Jácques Derrida
40
P A P I R U S
SALVO O NOME
JACQUES DERRIDA
tradução
Nícia Adan Bonatti
revisão técnica
Enid Abreu Dobránszky
SALVO O NOME
PAPIRUS
EDITORA
Título original em francês: Saufle nom
© Éditions Galilée, 1993
Tradução: Nicia Adan Bonatti
Revisão técnica: Enid Abreu Dobránszky
Capa: Fernando Cornacchia
Antônio César de Lima Abboud
Foto: Renato Testa
Revisão: Lúcia H. Morelli
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Derrida, Jacques, 1930Salvo o nome / Jacques Derrida; tradução Nicia Adan Bonatti
-- Campinas, SP : Papirus, 1995.
ISBN 85-308-0323-X
1. Ambigüidade 2. Linguagem - Filosofia 3. Nomes
mântica (Filosofia) I. Título.
95-0292
4. Se-
CDD-401
índices para catálogo sistemático:
1. Nome ; Filosofia da linguagem 401
DIREITOS RESERVADOS PARA A LÍNGUA PORTUGUESA:
© M. R. Cornacchia & Cia. Ltda — Papirus Editora — Matriz Fone: (0192) 31-3534 e 31-3500 - C. P. 736 - CEP 13001-970
Campinas — Filial - Fone: (011) 570-2877 - São Paulo - Brasil.
Proibida a reprodução total ou parcial. Editora afiliada à ABDR.
ADVERTÊNCIAS
1. A primeira versão deste texto foi publicada
em inglês (traduzida por John P. Leavey Jr) com o
título de Post-Scriptum (subtítulo: Aportas, vias e
vozes) em um volume dedicado à teologia negativa (Derrida and negative theology, Harold Coward, Toby Foshay (orgs.), State University of New
York Press, 1992). Eu tinha então sido convidado
a responder, em conclusão, às conferências pronunciadas por ocasião de um encontro organizado
sob este título no Calgary Institute for the Humanities (Canadá), sob a direção de Harold Coward.
Eu não pude ir a esse colóquio. Este diálogo
fictício foi, portanto, escrito depois da leitura
dessas conferências, que, por sua vez, foram
reunidas no volume citado acima. Quero agradecer ainda aos autores Toby Foshay, Michel Despland, Mark C. Taylor, Harold Coward, David Loy
e Morny Joy. Para reconstituir um contexto, os
editores do mesmo volume republicaram em tra-
dução inglesa dois ensaios que eu já havia publicado antes, Dun ton apocaliptique adopté naguère
en philosophie (Paris, Galilée, 1983) e "Comment
ne pas parler. Dénégations", em Psyché, Inventions de lautre (Paris, Galilée, 1987).
2. Certo ou errado, parece-me hoje justificável publicar simultaneamente, nas Éditions Galilée, dois outros ensaios, Khôra e Passions. Apesar
de tudo que os separa, eles parecem se responder
e talvez se esclarecer no interior de uma única e
mesma configuração. Sob a sintaxe móvel desses
títulos, poderíamos ler três ensaios sobre um nome
dado ou sobre o que pode acontecer ao nome
dado (anonimato, metonímia, paleonímia, criptonímia, pseudonímia), portanto, ao nome recebido,
ou mesmo ao nome devido, sobre o que talvez se
deva (dar ou sacrificar) ao nome, ao nome do
nome, seja ao cognome, e ao nome do dever (dar
ou receber).
SALVO O NOME
{POST-SCRIPTUM)
— [...]
— Mais que um, desculpe, é preciso sempre
ser mais que um para falar, é preciso que haja
várias vozes,..
— Sim, estou de acordo e, por excelência,
digamos exemplarmente, quando se trata de
Deus...
Mais ainda, se é possível, quando se pretende falar segundo o que chamam de apófase ou,
em outras palavras, segundo a voz imparcial, a via
da teologia dita ou autodenominada negativa.
A teologia negativa é um modo de abordagem de Deus que consiste
em aplicar-lhe proposições negativas. Em lugar de atribuir-lhe
qualidades positivas ou proceder por analogia, o método negativo ou
apofatismo consiste em dizer aquilo que Deus não é, em recusar-lhe
qualquer predicado. Este método foi amplamente usado por São Tomás
de Aquino, por exemplo. Apesar de se querer racional, o método
apofático está ligado ao misticismo, isto é, à intuição que manifesta uma
Essa voz se reduz a si mesma: ela diz uma coisa
e seu contrário, Deus que é sem ser ou Deus que
(está) além do ser. A apófase é uma declaração,
uma explicação, uma resposta que, tomando a
respeito de Deus uma forma negativa ou interrogativa, pois é também o que quer dizer apophasis,
assemelha-se a uma declaração de ateísmo, a
ponto de ser confundida com ela. Tanto mais que
a modalidade da apophasis, apesar de seu valor
negativo ou interrogativo, lembra freqüentemente
aquela da sentença, do veredito ou da decisão, do
statement. Eu gostaria de lhe falar, mas não hesite
em interromper-me, dessa multiplicidade das vozes, desse fim completamente inicial, mas também
interminável, do monologismo — e do que se
segue...
— Como uma certa mística, o discurso apofático sempre foi suspeito de ateísmo. Nada parece
ao mesmo tempo mais merecido e mais insignificante, mais deslocado, mais cego do que um tal
processo. O próprio Leibniz era propenso a isso.
Heidegger lembra o que ele dizia de Angelus
Silesius: "Encontram-se nesses místicos algumas
passagens que são extremamente audaciosas,
cheias de metáforas difíceis e inclinando quase ao
ateísmo, da mesma forma que observei nas poesias alemãs, aliás belas, de um certo Angelus
Silesius...
realidade transcendente que excede as possibilidades da linguagem.
(N.T.)
Inclinando, mas não indo além da predisposição ou da propensão, nem mesmo ou quase
{beinahezur Gottlosigkeithinneigend), e o pendor
oblíquo desse clinamen não parece separável de
uma certa audácia da língua, de uma língua poética ou metafórica...
— E, aliás, bela, não se esqueça; Leibniz o nota
como se se tratasse de um acréscimo ou de um
acessório (im übrígen schónen Gedichterí), mas eu
me pergunto se não se trata aí, beleza ou sublimidade, de um traço essencial da teologia negativa.
Quanto ao exemplo de Angelus Silesius...
— Deixemos por enquanto de lado essa
questão: a herança de Angelus Silesius (Johannes
Scheffler) pertence ou não à tradição da teologia
negativa no sentido estrito? Podemos falar aqui
de um "sentido estrito"? Você não poderia negar,
penso eu, que Angelus Silesius guarda um evidente parentesco com a teologia negativa. Seu
exemplo somente significa para nós, neste momento, essa afinidade entre o ateísmo suspeitado
por Leibniz e uma certa audácia apofática. Esta
última consiste sempre em ir mais longe do que
convém permitir. Eis um dos traços essenciais de
qualquer teologia negativa: a passagem no limite,
depois a travessia de uma fronteira, inclusive
aquela de uma comunidade, portanto de uma
razão ou de uma razão de ser sociopolítica, institucional, eclesial.
— Se a apófase inclina quase ao ateísmo,
não podemos dizer que, por outro lado, ou por
isso mesmo, as formas extremas e mais conseqüentes do ateísmo declarado terão sempre testemunhado o mais intenso desejo de Deus? Não está
aí, doravante, um programa ou uma matriz? Uma
recorrência típica e identificável?
Sim e não) Uma apófase pode, com efeito,
responderão Tüãís insaciável desejo de Deus, corresponder a ele, corresponder com ele, segundo a
história e o acontecimento de sua manifestação ou
o segredo de sua não-manifestação. A outra apófase,
a outra voz, pode permanecer radicalmente estranha
a qualquer desejo ou, em todo caso, a qualquer
forma antropo-teomórfica do desejo.
— Mas não é próprio do desejo carregar em
si sua própria suspensão, a morte ou o fantasma
do desejo? Ir na direção do outro absoluto, não é
a extrema tensão de um desejo que busca por isso
mesmo renunciar ao seu próprio impulso, ao seu
próprio movimento de apropriação? A si, e mesmo
ao crédito, ou ainda ao benefício que o ardil de
um narcisismo indestrutível poderia ainda esperar
da renúncia infinita?
— Te^temunhaj^dizia você, prestar testemunho d<^ desejo de DeusT)A frase não é somente
equívocaTcleunTequívocoessencial, significante,
decisivo em sua própria indecidibilidade, a saber,
Este neologismo, já empregado por Silviano Santiago (org.) in Glossário
deDerrida, Francisco Alves, RJ, 1976, exprime a qualidade das -unidades
de simulacro, falsas propriedades verbais, nominais ou semânticas que
não se deixam compreender na oposição filosófica (binaria) e que, no
entanto, habitam-na, resistem-lhe e a desorganizam, sem jamais
constituir um terceiro termo, sem jamais dar lugar a uma solução na
forma da dialética especulativa (o pharmakon não é nem o remédio,
10
aquela que marca o duplo genitivo ("objetivo" e
"subjetivo", antes mesmo do surgimento gramatical ou ontológico de um sujeito ou de um objeto)
ou, dito de outra forma, a da origem e do fim de
um tal desejo: virá ele de Deus em nós, de Deus
por nós, de nós por Deus? E como nós não nos
determinamos antes desse desejo, como nenhuma
relação consigo pode estar segura de precedê-lo,
ou seja, de preceder uma relação com o outro,
ainda que seja através do luto, toda reflexão é
tomada na genealogia desse genitivo. Por isso
entendo tanto uma reflexão sobre si, uma reflexão
autobiográfica, por exemplo, quanto uma reflexão
sobre a idéia ou o nome de Deus. Mas sua frase
é equívoca de outra forma: quando ela nomeia o
testemunho. Pois, se o ateísmo, como a teologia
apofática, testemunha o desejo de Deus, se ele
reconhece, confessa ou significa indiretamente,
como em um sintoma, o desejo de Deus, junto a
quem o faz? Quem fala a quem? Permaneçamos um
pouco em torno desta questão, simulando saber o
que é um discurso de teologia negativa, com seus
traços determinados e sua inclinação própria. A
quem se dirige? Qual é o destinatário? Existe antes
dele, esse interlocutor, antes do discurso, antes de
sua passagem ao ato, antes de seu término performativo? Denys, o Areopagita, por exemplo, articula
nem o veneno; o suplemento não é nem um mais nem um menos; o
hímen não é nem a confusão nem a distinção; o espaçamento não é
nem o espaço nem o tempo; o encetamento (entame) não é nem a
integridade de um começo, de um corte simples, nem a secundariedade.
Nem/nem sendo ao mesmo tempo ou bem isso, ou bem aquilo- (J.
Derrida, Postíions, Paris, Minuit, 1972, p. 58). (N.T.)
Membro do Aerópago, tribunal supremo da Atenas antiga, composto, a partir
11
uma certa prece, dirigida para Deus; ele a encadeia
com um endereço ao discípulo, mais precisamente
ao devir-discípulo daquele que é, assim, chamado
a ouvir. Uma apóstrofe, aquela que remete a Deus,
eis que se volta, sem se desviar, para uma outra
apóstrofe em direção daquele...
— Jamais daquela...?
— Não que eu saiba, não nesse caso (mas
não se apresse em concluir que a cena se desenrola entre homens, nem sobretudo que aquele que
fala seja um homem). A outra apóstrofe, pois,
dirige-se àquele que justamente não sabe ainda o
que sabe ou o que deveria saber, mas saber de
um não-saber, segundo um certo não-saber. O
hino e a didática se aliam aqui segundo um modo
cuja originalidade essencial e, portanto irredutível,
seria preciso reaprendrer. Trata-se de um movimento singular da alma ou, se preferir, de uma
conversão da existência que se concilia, para
revelá-lo em sua própria noite, com o mais secreto
do segredo. Essa conversão (se) volta para o outro
para (o) voltar na direção de Deus, sem que haja
uma ordem nesses dois movimentos, que são o
mesmo, na verdade, sem que nem um nem outro
seja contornado ou desviado. Tal conversão não
deixa, sem dúvida, de ter relação com o movimento da confissão agostiniana...
de Solon, de antigos arcontes, e que teve, até o século V a.C, um grande
poder político, sendo depois reduzido a atribuições jurídicas. Denys foi
convertido por São Paulo, morreu como mártir no século I. (N.T.)
12
— Então, seria também inútil lembrar o
caráter autobiográfico e o que ele inaugura a esse
respeito; haveria ingenuidade em acreditar que se
sabe o que é a essência, a proveniência ou a
história da autobiografia fora de acontecimentos,
como as Confissões de santo Agostinho...
— Quando este (se) pergunta, quando pergunta, na verdade, a Deus e já aos seus leitores
por que ele se confessa a Deus, dado que Este
sabe tudo, a resposta evidencia que o essencial da
confissão ou do testemunho não consiste em uma
experiência de conhecimento. Seu ato não se
reduz a informar, a ensinar, a anunciar. Estranha
ao saber, portanto a qualquer determinação ou a
qualquer atribuição predicativa, a confissão divide
essa destinação com o movimento apofático. A
resposta de Agostinho inscreve-se como ordem
cristã do amor ou da caridade: como fraternidade.
Para torná-los melhores na caridade, Agostinho se
dirige aos "ouvidos fraternos e pios" (X, XXXIV,
51); e à "alma fraterna", para que "ame em mim"
aquilo que tu, Deus, "ensinas a amar" ÇAmetin me
fraternus animus quod amandum doces) (X, IV,
6). A confissão não consiste em anunciar — e por
meio disso ensina que o ensino como transmissão
do saber positivo não é essencial. A confissão não
pertence essencialmente à ordem da determinação cognitiva. Em relação a isso, é quase apofática.
Nada tem a ver com o saber — enquanto tal.
Enquanto ato de caridade, amor e amizade em
Cristo, destina-se a Deus e às criaturas, ao Pai e
aos irmãos para "excitar" o amor, para aumentar
13
um afeto, o amor, entre eles, entre nós (XI, I, 1).
Para que sejamos mais numerosos a dar graças e
a rezar a Deus por nós (X, IV, 6). Pois Agostinho
não responde somente à questão: por que me
confessar a ti, Deus, que sabes tudo por antecipação? Ele fala de "fazer a verdade" (veritatem
faceré), o que não é a mesma coisa que revelar,
desvendar, nem informar na ordem da razão cognitiva. Talvez a testemunhar. Ele responde à questão do testemunho público, isto é, escrito. Um
testemunho escrito parece mais público e, portanto, como alguns se sentiriam tentados a pensar,
mais conforme à essência do testemunho, quer
dizer, também de sua sobrevida por meio da prova
da atestação testamentária. Quero "fazer a verdade", diz, em meu coração, diante de ti, pela
confissão, mas também "em meu livro, diante de
inúmeras testemunhas" (in stilo autem meo coram
multis testibus) (X, I, 1). E se ele se confessa por
escrito (in litteris, per has litteras) (X, III, 4), é
porque quer deixar um rastro para seus irmãos
que virão na caridade, a fim de excitar também, ao
mesmo tempo que o seu, o amor dos leitores (qui
haec legunt) (X, I, 1). Esse momento de escritura é
feito para "depois". Mas segue também a conversão. Permanece o rastro de um momento presente
da confissão que não teria sentido sem uma tal
conversão, sem esse endereçamento aos irmãos
leitores: como se ao ato de confissão e de conversão, já tendo tido lugar entre Deus e ele, tendo-se
de alguma forma escrito (é um ato no sentido do
arquivo ou da memória), fosse necessário adicionar um post-scriptum — as Confissões, nada me14
nos — dirigido aos irmãos, daqueles que são
chamados a se reconhecer como filhos de Deus e
irmãos entre si. A amizade se interpreta aqui como
caridade e como fraternidade. Mas o próprio
endereçamento a Deus já implica a possibilidade
e a necessidade desse post-scriptum que lhe é
originariamente essencial. Sua irredutibilidade se
interpreta finalmente, não nos estenderemos aqui
sobre isso, de acordo com o pensamento agostiniano da revelação, da memória e do tempo.
— Você diria que todo post-scriptum deixase necessariamente interpretar no mesmo horizonte? E que tem a mesma estrutura?
— Não. Não sem muitas precauções. Mas
será que alguma vez podemos interpretar um
post-scriptum tanto no sentido da leitura hermenêutica quanto no da "performance" musical, por
exemplo, sem se harmonizar, ao menos indiretamente, com a escansão ou a partitura agostiniana?
Seria possível fazer uma indagação análoga com
relação a tudo aquilo que chamamos, no Ocidente, a autobiografia, qualquer que seja a singularidade de seu "aqui e agora".
— Você quer dizer que todo "aqui e agora"
de uma autobiografia ocidental já é em memória
do "aqui e agora" das Confissões?
Sim,Irias elas próprias já eram, em seu
presente^rnais selvagem, em sua data, em seu
lugar, um ato de memória. Deixemos aqui Agostinho, apesar de ele sempre assombrar certas
paisagens da mística apofática (Mestre Eckhart o
15
cita freqüentemente; ele cita freqüentemente o
"sem" de santo Agostinho, essa predicação quase
negativa do singular sem conceito, por exemplo:
"Deus é sábio sem sabedoria, bom sem bondade,
poderoso sem poder"). Neste lugar de retiro para
onde você me convidou, nesta cidade de exílio
familiar onde sua mãe não cessa de morrer, no
litoral do Mediterrâneo, só pude trazer comigo,
para essas duas semanas, extratos do Cherubinischer Wandersmann, de Angelus Silesius, e os
manuscritos deste volume. A cada instante, eu me
pergunto se essa obra de Angelus Silesius diz
respeito à teologia negativa. Será que dispomos
de critérios seguros para decidir sobre a pertinência, virtual ou atual, de um discurso à teologia
negativa? Esta não é um gênero, em primeiro lugar
porque não é uma arte, uma arte literária, ainda
que, como Leibniz observava justamente a propósito de Silesius, trate-se aí também de "poesias
alemãs, aliás belas" e cheias de "metáforas difíceis". Existe, para retomar uma expressão de Mark
Taylor, uma teologia negativa "clássica"?3 Podemos duvidar e seguramente teremos motivos para
voltar a essa questão grave e sem limites. Se o
desdobramento conseqüente de tantos discursos
(lógicos, onto-lógicos, teo-lógicos ou não) conduz
inevitavelmente a conclusões cuja forma ou conteúdo tem parentesco com a teologia negativa,
onde estão as fronteiras "clássicas" desta? Em todo
caso, a conclusão (Belschlusz) deste livro, e ei-nos
aqui reconduzidos à questão do destinatário, é um
endereço último. Ela diz alguma coisa do fim do
16
próprio discurso e é um endereçamento ao amigo,
a extremidade do envio, da saudação ou do adeus:
Freund es ist auch genug. Imfall du meher wilt
lesen,
So geh und werde selbst die Schrifft und selbst
das Wesen
Amigo, já basta. Se quiseres ler além,
Vai, e torna-te tu mesmo o escrito e tu mesmo
a essência (VI, 263)-
Ao amigo, mais que à amiga, é pedido,
recomendado, ordenado, prescrito ir, pela leitura,
além da leitura: além, ao menos, da legibilidade
do legível atual, além da assinatura final — e, para
isso, escrever. Não escrever isto ou aquilo que cai
fora de sua escritura como uma nota, um nota bene
ou um post-scriptum que deixa, por sua vez, cair
a escritura atrás do escrito, mas se tornar ele
mesmo o escrito ou a Escritura, ele mesmo a
essência da qual a escritura terá tratado. Há mais
lugar, a partir daí, há mais lugar além, mas nada
mais nos é dito além, por um post-scriptum. Este
— o post-scriptum — será a dívida ou o dever. Ele
deverá, ele deveria ser reabsorvido em uma escritura que não seria outra senão a essência que não
seria outra senão o ser-amigo ou o devir-amigo do
outro. O amigo só se tornará aquilo que é, a saber,
o amigo, ele não se terá tornado o amigo, a não
ser no instante em que tiver lido isto, quer dizer,
além — a saber, aonde terá ido, e somente se vai
aí, além, para aí se exprimir, fazendo-se escritura
17
escrevendo. O devir (Werden), o devir-amigo, o
devir-escritura e a essência (Weseri) seriam aqui a
mesma coisa.
— Claro, mas essa essência (.Weseri) que,
ainda querendo ler, o amigo se tornaria na escritura, escrevendo-se, escriturando-se, não teria
sido nada antes desse devir, isto é, antes dessa
escritura prescrita ao amigo-leitor. Ela nasce do
nada e se encaminha para o nada. Pois, mais
acima, não dizia Silesius...
— Com que direito encadear esses aforismos, esses fragmentos sentenciosos ou esses
brilhos poéticos, como se formassem o tecido
contínuo de um silogismo? O Beschlusz final não
é a conclusão de uma demonstração, mas o adeus
de um envio. Cada fala é independente. Em todo
caso, você não pode logicamente ligá-las de
nenhuma maneira, sem colocar esse problema de
lógica, de forma, de retórica ou de poética. Você
não pode tratar essa peregrinação da escritura
como um tratado de filosofia ou de teologia e
nem mesmo como um sermão ou como um hino.
— Claro, mas naquilo que permanece o
mesmo livro, lia-se também:
Nichts werden ist GOtt werden.
Nichts wird was zuvor ist: wirstu nicht vor zu
nicht,
So wirstu nimmermehr gebohrn vom ewgen
Licht.
Tornar-se o Nada, é Deus tornar-se.
18
Nada se torna que seja de antemão: se tu não
te tornas (o) nada,
Jamais tu terás nascido da eterna luz (VI, 130).
Como pensar esse devir? Werden. ao mesmo
tempo nascimento e mudança, formação e transformação. Esse vir a ser do nada e como nada,
como Deus e como Nada, como o próprio Nada,
esse nascimento que se apresenta ele próprio sem
premissa, esse devir-o-mesmo como devir-Deus
— ou Nada —, eis o que parece impossível, mais
que impossível, o mais impossível possível, mais
impossível que o impossível se o impossível é a
simples modalidade negativa do possível.
— Esse pensamento parece estranhamente
familiar à experiência daquilo que chamamos a
"desconstrução". Longe de ser uma técnica metódica, um procedimento possível ou necessário,
expondo a lei de um programa e aplicando regras,
isto é, desdobrando possibilidades, a "desconstrução" foi freqüentemente definida como a própria
experiência da possibilidade (impossível) do impossível, do mais impossível, condição que divide
com o dom, 5 o "sim", o "vem", a decisão, o
testemunho, o segredo etc. E talvez a morte.
— O devir-nada, como devir-o-mesmo ou
como devir-Deus, o devir (Werden), como engendramento do outro, a partir do outro, eis o que,
segundo Angelus Silesius, é possível, mas como
mais impossível ainda que o impossível. Esse
"mais", esse além, esse hiper (über) introduz,
evidentemente, uma heterogeneidade absoluta na
19
ordem e na modalidade do possível. A possibilidade do impossível, do "mais impossível", que
enquanto tal é também possível ("mais impossível
que o impossível"), marca uma interrupção absoluta no regime do possível que, apesar disso,
permanece, se assim podemos dizer, no lugar.
Quando Silesius escreve:
Das überunmóglichste ist mòglich.
Du kanst mit deinem Pfeil die Sonne nicht
erreichen,
Ich kan mit meinem wol die ewge Sonn bestreichen.
O mais (que) impossível é possível.
Tu não podes com tua flecha atingir o sol,
Eu bem posso, com a minha, tomar sob meu
tiro o sol eterno (VI, 153).
O "über" de "überunmóglichste' pode, aliás,
significar tanto "o mais" quanto "o mais que": o
mais impossível ou o mais que impossível.
Em outra passagem:
Geh bin, wo du nicht kanst; sih, wo du sihest
nicht:
Hõr wo nichts schallt und klingt, so bistu wo
GOtt spricht.
Vai onde não possas, vê onde não vês:
Escuta onde nada estrepite nem ressoe, assim
estás
onde Deus fala (I, 199)-
20
A possibilidade do impossível, do "mais
impossível", do mais impossível que o mais impossível, isso lembra, a menos que não mostre, o
que Heidegger diz da morte: " die Môglichkeit der
O que
schlechthinnigen Daseinsunmòglichkeif.
é, para o Dasein, para sua possibilidade, pura e
simplesmente impossível, eis o que é possível, e
a morte é o nome. Eu me pergunto se aí se trata
de uma analogia puramente formal. E se a teologia
negativa falasse no fundo da mortalidade do Dasein? E de sua herança? Daquilo que se escreve
depois dele, segundo ele? Nós voltaremos a isso,
sem dúvida.
— Todas as místicas apofáticas podem também ser lidas como poderosos discursos sobre a
morte, sobre a possibilidade (impossível) da própria morte desse ser que fala e que fala daquilo
que leva, interrompe, nega ou aniquila sua fala,
assim como seu próprio Dasein. Entre a analítica
existencial do ser-à-morte ou do ser-para-a-morte,
em Sein und Zeit, e o que diz Heidegger sobre o
teológico, o teiológico e sobretudo acerca de uma
teologia na qual não aparece nem mesmo a palavra "ser",7 a coerência me parece profunda e a
continuidade, rigorosa.
— O que essa hiperimpossibílidade teria a
ver, na singular obscuridade desse céu, com a
amizade? Com o endereçamento ao amigo?
— As questões do endereço e da destinação,
do amor e da amizade (além mesmo das determinações da philia ou da caridade) poderiam con21
duzir-nos em inúmeras direções. No lugar que é
aqui o nosso, e no pouco tempo de que dispomos
neste verão, permita-me privilegiar uma, somente
uma. O que nos reúne aqui, nós dois, depois do
Colóquio de Calgary sobre a teologia negativa?
Nele, Mark Taylor se interroga freqüentemente
sobre a experiência daquilo que congrega ou
reúne, do gathering. Esse colóquio já aconteceu.
Nós não fomos. Um colóquio é um lugar aonde
se vai (um encontro, uma sinagoga onde nos
reunimos) para se dirigir a outros. Nesse colóquio
do qual não pudemos, apesar de nosso desejo,
participar diretamente, havíamos entretanto prometido, lembre-se, reunirmo-nos de uma certa
forma, com algum atraso, e por escrito: quer dizer,
depois do ato. Em todo caso, a possibilidade de
um colóquio — e, portanto, de falar entre si —
bem que se apresentou a nós, e o título comportava as palavras "teologia negativa". Esse projeto
somente pôde se apresentar sob certas condições.
Foi preciso desejar partilhar. O que aí já se pôde
partilhar? Quem se dirige então a quem? E o que
significa "amizade", nesse caso?
— Desde a partida, e desde a primeira
palavra de nossa promessa, lembre-se, acreditamos dever renunciar, por mil razões, a um postscriptum que fosse uma resposta longa e detalhada.
Tivemos, sobretudo, que renunciar a uma discussão original que estivesse à altura de tantas contribuições, cuja riqueza e cujo rigor havíamos
admirado, assim como a diversidade, e com as
quais ainda teremos muito a aprender e sobre o
22
que meditar. Qualquer resposta imediata seria
apressada e presunçosa e, na verdade, irresponsável e pouco " responsiva". Será preciso retardar
ainda (postponé) um verdadeiro post-scriptum.
— Aquilo ao que você parecia mais se ater,
dizia-me, era testemunhar uma gratidão cuja significação não deixava de ter relação com o que
aqui se chama teologia negativa, e que por sua
vez não corre o risco, não demais, de tornar-se
ingratidão, inversão que espreita todos os movimentos apofáticos. Além disso, você tinha, sem
dúvida, mais afinidade, no começo, uma afinidade
imediata, dada ou cultivada, com tal ou tal dos
discursos mantidos aqui...
— De que adianta negá-lo? Mas também que
adianta observar ou enfatizar? Essas partilhas, essas inclinações comuns ou essas trajetórias cruzadas aparecem quando da leitura de nossos textos
respectivos, em particular daqueles que estão
publicados aqui mesmo. E se não encontrei ainda
os demais participantes do colóquio, também é
verdade que minha amizade e minha admiração,
meu reconhecimento por Mark Taylor não se
separam de seu pensamento ou de seus escritos
— dentre os quais aquele que ele publica nas Atas
deste colóquio.
Apesar disso, gostaria de falar de uma outra
"comunidade" (palavra de que jamais gostei, por
causa daquilo que pode conotar: a participação,
ou até mesmo a fusão identificatória — vejo nela
tanto ameaças quanto promessas); gostaria de falar
23
de um outro estar-junto que não este, de uma outra
reunião de singularidades, de uma outra amizade,
ainda que esta lhe deva, sem dúvida, o essencial.
Quero dizer, a amizade que permite um tal encontro, e esse próprio polílogo, por meio do qual se
escrevem e se lêem aqueles para quem a "teologia
negativa", através do enigma de seu nome e de
sua original insignificância, significa ainda alguma
coisa e os leva a se dirigir uns aos outros, sob este
nome, neste nome, e a este título.
Como, hoje, pode-se falar — quer dizer, falar
junto, dirigir-se a alguém, prestar testemunho —
a respeito e em nome da teologia negativa? Como
isso pode acontecer hoje, hoje ainda, tanto tempo
depois das aberturas inaugurais da via negativa!
Seria a teologia negativa um "tópico"? Aquilo que
vem ainda a nós sob a designação doméstica,
européia, grega e cristã de teologia negativa, de
via negativa, de discurso apofático, em que seria
a oportunidade de uma tradutibilidade incomparável e ao princípio sem limite? Não de uma língua
universal, de um ecumenismo ou de um consenso
qualquer, mas de uma língua futura e mais partilhável do que nunca? Dever-se-ia perguntar o que
significa, em relação a isso, a amizade do amigo,
se a subtrairmos, como a própria teologia negativa, a todas as suas determinações dominantes no
mundo grego ou cristão , ao esquema fraternal
(fraternalista) e falocêntrico da philia ou da caridade, como de uma certa figura embargada da
democracia.
:,
— Amizade e tradução, então, e a experiência da tradução como amizade, eis com o que você
parece desejar que dialoguemos. É verdade que
dificilmente se imagina uma tradução, no sentido
corrente do termo, seja ela competente ou não,
sem algum philein, sem algum amor ou amizade,
sem alguma "aimancé', como talvez você dissesse, dirigido para a coisa, o texto ou o outro a ser
traduzido. Mesmo que o ódio possa aguçar a
vigilância de um tradutor e motivar uma interpretação desmistificadora, esse ódio revela ainda uma
forma intensa de desejo, de interesse ou mesmo
de fascinação.
— São as experiências da tradução, pareceme, que compõem este "Colóquio", e quase todos
os autores mostram isso. Diga-se de passagem,
uma tradução (versão não-original de um acontecimento textual que a terá precedido) partilha
também esse curioso estatuto do post-scriptum em
torno do qual giramos.
— No qual, melhor dizendo, debatemos, nós
nos debatemos. Em que a teologia negativa sempre corre o risco de parecer um exercício de
tradução? Um exercício puro e simples? E um
exercício em forma de post-scriptum? Em que esse
risco lhe dá também uma oportunidade?
Deixei a palavra "aimance" em francês porque recobre dois sentidos: o
de "imantação", de algo que atrai para si como se fora um ímã, e o de
"amante", naturalmente levado a amar, afetuoso, carinhoso. Se tivesse
traduzido a palavra ela teria perdido um de seus pólos de significação,
privilegiando uma única leitura e anulando o anagrama que se insere
no limite do texto original. (N.T.)
25
— Tornemos a partir dessa proposição, se
você quiser: "O que se chama 'teologia negativa'
em um idioma de origem greco-latina é uma
linguagem."
— Somente uma linguagem? Mais ou menos
que uma linguagem? Não é também o q u e interroga a essência ou a própria possibilidade da
linguagem e delas suspeita? Não é aquilo que, por
essência, excede a linguagem, de m o d o que a
"essência" da teologia negativa se manteria fora
da linguagem? Para além dela?
— Sem dúvida, mas o que se chama de
"teologia negativa", em u m idioma de origem
greco-latina, é uma linguagem, ao menos, q u e diz,
de um m o d o ou de outro, o que acabamos de
estabelecer a respeito da linguagem, isto é, de si
mesma. Como saltar para fora deste círculo?
— Segundo você, a partir de então, uma
contestação aceitável dessa proposição de tipo S
é P ("o que se chama de 'TN' ...é uma linguagem..."
etc.) não poderia tomar a forma de uma refutação.
Ela não poderia consistir e m criticar a falsidade,
mas em suspeitar do vago, da vacuidade ou da
obscuridade, em acusá-la de não poder determinar nem o sujeito nem o atributo desse julgamento, de nem mesmo efetuar a prova dessa douta
ignorância, n o sentido enobrecido de Nicolau de
Cusa, ou por certos defensores da teologia negaTambém conhecido como Nicolas de Cues (Nikolaus Krebs ou
Chrypffs), cardeal alemão, nascido em Kues (diocese de Treves)
(1401-1464). Secundou a ação dos papas na Alemanha e deixou uma
importante obra teológica e filosófica. (N.T.)
26
tiva. A proposição ("o que se chama de 'teologia
negativa'... é uma linguagem") não tem nenhuma
referência rigorosamente determinável: nem em
seu sujeito, nem em seu atributo, como acabamos
de dizer, mas nem mesmo em sua cópula. Pois
acontece que, por pouco que se saiba da dita
teologia negativa...
— Você confessa, então, que sabemos efetivamente alguma coisa dela, não falamos no vazio,
viemos depois desse saber, por mínimo e precário
que seja. Nós a.pré-compreendemos...
— Esta pré-compreensão seria, então, o fato
do qual deveríamos partir, sob cuja ótica estaríamos pós-colocados. Viemos depois do fato; e se as
possibilidades discursivas da via negativa estão,
sem dúvida, esgotadas, é isso que nos resta pensar.
Elas foram, aliás, rapidamente esgotadas, consistiram sempre em uma íntima e imediata exaustão
delas mesmas, como se não pudessem ter história.
Por isso a leveza do corpus de referência (neste
caso o Pèlerin chérubinique, por exemplo) ou a
rarefação dos exemplos não deveria ser um problema grave. Estamos na exemplaridade absoluta
como na aridez do deserto, pois a tendência
No sentido estrito, é o laço lógico que, em um julgamento predicativo,
une o sujeito ao predicado, isto é, o verbo ser. O termo, de origem
gramatical, foi generalizado para os julgamentos dos quais o verbo ser
está ausente, sob a condição de que exprimam uma relação entre os
termos. Alguns lógicos contemporâneos consideram essa generalização
abusiva e não vêem nada além de uma repetição de um "erro" da
filosofia grega, sempre preocupada em encontrar um conteúdo ou uma
realidade ontológica por trás de qualquer expressão lógica ou
simplesmente gramatical — mas é de um tal "erro" que, precisamente,
nasceu a metafísica como interrogação sobre o Ser. (N.T.)
Peregrino querubínico. Vide nota 2. (N.T.)
27
essencial é à rarefação formalizadora. O empobrecimento é obrigatório.
— Essas possibilidades discursivas estão esgotadas como possibilidades formais, sem dúvida,
e se você formalizar ao extremo os procedimentos
desta teologia. O que parece factível e tentador.
Então não lhe resta nada, nem mesmo um nome
ou uma referência. Você não pode falar de esgotamento, a não ser na perspectiva dessa formalização completa e colocando como extrínsecas a
essa completude formal ou conceituai essas "metáforas difíceis" que "se inclinam quase ao ateísmo", essa beleza poética, também, da qual fala
Leibniz a propósito de Angelus Silesius. Você
oporia, assim, uma forma à outra, a do formalismo
onto-lógico à da poética e permaneceria prisioneiro de uma oposição problemática entre a forma e
o conteúdo. Mas essa disjunção tão tradicional
entre o conceito e a metáfora, entre a lógica, a
retórica e a poética, entre o sentido e a linguagem
não seria um pré-julgamento filosófico que não
somente se pode ou se deve desconstruir, mas
com relação ao qual, em sua própria possibilidade,
o acontecimento nomeado "teologia negativa" terá
poderosamente contribuído para recolocar em
questão?
— Eu queria somente lembrar que nós já
pré-compreendíamos e que, portanto, escrevíamos depois de termos pré-compreendido a teologia negativa como uma "crítica" (não digamos, por
enquanto, uma "desconstrução") da proposição,
do verbo "ser" na terceira pessoa do indicativo e
28
de tudo aquilo que, na determinação da essência,
depende desse modo, desse tempo e dessa pessoa: em resumo, uma crítica da ontologia, da
teologia e da linguagem. Dizer "O que chamamos
de 'teologia negativa', em um idioma de origem
greco-latina, é uma linguagem" é, então, dizer
pouco, quase nada, talvez menos que nada.
— A teologia negativa quer dizer muito
pouco, quase nada, talvez outra coisa que não
umas poucas coisas. Daí seu inesgotável esgotamento...
— Conseqüentemente, permite-se falar desse factum aparentemente elementar, talvez indeterminado, obscuro ou vazio e, apesar disso,
pouco contestável, a saber, nossa pré-compreensão daquilo que se "chama de 'teologia negativa'..." etc? O que identificamos sob essas duas
palavras, hoje em dia, não seria, em primeiro lugar,
um corpus, ao mesmo tempo aberto e fechado,
dado, ordenado, um conjunto de enunciados reconhecíveis, seja em virtude do seu ar de família
(family ressemblancè), seja porque digam respeito
a um tipo lógico-discursivo regular, cuja recorrência se presta a uma formalização? Essa formalização pode se tornar mecânica...
— Tanto mais mecanizável e facilmente reprodutível, falsificável, exposta à contrafação e à
imitação fraudulenta, quanto mais o enunciado se
esvazia por definição, por vocação, de toda plenitude intuitiva. Kenose do discurso. Se seguimos
uma regra de tipo fenomenológico para distinguir
29
entre uma intuição plena e uma visada vazia ou
simbólica, obliteradora da percepção originária
que a sustenta, então os enunciados apofáticos
estão, eles devem estaráo lado do vazio e, portanto,
da repetição mecânica, ou até mesmo puramente
verbal de frases, sem querer-dizer intencional
atual ou pleno. Eles representam o que Husserl
identifica como o momento da crise (esquecimento da intuição originária e plena, funcionamento
sem efeito da linguagem simbólica, objetivismo).
Mas, ao revelar a necessidade originária e final
dessa crise, denunciando com base na linguagem
da crise os engodos da consciência intuitiva e da
fenomenologia, desestabilizam a própria axiomática da crítica fenomenológica, isto é, também
ontológica e transcendental. O vazio lhes é essencial e necessário. Se eles se preservam, é para o
momento da prece ou do hino. Mas esse momento
de preservação permanece estruturalmente exterior à instância puramente apofática, isto é, à
teologia negativa como tal, caso ela exista, no
sentido estrito, o que podemos às vezes duvidar.
O valor, a avaliação da qualidade, da intensidade
ou da força dos acontecimentos de teologia negativa diriam respeito, então, a essa relação que
articula esse vazio sobre a plenitude de uma prece
ou de uma atribuição (teo-lógica, teio-lógica ou
O termo visée é muito usado por Derrida e problemático para uma
tradução. Com efeito, fica difícil cobrir simultaneamente seus sentidos
sem apagar nenhum, ou mesmo sem polarizá-los. O neologismo visada
já foi anteriormente utilizado, e significa, segundo Le Petit Robert, 1.
Ação de dirigir a vista, o olhar (e por extensão uma arma, um
instrumento de óptica) para uma finalidade, um objetivo. 2 Fig. Direção
do espírito para um fim." (N.T.)
30
onto-lógica) negada, digamos, denegada. O critério é a medida de uma relação, e essa relação se
estende entre dois pólos, dos quais um deve ser
aquele da positividade de-negada.
— A que se deve essa temível mecanicidade,
a facilidade que pode haver em imitar ou fabricar
teologia negativa (ou também uma poesia da
mesma veia, temos vários exemplos)? Deve-se a
que, acredito, o próprio funcionamento desses
enunciados reside em uma formalização. Esta
abdica essencialmente, tende essencialmente a
abrir mão de qualquer conteúdo e qualquer significante idiomático, de qualquer apresentação ou
representação, de imagens e mesmo dos nomes
de Deus, por exemplo, em tal língua ou em tal
cultura. Em suma, a teologia negativa se deixa
abordar (pré-compreender) como um corpus amplamente arquivado de proposições cujas modalidades lógicas, a gramática, o léxico, a própria
semântica nos são já acessíveis, ao menos por
aquilo que nelas é determinável.
— De onde a possibilidade de uma monumentalização canonizante de obras que, obedecendo a leis, parecem dóceis às normas de um
gênero e de uma arte; repetem tradições, apresentam a si mesmas como iteráveis, influentes ou
influenciáveis, objetos de transferência, de crédito
e de disciplina. Pois aí existem mestres e discípulos. Lembre-se de Denys e de Timóteo. Aí existem
exercícios e formações, aí existem escolas tanto
na tradição mística cristã quanto em uma tradição
31
onto-teológica ou desontológica (mais "grega"),
em suas formas exotéricas ou esotéricas.
— Certamente, e já é um discípulo, por mais
genial que fosse, aquele que escrevia que não
somente Deus mas a deidade transpõe o conhecimento, que a singularidade do Deus desconhecido
transborda a essência e a divindade, frustrando
assim as oposições do negativo e do positivo, do
ser e do nada, da coisa e da não-coisa — e
transcendendo, de um só golpe, todos os atributos
teológicos:
Der unerkandte GOtt
Was GOtt ist weiss man nicht: Er ist nicht Licht,
nicht Geist,
Nicht Wahrheit, Einheit, Eins, nicht wass man
Gottheit heist:
Nicht Weissheit, nicht Verstand, nicht Liebe,
Wille, Gütte:
Kein Ding, kein Unding auch, kein Wesen, kein
Gemütte:
Er ist was ich, und du, und keine Creatur,
Eh wirgeworden sind was Er ist, nie erfuhr.
O Deus desconhecido.
O que é Deus, não o sabemos: Ele não é luz,
não é espírito.
Não é verdade, nem unidade, nem um, ele não é
aquilo que chamamos divindade:
Não é sabedoria, não é intelecto, não é amornem
querer nem bondade:
Nem uma coisa, muito menos uma não-coisa,
não é
uma essência, não é um coração:
Ele é aquilo que nem eu, nem tu, nem nenhuma criatura,
32
Antes de ter-se tornado aquilo que Ele é, jamais
conhecemos (IV, 21).
— A sentença seguinte se dirige justamente
a santo Agostinho como a um próximo, um mestre
e um predecessor que ele pode amigável ou
respeitosamente desafiar: "Pare, meu Agostinho:
antes que tenhas penetrado Deus até o fundo
(ergründeri), encontraremos o mar inteiro em uma
pequena fossa (Grübleiri)."
— Angelus Silesius tinha seu gênio próprio, mas já repetia: continuava, importava,
transportava. Ele transferia ou traduzia, em
todos os sentidos desse termo, porque já
pós-escrevia. Esse herdeiro guardava o arquivo, guardava na memória o ensinamento de
Christoph Kõler. Ele tinha lido Tauler, Ruysbroeck, Boehme e, sobretudo, Eckhart.
— Se eu o compreendo bem, nosso ponto
de partida (eis aí, sem dúvida, o a priori de
nosso a posteriori, a saber, esse post-scriptum
com o qual nos comprometa mos) é esse fato
surpreendente, esse já feito, esse fato pronto-.
enquanto que nega ou apaga tudo, enquanto
que procede à erradicação de todo predicado e
pretende habitar o deserto...
— O deserto, eis uma das belas e difíceis
metáforas das quais falava sem dúvida Leibniz,
mas me impressiona também sua recorrência ou,
dito de outra forma, a cunhagem típica que a
reproduz como um selo. Assim:
33
Man muss noch über GOtt
[...] Wo sol ich dann nun hin?
Ich muss noch über GOtt in eine wüsste ziehn.
Deve-se mesmo ir além de Deus
[...] Aonde devo ir?
Devo encaminhar-me para o deserto além de
Deus (I, 7).
Ou ainda:
Die Einsamkeit.
Die Einsamkeit ist noth: doch, sey nur nicbt
gemein:
So kanstu überali in einer Wüsten seyn.
A solidão.
A solidão é necessária, mas que te baste
não ser (em) público:
Assim, em todos os lugares, poderás estar em
um deserto (II, 117).
Em outros lugares, trata-se de "tempos desérticos" {in diser wüsten Zeit, III, 184). O deserto
não seria uma figura paradoxal da aporia? Não há
passagem traçada ou certa, não há, em todo caso,
estradas, somente pistas que não são vias confiáveis, os caminhos ainda não estão abertos, a
menos que a areia ainda não os tenha coberto.
Mas a via não-aberta não é também a condição da
decisão ou do acontecimento que consiste em
abrir a via, em transpor, portanto, ir além? A
transpor a aporia?
— Apesar desse deserto, então, aquilo que
chamamos teologia negativa cresce e se cultiva
34
como uma memória, uma instituição, uma história,
uma disciplina. É uma cultura, com seus arquivos
e sua tradição. Ela acumula as atas de uma língua.
Eis, em particular, o que sugeriria a frase: "Aquilo
que chamamos 'teologia negativa', em um idioma
de origem greco-latina, é uma linguagem." Não
adianta lembrar (é preciso justamente lembrar e
lembrar que isso prova a possibilidade da memória preservada) que a teologia negativa "consiste",
por meio de sua pretensão de renunciar a qualquer consistência, em uma linguagem que não
cessa de colocar à prova os próprios limites da
linguagem e, exemplarmente, aqueles da linguagem proposicional, teórica ou constativa...
— Com isso, ela seria não somente uma
linguagem, e um teste da linguagem, mas antes de
tudo a experiência mais pensante, a mais exigente,
a mais intratável da "essência" da linguagem: um
discurso sobre a linguagem, um "monólogo" (no
sentido heterológico que Novalis ou Heidegger dão
a essa palavra), no qual a linguagem e a língua falam
de si mesmas e constatam o que é Die Sprache
spricht. De onde essa dimensão poética ou ficcional,
às vezes irônica, sempre alegórica, da qual alguns
diriam ser somente uma forma, uma aparência ou
um simulacro... É verdade que, simultaneamente,
essa árida ficcionalidade tende a denunciar as imagens, as figuras, os ídolos, a retórica. É preciso pensar
em uma ficção iconoclasta.
— Não adianta dizer, então, que, além do
teorema e da descrição constativa, o discurso da
35
teologia negativa "consiste" em exceder a essência
e a linguagem; ao prestar testemunho, ele permanece.
— O que quer dizer aqui "permanecer"? Será
uma modalidade de "ser"?
— Não sei. Talvez isto, precisamente, que
essa teologia não seria nada...
— Não ser nada... Não estaria aí seu voto
secreto ou declarado? De que você acredita ameaçá-la, assim? Nossa discussão supõe ainda que essa
teologia seja alguma coisa (de determinável) e não
nada, e queira, de preferência, ser ou devir algo
em vez de nada. Ora, nós a ouvimos, ainda há
pouco, pretender o contrário...
— Questão de leitura ou de orelha. Em todo
caso, a teologia negativa não seria nada, simplesmente nada, se esse excesso ou esse excedente (em
relação à linguagem) não imprimisse alguma marca
sobre acontecimentos singulares de linguagem e não
deixasse algum resto sobre o corpo de uma língua...
— Um corpus, em suma.
— Algum traço resta diretamente nesse corpus, ele se torna esse corpus como sobrevivência
da apófase (mais que vida e mais que morte),
sobrevivência de uma autodestruição onto-lógicosemântica interna: terá havido rarefação absoluta,
o deserto terá acontecido, nada terá acontecido
além desse lugar. Claro, o "Deus desconhecido"
(Der unerkandte GOtt, IV, 21), o Deus irreconhecível ou não-reconhecido de que falávamos não
diz nada; dele, nada é dito que afirme...
36
— Salvo seu nome...
— Salvo o nome que não nomeia nada que
afirme, nem mesmo uma divindade (GOttheii),
nada cujo ocultamente desloque qualquer frase
que tente comparar-se a ele. "Deus" "é" o nome
desse desmoronamento sem fundo, dessa desertificação sem fim da linguagem. Mas o traço dessa
operação negativa se inscreve no e sobre e como
o acontecimento (isso que vem, isso que há e que
é sempre singular, isso que encontra nessa kenose
a condição mais decisiva de sua vinda ou de seu
surgimento). Há esse acontecimento, que resta,
mesmo se essa "restança" não for mais substancial,
mais essencial que esse Deus, mais ontologicamente determinável que esse nome de Deus do
qual se diz que não nomeia nada que seja, nem
isto, nem aquilo. A seu respeito diz-se até mesmo
que não é isso que há, no sentido de es gibt: ele
não é isso que dá, ele está além de todos os dons
(GOtt über alie Gaben, IV, 30).
—Não se esqueça de que isso é dito no decorrer
de uma prece. O que é a prece? Não, não é preciso
se perguntar "O que é a prece?", a prece em geral. É
preciso tentar pensá-la e, na verdade, fazer a experiência (de rezá-la, se assim podemos dizer, e transitivamente) por meio dessa prece, essa prece singular
na qual ou para a qual tende a prece em geral. Ora,
essa prece não pede nada, pedindo mesmo mais que
tudo. Ela pede a Deus que se dê ele mesmo, mais do
que dar o que quer que seja: dons: "Giebstu mirdich
nicht selbst, so hastu nichts gegeben" ("Se não te dás
tu mesmo a mim, não terás dado nada.") O que
37
interpreta ainda a divindade de Deus como dom
ou desejo de dar. E a prece é essa interpretação,
o próprio corpo dessa interpretação. No e sobre,
dizia você, isso implica, aparentemente, algum
topos...
— ... ou alguma khôra (corpo sem corpo,
corpo ausente, mas corpo único e lugar de tudo,
no lugar de tudo, intervalo, lugar, espaçamento).
Você também diria de khôra, como o fazia em um
murmúrio, um instante atrás, "salvo seu nome"?
Tudo em segredo se joga aqui. Pois essa localização desloca e desorganiza também nossos preconceitos onto-topológicos e, em particular, a ciência
objetiva do espaço. Khôra está lá, porém mais
"aqui" do que todo "aqui"...
— Você bem sabe, em quase todos seus
veios, judeu, grego, cristão ou islâmico, a via
negativa conjuga a referência a Deus, o nome de
Deus com a experiência do lugar. O deserto é
também uma figura do lugar puro. Mas a figuração
em geral diz respeito a essa espacialidade, a essa
localidade da palavra.
— Sim, Angelus Silesius escreve isto da
palavra idas Wort), isto é, também da palavra
divina, e algumas pessoas traduzem este Wort por
Deus, simplesmente:
Der Ort ist dass Wort
Der ort und's Wort ist Eins, und wãre nicht der
ort,
(Bey Ewger Eungkeit!) es wãre nicht dass Wort.
38
O lugar é a palavra
O lugar e a palavra, é um só, e não fosse o
lugar,
(de toda eterna eternidade!), a palavra não
existiria (I, 205).
— Esse lugar nada tem de objetivo, nem de
terrestre. Ele não diz respeito a nenhuma geografia, geometria ou geofísica. Não é isso dentro do
qual se encontram um sujeito ou um objeto. Ele
se encontra em nós, de onde a necessidade equívoca de reconhecê-lo e ao mesmo tempo dele se
desfazer:
Der Orth ist selbst in dir.
Nicht du bist in dem Orth, der Orth der ist in
dir-.
Wirfstu jhn auss, so steht die Ewigkeit schon
hier.
O lugar, ele mesmo, está em ti.
Não és tu que estás no lugar, o lugar está
em ti.
Rejeita-o, e eis aqui já a eternidade (I, 185).
— O aqui {ontem) da eternidade se situa lá,
já {schon): já lá, ele situa esse lance ou essa
rejeição (Auswerfen é difícil de traduzir: ao mesmo
tempo distanciamento, exclusão, rejeição, mas
antes de mais nada lance que coloca fora, que
produz o fora e, portanto, espaça, distancia o lugar
de si mesmo: Khôrd). É partindo desse já que o
post-scriptum encontra seu lugar — e fatalmente.
39
— Como em resposta, já é em correspondência com o que Mark Taylor terá escrito do "pretext
ofthe text" which "is a before that is (always) yet
to come'. Ou ainda quando ele brinca, sem brincar
com a palavra, a palavra por palavra, tal como ela
acontece ou elege domicílio na língua do outro:
" What is the Ort ofthe Wort?A°
— O acontecimento permanece simultaneamente na e sobre a linguagem, portanto, dentro e
na superfície, uma superfície aberta, exposta, imediatamente transbordada, fora de si mesma. O
acontecimento permanece na e sobre a boca,
sobre a ponta da língua, como se diz em francês,
ou sobre a ponta dos lábios ultrapassados por
palavras que se dirigem para Deus. Elas são
levadas, simultaneamente exportadas e deportadas, por um movimento deferência (transferência,
referência, différance, ) para Deus. Elas nomeiam
Deus, falam dele, falam-no, falara-lhe, deixam-no
falar em si, deixam-se levar por ele, (se) fazem
referência àquilo mesmo que o nome supõe nomear para além dele mesmo, o nomeável além do
A palavra différance foi deixada em francês por constituir-se em um
neografismo proposto por Derrida, que pretende, assim, questionar a
tradição fonocêntrica, dominante desde antes de Platão até os estudos
lingüísticos de Saussure. Essa "marca muda", o a de différance (em
oposição à grafia normal, différence), pode ser escrita ou lida, mas não
falada, dado que o som é o mesmo. Existe uma outra tradução, aceita
por M. Schnaiderman e R. Janine Ribeiro em Gramatologia, São Paulo,
Perspectiva, 1973, que adotam a grafia "diferencia", proposta por M.B.
Marques Nizza da Silva, em A escritura e a diferença, São Paulo,
Perspectiva, 1971. Não concordamos com essa tradução, pois há uma
alteração sonora bastante perceptível na palavra, o que contradiz o
questionamento proposto por Derrida; poderíamos, entretanto, pensar
em um outro neografismo, "diferensa", que tem o mesmo som da grafia
normal. (N.T.)
40
nome, o nomeável inomeável. Como se fosse
preciso ao mesmo tempo salvar o nome e tudo
salvar, exceto o nome, salvo o nome, como se fosse
preciso perder o nome para salvar aquilo que
porta o nome, ou aquilo na direção do qual se
dirige por meio do nome. Mas perder o nome não
é incriminá-lo, destruí-lo ou feri-lo. Pelo contrário,
é simplesmente respeitá-lo: como nome. Isso quer
dizer pronunciá-lo, o que eqüivale a atravessá-lo
na direção do outro, que ele nomeia e que o porta.
Pronunciá-lo sem pronunciá-lo. Esquecê-lo, chamando-o, (se) lembrando-o, o que eqüivale a
chamar o outro ou dele se lembrar...
— Sim, mas então é preciso cessar de submeter a linguagem e o nome na linguagem (aliás,
o nome, o nome próprio ou o nome por excelência estará na linguagem? E o que quereria dizer
essa inclusão?) a alguma generalidade, figura ou
esquema topológico qualquer. Falamos aqui na e
sobre uma linguagem que, mesmo sendo aberta
por essa ferência, diz da inadequação da referência, a insuficiência ou o enfraquecimento do saber,
sua incompetência quanto àquilo do qual se diz o
saber. Uma tal inadequação traduz e trai a ausência
de medida comum entre a abertura, a inauguração, a revelação, o conhecimento, de uma parte,
e, de outra, um certo segredo absoluto, não-provisório, heterogêneo a qualquer manifestação.
Esse segredo não é uma reserva de saber potencial, uma manifestação em potência. E a linguagem da ab-negação ou da renúncia não é negativa:
isso não somente porque ela não enuncia sob o
41
modo da predicação descritiva e da proposição
indicativa simplesmente simulada de uma negação
("isto não é aquilo"), nias porque denuncia da
mesma forma que renuncia; e denuncia impondo,
prescrevendo transbordar essa influência, ordenando: é preciso fazer o impossível, é preciso ir
(Geh, Vá!) aí aonde não se pode ir. Paixão do lugar,
ainda. Eu diria em francês: il y a lieu de (o que
quer dizer "é preciso") ir lá aonde é impossível ir.
Lá, para o nome, para além do nome no nome.
Para (aquele ou aquela) que resta — salvo o nome.
Ir aonde é possível ir não seria um deslocamento
ou uma decisão; seria o desenvolvimento irresponsável de um programa. A única decisão possível passa pela loucura do indecidível e do
impossível: ir aonde {wo, Ort, Wort) é impossível
ir. Lembre-se:
Geh hin, wo du nicht kanst: sih, wo du sihest
nicht:
Hór wo nichts schallt und klingt, so bistu wo
GOtt spricht (I, 199).
— Segundo você, essa denúncia normativa
sobre um fundo de impossibilidade, esse doce
furor contra a linguagem, essa cólera ciumenta da
linguagem em si mesma e contra si mesma é esta
paixão que deixa a marca de uma cicatriz nesse
lugar onde o impossível terá lugar, não é? Lá, do
outro lado do mundo? O outro lado do mundo
ainda é o mundo, dentro do mundo, o outro
mundo ou o outro do mundo, tudo, salvo o
mundo?
42
— Sim, o ferimento está aí, lá. Haveria outra
coisa, a não ser o vestígio de um ferimento? E outra
coisa que jamais tenha ocorrido? Você conhece
uma outra definição do acontecimento?
— Mas nada é mais ilegível do que um
ferimento, também. Suponho que, aos seus olhos,
a legibilidade e a ilegibilidade não sejam diferentes
nesse lugar. Segundo você, é esse rastro, em todo
caso, que vem a ser legível, torna e se torna legível:
na e sobre a linguagem, isto é, no limite da
linguagem...
— Somente há borda, somente há limite na
linguagem... Quer dizer, referência. Dado que nunca
há nada a não ser referência, uma referência irredutível, pode-se também concluir que o referente —
tudo, salvo o nome — é ou não é indispensável.
Toda a história da teologia negativa, aposto, se
desenrola nesse breve e lesto axioma.
— "No limite da linguagem" quereria então
dizer: "no limite como linguagem", no mesmo e
duplo movimento: esquivamento e transbordamento. Mas como o momento e a força, os movimentos
da injunção têm lugar acima da borda, do outro lado
do mundo, como tiram sua energia de já ter tido
lugar— mesmo que a título de promessa — o texto
legível-i-legível, a sentença teológico-negativa resta
como um post-scriptum. É originariamente um postscriptum, vem após o acontecimento...
Era francês, au bord du langage, que neste caso cobre os sentidos de
"orla, extremidade, beirada, margem, borda, limite", sempre
referindo-se a algo que está no limite do dentro/fora. (N.T.)
43
— ...um acontecimento, se bem compreendo, que teria a forma de selo, como se fosse um
funcionário, testemunha sem testemunha, na guarda de um segredo, o acontecimento selado por
uma assinatura indecifrável, uma sigla, um desenho prematuro.
— O acontecimento selado correspondente
à experiência de um traço (linha esticada, Zug,
borda, transbordamento, relação ao outro, Zug,
Bezug, ferência, referência a outra coisa que não
a si, diferensa), o pós-fato é, efetivamente, a vinda
de uma escritura após a outra: post-scriptum...
— O rastro dessa escritura ferida que carrega
os estigmas de sua própria inadequação: assinada,
assumida, reivindicada...
— ...de sua própria desmedida, também; de
sua hybris assim contra-assinado: isso não pode
ser uma marca simples e idêntica a si ...
— ...como se houvesse jamais...
— Isso não pode ser uma assinatura inapagada, inapagável, invulnerável, legível por aquilo
que ela é sobre uma superfície, da mesma forma
que um suporte semelhante a si. O próprio suporte
permanece improvável. Essa marca acontece depois de ter acontecido, em um leve, discreto, mas
potente movimento de des-locação, sobre a borda
instável e dividida disso que chamamos linguagem. A própria unidade disso que chamamos
linguagem torna-se aí enigmática e incerta.
44
— E assim a frase "O que chamamos de
'teologia negativa' [...] é uma linguagem" diz ao
mesmo tempo muito e muito pouco. Ela não tem
mais a inteligibilidade de um axioma seguro, ela
não dá mais a possibilidade de um consenso, a
carta de um colóquio ou o espaço seguro de uma
comunicação.
— Não a desacreditemos, ainda. Conservemo-la, provisoriamente, como um fio condutor,
como se tivéssemos necessidade dela e o desejo
de ir mais longe.
— Todos os teologemas apofáticos não têm
o estatuto, ou melhor, o movimento, a instabilidade desta trajetória? Não se parecem com flechas,
com traços, com um tiro simultâneo de flechas
destinadas a apontar na mesma direção? Mas uma
flecha só é uma flecha, não é jamais um fim em si
mesma. Ela é tudo, salvo aquilo a que ela visa,
salvo aquilo que ela atinge, e até mesmo aquilo
que ela fere; aquilo que a faz faltar até que ela
toque e que assim fica salvo...
— Silesius o diz bem, quando fala justamente
da possibilidade do mais impossível ou do mais
que o mais impossível {Das überunmôglichste ist
mõglich). Ele o precisa, lembre-se:
Tu não podes, com tua flecha, atingir o sol,
Eu bem posso, com a minha, tomar sob meu
tiro o sol eterno (VI, 153).
— Retenhamos esta proposição ("Isso que
chamamos 'teologia negativa' [...] é uma lingua45
gem"). Tentemos interrogá-la em seu querer-dizer
mais manifesto, at face value. E retornemos ao
tema do philein, digamos melhor, da aimance
como transferência ou tradução.
— Esses temas não são localizáveis, mas
deixemos passar.
— Façamos como se o fossem, permite-me?
A aparência nos leva a crer que a expressão
"teologia negativa" não tem nenhum equivalente
estrito fora de duas tradições, a filosofia ou a
onto-teologia de proveniência grega, a teologia
neo-testamentária ou a mística cristã. Essas duas
trajetórias, esses dois trajetos assim flechados se
cruzariam no centro daquilo que chamamos teologia negativa. Tal cruzamento...
— Tudo aqui parece crucial: o cruzamento
desses dois caminhos, a kreuzweise Durchstreichung sob a qual Heidegger rasura a palavra ser
(da qual sua teologia futura teria, segundo ele, que
abrir mão) e o Gemer ao qual ele então pretende
remeter, a cruz cristã sob a qual Marion rasura a
palavra "Deus" (forma, talvez, de salvar o nome
de Deus, subtraí-lo a qualquer idolatria onto-teológica: Deus sem o ser)...
— É verdade. Em todo caso, a expressão
"teologia negativa" nomeia mais freqüentemente
uma experiência discursiva que se situa em um
dos ângulos formados pelo cruzamento dessas
duas linhagens. Mesmo se uma linha é então
atravessada (crossed), ela está situada nesse cruzamento, nesse lugar de cruzamento. Quaisquer
46
que sejam as traduções, analogias, transposições,
transferências, metáforas, jamais nenhum discurso
se deu expressamente esse título (teologia negativa, método apofático, via negativa) nos pensamentos de cultura judaica, muçulmana, budista.
— Você tem certeza de que esse título jamais
tenha sido reivindicado por nenhum autor, para
seu próprio discurso, mesmo nas tradições que
você invoca?
— Queria somente sugerir que, na zona
cultural ou histórica em que a expressão "teologia
negativa" aparece como uma espécie de nomeação doméstica e controlada, aquela, em suma,
dessa filosofia cristã da qual Heidegger dizia que
o conceito era tão louco e contraditório quanto o
do círculo quadrado, a apófase sempre representou uma espécie de hipérbole paradoxal.
— Eis um nome bem filosófico e bem grego.
— Dessa hipérbole paradoxal, retenhamos
somente o traço necessário a uma breve demonstração. Sejamos mais modestos com uma hipótese
de trabalho. Ei-la aqui. O que permite localizar a
teologia negativa em um sítio historiai e identificar
seu idioma próprio é também o que a arranca de
seu enraizamento. O que lhe confere um lugar
próprio é o que a expropria e a engaja também
em um movimento de tradução universalizante.
Dito de outra maneira, é o que a compromete no
elemento do discurso mais compartilhável, como por
exemplo o desta conversa ou deste colóquio, em
que se cruzam temáticas cristãs e não-cristãs (judai47
ca, muçulmana, hindu, budista etc), filosóficas e
não-filosóficas, européias e não-européias etc.
— Você vê nesse engajamento algo que se
aparente a essa singular amizade da qual falava há
pouco com reconhecimento — e a propósito da
gratidão?
— Não sei. Tudo isso é muito prematuro, tão
precipitado que pode ser um post-scriptum. Se me
servi de palavras tão filosóficas e gregas, assim
como "hipérbole paradoxal", foi, em primeiro
lugar e entre outras coisas, para assinalar uma
passagem bem conhecida da República de Platão.
Hipérbole nomeia o movimento de transcendência que carrega ou transporta além do ser ou da
"sendidade", epekeina tes ousias. Esse movimento
excessivo, o tiro dessa flecha em deslocamento
convida a dizer: X "é" além daquilo que é, do ser
ou da "sendidade". Que X seja aqui o Bem, pouco
importa neste instante, pois analisamos a possibilidade formal de dizer: X "é" além daquilo que "é",
X é sem (o) ser. Esta hipérbole anuncia. Ela
anuncia em um duplo sentido: ela assinala uma
possibilidade aberta, mas também provoca, por aí,
a abertura. Seu acontecimento é ao mesmo tempo
revelador e produtor, post-scriptum e prolegômeno, descrição que vem depois disso mesmo que
ela descreve e, apesar disso, escritura inaugural.
Ele anuncia isso que vem e faz vir aquilo que virá
doravante em todos os movimentos em hiper,
ultra, além, beyond, über, que precipitarão o
discurso ou, em primeiro lugar, a existência. Essa
precipitação é sua paixão.
48
— Você diz "existência", se compreendo
bem, para não dizer "sujeito", "alma", "espírito",
"ego" e mesmo Da-sein. E, apesar disso, o Dasein
é aberto ao ser enquanto ser pela possibilidade de
ir além do presente disso que é. Paixão: transcendência.
— Claro, e Heidegger compreende assim
o Dasein; ele descreve o movimento de sua
transcendência citando explicitamente o epekeina tes ousias platônico. Mas parece, então, compreender o além como o além da totalidade do
ente, e não como além do próprio ser, no
sentido da teologia negativa. Ora, os movimentos hiperbólicos de estilo platônico, plotiniano
ou neo-platônico não somente precipitarão para
além do ser ou de Deus enquanto que é (sendo
supremo), mas para além do próprio Deus enquanto nome, enquanto nomeante, nomeado ou
nomeável, enquanto referência que aí se faz a
alguma coisa. O próprio nome parece, às vezes,
não mais estar aí a salvo...
— ...o além como além de Deus não é,
aliás, um lugar, mas um movimento de transcendência que transpõe o próprio Deus, o ser, a
essência, o próprio ou o si mesmo, o Selbst ou
o Selfáe Deus, a divindade de Deus (GOttheit)
— no qual ele transpõe tanto a teologia positiva
quanto aquilo que Heidegger propõe chamar de
teiologia, o discurso sobre a divindade ítheiori)
do divino. Angelus Silesius, que dizia ainda,
você se lembra:
49
Man muss noch über GOtt.
[...]
Ich muss noch über GOTTin eine wüste ziehn
(I, 7).
mas também:
Die über GOttheit.
Was man von GOttgesagt, das gnügetmir noch
nicht:
Die über GOttheit ist mein Leben und mein
Liecht.
A sobre-deidade.
O que foi dito de Deus ainda não me basta:
A sobre-deidade é minha vida e minha luz (I,
15).
— Levado adiante, esse movimento dissocia
radicalmente o ser e o saber, a existência e o
conhecimento. É como uma fratura do cogito
(agostiniano ou cartesiano) enquanto me dá a
saber não somente que, mas o que e quem eu sou.
Ora, essa fratura vale tanto para mim quanto para
Deus; ela estende sua fissura na analogia entre
Deus e eu, o criador e a criatura. Desta vez, a
analogia não repara, não reconcilia: ela separa,
agrava a dissociação.
Man weíss nicht was man ist.
Ich weiss nicht was ich bin. Ich bin nit was ich
weiss:
Ein ding und nit ein ding: Ein stüpffchin und
ein kreiss.
Não sabemos o que somos.
50
Eu não sei o que sou. Eu não sou o que
sei:
Uma coisa e uma não-coisa: um ponto e um
círculo (I, 5).
E eis aqui, um pouco depois, a analogia, o
"mé'
Ich bin wie Gott, und Gott wie ich.
Ich bin so gross ais GOtt: Er ist ais ich so klein;
Er kan nicht über mich, ich unter Ihm nicht
seyn.
Eu sou como Deus, e Deus como eu.
Eu sou tão alto quanto Deus: Ele é tão pequeno
quanto eu;
Ele não pode estar acima de mim, eu não posso
estar abaixo dele (I, 10).
— Impressiona-me essa aliança insólita de
dois poderes e de duas vozes nesses aforismos
poéticos ou nessas declarações incontestáveis,
sobretudo quando o eu se promove assim, só com
Deus e ao mesmo tempo como o exemplo que se
autoriza a falar para cada um, a ousar testemunhar
para o outro (a testemunhar para a testemunha),
sem esperar resposta, nem temer" a discussão.
Contrariamente ao que dizíamos no início de
nossa conversa, há também um monologismo ou
solilóquio nesses discursos imperturbáveis: nada
parece inquietá-los. Esse dois poderes são, por um
lado, o de uma crítica radical, de uma hipercrítica
depois da qual nada mais parece assegurado, nem
a filosofia nem a teologia, nem a ciência, nem o
bom senso, nem a menor doxa; e, de outro lado,
inversamente, como estamos colocados além de
51
qualquer discussão, a autoridade dessa voz sentenciosa que produz ou reproduz maquinalmente
seus vereditos em um tom da mais dogmática
segurança: nada, nem ninguém pode contradizêla, dado que estamos na paixão: a contradição
assumida e o paradoxo reivindicado.
— O duplo poder dessas duas vozes não
deixa de ter relação com o double bindda ex-apropriação ou do enraizamento erradicador de que
eu falava um momento atrás. De um lado, com
efeito, essa teologia lança ou porta a negatividade
como princípio de autodestruição no âmago de
qualquer tese; de qualquer modo, ela suspende
qualquer tese, toda crença, toda doxa...
— No qual sua épokhè tem alguma afinidade
tanto com a skepsis do ceticismo quanto com a
redução fenomenológica. E, contrariamente ao
que dizíamos aqui, instantes atrás, a fenomenologia transcendental, na medida em que passa pela
suspensão de qualquer doxa, de qualquer posição
de existência, de qualquer tese, habita o mesmo
elemento que a teologia negativa. Uma seria uma
boa propedêutica para a outra. Bastante surpreendente, não é?
— Sim, mas não é incompatível com o que
dizíamos sobre a linguagem da crise. Deixemos
isso de lado. De uma parte, portanto, essa
colocação entre parênteses ou entre aspas da
própria tese arruina cada proposição ontológica
ou teológica e, na verdade, cada filosofema
enquanto tal. Nesse sentido, o princípio da
52
teologia negativa, em um movimento de rebelião
interna, contesta radicalmente a tradição de onde
parece provir. Princípio contra princípio. Parricídio e desenraizamento, ruptura de pertinência,
interrupção de uma espécie de contrato social,
aquele que dá direito ao Estado, à nação, e mais
geralmente à comunidade filosófica como comunidade racional e logocêntrica. A teologia negativa
daí se subtrai depois do ato, na torsão ou na
conversão de um segundo movimento de desenraizamento, como se uma assinatura estivesse não
subscrita, mas contradita em um codicilo ou no
remorso de um post-scriptum embaixo no contrato. Essa ruptura de contrato programa toda uma
série de movimentos análogos e recorrentes, toda
uma superoferta do necplus ultra, que se recorre
a epekeina tes ousiase, às vezes, sem se apresentar
como teologia negativa (Plotino, Heidegger, Lévinas).
Mas, por outro lado, e por isso mesmo, nada
é mais fiel do que essa hipérbole de injunção
onto-teológica originária. O post-scriptum permanece uma subscrição, mesmo se ele denega. E,
como em toda assinatura humana ou divina, é
preciso o nome. A menos que, como se sugeriu
há pouco, o nome seja aquilo que se apaga diante
daquilo que nomeia, e então "é preciso o nome"
quereria dizer que o nome faz falta: ele deve fazer
falta, é preciso um nome que faça falta. Chegando
então a se apagar, ele será salvo. No momento
mais apofático, quando se diz: "Deus não é",
"Deus não é nem isto nem aquilo, nem aquilo nem
53
seu contrário" ou "o ser não é" etc, mesmo então
trata-se de dizer o ente tal como é, em sua verdade,
seja ela meta-metafísica, meta-ontológica. Trata-se
de manter a promessa de dizer a verdade a
qualquer preço, de prestar testemunho, de se
render à verdade do nome, à coisa mesma, tal
como deve ser nomeada pelo nome, isto é, além
do nome. Ela salva o nome. Trata-se de constatar
a transcendência referencial cuja via negativa é
somente uma via, uma abordagem metódica, uma
série de etapas. Uma prece, também, e um testemunho de amor, mas um "eu te amo" sobre a via
da prece e do amor, sempre a caminho. Angelus
Silesius, entre outros, especifica isso, quando adiciona, em uma espécie de nota ou de post-scriptum à sentença "Man muss noch über GOtf (I, 7):
"Isto é, além de tudo aquilo que se conhece de
Deus e que se possa pensar dele, segundo a
contemplação negativa (nach der verneinenden
beschawung), sobre a qual cf. os místicos."
— Você não diria, portanto, que o Pèlerin
chérubinique depende da teologia negativa.
— Não, certamente não de forma segura,
pura e integral, se bem que lhe deva muito. Mas
também não o direi de nenhum texto. Inversamente, não conheço nenhum que não seja em nada
contaminado pela teologia negativa, mesmo entre
aqueles que aparentemente não têm, não querem
O autor faz aqui um jogo com a palavra francesa "sauf (Elle saufle
norri) — que permite uma leitura dupla e simultânea — de "salva" ou
de "excetua" o nome —, que dá título a este livro, em um movimento
de espelhamento do questionamento que faz. (N.T.)
54
ou não acreditam ter nenhuma relação com a
teologia em geral. A teologia negativa está em toda
parte, mas jamais está sozinha. É também por isso
que ela pertence, sem completá-lo, ao espaço da
promessa filosófica ou onto-teológica que parece
renegar: constatar, dizíamos há pouco, a transcendência referencial da linguagem, dizer Deus tal
como ele é, além de suas imagens, além desse
ídolo que pode ainda ser o ser, além daquilo que
é dito, visto ou conhecido dele; responder ao
verdadeiro nome de Deus, ao nome ao qual Deus
responde e corresponde além do nome sob o qual
lhe conhecemos ou que ouvimos. É com este fim
que o procedimento negativo recusa, nega, rejeita
todas as atribuições inadequadas. Ela o faz em
nome de uma via da verdade e para ouvir o nome
de uma voz justa. A autoridade de que falávamos
há pouco lhe vem da verdade em nome e na via
da qual ergue a voz — e que fala por sua boca:
aletheia como segredo esquecido que se vê assim
desvendado, ou verdade como adequação prometida. De qualquer modo, desejo de dizer o que é
próprio a Deus e unir-se a ele.
— Mas qual é esse próprio, se o próprio
desse próprio consiste em se expropriar, se o
próprio do próprio é justamente não ter nada de
próprio? O que aqui quer dizer "é"?
— A essa indagação, Silesius jamais deixa de
expor, justamente, o nome de Deus:
GOtts Eigenschafft.
Was ist GOtts Eigenschafft? sich ins Geschópff
55
ergiessen
Allzeit derselbe seyn, nichts haben, wollen,
wissen*
O próprio de Deus.
Qual é o próprio de Deus? Se manifestar
a criação,
Ser em todos os tempos o mesmo, nada ter,
querer, saber* (II, 132).
Mas o post-scriptum adiciona uma precisão
filosófica decisiva: um remorso reinscreve essa
proposição na ontologia que opõe a essência ao
acidente, a necessidade à contingência:
'Entenda isto accidentaliter QVerstehe accidentaliter) ou de modo contingente {oder zuffãliger weisé); pois o que Deus quer e sabe, ele o
sabe essencialmente {wesentlicb). Não há, portanto, mais nada (a título de propriedade [ou
de qualidade: mit Eigenschaffff).
Deus "não tem, portanto, mais nada" e se dá,
como o Bem de Plotino (Enêiada, VI, 7-15-16-17),
é também o que não tem, dado que ele se mantém
não somente além do ser, mas além de seus dons
(kai tou didomenou to didon epekeina èri). E dar
não é engendrar nem dar nascimento.
Ora, essa revolução, simultaneamente interior e exterior, que transporta a filosofia, a metafísica onto-teológica, para a outra borda de si
mesma, é também a condição de sua tradutibilidade. Saindo assim de si mesma, faz apelo a uma
comunidade que transborde sua língua e coloque
em marcha um processo de universalização.
56
— O que a faz sair de si mesma já lhe viria
do fora, do fora absoluto. Por isso, a revolução
não poderia ser somente intestina.
— É, efetivamente, o que ela diz, o que
dizem os místicos e os teólogos da apófase, quando falam de uma transcendência absoluta que se
anuncia por dentro. Tudo isso é a mesma coisa
ou, indiferentemente, o outro. O que acabamos
de dizer sobre a Grécia filosófica vale também para
a tradição ou a tradução grega da revelação cristã.
Por um lado, no interior, se podemos dizer, de
uma história do cristianismo...
— Mas desde há pouco, tenho a impressão
de que é a própria idéia de uma identidade ou de
uma interioridade a si de toda tradição {a metafísica, a onto-teologia, a fenomenologia, a revelação cristã, a própria história, a história do ser, a
época, a tradição, a identidade a si em geral, o um
etc.) que se encontra contestada em sua raiz.
— De fato, e a teologia negativa é uma das
manifestações mais notáveis dessa diferença a si.
Digamos, então: no que se poderia acreditar sex o
interior de uma história do cristianismo (e tudo o
que lemos de Silesius é, de um lado a outro,
sobredeterminado pelos temas da revelação cristã,
e outras citações o teriam demonstrado a cada
instante), o intento apofático quer também se ver
independente da revelação, de toda linguagem
literal da "acontecimentalidade" neo-testamentária, da vinda de Cristo, da Paixão, do dogma da
Trindade etc. Um misticismo imediato, mas sem
57
intuição, uma espécie de kenose abstrata o libera
de qualquer autoridade, de qualquer narrativa, de
qualquer dogma, de qualquer crença — e, no
limite, de qualquer fé determinável. No limite, ele
permanece, depois do fato, independente de qualquer história do cristianismo, absolutamente independente, destacado mesmo, talvez absolvido, da
idéia do pecado, liberado mesmo, talvez resgatado, da idéia de redenção. De onde a coragem e a
dissidência, potencial ou atual, desses mestres
(pense em Eckhart), de onde a perseguição de que
foram às vezes vítimas, de onde sua paixão, de
onde esse perfume de heresia, esses processos,
essa marginalidade subversiva da corrente apofática na história da teologia e da Igreja.
— Assim, o que analisamos há pouco, essa
ruptura do contrato social, mas como processo de
universalização (uma certa espécie de espírito das
Luzes), é o que se reproduziria regularmente...
— Você poderia dizer quase normalmente,
inevitavelmente, tipicamente...
— ...como dissidência ou heresia, pharmakos a excluir ou a sacrificar, uma outra figura da
paixão. Pois é verdade que, por outro lado, e
segundo a lei do mesmo double bind, o desenraizamento dissidente pode pretender cumprir a
vocação ou a promessa do cristianismo, naquilo
que ela tem de mais histórico, respondendo assim
ao apelo e ao dom de Cristo, tal como ressoaria
em todos os lugares, nos séculos dos séculos, e
tornando-se responsável por testemunhar diante
58
dele, isto é, diante de Deus (muito mais Aufklàrung do que Luzes, mas deixemos assim...)
Além disso, escondida ou visível, metafórica
ou literal (e sob a ótica da vigilância apofática, essa
retórica sobre a retórica se move como em um
estado de sonambulismo dogmático), a referência
ao Evangelho é, na maior parte das vezes, constitutiva, inapagável, prescrita. Lembre-se, por exemplo, dessa "figura" da interiorização cristã, que
aqui faz do coração um Monte das Oliveiras, como
são Paulo fala, em um outro lugar, da circuncisão
do coração:
Der Oelberg.
Sol dicb dess Herren Angst erlósen von bescbwerden,
So muss dein Hertze vor zu einem Oelberg
werden.
O Monte das Oliveiras.
Se a angústia do Senhor deve livrar-te de teus
pecados,
Teu coração deve primeiramente tornar-se um
Monte das Oliveiras (II, 81).
— Mas você não acredita que um certo
platonismo — ou certo neo-platonismo — seja
aqui indispensável e congênito? "Platão, para preparar para o cristianismo", dizia Pascal, em quem
se discernia, às vezes, o gênio ou a máquina da
dialética apofática...
— Como em todos os lugares. E quando
Silesius nomeia os olhos da alma, como não
reconhecer uma veia da herança platônica? Mas
59
isso pode se encontrar alhures e sem filiação.
Podemos sempre afirmar e negar uma filiação, a
afirmação ou a assunção da dívida herdada como
de-negação, eis aí a dupla verdade da filiação,
como a da teologia negativa.
— Mas não é mais difícil re-platonizar ou
re-helenizar o criacionismo? Ora, este freqüentemente pertence à estrutura lógica de muitos discursos apofáticos. A esse título, seria também o
limite histórico, no duplo sentido desta palavra: o
limite na história e o limite como história. Como
aquele do inferno, o conceito de criatura é indispensável a Angelus Silesius. Quando nos diz "Vai
aonde não podes ir", é para desenvolver o título,
de alguma forma, dessa máxima, a saber: "GOtt
ausser Creatuf', "Deus fora da criatura" (I, 199).
Se o próprio de Deus é não ter propriedades (ele
é tudo, salvo o que tem), isso provém, como
entendemos, de que de Deus tudo provém: Deus
se perde, se propaga "na criação" (ins Geschôpf)...
— Mas se isso, em lugar de ser um dogma
criacionista, significasse que a criação quer dizer
produção expropriante e que em todo lugar onde
há ex-apropriação há criação? Se isso fosse somente uma redefinição do conceito corrente de criação? Uma vez mais, deveríamos dizer de qualquer
coisa ou de qualquer pessoa o que se diz de Deus
ou de outra coisa. Pensamento de qualquer um a
respeito de qualquer um ou de qualquer coisa,
não importa. Responderíamos assim, da mesma
forma, à questão: "Quem sou eu?", "Quem é
você?", "O que é o outro?", "O que é qualquer um
60
ou qualquer coisa como outro?", "O que é o ser
do ente como qualquer outro?" Todos os exemplos
são bons, mesmo se todos mostram que são
singulares, ainda que desigualmente bons. O "qualquer" do "qualquer um" ou "qualquer coisa"
abriria o caminho para uma espécie de serena
impassibilidade, para uma insensibilidade superaguda, se posso assim me expressar, capaz de
vibrar com tudo, precisamente por causa desse
fundo de indiferença que expõe a qualquer diferença. É assim que entendo, às vezes, a tradição
da Gelâzenheit, dessa serenidade que deixa ser
sem indiferença, desampara sem abandonar, a
menos que abandone sem esquecer ou esqueça
sem esquecer — e cuja insistência podemos
seguir de Mestre Eckhart a Heidegger 11 .
— Não tenho nenhuma objeção a essa hipótese. Você descreve essa Gelassenheit evitando
falar de amor, e sem dúvida o amor é aqui somente
uma figura particular de tudo que esse desamparo
pode afetar (sem, contudo, afetá-lo). Mas por que
não reconhecer aí o amor mesmo, a saber, essa
renúncia infinita que de alguma forma rende-se ao
impossível? Render-se ao outro, e é impossível,
daria no mesmo que se entregar indo em direção
ao outro, vir a ele, mas sem transpor o limiar, e a
O verbo affecter é muito usado pelo autor, que joga sempre com sua
plurivocidade; pode ter vários sentidos, todos presumivelmente
presentes ao mesmo tempo para um leitor francês. Para que possam ser
levados em conta nas construções possíveis aqui, eis outras escolhas:
1. Simular, ostentar; ambicionar; amar; revestir. 2. Destinar, designar. 3Emocionar, tocar. Além disso, como sugerem M. Schnaiderman e RJ.
Ribeiro, em Gramatologia, São Paulo, Perspectiva, 1973, Derrida joga
também com a possibilidade do sentido de afecção. (N.T.)
61
respeitar, a amar mesmo a invisibilidade que mantém o outro inacessível. A render armas. (E render,
desta vez, não significa mais restituir, reconstituir
uma integridade, reunir no pacto ou no simbólico). Render-se e render armas sem derrota, sem
memória nem projeto de guerra: fazer com que
essa renúncia não seja também um ardil da sedução ou um estratagema suplementar do ciúme.
Aqui, ainda, tudo permaneceria intacto — e o
amor, um amor sem ciúme que deixaria ser o
outro, depois da passagem de uma via negativa.
Esta, a menos que eu a interprete livremente
demais, não constitui somente um movimento ou
um momento de desprendimento, uma ascese ou
uma kenose provisória. O desprendimento deve
permanecer em ação (portanto, renunciando à
ação) para que o outro (amado) permaneça o
outro. O outro é Deus ou qualquer um, precisamente, uma singularidade qualquer, a partir do
momento em que qualquer outro é qualquer
outro. Pois o mais difícil, ou até mesmo impossível, habita aí: aí onde o outro perde seu nome ou
pode mudá-lo para se tornar qualquer outro.
Passível e impassível, a Gelassenheit se exerce em
nós, ela é exercida nessa indiferença pelo outro
qualquer. Ela move-se aí, e move sem mover. Isso
explica, aliás, se não um certo quietismo," ao
Mas também -brinca, diverte-se, funciona, arrisca-se; joga, arremessa,
compromete; ilude; zomba; desempenha (um papel)»: mais uma vez,
os sentidos superpostos permitem direcionar a leitura para diversos
caminhos. (N.T.)
Do latim quies, quietude ou repouso completo, o quietismo é uma forma
de misticismo cristão que designa a total passividade da alma feliz de
ser unida a Deus, transformada por Ele e Nele. Proposta por Molinos,
62
menos o papel que a Gelassenheit desempenha no
pensamento de Silesius, e, antes de mais nada, o
que o próprio jogo, a paixão do jogo, não deixa
de jogar no pensamento da criação divina:
GOtt spíelt mit dem Geschõpffe.
Diss alies ist ein Spiel, dass Ihr die GOttheit
macht:
Sie hat die Creatur umb Ihret willn erdacht.
Deus brinca com a criação.
Tudo isso é um jogo ao qual a deidade se
permite
Ela imaginou a criatura para Seu prazer (II, 198).
— A teologia negativa somente pode, então,
apresentar-se como uma das formas mais brincalhonas da criatura que participa desse jogo divino,
pois "eu" sou "como" Deus, lembre-se. Permanece
a questão daquilo que dá lugar a esse jogo, a
questão do lugar aberto por esse jogo entre Deus
e sua criação ou, em outros termos, pela ex-apropriação. Na máxima "GOtt ausser Creatuf, o
ad-vérbio que diz o lugar (wó) resume todo o
enigma. Vá aonde você não pode ir, no impossível, é, no fundo, a única forma de ir ou de vir. Ir
aonde é possível não é ir, é já estar lá e se paralisar
na in-decisão do inacontecimento: "Geb hin wo du
nicht kanst: sih, wo du sihest nicht: Hòr wo nichts
schallt und klingt, so bistu wo GOtt spricht." Esse
pregava um estado contínuo de quietude e união com Deus, para que
a alma se tornasse indiferente a qualquer obra e até mesmo à sua própria
salvação. Molinos foi condenado pela Igreja em 1687.CN.T.)
63
advérbio de lugar (wó) diz o lugar do verbo de
Deus, de Deus como verbo, e Der Ort ist dass
Wort(J, 205) afirma de fato o lugar como palavra
de Deus.
— Esse lugar é criado por Deus? Faz parte
do jogo? Ou será o próprio Deus? Ou ainda o que
precede, para torná-los possíveis, Deus e seu Jogo?
Dito de outra maneira, resta saber se esse lugar
não-sensível (invisível e inaudível) é aberto por
Deus, pelo nome de Deus (o que talvez ainda
fosse outra coisa) ou se é mais "antigo" do que o
tempo da criação, do que o tempo, simplesmente,
do que a história, a narrativa, a fala etc. Resta saber
(além do saber) se o lugar é aberto pelo chamamento (a resposta, o acontecimento que chama a
resposta, a revelação, a história) ou se permanece
impassivelmente estrangeiro, como Khôra, a tudo
que toma lugar e é substituído e joga nele, inclusive aquilo que se nomeia Deus. Chamemos o
teste de Khôra...
— Temos escolha? Por que escolher entre
os dois? É possível? Mas é verdade que esses dois
"lugares", essas duas experiências do lugar, essas
duas vias são, sem dúvida, de uma heterogeneidade absoluta. Um lugar exclui o outro, um
transpõe o outro, um dispensa o outro, um é,
absolutamente, sem o outro. Mas o que os relaciona ainda um ao outro é essa estranha preposição, sem, esse estranho sem-com, ou com-sem
(withoui). A lógica dessa junção ou desse ajuntamento (conjunção-disjunção) permite e interdita,
ao mesmo tempo, aquilo que poderíamos chamar
exemplarismo. Cada coisa, cada ente, você, eu, o
outro, cada X, cada n o m e e cada n o m e de Deus
p o d e tornar-se o exemplo de outros X substituíveis. Processo de formalização absoluta. Cada
outro é cada outro. Um n o m e de Deus, e m uma
língua, uma frase, uma prece, torna-se u m exemplo d o nome e dos nomes de Deus e e m seguida
dos nomes em geral. Ilfaut escolher o melhor dos
exemplos (e é necessariamente o b e m absoluto,
o agathon, que é, então, epekeina tes ousias), mas
é o melhor enquanto exemplo: pelo que é e pelo
que não é, pelo que é e pelo que representa,
substitui, exemplifica. E o "il faut" (o melhor) é
também u m exemplo para todos os "il faut" que
há e que pode haver.
"Il faut" não quer dizer somente é necessário,
mas, em francês, etimologicamente, "cela manque", ou "fait défaut ". A falta ou privação jamais
está distante.
— Se esse exemplarismo prescreve, ele u n e
e separa ao mesmo tempo, desloca o melhor como
o indiferente, tanto o melhor quanto o indiferente:
por um lado, em uma via, uma eternidade profunda e abissal, fundamental, mas acessível ao messianismo em geral, à narrativa teleo-escatológica
e a uma certa experiência ou revelação histórica
(ou historiai); por outro lado, em outra via, a
intemporalidade de u m abismo sem fundo n e m
superfície, uma impassibilidade absoluta (nem a
É preciso. (N.R.)
Respectivamente: isso falta, faz falta. (N.R.)
65
vida, nem a morte) que dá lugar a tudo aquilo que
ela não é. De fato, dois abismos.
— Mas os dois abismos de que fala Silesius
são dois exemplos do primeiro abismo, esse que
você acaba de definir em primeiro lugar, se bem
que ele não seja, em absoluto, exatamente o
"primeiro". Silesius escreve:
Ein Abgrund rufft dem andern
DerAbgrund meines Geists rufft jmme mit Geschrey
Den Abgrund GOttes an: Sag welcher tieffersey?
Um abismo chama outro
O abismo de meu espírito apela com seu
clamor
O abismo de Deus: dize, qual é o mais profundo? (I, 68)
— É justamente esse singular exemplarismo
que ao mesmo tempo enraíza e desenraíza o
idioma. Cada idioma (por exemplo, a onto-teologia grega ou a revelação cristã) pode testemunhar
por si mesmo e por aquilo que ele não é (ainda
ou jamais será), sem que esse valor de testemunho
(martírio) seja totalmente determinado pelo dentro
do idioma (martírio cristão, por exemplo). Aí,
nesse testemunho ofertado não a si, mas ao outro,
produz-se o horizonte de tradutibilidade — portanto, de amizade, de comunidade universal, de
descentramento europeu, para além dos valores
de philia, de caridade, e tudo o que pode ser
associado a isso, para além mesmo da interpretação européia do nome da Europa.
66
— Você quer insinuar q u e é sob essa condição que se p o d e organizar colóquios internacionais e interculturais sobre a "teologia negativa" (eu
colocaria, agora, essa expressão entre aspas)?
— Por exemplo. De qualquer m o d o , é preciso pensar na possibilidade historiai e anti-historial desse projeto. Você teria imaginado u m tal
colóquio há somente u m século? Mas o que parece
possível se torna, por isso mesmo, infinitamente
problemático. Esse duplo paradoxo se parece com
uma dupla aporia: negação e re-afirmação simultâneas da onto-teologia e da metafísica gregas,
desenraizamento e expansão do cristianismo, na
Europa e fora da Europa, n o próprio momento em
que as vocações, como nos indicam certas estatísticas, parecem se enfraquecer...
— Penso no que ocorre na própria Europa, em
que o papa apela para a constituição ou a restauração
de uma Europa unida na cristandade — que seria
sua própria essência e sua destinação. Ele tenta
demonstrar, no decorrer de suas viagens, que a
vitória sobre os totalitarismos do Leste é obtida graças
e em nome do cristianismo. No decorrer da chamada
guerra do Golfo, as democracias ocidentais coalizadas freqüentemente mantiveram u m discurso cristão,
mesmo falando do direito internacional. Haveria
coisas demais para dizer aqui a esse respeito, e esse
não é o tema do colóquio.
— Por u m lado, essa negação c o m o reafirmação parece acorrentar duplamente o impasse
logocêntrico da domesticidade européia (e a ín67
dia, sob este ponto de vista, não é o outro absoluto
da Europa). Mas, por outro lado, é também aquilo
que, operando sobre a borda aberta dessa interioridade ou dessa intimidade, deixa a passagem,
deixa ser o outro.
— Deixar, eis uma palavra difícil de
Como a traduzirás? Por "to leavé', como
que não tardará a vir daqui a pouco,
deveremos nos deixar (eu o deixo, eu
leavé), ou então "to lef?
traduzir.
na frase
quando
parto, /
— É ao idioma alemão que aqui recorreremos. Silesius escreve na tradição da Gelassenheit,
que vai de Eckhart, como notamos há pouco, a
Heidegger. É preciso tudo deixar, deixar toda
"qualquer coisa" por amor de Deus e, sem dúvida,
deixar o próprio Deus, abandoná-lo, isto é, ao
mesmo tempo deixá-lo e (mas) deixá-lo (ser para
além de ser-qualquer coisa). Exceto seu nome —
que é preciso calar aí aonde ele próprio vai para
chegar, no seu próprio apagamento:
Dass etwas muss man lassen.
Mensch so du Etwas liebst, so liebstu nichts
fürahr:
Gott ist nicht diss und dass, drumb lass dass
Etwas gar.
O qualquer coisa, é preciso deixá-lo.
Derrida usa aqui quitter e laisser, mas sempre no sentido de "deixar».
Contudo, laisser pode ser lido como -não intervir, consentir, permitir;
abandonar, relachar; reservar, abandonar; retirar; perder; ceder; legar,
transmitir; cessar- etc. E quitter tem, como outras acepções, «liberar,
renunciar; romper; ir, partir; emigrar, expatriar, mudar; deixar; tirar» etc.
Escolhi sempre a tradução -deixar» por ser recorrente na frase e nas
idéias que coloca. (N.T.)
68
Homem, se tu amas qualquer coisa, então tu
não amas nada verdadeiramente.
Deus não é isto e aquilo, abandona então para
sempre
o qualquer coisa (I, 44).
ou ainda
Die geheimste Gelassenheit.
Gelasseinheitfãht GOtt: GOtt aberselbstzulassen,
Ist ein Gelassenheit die wenig Menschen fasen.
O abandono mais secreto.
O abandono é capaz de apreender Deus; mas
abandonar o próprio Deus,
Eis um abandono que poucos homens são
capazes de apreender (II, 92).
— O abandono dessa Gelassenheit, o abandono a essa Gelassenheit não exclui o prazer ou o gozo,
ao contrário, provoca-os. Ele abre o jogo de Deus
(de Deus e com Deus, de Deus consigo e com a
criação); ele abre uma paixão ao gozo de Deus:
Wie kan man GOttes geniessen.
GOtt ist ein Einges Ein, wer seiner wilgeniessen,
Muss sich nicht weninger ais Er, in Ihn einschliessen.
Como se pode gozar Deus.
Deus é um Um único; quem quiser gozá-Lo
Deve, não menos que ele, fechar-se Nele (I, 83).
— Deixar a passagem ao outro, ao completamente outro é hospitalidade. Uma dupla hospitalidade: aquela que tem a forma de Babel (a
construção da torre, o apelo à tradução universal,
69
mas também a violenta imposição do nome, da
língua e do idioma) e aquela (uma outra, a mesma)
da desconstrução da torre de Babel. Os dois
desígnios são movidos por um certo desejo de
comunidade universal, para além do deserto de
uma árida formalização, isto é, para além da
própria economia. Mas os dois devem tratar com
aquilo que elas pretendem evitar: o próprio intratável. O desejo de Deus, Deus como o outro nome
do desejo trata, no deserto, com o ateísmo radical.
— A ouvi-lo, tem-se cada vez mais o sentimento de que deserto é o outro nome, senão o
próprio lugar do desejo. E o tom às vezes oracular
da apófase, há pouco aludíamos a isso, ressoa
freqüentemente em um deserto, o que não quer
dizer a mesma coisa que pregar no deserto.
— O movimento na direção da língua universal oscila entre o formalismo ou a tecno-cientificidade mais pobre, mais árida, a mais desértica,
de fato, e, por outro lado, uma espécie de colméia
universal de segredos invioláveis, de idiomas que
não se traduzem jamais, a não ser como selos
intraduzíveis. Nessa oscilação, a "teologia negativa" é tomada, compreendida e compreensiva ao
mesmo tempo. Mas a narrativa babélica (construção
e desconstrução, simultaneamente) é ainda uma
história. Por demais cheia de sentidos. Aqui, o
limite invisível passaria menos entre o projeto
babélico e sua desconstrução do que entre o lugar
babélico (acontecimento, Ereignis, história, revelação, escato-teleologia, messianismo, endereço,
destinação, resposta e responsabilidade, constru70
ção e desconstrução) e "alguma coisa" sem coisa,
como uma indesconstrutível Khôra, aquela que se
precede ela mesma no teste, como se fossem
duas, ela e seu duplo: o lugar que dá lugar a
Babel seria indesconstrutível, não como uma
construção cujas fundações fossem seguras, ao
abrigo de qualquer desconstrução interna ou externa, mas como o próprio espaçamento da desconstrução. É aí que isso se passa e que há essas
"coisas" que chamamos, por exemplo, a teologia
negativa e seus análogos, a desconstrução e seus
análogos, este colóquio e seus análogos.
— O que você quer dizer, apoiando-se nessas "analogias"? Que há uma chance singular na
transferência ou na tradução daquilo do que a
teologia negativa seria uma espécie de analogon
ou de equivalente geral, na tradutibilidade que
arranca, mas que também devolve esse analogon
à sua economia grega ou cristã? Que essa possibilidade seria a de uma singularidade que faz atualmente algo diferente de se perder na comunidade?
— Talvez. Mas eu não falaria ainda de comunidade ou de singularidade humana, nem mesmo antropo-teocêntrica, nem mesmo de um Gevier
do qual aquilo que se chama "animal" seria um
mortal passado sob silêncio. Sim, a via negativa
seria talvez, atualmente, a passagem do idioma no
deserto mais comum, como a possibilidade do
direito e de um outro tratado de paz universal
(para além do que se chama, hoje em dia, o direito
internacional, essa coisa muito positiva, mas ainda
tão tributária do conceito europeu do Estado e do
71
direito, portanto, tão fácil de ser usada por Estados
particulares): a possibilidade de uma promessa e
de um anúncio, em todo caso.
— Você chegaria a dizer que há, atualmente,
uma "política" e um "direito" da teologia negativa?
Uma lição jurídico-política a ser tirada da possibilidade dessa teologia?
— Não, não a tirar, não a deduzir como de
um programa, de premissas ou de axiomas. Mas
não haveria mais "política", "direito" ou "moral"
sem essa possibilidade, essa mesma que nos obriga,
doravante, a colocar estas palavras entre aspas.
Seu sentido terá estremecido.
— Mas você admite, ao mesmo tempo, que
"sem" e "não sem" sejam as palavras mais difícies
de dizer e de ouvir, as mais impensáveis ou as mais
impossíveis. O que quer dizer Silesius, por exemplo, quando nos deixa a herança desta máxima:
Kein Todt ist ohn ein Leben.
Nenhuma morte é sem vida (I, 36).
ou, melhor ainda:
Nichts lebet ohne Sterben.
GOttselber, wennErdirwil leben, muss ersterben:
Wie dánckstu ohne Tod sein Leben zuererben.
Nada vive sem morrer.
O próprio Deus, se quiser viver por ti, deve
morrer:
Como tu pensas, sem morte, herdar sua
vida? Cl, 33).
72
— Já se escreveu algo mais profundo sobre
a herança? Entendo isso como uma tese sobre o
que quer dizer herdeiro. Tanto dar o nome quanto
recebê-lo. Salvo —
— Sim, como o "sem", a herança, a filiação,
se você preferir, é a coisa mais difícil de pensar e
de "viver", de "morrer". Mas não se esqueça de
que essas máximas de Silesius, principalmente
aquelas que as cercam imediatamente (I, 30, 31,
32, 34 etc), têm um sentido cristão, e os postscripta
das máximas 31 e 32 ("Deus morre e vive em nós.
Eu não morro nem vivo: Deus mesmo morre em
mim" etc.) citam são Paulo para explicar como se
deve ler. Eles aprendem a ler lendo são Paulo, e
não de outra maneira. Um post-scriptum de leitura
ou de auto-interpretação cristã pode comandar
toda a perspectiva do Pèlerin chérubinique, e de
todos os "sem", inclusive o "GOtt mag nichts ohne
micb" (I, 96), inclusive o " GOtt ist ohne Willen" (I,
294) e, inclusive, queira Heidegger ou não, o
"Ohne Warumb" de "DieRosistohn warumb..." (1,
289)- Se Heidegger não quer, é preciso que escreva
um outro post-scriptum, o que é sempre possível,
e apresente uma outra experiência da herança.
A dificuldade do "sem" se propaga naquilo
que se chama ainda a política, a moral ou o direito,
que são tanto ameaçados quanto prometidos pela
apófase. Tome o exemplo da democracia, da idéia
de democracia, da democracia a-vir (nem a Idéia
no sentido kantiano, nem o conceito atual, limitado e determinado da democracia, mas a democracia como herança de uma promessa). Seu caminho
73
talvez passe atualmente, no mundo, por, isto é,
através das aporias da teologia negativa que acabamos de analisar tão esquematicamente.
— Como um caminho pode passar por aporias?
— Que seria um caminho sem aporias?
Haveria uma via sem isso que rasga a via onde
esta não é aberta, esteia ela barrada ou ainda
dissimulada na não-via? Não posso pensar uma via
sem a necessidade de decidir aí onde a decisão
parece impossível. Nem uma decisão, e portanto
uma responsabilidade, aí onde a decisão já é
possível e programável. E falaríamos, poderíamos
somente falar dessa coisa? Haveria uma voz para
isso? Um nome?
— Reconheça que então a possibilidade de
falar ou de andar parece igualmente impossível.
Em todo caso, tão difícil que essa passagem pela
aporia parece inicialmente (talvez) reservada, tal
como um segredo, para poucos. Esse esoterismo
parece estranho para uma democracia, mesmo
para essa democracia a-vir, que você não define,
da mesma forma que a apófase não define Deus.
Seu a-vir seria ciumentamente pensado, velado,
quase ensinado por poucos. Muito suspeito.
— Compreenda-me, trata-se de manter uma
dupla injunção. Dois desejos concorrentes dividem a teologia apofática, à borda do não-desejo,
ao redor do abismo e do caos de Khôra: o de ser
compreendido por todos (comunidade, koine) e
o de guardar ou confiar o segredo nos limites
bastante estritos daqueles que o entendem bem,
74
como segredo, e são, portanto, capazes ou dignos
de guardá-lo. O segredo, assim como a democracia ou o segredo da democracia, não deve, aliás
não pode ser confiado como herança a qualquer
um. Ainda o paradoxo do exemplo: qualquer um
(exemplo qualquer: amostragem) deve também
dar o bom exemplo. Compreenda-me, quando
digo isso, cito ainda Silesius, nessa espécie de
post-scriptum que ele adiciona à máxima sobre "o
silêncio bem-aventurado" (Das seelige Stilleschweigen. I, 19). Trata-se de bem compreender um
silêncio, como aliás a Gelassenheit:
Wie seelig ist der Mensch, der weder uni noch
weiss!
Bem-aventurado o homem que nem quer, nem
sabe!
E eis aqui a Nota Bene em post-scriptum-.
Der GOtt (versteh mich recht) nicht gibet Lob
noch Preiss.
A Deus (compreenda-me bem) (ele) não concede nem
louvores nem glória.
E você se lembra de que "poucos homens"
estão prontos a apreender a Gelassenheit exemplar, aquela que não apreende somente, mas sabe
abandonar Deus (II, 92). O segredo reservado, o
mais refinado, o mais raro é o de uma Gelassenheit
e não de outra, desta aqui, e não de outra que se
75
lhe assemelhe, desse deixar-a-outra-aqui e não da
outra. De onde seria dada (pelo quê? por quem?)
essa serenidade do abandono, essa que se ouviria
ainda, para além de todo saber, a não dar a Deus,
nem mesmo Adeus, nem mesmo em seu nome?
— Dar um nome é ainda dar? É dar alguma
coisa? E outra coisa, sempre, que não um cognome, Deus ou Khôra, por exemplo...
— Pode-se duvidar, a partir do momento em
que não somente o nome não é nada, ou em todo
caso não é a "coisa" que nomeia, não é o "nomeável" ou o renomado, mas corre também o risco de
encadear, assujeitar ou comprometer o outro, de
ligar o chamado, de chamá-lo a responder antes
de qualquer decisão ou qualquer deliberação,
antes mesmo de qualquer liberdade. Paixão determinada, aliança tanto prescrita quanto prometida.
Apesar disso, se o nome jamais pertence, originariamente, e em todo rigor, a quem o recebe, já não
mais pertence, desde o primeiro momento, a
quem o dá. Mais do que nunca, segundo a fórmula
que assombra nossa tradição, de Plotino a Heidegger, que não o cita, a Lacan, que não cita nem um
nem outro, o dom do nome dá aquilo que ele
não tem, aquilo em que consiste talvez, antes de
mais nada, a essência, isto é, para além do ser, a
inessência do dom.
— Uma última questão. Como já se entrevê
talvez melhor, Angelus Silesius não representa
o todo, nem mesmo o melhor exemplo da
76
teologia negativa "clássica" ou canônica. Por que
reconduzir tudo a ele?
— É preciso acreditar aqui no acidente ou
na contingência de uma história: uma probabilidade
autobiográfica, se quiser, que me ocorre neste
verão. Dado tal livro, o Pèlerin chérubinique
(quase, excertos somente), escolhi levá-lo comigo
a este lugar de família, para velar uma mãe que
docemente nos deixa, e que não sabe mais nomear. Silesius começa a me ser mais familiar,
embora permanecendo desconhecido, e amigável.
Voltei a ele nestes últimos tempos, como em
segredo, por causa de sentenças que não citei
hoje. Além disso, ele ocupa pouco lugar na viagem
(70 páginas). A teologia negativa, nós o dissemos
suficientemente, não é também a formalização
mais econômica? A maior potência do possível?
Uma reserva de linguagem quase inesgotável em
tão poucas palavras? Literatura inexaurivelmente
elíptica, taciturna, críptica, obstinadamente retraída a qualquer literatura e, apesar disso, inacessível
aí mesmo onde parece se manifestar, exasperação
de um ciúme que a paixão enleva para além de si
mesma, acreditaríamos ter sido feita para o deserto
ou para o exílio. Ela mantém o desejo na expectativa e, dizendo sempre muito ou muito pouco,
ela o deixa a cada vez, sem deixá-lo jamais.
77
NOTAS
1. "BeijenenMystiherngibteseinigeStellen, die ausserordentlich kühn sind,
voll von schwiertgen Metaphern und beinahe zur Gottlosigkeit hinneigend, sowie ich Gleisches bisweilen in den deutschen — im übrigen
schõnen — Gedichten eines gewissen Mannes bemerkt habe, der sich
JohannesAngelusSilesius nenní..."Leibniz, carta a Pacius, 28 de janeiro
de 1695 (Leibnitii opera, Dutens, VI, p. 56). Citado por Heidegger, em
Der Satzvom Grund, Neske, 1957, p. 68.
2. Silesius, La Rose est sans pourquoi (excertos do Pèlerin chérubinique,
tradução de Roger Munier, Paris, Artfuyen, 1988). Modifico quase
sempre a tradução e reproduzo a versão original em alemão antigo, tal
como se acha publicada na edição completa do Cherubiníscber Wandersmann, por Henri Plard, Paris, Aubier, 1946 (edição bilíngüe).
Algumas das máximas citadas remetem a essa edição e não se encontram nos excertos apresentados em La Rose est sans pourquoi por Roger
Munier, que publica igualmente, por outro lado, uma edição integral
sob o nome de UErrant chérubinique (Paris, Planète, 1970, Prefácio de
Roger Laporte).
3. Mark Taylor, "nO nOt nO", O.C., pp. 176 e 186 (veja a advertência).
4. Cf. principalmente "Psyché, inventions de lautre", em Psyché, inventions
de lautre, Paris, Galilée, 1987, p. 59 e passim.
5. Cf. J. Derrida, Donner le temps, 1. La fausse monnaie, Paris, Galilée,
1991 (inúmeras referências sobre esse assunto estão aí reunidas, pp.
9-10.
6. Sein und Zeit, § 50, p. 250. Sobre este tema heideggeriano, cf. Aportes
Cmourir— sattendre aux "limites de Ia vérité") (a ser publicado, Galilée,
1993).
7. Cf. "Comment ne pas parler", O.C., pp. 590 ss.
8. O.C., por exemplo, pp. 168 e 187.
9. Cf. Jacques Derrida, "The politics of friendship", The Journal ofPhilosophy, 35 (11), novembro de 1988. Nele se encontra o resumo muito
esquemático de uma pesquisa em curso sobre a história e os traços
maiores — ou canônicos — do conceito de amizade.
10. O.C., pp. 174-175.
11. Cf. "Nombre de oui", em Psyché, Inventions de lautre, op. cit., pp. 646 ss.
12. Sobre Plotino, cf. mais acima, p. 83- Sobre Heidegger e Lacan, cf. Donner
le temps, op. cit, pp. 12-13, nota 1.
78
NOTA DO EDITOR FRANCÊS
Cada um dos três ensaios, Paixões, Salvo o nome, Khôra,
forma uma obra independente e pode ser lido enquanto tal.
Se, todavia, foi julgado oportuno publicá-los simultaneamente é porque, apesar da origem específica de cada um deles,
o fio de uma mesma temática os atravessa. Eles formam uma
espécie de Ensaio sobre o nome — em três capítulos ou três
tempos. Três ficções também. Seguindo os sinais que, em
silêncio, os personagens de tais ficções dirigem uns aos
outros, podemos ouvir ressoar a questão do nome, aí onde
ela hesita no limiar da evocação, da demanda ou da promessa, antes ou depois da resposta.
O nome: Que se chama assim? Que se entende sob o nome
de nome? E o que acontece quando se dá um nome? O que
se dá, então? Não se oferece uma coisa, não se entrega nada
e, apesar disso, alguma coisa advém que volta a dar, como
havia dito Plotino a respeito do Bem, aquilo que não se tem.
O que acontece, sobretudo quando é preciso soòrenomear,
re-nomeando aí onde, justamente, o nome vem a faltar? O
que faz do nome próprio uma espécie de sobrenome, de
pseudônimo ou de criptônimo ao mesmo tempo singular e
singularmente intraduzível?