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A comédia humana segundo Manoel de Oliveira Autor(es): Cunha, Paulo Publicado por: Imprensa da Universidade de Coimbra URL persistente: URI:http://hdl.handle.net/10316.2/36574 DOI: DOI:http://dx.doi.org/10.14195/1647-8622_8_11 Accessed : 22-Feb-2022 23:02:11 A navegação consulta e descarregamento dos títulos inseridos nas Bibliotecas Digitais UC Digitalis, UC Pombalina e UC Impactum, pressupõem a aceitação plena e sem reservas dos Termos e Condições de Uso destas Bibliotecas Digitais, disponíveis em https://digitalis.uc.pt/pt-pt/termos. Conforme exposto nos referidos Termos e Condições de Uso, o descarregamento de títulos de acesso restrito requer uma licença válida de autorização devendo o utilizador aceder ao(s) documento(s) a partir de um endereço de IP da instituição detentora da supramencionada licença. Ao utilizador é apenas permitido o descarregamento para uso pessoal, pelo que o emprego do(s) título(s) descarregado(s) para outro fim, designadamente comercial, carece de autorização do respetivo autor ou editor da obra. Na medida em que todas as obras da UC Digitalis se encontram protegidas pelo Código do Direito de Autor e Direitos Conexos e demais legislação aplicável, toda a cópia, parcial ou total, deste documento, nos casos em que é legalmente admitida, deverá conter ou fazer-se acompanhar por este aviso. impactum.uc.pt digitalis.uc.pt A Comedia Humana segundo Manoel de Oliveira Paulo Cunha CUNHA, Paulo - ~A Comedia Humana segundo Manoel de Oliveira". In: Em1dos do St'mlo XX, n. 0 B (2008), p. 161-174. Paulo Cunha. Mestre em Hist6ria das Ideologias e Utopias Contemporaneas. Doutorando em Hist6ria da Cultura na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Bolseiro da FCT. Investigador do Centro de Estudos Interdisciplinares do Seculo XX da Universidade de Coimbra - CEIS20. "A isto chamo A Divina Comedia: os prazeres da vida, o sexo como idolo, o poder como ambifdo suprema e a morte como o limite de tudo. P01· acaso a vetdadeira gl6ria obter-se-d na aceitafdo do sofi·imento e da ressurreifdo? Eis o dilema. No fim de contas, este e um filme hist0rico ou, se preferirem, uma pa rd bola em tomo da civilizaftfo ocidental." Manoel de Oliveira, 1991. Em Setembro de 1991, em pleno Festival de Veneza, Manoel Oliveira apresentava a concurso a sua mais recente obra cinematogrifica, de onde resultaria a conquista do Grande Premio Especial do Juri. A obra em causa intitulava-se A Divina Comedia e assumira rapidamente o estatuto de obra-prima. A deste filme (conforme confessa o cineasta) encontra-se no cruzamento da leitura do romance Crime e Castigo ( 1867) de Fiodor Dostoievski com o seu fasdnio pessoal pela figura de Jesus Cristo. «C' est a l' epoque du tournage de A Canfifo de Lisboa que Manoel a lu, dans un etat de depression, Crime et Chatiment. [... ] La Divine Comedie sera, soixante ans plus tard, une adaptation de ce roman de Dostoievski.»; «Voyant au cours du montage de ce film [Non] a Paris, clans la vitrine d'une librairie de Montparnasse un livre sur la vie de Jesus, Manoel eut envie de travailler sur les donnees objectives de la vie de Christ. [... J Reparti au Portugal, son imagination incessant lui fit croiser son souvenir d'une lecture des annees trinte: Crime et Chatiment de Dostoievski. [... ] Cette invraisemblable rencontre ne pouvait se derouler que dans un asile d' aliene, decor unique, en effet, de La Divine Comedie, l'une des plus deroutantes de ses ocuvres.» 1 De forma harmoniosa, esta obra de Oliveira procura cruzar os dais universos qu-e sao mais earns a Manoel de Oliveira enquanto cineasta: o discurso biblico e o literario. Para o seu autor, A Divina Comedia corresponde a uma pretensao pessoal de formular "uma reflexao, mais geral, sabre a nossa dimensao humana e a cultura a que perrencemos: judaico-crista, greco-romana, ocidental, mediterranica." 2 Para desenvolver a reflexao, o cineasta tinha projectado para a sua Divina Comedia "uma especie de mesa-redonda sabre os pontos fundamentais e os problemas cruciais da nossa civlza~o". Contudo, a ideia de construir o filme a partir de uma mesa-redonda nao preenchia as expectativas do cineasta. Para melhor desenvolver este empreendimento, Oliveira seleccionou o conjunto de textos que considera mais representativos da cultura ocidental. «Representativos de que? Representativos do mundo ocidental do qual fazemos parte. Sao extremamente do Ocidente e como referenda sao muito actuais. Nao e por ser Crime e Castigo de Dostoievski mas por ser a representac;ao de um 1 Manoel de Oliveira cit. in PARSI, Jacques Manoel de Oliveira. Cineaste poriugais {XX.eme siecle). Paris: Fundas:ao Calouste de Gulbenkian, 2002, p. 76/p. 127. 2 MATOS-CRUZ, Jose de - Manoel de Oliveira e a Montra das Tentafiies. Lisboa: Publicas:oes Dom Quixote/Sociedade Portuguesa de Aurores, 1996, p. 41. 163 esquema humano hist6rico ocidental. [...] Nao e o Raskolnikov e a Sonia mas o que eles flguram. Ou o Grande Inquisidor. Sao trechos que escolhi porque me informaram que faziam parte das obras mundialmente reconhecidas e extraordinirias.» 3 Esses textos seleccionados, onde o cineasta traira pontos de contacto com a realidade actual, sao desenvolvidos em forma de dialogo, o que permite desde logo uma dialectica promotora de confronto de ideias e de concepir6es antag6nicas. Para Manoel de Oliveira, os textos mais representativos da sua visao sao a Biblia, Crime e Castigo e Os Irmdos Karamazov de Fiodor Dostoievski, o Anti-Cristo de Friederich Nietzsche e A Salvardo do Mundo de Jose Regio. Alem de representativos, estes textos funcionam como referencias hist6ricas para Oliveira perseguir uma objectividade que alguns detractores sempre lhe negaram. Esta objectividade reflecte-se sobretudo na tecnica filmica adoptada pelo cineasta para o registo desta obra. Apesar de conceitos predefinidos em relairao ao estilo cinematografico do cineasta, Oliveira concede uma maior importancia a forma, que se pode equiparar, de forma equilibrada, a importancia do conteudo. Esta obra, adoptando um estilo muito met6dico e geometrico, e o melhor exemplo dessa objectividade tecnica reivindicada pelo autor. Assumindo uma visao esterica singular, Oliveira constr6i o filme com planos fixos, registando-se apenas duas excepiroes: a chegada de Ivan Karamazov a Casa de Alienados e a sequencia final da redenirao de Raskolnikov. Das duas sequencias, apenas a primeira e propositada e encerra em si um simbolismo que analisaremos adiante. Atraves desta estrategia filmica, Oliveira pretende recuar a designada "Idade de Ouro" do cinema, periodo "em que atingiu um poder de expressao e uma naturalidade de jogos de planos a montagem, o enquadramento e o angulo visual (de baixo para cima, de cima para baixo) e o realizador era muitas vezes norteado pela preocupa<feo estetica e mais nenhuma." 4 Contudo, A Divina Comedia nao se esgota nesta "preocupa<rao estetica". A par da imagem, a palavra assume um caracter simb6lico e aleg6rico, ja que a origem dos textos remete o espectador para um universo literario hist6rico e espedfico. Este aspecto erudito e intelectual pode, simultaneamente, proporcionar e criar dificuldade ao gozo da dimensao esterica e visual do filme: "E claro que o espectador que tern de ler legendas perde muito. Se for um literato, e capaz de se interessar mais pela leitura das legendas do que pela visao das imagens e do filme ficar-lhe-a um aspecto mais frio. Mas a imagem junta ao dialogo uma humanidade que os textos nem sempre comportam. Ha um jogo de equilibria no qual apostei."5 A Divina Comedia: sinopse A imagem inicial do filme apresenta-nos uma casa senhorial dos fins do seculo XIX, identificada por um painel de azulejos com a inscriirao "Casa de Alienados". No interior da casa, correndo num corredor, Sonia (Maria de Medeiros) chama por Ibidem, Manoel Ilusiio. Porto: 5 Ibidem, 3 4 p. 44. de Oliveira entrevistado por Antonio Roma Torres, Regina Guimaraes e Saguenail. In: A Grande Cooperativa Cinema Novo, Out. 91-Mai. 92, n. 0 13-14, p. 42. p. 43. 164 Raskolnikov (Miguel Guilherme) e dirigem-se ambos ate JUnto de outros alienados que, em silencio, observam o jardim da casa. Nesse jardim, um homem e uma mulher completamente nus, encarnando Addo (Carlos Gomes) e Eva (Leonor Silveira), recriam o epis6dio biblico da consumas;ao do pecado original e da expulsao do Paraiso. No preciso momenta em que Addo e Eva comem a mas;a, irrompe uma tormenta de relimpagos e chuva, e observamos uma serpente a fugir. 0 Director da instituis;ao (Ruy Furtado), ate ai expectante, ordena aos enfermeiros que fas;am recolher o casal. No interior da casa, o grupo dos restantes alienados que observava atentamente o jardim redirecciona a sua atens;ao para as palavras de um homem que se assume como Jesus Cristo (Paulo Matos) e, apoiado no texto biblico, conclui o epis6dio biblico do Genesis que se havia iniciado no jardim da casa. Uns toques de badalo anunciam a hora da refeis;ao. A mesa (encabes;ada por Addo e Eva) encontram-se o Profeta (Luis Miguel Cintra) e o Fi!Osofo (Mario Viegas), que protagonizam uma acesa discussao acerca da natureza material e espiritual da mulher. Na mesma mesa, Jesus Cristo encena o epis6dio biblico da Ultima ceia e irrita o Fariseu (Luis Lima Barreto). Num corredor da casa, Raskolnikov entrega um embrulho a Elena Ivanovna (Laura Soveral), assassinando-a de seguida com varias machadadas. Depois de morta, o mesmo rouba umas chaves, que esta guardava religiosamente, e profana o seu quarto. Quando se preparava para a fuga, ainda no local do crime, e surpreendido por Isabel Ivanovna (Cremilda Gil). Numa tentativa de silenciar a testemunha, acaba por assassinala. No plano seguinte, o mesmo Ralkolnikov acorda de um pesadelo e depara-se com o Director no seu quarto a observa-lo atentamente. Omnipresente, o Director reconhece que o paciente se encontra atormentado por "algumas obsess6es" e aconselha-o a medicar-se com mais atens;ao. Nos jardins da casa, o Profeta e o Fi!Osofo prosseguem as suas conversas, agora acerca da natureza do bem e do mal no homem. Num dialogo de ideias antag6nicas, as duas personagens desenvolvem as suas concep<r6es acerca da natureza humana e da natureza da divindade. Num discurso aceso, trocam defesas e acusa<r6es a prop6sito das consideras:6es e concep<r6es filos6ficas e religiosas do pr6ximo, nomeadamente em rela<rao ao Cristianismo enquanto sistema de valores morais e sociais. De regresso a casa, o Filosofo depara-se com a pianista Marta (Maria Joao Pires) que toca uma melodia, que e ouvida por Maria Otilia Buissel), Jesus Cristo e Ldzaro (Miguel Yeco), a quern se juntam posteriormente Sonia e Raskolnikov. Depois de Ldzaro se deitar num caixao no centro da sala, o casal de Crime e Castigo de Dostoievski trocam algumas experiencias passadas. A pretexto da conversa entre Sonia e Raskolnikov, encena-se um novo epis6dio biblico: a ressurrei<rfo de Ldzaro. Influenciado por Sonia, Raskolnikov prossegue o seu percurso de expia<rfo dos seus pecados. No entanto, para conseguir libertar-se do sofrimento humano que o atormenta, o jovem pede ajuda a Sonia, numa tentativa de reden<rfo pelo amor da mulher. Decorre depois um novo capitulo do dialogo entre o Profeta e o Fi!Osofo: agora a discussao centra-se na questao da natureza da arte, reclamada quer como fen6meno imanentista divino, quer como manifesta<rfo da autonomia criadora do homem. Mais uma vez, as personagens discutem a dicotomia que op6e Deus ao Homem, o divino ao humano, o sagrado ao profano. 165 Momentos antes, na varanda da casa, Adiio tenta uma aproximac;ao a Eva, que o rejeita peremptoriamente. A Eva, arrependida, anuncia-lhe que ja nao e Eva, mas a Adao, o Fi!Osofo Santa Teresa. Perante a recusa de Eva em se entregar intromete-se tentando tirar algum proveito da Em primeiro lugar, convence Addo de um suposto direito de propriedade sobre Eva e incita-o a cumprir o "clever de homem" e apropriar-se da mulher para o "seu . Em segundo lugar, aborda Eva no seu quarto, acusa-a de estar a cometer um crime contra o futuro da humanidade e tenta aproveitar-se sexualmente desta. Surpreendida pelo assedio do Filosofo, Eva/Santa Teresa tenta o suiddio, nfo concretizado. De regresso a sala principal, com todos os alienados reunidos, Jesus O·isto proclama as bem-aventuranc;as perante as diferentes reacc;oes dos observadores. Entre conversas varias, Raskolnikov e Sonia sentem-se condenados ao sofrimento interior, enquanto o Fil6sofo e Adao continuam a discutir a natureza da figura feminina enquanto objecto do homem, conforme a vontade divina. 0 Fariseu tenta aliciar Jesus Cristo para participar num neg6cio, mas este, a semelhanc;a do epis6dio bfplico da expulsao dos comerciantes do templo, rejeita a tentadora proposta. Addo reclama a Jesus Cristo o abandono e a esterilidade de Eva, mas Jesus defende a mulher e aconselha-o a seguir o seu caminho de purificas;ao. De seguida, ocorre uma outra discuss:io em torno da experiencia artfstica. Agora entre o Filosofo, Marta e Maria, este dialogo recupera a dicotomia entre a arte como criac;ao humana ou como concessao divina. Intromete-se o Profeta em defesa da conceps;ao imanentista. Marta e Maria subscrevem as posis;6es do Profeta e sentem-se insultadas pelas afirmas;6es provocat6rias do Filosofo contra a religiao. De motorizada, chega a "Casa de Alienados" um homem que se chama Ivan Karamazov (Diogo Doria) e que vem visitar seu irmfo internado Aliosha Karamazov Gose Wallenstein). Em conversa com o Director, Ivan confessa um desejo antigo em se "hospedar" na instituic;ao, como condic;ao necessaria ao seu descanso. 0 motivo da visita de Ivan e a revelac;ao da sua ultima obra literaria. Num dialogo entre OS dois irmaos e o Director - mas a que assistem, a espac;os e silenciosamente, varios dos alienados -, abordam-se quest6es acerca do sofrimento e da redenc;ao do homem e o papel da divindade na mediac;fo do percurso da humanidade. Com a devida autoriza<;fo do Director, Ivan le um pequeno texto intitulado 0 Inquisidor-Mor, uma parabola dostoievskiana ambientada em plena epoca da Inquisis;ao, onde um prisioneiro beija o seu carrasco. Ja com a presenc;a de todos os alienados, e por sugestao do Director, adapta-se a hist6ria do Inquisidor aos tempos actuais e inicia-se uma reflexao em torno das diferenc;as ideol6gicas, politicas e religiosas que dividem o mundo contemporaneo. Em jeito de conclusfo, o Director revela uma descrenc;a pessimista em relac;ao a Deus e a Humanidade. Num aero de reabilita<;ao do amor entre os homens, os alienados beijam-se na boca e relanc;am uma mensagem de esperanc;a no futriro. Este ponto inicia a concl usao do filme, onde se precipita o desenlace das varias personagens: Jesus Cristo abandona a casa; Raskolnikov confessa o seu crime a Sonia e ao mundo, iniciando o processo de expias;ao do seu sofrimento; Sonia aceita o amor de Raskolnikov e ajuda-o na sua redenc;ao; o Fariseu corrupto e desmascarado; o Dfrector enforca-se e cumpre o designio niilista; o Espirito Santo desceu a terra, encarnando uma pomba, para responder as preces e devoc;6es do Profeta, Eva/Santa Teresa, Marta, Ma- 166 ria e Ldzaro; o cepticismo do Fi!Osofo foi condenado pelos excrementos da pomba divina. No Ultimo piano, ao som do piano, encerra-se a comedia. A claquette da rodagem e batida e termina o filme. Sob o fundo negro do generico final, perpetua-se a musica tocada por Marta. Proposta de interpretas;ao « 0 filme abre-se. A minha proposta ndo e fechar, e abrir o filme as interpretaroes. Eu ndo quero fechar o filme com ideias minhas, quero que os meus filmes sejam polemicos, contraditorios ate.» Manoel de Oliveira, 1991. A Casa de Alienados A oportunidade de filmar a obra numa casa senhorial permitia ao autor concentrar nesse espas;o simb6lico uma complexa "dispersao de individualidades e de personagens tao distintas umas das outras no tempo e no espa~o." Nesta perspectiva, a Casa de Alienados assume um tom declaradamente simb6lico e aleg6rico: "Pensei ainda que aquele lugar era uma representas;ao do mundo, nao no aspecto depreciativo, mas no sentido de se situar para alem da loucura." 6 Desde os primeiros pianos, apercebemo-nos de que todos os habitantes desta casa sao loucos e assumem identidades hist6ricas ou lited.rias. De todas as personagens, apenas o Director da instituis;ao nao e alienado, condis;ao que o torna numa especie de "coordenador" de uma eventual visao do mundo (a de Manoel de Oliveira). Segundo o seu ponto de vista, a acs;ao inicia-se com a encenas;ao do pecado original, epis6dio que marca a expulsao do Homem para o mundo (casa), onde se desenvolve a acs;ao. A acs;ao regressa ao exterior da casa, temporariamente, no dialogo entre o Profeta e o Filosofo e, definitivamente, ap6s o suiddio do Director. Assim, numa l6gica eminentemente crista, o mundo e apresentado como um espa~o de trinsito para o Homem, onde o destino final e a salvas;ao do Homem e a sua ascensao redentora ao Paraiso. N um atento exerdcio de analogia, Fausto Cruchinho esbos;a uma interpretas;ao simples mas eficaz para Casa de Alienados: "E como se Oliveira tivesse construindo uma area de Noe com especies aos pares".7 De facto, tal como Noe, Oliveira procura salvar do diluvio aqueles que considera como os elementos mais representativos da cultura e sociedade humanas, imortalizando assim alguns dos icones fundamentais da existencia humana. As Personagens As personagens que povoam a Casa de Alienados sao inspiradas pelos textos representativos e pelas conceps;6es dos seus autores. Criteriosamente seleccionadas, Ibidem, p. 45. CRUCHINHO, Fausto - <<A Divina Comedia». In: Catdlogo Festival Insanitlttdt::r. Lisboa: Geniuzastare/ Associac;:ao Cultural, 1999, p. 35. 6 7 167 estas personagens reproduzem argumentos que assumem uma forma absoluta e totalizadora, nomeadamente as questoes da natureza do homem e do seu relacionamento com a ideia de divindade. Cada personagem representa um ponto de vista, uma forma distinta de observar e compreender a realidade. Contudo, esse ponto de vista nao e individual OU subjectivo, pois e representativo de um quadro cultural que essa personagem tipifica. Assim, esse ponto de vista, apesar de nao se impor sobre OS outros, e profundamente objectivo. Do ponto de vista formal, existem tres tipos de personagens: personagens transpostas da literatura e limitadas ao nivel do discurso Uesus Cristo, Raskolnikov e Sonia, Ivan e Aliocha, Ldzaro), personagens baseadas em textos e inspiradas em estere6tipos (o Profeta, o Filosofo, Fariseu, Marta e Maria, Addo e Eva) e, finalmente, personagens originais (Direct01~. Cada tipo de personagem obedece a uma constrw_;:ao e a um estilo de interpretas;ao diferente (da representa<_;:ao a cita<_;:ao). Addo (Carlos Gomes) e Eva (Leonor Silveira) Invariavelmente, uma obra que tern por ultimo prop6sito reflectir acerca da natureza humana a partir da cultura judaico-crisci teria de iniciar o seu percurso com o acto criador da vida: o epis6dio biblico da expulsao de Addo e Eva do Paraiso (Genesis 3, 1). Ap6s a expulsao, Eva procura expiar o pecado atraves da abstinencia de prazeres carnais, encarnando a figura de Santa Teresa de Avila (1515-1582). Eva/Santa Teresa acredita que s6 atraves do sacrificio terreno e possivel alcans;ar a salva<_;:ao da alma. A escolha de uma figura representativa das correntes misticas do Cristianismo procura enriquecer o debate acerca da evolu<_;:ao da doutrina de Cristo. Considerada santa por uns e mit6mana por outros, Teresa de Avila e sobretudo um modelo da submissao e dedica<_;:ao absoluta do Homem a Deus. Devido a uma suposta interven<_;:ao divina, Teresa de Avila julga-se a eleita para ser esposa de Cristo. No entanto, numa epoca de radical interdi<_;:fo do prazer (incluindo o amor mistico a Cristo), esta pratica a autoflagela<_;:ao como prova da sua cren<_;:a e promove uma profunda reforma na Ordem do Carmelo, reivindicando um regresso a observincia estrita, a pobreza absoluta, a vida austera e a clausura. 8 Inconformado, Addo nao aceita esta recusa de Eva/Santa Teresa aos prazeres carnais. Sentindo-se lesado nos seus interesses - afinal Eva foi criada propositadamente para si -, Adao revolta-se contra a moral crista de sacrificio e resignas;ao, acusando Deus de o trair. Esta trai<_;:ao e materializada no filme pelo abandono do Homem, por Deus (morte do Director) e por Jesus Cristo (ascensao ao Paraiso), na Casa dos Alien ados. A personagem feminina em questao serve tambem para exemplificar a eterna dualidade feminina, que pode representar duas imagens opostas: a tenta<_;:fo e a santidade. A utiliza<_;:ao de Eva, a primeira das mulheres, para ilustrar esta dualidade revela uma certa perversidade do autor. De resto, esta dualidade tambem se reproduz na 8 TINCQ, Henri - «A carmelita de Avila, em directo com o ceu». In: Os rias de profetas, pecadores e de santos. Lisboa: Gradiva/Publico, 1999, p. 147-152. 168 personagem Sonia, uma prostituta que dedica a Raskolnikov. os seus pecados pelo amor redentor que Director (Ruy Furtado e Manoel de Oliveira) Em termos aleg6ricos, o Director assume o papel de Deus. Administrador da Casa de Alienados, e esta personagem quern decreta a expulsao de Adao e Eva do Paraiso para o mundo terreno. Assumindo caracteristicas de omnipresenc;:a e omnisciencia, o Director representa a "palavra de ordem", ou seja, incorpora a autoridade e a ordem que rege o mundo. No entanto, esta autoridade atravessa uma fase de duvida da autognose e de pessimismo em relac;:iio ao futuro do homem e da sua sociedade. Perro do final do filme, perdida a esperarn;a, o Director materializa o pessimismo que anunciara antes, optando pelo suiddio. Ap6s uma simb6lica "morte de Deus", o homem e o mundo ficam 6rffos e entregues ao seu destino. Esta morte do Director representa sobretudo o abandono do Homem pelo seu Criador, numa demonstrac;::io de que e "a vaidade da criac;::io que mata Deus". Deus abandonou o Homem porque este o desiludiu, duvidando da sua criac;:ao: a guerra, matam e entregam-se aos desejos carnais". 9 Em termos cinematograficos, esta personagem e tribud.ria da constrm;ao estilistica da figura do medico nas obras do expressionismo alemao. A construc;:ao td.gica da personagem remete-nos para figuras emblematicas do cinema expressionista como o Dr. Caligari ou o Dr. Mabuse. Nas obras mais representativas do expressionismo alemfo, a figura do medico e perversamente associada a loucura e a manipulas:ao hipn6tica dos doentes. Em D1: Mabuse, Der Spiele1· (Fritz Lang, 1922), o medico louco e a materializa<;:io imediata do caos social que afecta a sociedade alema do p6s-guerra, Conforme expressa 0 prologo do filme: numa rapida SUCessao de montagem, aparecem referencias directas a situas:ao decadente e violenta desse periodo, seguindo-se a pergunta «quern esra por mis disto?» e a resposta «eU>> acompanhada da do sinistro medico. 10 Jesus Cristo (Paulo de Matos) e o Fariseu (Luis Lima Barreto) A personagem que se ere Jesus Cristo inspira-se exclusivamente em textos da Biblia, limitando o seu discurso a passagens inscritas no livro sagrado do Cristianismo. Os principais epis6dios representados por esta personagem sfo: a expulsao de Adao e Eva do Parafso, a Ultima ceia (Mateus 26, 17) e a ressurreic;:iio de Lazaro Qoao 11, 25). Seguido por uns e negado por outros, o suposto Jesus Cristo acabara por ser condenado pelos ernrerime1ro1s, representantes da autoridade, tal como o verdadeiro Messias cristao havia sido julgado e condenado ha dois mil anos pelos judeus. Mais uma vez, o Homem moderno e a sociedade influenciada pelo iluminismo e pela racionalidade parecem niio estar preparados ou dispostos a receber a boa-nova trazida pelo fllho de Deus. CRUCHINHO, Fausto - ob. cit., p. 35. SADO UL, Georges - Histriria do Cinema Mundial. Das rizonte, 1983, Vol. 1, p. 169-195. 9 10 169 aos Nossos Dias. Lisboa: Livros Ho- No plano estritamente hist6rico, Jesus Cristo empreendeu uma clara ruptura com alguns fundamentos religiosos do judaismo farisaico, nomeadamente em quest6es de pureza e de piedade. Atraves de uma linguagem simb6lica e aleg6rica (as celebres pad.bolas), Jesus Cristo questiona a doutrina do Antigo Testamento e prop6e uma inflexfo nessa mesma doutrina ("inversao da pirfunide"): "Jesus prega nao o paraiso na terra, uma libertac;ao temporal, uma ap6lice de seguro para o ceu, mas o reino de Deus, ou seja, a antecipac;ao duma felicidade futura a que ele chama a vida eterna." 11 Em oposic;ao a este pretenso Jesus Cristo encontra-se o Fariseu, personificac;ao da seita judaica que simulava viver em santidade e que fora denunciada por Jesus. Recusando a mensagem de Jesus, o Fariseu acusa-o de ser um charlatao e de enganar os seus seguidores. A passagem biblica que traduz exemplarmente esta oposic;fo e confronto de ideias e o epis6dio da expulsao dos comerciantes do templo (Marcos 11, 15), que alude a valorizac;fo de uma religiosidade pura e externa a materialidade. Depois de procurar enganar Jesus Cristo com tentac;6es terrenas (sobretudo o dinheiro), o Fariseu e desmascarado e reconhecido em toda a sua hipocrisia e intriga. Como religioso judaico, o Fariseu recusa Cristo como o Messias prometido pelas profecias e acusa-o de ser um "impostor". 0 Profeta (Luis Miguel Cintra) e o Fil6sofo (Mario Viegas) Estas duas personagens promovem duas vis6es antag6nicas do Cristianismo. Atraves de uma dialectica q ue nos parece a conduta do filme, estas personagens parecem funcionar como dois moderadores do debate que se desenvolve atraves da exposic;ao dos diversos argumentos. Se o Profeta encarna a Fe, o FilOsofo encarna o Hedonismo, duas soluc;6es possiveis para a salvac;ao do Homem. 0 Profeta e retirado da pec;a teatral A Salvafdo do Mundo, de Jose Regio. Contudo, desengane-se quern esperava que esta personagem encarnasse uma especie de advogado de defesa do Vaticano e da doutrina da Igreja Cat6lica Apost6lica Romana. A semelhanc;a de Jose Regio e de Manoel de Oliveira, este Profeta defende um cristianismo com forte caracteristicas misticas e asceticas, numa especie de regresso a um cristianismo designado como "primitivo". Em contrapartida, a personagem o Filosofo e inspirada em textos de Friedrich Nietzsche e n' 0 Anti-Cristo em particular. Impregnado de prindpios laicos, o FilOsofo defende um sistema morale social que assenta na predominancia do Prazer enquanto finalidade da existencia humana. 0 Prazer, segundo o FilOsofo, materializa-se na luxuria (desejo carnal pela mulher), ira (sentimento que o estimula contra os adversarios), avareza (ambic;ao em aniquilar e substituir Deus), inveja (cobic;a pelo alheio), soberba (arrogancia no trato), gula (excessos materiais) e preguic;a (indolencia), ou seja, nos sete pecados capitais consagrados no catecismo da Igreja Cat6lica. Ao anuncio da morte de Deus pelo Filosofo, o Profeta responde com o anuncio do inedito Quinto Evangelho. As blasfemias nardsicas do auto-declarado Anti-Cristo, o Profeta assume a submissfo a Deus como {mica forma de redenc;ao possivel do 11 TINCQ, Henri - «Jesus, um temo sonhador da Galileia que quer revolucionar o mundo». In: TINCQ, Henri - ob. cit., p. 21-22. 170 Homem. 0 Filosofo acusa a santidade cat6lica de ser nefasta ao Homem e ao mundo, atribuindo-lhe um caricter idealista que derrota a "razao", o "instinto" e a "ciencia". Ldzaro (Miguel Yeco), Maria QUlia Buissel) e lVfarta (Maria Joao Pires) Este trio de irmaos da cidade de Bethania, repescado do celebre epis6dio biblico, permite a Oliveira expor duas quest6es fundamentais na discussao acerca do Cristianismo: o dogma da ressurreis:ao e a natureza da arte. A personagem que se julga passar pelo ressuscitado de Bethania simboliza a resposta crista para a salvac;ao do mundo: a redenc;ao pela ressurreis;ao do Homem. Segundo a tradic;ao crista, e atraves da ressurreic;ao que o Homem se liberta do pecado original e de todos os constrangimentos materiais, alcans;ando assim a recompensa do Criador. Essa recompensa passa pelo regresso do Homem ao Paraiso e pela sua consequente purificas;ao espiritual. As irmas de Ldzaro esboc;am uma outra hip6tese para a salvac;ao, alcanc;ada atraves da adorac;ao a Deus. Contudo, Maria e Marta simbolizam duas formas bastante distintas de exercitar uma mesma adorac;ao, seja pela orac;ao ou pelo trabalho. No contexto cristao, a orac;ao e o trabalho assumem uma simbologia cumpridora e purificadora; ora vejamos; a orac;ao e citada na Biblia enquanto uma prova do amor do Homem a Deus e, por seu lado, o trabalho e associado ao pr6prio Deus (Genesis) e citado enquanto finalidade da existencia humana. E tambem relevante que o trabalho surja na Biblia antes do pr6prio pecado. Como o pr6prio Oliveira reconhece, a escolha de Maria Joao Pires e da Musica para desempenhar esta personagem prende-se com a pretensao de articular o discurso acerca da natureza da arte com o diilogo do FilOsofo e do Profeta. Antes de mais, Marta representa o artista, um elemento fundamental no relacionamento entre o humano e a divindade. Raskolnikov (Miguel Guilherme) e Sonia (Maria de Medeiros) Este casal criado por Dostoievki para protagonizar Crime e Castigo e um dos elementos fundamentais na construc;ao da obra de Oliveira. Construidos como uma especie de reinvenc;ao invertida de Adao e Eva, este casal vive em sofrimento ap6s a concretizac;ao do pecado (assassinato e prostituic;ao), mas procura a redenc;ao atraves da aceitac;ao do castigo e consequente expiac;ao do Mal. Este casal e fulcral a obra porque e bastante representativo da natureza humana: vive "um drama de amor, de sofrimento, de ambic;ao de poder e dominio, de conquista, de pecado, enfim, esti la rudo." 12 Raskolnikov e um jovem estudante revolucionirio que vive a sonhar, nomeadamente em torno dos conceitos de Bern e Mal. Devido aos seus pensamentos e produc;ao intelectual, Raskolnikov resolve assassinar uma velha usuiria pelo dinheiro que esta possui e que ele necessita para sobreviver. Materializados os assassinatos da usuaria e de uma sua irma, o jovem estudante constata que o seu acto se deveu 12 Manoel de Oliveira entrevisrado. In: A Grande llusao, ob. cir., p. 43. 171 exclusivamente ao fasdnio de matar, de retirar a vida a outra pessoa. Atormentado pelo crime que cometera, Raskolnikov conclui que a unica forma de exorcizar o seu crime passara pela aceit~o de um respectivo castigo. Perro da loucura, o estudante confessa o seu crime e entrega-se a justi~a dos homens para se redimir perante a justi~a divina, s6 concretizavel devido ao apoio e amor que sente por Sonia. Sonia e uma prostituta que conhece hem os homens e o prazer carnal (desperta o desejo sexual do Fariseu e do Filosofo). A sua actividade na prostiu~a e contriria sua vontade, mas justificada pela necessidade de atender monetariamente sobrevivencia dos seus pais. Apesar de viver em pecado, segundo a moral crista, esta prostituta demonstra uma profunda cren~a na sua redens:ao, possibilitada atraves do amor que sente por Raskolnikov. Raskilnokov personifica a visao cat6lica do Homem. Segundo o cristianismo, "Deus criou o homem livre, mas responsive! pelos seus actos e pensamentos". 0 homem possui "o livre arbitrio na ops:ao dos actos e dos pensamentos" . 13 Tal como Adao e Eva, tambem Raskolnikov optou por infringir uma regra e deve, pois, assumir a responsabilidade dos seus actos. a a Ivan (Diogo Doria) e Aliocha Qose Wallenstein) Finalmente, Os lrmdos Karamazov, criados por Dostoievki, reeditam o eterno debate sobre a justifca~o do ateismo entre o descrente Ivan e o religioso Aliocha. Ivan dirige-se a Casa de Alienados para visitar o seu irmao Aliocha, que ai se encontra internado. Apesar de revelar interesse em se internar na instituis:ao, o Director rejeita-o sob o pretexto de nao haver lugar e de Ivan nao pertencer aquele espas:o. De facto, Ivan e uma personagem que provem do exterior - "como se ele estivesse fora do esquema e viesse explicar o esquema" - e promove uma declarada ruptura 'no filme. A participa¢o dos irmaos resume-se a uma {mica, mas capital, cena--sequencia. A prop6sito da narra¢o da parabola d' 0 Grande lnquisidor, desenvolve-se um diilogo a tres - os Karamazov e o Director - que precipita o encerramento trigico da comedia. A Musica ou o triunfo da Arte A Musica encontra-se presente na obra uma vez que uma das reflex6es fundamentais ai desenvolvidas se relaciona com a natureza e a essencia da Arte. Para Oliveira, a manifestas:ao artistica mais definida e abstracta e a Musica, permitindo tratar simultaneamente a Arte enquanto pritica de oras:ao e pritica mundana. A figura do Artista (Marta) complementa o diilogo entre o Filosofo e o Profeta, atribuindo-lhe uma importancia crucial no encerramento da comedia humana. A semelhans:a das outras personagens, tambem Marta prop6e uma solu¢o possivel para a salvas:ao do mundo e do Homem: "a interroga¢o sobre a humanidade encerra-se com o triunfo da arte, desistindo o artista da vaidade de se aproximar do Criador" . 14 13 OLIVEIRA, Manoel de - «Pecar por nfo pecan>. In: Rigio, Oliveira e o Cinema. Vila do Conde: Camara Municipal de Vila do Conde/Cineclube de Vila do Conde, 1994, p. 51. 14 CRUCHINHO, Fausto - ob. cit., p. 35. 172 Se procurarmos pormenores, constatamos que a mlisica se ouve antes do pecado original e depois da redenyao do homem, ou seja, a arte sobrevive a pr6pria existencia humana. Quando todas as personagens parecem ignorar ou insurgir-se contra Deus, apenas Marta e a sua musica parecem ter a lucidez suficiente para continuar a desempenhar o seu papel na ordem natural. Apesar das duvidas e das interrogac_;:6es despontadas pelo dialogo entre o Fi!Osofo e o Profeta, a Arte triunfa pela sua coerencia, radicada numa especie de simbiose entre o sagrado e o profano. 0 debate em causa op6e duas concepc_;:6es antag6nicas de Arte: o Filosofo acredita na express:fo artistica como "uma virtude do corpo [... ] uma inteligencia, uma sensibilidade que o corpo encerra'', fazendo o Homem substituir-se a Deus e tornar-se "um Super-Homem"; em oposic_;:ao, o Profeta acredita que a Arte seja "um dom de Deus"- detem o poder divino da criac_;:ao. Segundo este ponto de vista, a expressao artistica, enquanto processo criativo, e nefasta ao Homem porque revela todo o seu "orgulho e vaidade" e pode leva-lo a confundir-se com o Criador. Finalmente, parece unanime que o elemento musical assume n.a obra uma preponderincia identica a da imagem e da palavra. Em termos formais, a presenc_;:a da musica e constante e not6ria, servindo frequentemente como instrumento catalizador do desenvolvimento da narrativa, nomeadamente nas cenas de conjunto. 1 5 Conclus6es ve «caro Profeta, a Humanidade e louca e ndo se dd conta da sua loucura. - Nao vejo grande ma! nisso, amigo Filosofo. Assim pode ati, quase, ser feliz. - Com efeito, se o conceito de Felicidade e inconsciencia, ·ate poderia ser assim. Mas pensar a felicidade neste mundo e uma brincadeira... e a verdadeira loucura. » Dia.logo entre o Fi!Osofo e o Profeta. A justificac_;:ao do titulo A Divina Comedia nao esti relacionada com a obra hom6nima de Dante Allighieri, apesar de Manoel de Oliveira tambem se debruc_;:ar sobre a reflexao de conceitos como o Bern e o Mal ou o Pecado e a Santidade. Esta comedia oliveiriana recebe o titulo de "divina'' sobretudo porque o Director da Casa de Alienados e Deus. No entanto, o real objecto desta comedia e o Homem e as suas representac_;:6es luz da cultura ocidental. Contrariando as aparencias, todas as personagens "alienadas" que habitam a obra de Oliveira sao "lucidas". Contudo, esta lucidez advem-lhes dos quadros mentais e sociais que enquadram hist6rica e culturalmente os seus argumentos. A construc_;:ao de diilogos e de encontros historicamente improvaveis e impossiveis e 0 ponto de partida para uma reflexao em torno dos principais quadros culturais fundadores da sociedade ocidental contemporinea. Os simbolos sao um dos principais mecanismos que assistem a construc_;:ao da obra aqui tratada. Desde os animais (a serpente e a pomba), aos trajes das personagens a !5 «Simbologias em A Divina Comidia de Manoel de Oliveira». In: Actas do Congresso Intemacional Literatura, Cinema e Outras Artes. Porto: Universidade Fernando Pessoa, 2001, p. 185-186. 173 (vermelho da prostituta Sonia, preto do assassino Raskolnikov, branco da artista Marta), ao jogo entre a luz e a sombra, a linguagem simb6lica assume uma importancia determinante na captac;:io de informac;6es codificadas que complementam a obra. A moral da parabola dostoievskiana do Inquisidor Mor encerra tambem a moral desta comedia oliveiriana. Num mundo cada vez mais disputado par ortodoxias de varias origens, Oliveira apela para a afirmac;:io de um espfrito heterodoxo, para o triunfo da Humanidade ~nquato comunidade cosmopolita e ecumenica. Mais importante que impor modelos totalitirios de interpretac;ao do Homem, convem a Humanidade o definitivo triunfo do respeito e compreens:io do pr6ximo, o verdadeiro reconhecimento do espfrito heterodoxo que encaminhar:i o Homem a redenc;:io e a refundac;:io enquanto ser liberto e absoluto. Fontes A Divina Comedia, de Manoel de Oliveira (1991). Textos: excertos da Biblia, Crime e Castigo e lnndos Karamazov de Fiodor Dostoievski, Salvar;do do Mundo de Jose Regio e Anti-Cristo de Friederich Nietzsche. Musica par Maria Jo:io Pires. 174