DOI: https://doi.org/10.22409/cadletrasuff.v31i61.45507
Coletivos: poesia e endividamento
Collectives: poetry and indebtedness
Eduardo Coelho1
Resumo:
É importante destacar como o vocabulário financeiro
se infiltrou na poesia brasileira contemporânea de
jovens autores, em relação direta ou indireta com o
problema do endividamento. Não por acaso, esse léxico
da financeirização da vida foi se ampliando à medida que
o neoliberalismo avançava durante os anos 2000 e 2010,
quando a desigualdade socioeconômica foi se ampliando
no mundo, ao mesmo tempo em que as tecnologias digitais
traziam condições de novos atores se posicionarem na cena
literária. O trabalho poético em torno do endividamento
se manifesta como um dos aspectos mais instigantes da
produção contemporânea no seu embate com questões do
tempo presente, sendo um dos aspectos de consumação da
impossibilidade de manutenção de certas tópicas da lírica,
entre as quais o erotismo. O problema do endividamento
na poesia brasileira contemporânea também pode ser
analisado de uma perspectiva mais econômica e sociológica,
dando a ver os paradoxos de uma fase em que o Brasil se
lançou, concomitantemente, a políticas inclusivas e a pactos
neoliberais, tão sintomáticos do lulismo.
Palavras-chave: Poesia. Coletivos. Endividamento.
1
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Eduardo Coelho é professor do Departamento de Letras Vernáculas e do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura
da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É um dos coordenadores do Programa Avançado de Cultura
Contemporânea – PACC, onde também coordena, com Luciana di Leone, o projeto de pesquisa, extensão e inovação Laboratório
da Palavra.
Cad. Letras UFF, Niterói, v.31, n.61, p.120-136, 2º semestre de 2020
Coletivos: poesia e endividamento
Abstract:
It is important to highlight how much the financial vocabulary
has infiltrated the contemporary Brazilian poetry of young
authors, in direct or indirect relationship with the problem
of indebtedness. It is not by chance that this lexicon of the
financialization of life has been expanding as neoliberalism
advanced during the years 2000 and 2010, when socioeconomic
inequality was increasing in the world, at the same time that
digital technologies brought conditions for new actors to place
themselves in the literary scene. The poetic work around
indebtedness manifests itself as one of the most exciting aspects
of contemporary production in its confrontation with issues of
the present time, being one of the consummation aspects of the
impossibility of maintaining certain topics of the lyric, among
them, eroticism. The problem of indebtedness in contemporary
Brazilian poetry can also be analyzed from a more economic
and sociological perspective, showing the paradoxes of a phase
in which Brazil launched, simultaneously, inclusive policies
and neoliberal pacts, so symptomatic of lulism.
Keywords: Poetry. Collective. Indebtedness.
No livro Declaração, Antonio Negri e Michael Hardt (2014, p.
9-17) recorreram à metáfora do “bastão” para descrever a “corrida de revezamento” em que, desde o início dos anos 2010, uma revolta popular
era logo substituída por outra. Esse “bastão” chegou ao Brasil em junho
de 2013, quando o coletivo Movimento Passe Livre convocou protestos
contra o aumento do preço das passagens de ônibus, trem e metrô, levando,
por fim, mais de um milhão e meio de brasileiros às ruas.
Contudo, a pauta desse coletivo, baseada no direito à mobilidade urbana, logo foi substituída por um repertório vastíssimo de questões
e insatisfações, nem todas progressistas. Assim, passaram a coexistir reivindicações por escolas e hospitais públicos “padrão Fifa”, em referência aos estádios que estavam sendo construídos para a Copa do Mundo
de Futebol; exigiu-se maior segurança; combateu-se a política neoliberal,
sustentada, em grande medida, no princípio de aquecimento econômico
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por meio da concessão de crédito fácil; ao mesmo tempo, erguiam-se bandeiras de intervenção militar e redução da maioridade penal, entre outros
posicionamentos extremistas que iam resultar, a médio prazo, na eleição
do presidente Jair Bolsonaro. Como esclareceu Raquel Rolnik no livro
Cidades rebeldes, as manifestações de 2013 podem ser concebidas “como
um terremoto [...] que perturbou a ordem de um país que parecia viver
uma espécie de vertigem benfazeja de prosperidade e paz, e fez emergir
não uma, mas uma infinidade de agendas mal resolvidas, contradições e
paradoxos” (ROLNIK, 2013, p. 8).
Naquele momento de tumulto nacional, tornou-se evidente uma
significativa transformação nos rumos da poesia brasileira contemporânea,
especialmente se levarmos em consideração dois textos sintomáticos dos
anos 1990 e 2000, respectivamente: o poema “A situação atual da poesia
no Brasil”, publicado em Collapsus linguae, de Carlito Azevedo (1991, p.
37), e o ensaio de Ricardo Domeneck “Ideologia da percepção ou algumas
considerações sobre a poesia contemporânea no Brasil”, publicado no décimo oitavo número da revista Inimigo Rumor (DOMENECK, 2006, p.
175-216).
Nos únicos dois versos do poema de Carlito (“Não é cosa mentale/ é cosa nostra.”), é possível observar uma sinalização para “o convívio
sentimental e grupalmente fechado”, em que há “uma clara consciência
da articulação de [...] tribos, gangues ou pequenas máfias poéticas (‘lei do
grupo’, ‘cosa nostra’), consciência do próprio pertencimento e participação (é ‘nostra’, são ‘meus amigos’)”, como analisou Luciana di Leone em
seu livro Poesias e escolhas afetivas (LEONE, 2014, p. 89). A poesia brasileira contemporânea parecia então dividida apenas entre duas pequenas
editoras, 7Letras e Azougue, que pouco interagiam entre si.
Já Ricardo Domeneck acentuou uma “situação incongruente”
em que se encontrava a poesia brasileira do início dos anos 2000: ele mostrou que havia “expansão do número de autores e possibilidades de publi122
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Coletivos: poesia e endividamento
cação e divulgação, com várias editoras criando novas coleções voltadas
a poetas jovens, as possibilidades ilimitadas da divulgação pela internet, a
multiplicação de revistas dedicadas à poesia”, mas apresentava “o exíguo
retorno por parte do público leitor, o isolamento dos poetas em pequenas
coteries formadas por outros poetas, gerando entre nós a situação inédita
[...] de serem os poetas hoje [em 2006] quase todos ‘poetas de poetas’”
(DOMENECK, 2006, p. 175).
Desde o início dos anos 2010, no entanto, surgiram ou se consolidaram muitos coletivos de poesia e edição, realizando encontros abertos,
uma administração descentralizada, ocupação dos espaços públicos e forte
adesão a um viés político, que dedicava grande importância à conquista
dos modos de produção e ao aproveitamento de novas tecnologias digitais para distribuir seus conteúdos de maneira autônoma, independente.
Além disso, importa destacar que a maior parte desses coletivos foi criada
em bairros de classe média baixa ou em favelas, onde continuam atuando
por meio de debates, batalhas de slam, saraus, lançamentos de plaquetes e
zines, num circuito paralelo à indústria cultural, embora não inteiramente,
pois as redes sociais se tornaram um recurso de suas formas de circulação.
O aparecimento desses novos atores e de seus produtos trouxeram à poesia brasileira algumas novas figuras, que, de forma indireta,
podem ser relacionadas a uma consideração de Antonio Negri e Michael
Hardt em torno das “novas subjetividades de crise”, surgidas de modo notável a partir das manifestações populares do início desta década:
O triunfo do neoliberalismo e sua crise mudaram os termos
da vida econômica e política, mas também operaram uma
transformação social e antropológica, fabricando novas
figuras de subjetividade. A hegemonia das finanças e dos
bancos produziram o endividado. (NEGRI; HARDT, 2014,
p. 21, grifo do autor.)
Na poesia dos coletivos que surgiram em bairros de classe média
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baixa, decadentes, como o Méier, no Rio de Janeiro, percebemos diversas
referências ao preço das coisas, às contas a pagar e ao endividamento, que
podem ser localizadas na plaquete O preço das coisas, lançada pela Oficina Experimental de Poesia e assinada por Ana Carolina Assis, Bárbara
Coelho, Heyk Pimenta e Rafael Zacca. Dois de seus poemas revelam uma
problematização do alto custo de vida e do endividamento, que foram trabalhados por meio do humor, do suspense e do campo afetivo-amoroso, todos entrelaçados, manifestando alguns traços de nonsense que perturbam a
cena, como em versos de “Saíram para pagar a light”:
saio pra ir pro açougue como
quem sai pra pagar a light
o rosto das notas e moedas não as salva de nada
não encontro meus amigos
saíram de linha
saíram pra pagar a light
as moedas balançando no bolso enquanto se
olham
foi o que conseguiram dizer antes de
meter uma roupa
o cabelo foda-se
vou tomar café na rua e pago a light
e deixaram o boleto em cima da geladeira com 2
tapinhas de amizade
a rodoviária
emite passagens
de ida
124
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Coletivos: poesia e endividamento
pra perto
cataguases peruíbe jacaraípe é o que paga
a grana da light pra março
querem ser cidades onde ninguém procuraria um
cara
os amigos
joão saiu para pagar a light marcelo saiu
pra pagar a light mas voltou
pedro spahnol yuri de artur todos
saíram pra pagar a light
anaí rafa o luiz da PUC2
Não se trata de características específicas dessa plaquete: elas
podem ser identificadas ainda em títulos da coleção MegaMini, como Nuvens [na seção de congelados] (2018), de Lucas van Hombeeck, e Surrado
(2019), de Heyk Pimenta, ambos desse mesmo coletivo, a Oficina Experimental. Nessa última plaquete, lemos:
IV
comemos cheques e porcaria
juntos em países diferentes
e fico mexido
se seus olhos olham pra câmera
nas fotos
eles entram em mim
passam a morar aqui
2
A plaquete O preço das coisas não apresenta qualquer informação de caráter editorial, como editora e ano da publicação.
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os bato com os sonhos
tenho os ossos e as unhas moles
tenho agiotas nas costelas e durmo
com eles e somos irmãos
se houve chance e brasil
tenho planos cada vez mais modestos
e saudade de quando o futuro
organizava o amor
mas vejo a fila e vejo a fila.
(PIMENTA, 2019, p. 13.)
O problema do endividamento ou da falta de recursos já se apresentava no livro de estreia desse poeta, como podemos observar em dois
versos de “O cobre das pombas”, de Heyk Pimenta, publicado em Sopro
sopro: “Uma calculadora praguejava/ seus salários que não davam conta”
(PIMENTA, 2014, p. 58). Em sua poesia, as contas a pagar e os salários,
insuficientes, participam de um cenário maior de desordem e podem ser
compreendidos como um detalhe da vida cotidiana, mas que se faz presente e gera perturbação, impactando a vida afetiva.
Um caso provocativo do endividamento relacionado com o campo afetivo-amoroso pode ser observado no poema “O vício do crédito fácil”, publicado no livro O coice da égua, de Valeska Torres, autora de
Inhaúma, que participa do Coletivo Audiovisual Miraluz Films e transita
pelos coletivos feministas Mulheres que Escrevem e Respeita. Há versos
desse poema que se apropriaram de características de anúncios de crédito
pessoal, desnaturalizando-os por meio do humor e do estranhamento de
matéria aparentemente tão avessa ao lirismo: “empréstimo? melhor dizer
não! mas se for inevitável, mostramos como/ pagar o menos possível de
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Coletivos: poesia e endividamento
juros” (TORRES. 2019, p. 59). Em seguida, a questão do endividamento
desliza repentinamente da economia para o campo amoroso-sexual, que
consiste num índice frequente na poesia brasileira contemporânea: “quase
disse em voz alta,/ roberto de souza me prometeu gozos que nunca me deu/
e isso me frustra até hoje” (TORRES, 2019, p. 60). Obviamente, a promessa de gozo, antecedida por lugares-comuns de anúncios de crédito, parece
se valer ao fundo de uma expressão popular brasileira: promessa é dívida!
Portanto, nesse caso, o endividamento foi aproximado da experiência de
perda, de carência, embora não tenha abandonado o recurso humorístico:
O VÍCIO DO CRÉDITO FÁCIL
PARTE I
não ache que o acesso imediato ao dinheiro pra
realizar sonhos seja
motivo de comemoração
não se endivide para realizar o seu sonho de consumo
compre à vista e ainda tem troco
pág. 20
há opções bem em conta para você proteger o
seu imóvel e pertences
de imprevistos como roubo e incêndio
pág. 33
empréstimo? melhor dizer não! mas se for inevitável, mostramos como
pagar o menos possível de juros
veja na pág. 10
que tal adquirir aquele smartphone dos sonhos
ou trocar a velha
geladeira por uma novinha, isso sem recorrer ao
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parcelamento no
cartão de crédito
fundos de renda fixa crédito pessoal seguro carta
verde
descumprimento de oferta limite de crédito x
renda seguro residencial
nossos valores:
1. nossa missão exige uma neutralidade total
2. devemos desenvolver a capacidade de levar
em conta as necessidades
de nossos interlocutores externos e internos
3. êxito de nossa missão é condicionado por
nossa credibilidade e
pelo reconhecimento dos melhores profissionais
do mercado
PARTE II
se prometeu, tem que cumprir
wagner santos, fotógrafo
“fui à compra do frango cuja oferta havia sido
anunciada na tevê à
noite. olhei nas prateleiras e não o achei.”
quase disse em voz alta,
roberto de souza me prometeu gozos que nunca
me deu
e isso me frustra até hoje
wagner & eu, mesmo distantes, nos compreendemos
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Coletivos: poesia e endividamento
ligamos, indignados, para o serviço de defesa do
consumidor
disse a ela
meu ex acreditou todas as vezes que eu disse
gozei
disse não sei o porquê de tantas mentiras mas
quando se ama fazemos
coisas que não sabemos bem o motivo
estava carente e queria gozar, estava carente precisava
a telefonista bateu forte o telefone, do outro lado
da linha
(silêncio)
e eu ainda pedia o meu gozo
os meus segundos
com a telemarketing que não compreendeu as
coisas que se perdem
quando se ama.
(TORRES, 2019, p. 59-60.)
Outra estratégia de abordagem do problema do endividamento
se manifesta mediante a ironia de “Une chanson (alô? está me ouvindo)”,
publicado em Três semblantes, de Lucas Matos, do coletivo Bliss não Tem
Bis. Iniciado pelo seu refrão – “ninguém vai ter amar/ tanto quanto o seu
credor” (MATOS, 2015, p. 21) – esse poema explora as canções de amor
francesas, numa relação obsessiva entre o credor e o endividado. Apesar
do humor também presente nesse poema, seus versos apresentam uma
situação de um sujeito sem saída, que teve seu tempo sequestrado pelas
dívidas: “a mãe está no hospital/ e é para você que ele/ liga no sábado de
manhã” (MATOS, 2015, p. 21):
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5. UNE CHANSON (ALÔ? ESTÁ ME OUVINDO?)
ninguém vai ter amar
tanto quanto o seu credor
nem o pai nem a mãe
e os filhos se você tiver
vão te amar menos
vão amar sempre menos
ninguém vai ter amar
tanto quanto o seu credor
a mãe está no hospital
e é para você que ele
liga no sábado de manhã
ninguém vai te amar
tanto quanto a esposa
mandou uma carta
para a amante tudo
parece ir para as
cucuias e é o teu
email que ele procura
ninguém vai te amar
tanto quanto o seu credor
o pai já não sabe quem é
o cachorro morreu
o filho mordeu os amigos
e quando ele sai para
passear com o bicho
sente a corda apertar
em torno do pescoço
é teu nome
que ele sussurra
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Cad. Letras UFF, Niterói, v.31, n.61, p.130-136, 2º semestre de 2020
Coletivos: poesia e endividamento
com teu nome
que ele engasga
ninguém vai te amar
tanto quanto o seu credor
nem à primeira vista
nem o primeiro amor
nenhum casório
nenhum estranho
no carnaval que te beijou
ninguém vai te amar
tanto quanto seu credor
(MATOS, 2015, p. 21-22)
Nesse mesmo livro, Lucas Matos abordou o problema do endividamento como o único ponto de interseção possível entre todas as diferenças e desigualdades do nosso tempo. Na “9a tese” da personagem dessa
série, Marianne K., ele escreveu em caixa-alta:
SÓ A DÍVIDA NOS UNE. O QUE HÁ EM
COMUM ENTRE UM
HOMEM QUE RECEBE MENOS QUE UM
SALÁRIO MÍNIMO,
UM BANQUEIRO, BICHOS SELVAGENS,
UMA EMPRESA, UM ESTADO, ESTRELAS,
IDEIAS,
CASCA DE BANANA? TODOS ESTÃO EM
DÍVIDA. TEM PODER
AQUELE QUE PODE COBRAR MAIS QUE
OS OUTROS, E NÃO TEM PODER AQUELE
QUE SEMPRE PAGA, PAGA A VIDA INTEIRA
E PASSA TODOS OS DIAS A PAGAR.
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(MATOS, 2015, p. 28.)
Dessa maneira, encontramos na poesia de Lucas Matos uma
perspectiva crítica tragicômica, às vezes apocalíptica, em que as ideias de
perseguição e limitação do tempo estão diretamente associadas à precarização do trabalho, ao aumento do custo de vida e à dinâmica perversa do
consumo neoliberal. Não é de se estranhar que a questão do endividamento, das contas a pagar e do preço das coisas tenha surgido justamente no
momento em que a poesia brasileira se abriu a novos protagonistas, que
reinventam a condição marginal do poeta da modernidade.
No artigo “O aumento do endividamento das famílias durante
o governo Lula” (2016), os economistas Jéssica Aparecida Belliomini de
Camargo e Manuel Antonio Munguia Payés apontaram que, conforme um
relatório da Mckinsey Global Institute realizado em 2015, consta que o
endividamento no Brasil é maior que sua própria renda, o que tem se agravado de lá para cá. Não à toa, o endividamento se tornou um lugar-comum
em versos da literatura brasileira atual. Pela recorrência do assunto, pelas
questões subjacentes ou não que o acompanham, e pela mudança de estatuto econômico do poeta – antes sem dinheiro e agora endividado –, torna-se interessante avaliar como essa “nova subjetividade” está sendo problematizada pela poesia brasileira contemporânea e quais suas implicações.
Nesse sentido, é importante destacar que o endividamento surge,
às vezes, como um traço corriqueiro, factual, quase naturalizado, que não
impacta efetivamente na construção de uma subjetividade. Nesses casos, o
endividamento consiste num índice de desordem que se encontra misturado
a muitos outros, como a infelicidade profissional, o trânsito engarrafado
e a violência urbana. Por outro lado, a naturalização do endividamento
talvez resulte de um pastiche dos anúncios de crédito fácil.
Contudo, a ideia de perseguição que se revela de modo criativo
na poesia de Lucas Matos deixa em evidência o caráter perverso do
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Coletivos: poesia e endividamento
capitalismo financeiro, especialmente ligado à dívida, conforme Maurizio
Lazzarato apontou em O governo do homem endividado “constitui uma
nova técnica de poder [...], de controle e de coerção sobre o devedor”
(LAZZARATO, 2017, p. 66). A dívida irrompe, muitas vezes, como um
fator de controle sobre o tempo do endividado, e este tempo confiscado
do sujeito se entrelaça a um estado de profunda melancolia, como se pode
constatar no poema “Sofá”, do livro Um rojão atado à memória, de Estela
Rosa, do coletivo Mulheres que Escrevem:
O cheiro da calça jeans entra pelas narinas e penso:
não há nada que possa fazer pra sair desse
marasmo que é a vida. Quanto mais procuro entender
que de pouco me adiantam os números, as letras,
os cartões de débito ou crédito, concursos públicos,
cadernos brochura ou pirex de vidro temperado, mais
descubro que é necessário acumular dívidas, livros e
cabelos molhados no ralo. O cheiro cansado da calça
jeans sobre o sofá não remete a nenhum feito
admirável, nenhum suor foi gasto nessa cena, nada
de gozo, apenas aquele acúmulo de bancos de carro,
restaurante, pingos de café e cheiro de dinheiro no bolso
de trás. E ainda que isso não pareça ter importância,
sigo acordando, assustada, no meio da madrugada, para
procurar nos bolsos da calça quase suja o resto de horas
que me faltam para poder descansar.
(ROSA, 2019, p. 22.)
A descoberta da necessidade de “acumular dívidas” – que já
se tornava presente por meio da referência ao cartão de crédito – está
inteiramente inserida num cenário dominado pela exaustão e pela ausência
“de gozo”. A calça jeans suja, tão característica da contracultura, não pode
ser associada a qualquer “feito/ admirável”. Antes, em seu poema “Suaves
parcelas”, uma estrofe se constitui de apenas um verso: “Não tenho
perspectivas” (ROSA, 2019, p. 19). Sem dúvida, nos versos desses dois
poemas, a culpa se manifesta como outro fator de relevância na proposição
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do endividamento do sujeito.
Antonio Negri e Michael Hardt afirmam em Declaração:
“Atualmente, ter dívidas está se tornando a condição geral da vida social.”
(NEGRI; HARDT, 2014, p. 22). Enfim, trata-se de uma necessidade. Em
seguida, analisam:
O efeito da dívida, como o da ética do trabalho, é forçá-lo a trabalhar arduamente. Enquanto a ética do trabalho
nasce no interior do sujeito, a dívida começa como uma
coação externa, mas logo segue seu caminho tortuoso rumo
ao interior. A dívida exerce um poder moral cujas armas
principais são a responsabilidade e a culpa, que podem rapidamente se transformar em objeto de obsessão. Você é
responsável por suas dívidas e se culpa pelas dificuldades
que elas criam em sua vida. O endividado é uma consciência infeliz, que faz da culpa uma forma de vida. Aos
poucos, os prazeres da atividade e da criação se convertem
num pesadelo para aqueles que não possuem os meios de
aproveitar suas vidas. A vida foi vendida ao inimigo. (NEGRI; HARDT, 2014, p. 22-23.)
É importante destacar como o vocabulário financeiro se infiltrou
na poesia brasileira contemporânea de jovens autores, em relação direta ou
indireta com o problema do endividamento. Não por acaso, esse léxico da
financeirização da vida foi se ampliando à medida que o neoliberalismo
avançava durante os anos 2000 e 2010, quando a desigualdade
socioeconômica foi se amplianda no mundo, ao mesmo tempo em que as
tecnologias digitais traziam condições de novos atores se posicionarem na
cena literária. Esse vocabulário se liga à culpa, à melancolia e à exaustão,
bem como à falta de perspectivas, compreendendo muitas imagens de
acúmulo de boletos, perseguição e asfixiamento, não raro acompanhadas de
um nonsense perturbador, de caráter surrealizante. O trabalho poético em
torno do endividamento se manifesta, assim, como um dos aspectos mais
instigantes da produção contemporânea no seu embate com questões do
tempo presente, sendo um dos fatores de consumação da impossibilidade
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Coletivos: poesia e endividamento
de manutenção de certas tópicas da lírica, como o erotismo. O problema
do endividamento na poesia brasileira contemporânea também pode ser
analisada de uma perspectiva mais econômica e sociológica, dando a ver
os paradoxos de uma fase em que o Brasil se lançou, concomitantemente,
a políticas inclusivas e a pactos neoliberais, tão sintomáticos do lulismo.
Referências
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Rafael. O preço das coisas. S./l.: s./e., s./a.
AZEVEDO, Carlito. Collapsus linguae. Rio de Janeiro: Editora LYNX,
1991.
CAMARGO, Jéssica Aparecida Belliomini de; PAYÉS, Manuel Antonio
Munguia. O aumento do endividamento das famílias durante o governo
Lula, €co$, Sorocaba, v. 6, n. 1, p. 99-114, 2016. Disponível em:
<periodicos.uniso.br/ojs/index.php/ecos/article/download/3440/3039/>.
Acesso em: 7 ago. 2019.
DOMENECK, Ricardo. Ideologia da percepção ou algumas considerações
sobre a poesia brasileira contemporânea. Inimigo Rumor, n. 18, p. 175216, 2o semestre 2005/1o semestre 2006.
HOMBEECK, Lucas van. Nuvens [na seção de congelados]. Rio de
Janeiro: Megamíni, 2018.
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Daniel P. P. da Costa. São Paulo: n-1 edições, 2017.
LEONE, Luciana di. Poesia e escolhas afetivas: edição e escrita na poesia
contemporânea. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. [Coleção Entrecríticas.]
MATOS, Lucas. Três semblantes. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015.
NEGRI, Antonio; HARDT, Michael. Declaração – isto não é um manifesto.
Tradução de Carlos Szlak. São Paulo: n-1 edições, 2014.
PIMENTA, Heyk. Sopro sopro. 3a ed. São Paulo: Edições Maloqueiristas,
2014.
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DOI: https://doi.org/10.22409/cadletrasuff.v31i61.45507
______. Surrado. Rio de Janeiro: Megamíni, 2019.
ROLNIK, Raquel. Cidades rebeldes. São Paulo: Boitempo, 2013.
ROSA, Estela. Um rojão atado à memória. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
TORRES, Valeska. O coice da égua. Rio de Janeiro: 7Letras, 2019.
Recebido em: 21/08/2020
Aprovado em: 23/08/2020
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