uma vez que é inerente à forma de organização capitalista, quanto pela sua natureza dinâmica. Portanto, implica reconhecer, quando se trata de desigualdade, a sua dinamicidade e o seu caráter cumulativo, ou seja, à medida que as novas desigualdades passam a conviver com formas de desigualdades já enraizadas e as novas desigualdades não substituem as velhas, mas sim se sobrepõem a elas (TROVÃO; ARAÚJO, 2019). A riqueza dos dados e do debate apresentado é expressão do caráter interdisciplinar e interinstitucional que marcou a produção desta obra. Suas editoras conseguiram reunir autoras e autores de diferentes formações, entre os quais estão assistentes sociais, cientistas políticas, sociólogas, economistas, demógrafa com ampla trajetória e conhecimento acerca da matéria do livro, e de diferentes instituições do país, como grandes universidades públicas brasileiras, a exemplo da Universidade Federal da Bahia (UFBA), da Universidade Estadual de Londrina (UEL), da Universidade Federal Fluminense (UFF), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), da Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS) e da Universidade Federal de Uberlândia (UFU). São universidades que abrigam centros de estudos de alcance nacional e internacional largamente reconhecidos no campo da pesquisa científica e sobre os temas que compõem os capítulos deste livro. Enfim, é uma obra que expressa a sua conexão com o mundo presente, por intermédio de pesquisadoras e pesquisadores altamente conectados com as demandas de seu tempo e empenhados na busca de respostas às questões que se colocam no campo da política pública. Além disso, o livro responde as demandas postas pelas agências de fomento do Brasil à área das humanidades, tanto no plano da inserção internacional, com publicação em língua inglesa, quanto no plano da interconexão de grupos de pesquisa. Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 323 Com isso, é importante reafirmar que este livro se torna disponível em um momento muito significativo da vida brasileira, tanto porque ele se faz presente em um tempo no qual a pandemia escancara as desigualdades da sociedade quanto porque coloca sob holofote as mulheres — as desigualdades de gênero, raça/etnia e classe — e os Programas de Transferência de Renda. Assim, instiga uma profunda reflexão sobre a pobreza e o conservadorismo, em um tempo no qual os olhos arregalados do mundo se voltam para o Brasil. Nesse contexto, o lançamento deste livro é muito bem-vindo, ao permitir que estudiosos e pesquisadores dos mais diferentes países tenham acesso ao conhecimento consistente e consequente que marca esta obra. Por esse elenco de aspectos suscitados ao longo da resenha, fica o convite para a leitura e a expectativa de uma tradução para o português. Referências VIANNA, M. L. T. W. A nova política social no Brasil: uma prática acima de qualquer suspeita teórica? Revista Praia Vermelha, Rio de Janeiro, n. 13, p. 120-145, 2º sem. 2005. TROVÃO, C. J. B. M.; ARAÚJO, B. J. Desigualdades brasileiras nos anos 2000: uma abordagem multidimensional. Geosul, Florianópolis, v. 34, n. 70, p. 56-86, jan./abr. 2019. Vol.9, N.1, Maio - Agosto 2021 www.feminismos.neim.ufba.br ISSN: 2317-2932 324