O humano em Homero
Autor(es):
Alves, Marcelo
Publicado por:
Annablume Clássica; Imprensa da Universidade de Coimbra
URL
persistente:
URI:http://hdl.handle.net/10316.2/24339
DOI:
DOI:http://dx.doi.org/10.14195/1984-249X_8_4
Accessed :
17-Jun-2020 05:16:01
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8
jan.2012
issn 2179-4960
R E V I S T A
ARCHAI JOURNAL: ON THE ORIGINS OF WESTERN THOUGHT
desígnio
8 jan.2012
o humano em homero
Marcelo Alves*
ALVES, M. (2012). “O Humano em Homero”. Archai n. 8,
jan-jun 2012, pp. 39-46.
RESUMO: Súplica e hospitalidade – dois daqueles valores
* uFSC/unIVaLI.
Introdução
que, em fins do século V a.C., chegam a ser considerados por
Tucídides e Eurípides como “as leis comuns dos Helenos” – são
no segundo canto da Ilíada, temos uma das
aqui pensadas no contexto da poesia homérica e apresentadas
poucas cenas em que homero se ocupa em narrar a
como índices daquilo sem o qual não se pode mais falar da hu-
participação do homem comum, do homem do povo,
manidade dos envolvidos em uma relação. O respeito pelo outro
na Guerra de Tróia. ulisses, instigado por atena,
aparece, então, como valor fundamental para a preservação e
procura demover os gregos de partirem sem travar
promoção da humanidade, tanto daquele que respeita quanto
a batalha definitiva contra os troianos. Para tanto,
daquele que é respeitado. E essa dimensão do humano, que
o herói adota duas posturas bem distintas: quando
costuma ficar ofuscada diante das façanhas dos heróis e das
encontra outros heróis, ele se dirige a eles com
tramas divinas, ocupa lugar central na obra de Homero.
“termos brandos”, em tom de conselho, tentando
PALAVRAS-CHAVE: Súplica, Hospitalidade, Humanidade,
Homero
persuadi-los (198?, v. 188-198, p. 61); quando encontra homens do povo em algazarra, ele os cutuca
com um cetro e, aos gritos, xinga-os e manda que
ABSTRACT: Supplication and hospitality – two of those
sigam aquilo que os aristói, os melhores, aconse-
values that, at the end of the fifth century BC, are regarded by
lham: “Pára essa bulha, covarde, e atenção presta
Thucydides and Euripides as “the common laws of the Hellenes” –
aos ditos dos outros que são melhores do que tu,
are designed here in the context of Homeric poetry and presented
pois te mostras imbele e sem préstimo. Não vales
as signs of what is indispensable to speak of the humanity of
nada na guerra ou, sequer, nas reuniões dos Argivos”
those involved in a relationship. Respect for whoever then appears
(198?, v. 200-202, p. 61). Em seguida, Homero ainda
as a fundamental value for the preservation and advancement
fornece a descrição de um personagem que serve
of humanity, either from the one who respects or from the one
como grande caricatura do homem do povo: é Tér-
Who is respected. And that human dimension, which often gets
sites, falastrão sempre disposto a criticar e insultar
overshadowed on the exploits of heroes and plots of the divine,
os aristói, arrancando o riso de seus companheiros.
is central in the work of Homer.
A descrição física que é feita dele reforça a repug-
KEYWORDS: Supplication, Hospitality, Humanity, Homer
nância que o seu caráter produz junto aos heróis
(Aquiles e Ulisses o odiavam): “Era o mais feio de
39
quantos no cerco de Tróia se achavam. Pernas em
só torna ainda mais pesado o fardo da sua condição
arco, arrastava um dos pés; as espáduas, recurvas,
de humano, condição que, no limite, partilha com
se lhe caíam no peito e, por cima dos ombros, em
todos os outros homens, nobres ou não. É dessa
ponta, o crânio informe se erguia, onde raros cabelos
humanidade, em toda a sua complexio oppositorum ,
flutuavam” (198?, v. 216-219, p. 62).
que Homero e, depois, os tragediógrafos se ocupam,
1
A passagem ajuda a compreender a concep-
uma humanidade que só pode vir completamente à
ção de humanidade com a qual Homero opera. Ela
tona por meio da comparação e da tensão entre as
expressa uma opinião bastante desfavorável em
atitudes heroicas e aqueles valores tidos, ou senti-
relação ao homem do povo, uma opinião, aliás, que
dos, como sagrados.
reiteradamente aparece nos textos clássicos gregos.
O propriamente humano, aquilo no homem em re-
O humano na Ilíada
lação ao qual vale a pena fazer poesia, tragédia ou
filosofia estava, para os gregos, em outro lugar que
Entre os Gregos, algumas práticas encarnavam
não nos homens comuns, com os quais se podia,
valores que, pelo amplo reconhecimento que ti-
quando muito, fazer comédia, e mesmo assim quase
nham, chegaram a ser percebidos, em fins do século
sempre na condição de coadjuvantes, como pode ser
V a. C., como “as leis comuns dos helenos”. Eram
visto, por exemplo, em Aristófanes. Em Homero, o
valores que, pressupunha-se, deveriam ser observa-
sumamente humano é encarnado pela figura destes
dos por qualquer grego e qualquer polis, eram suas
seres que são apresentados como intermediários
leis não escritas (ainda que não fosse tão raro assim
entre os homens comuns e os deuses, por estes
encontrar quem não os respeitasse ou fizesse apenas
seres que tão frequentemente desprezam os homens
um uso oportunista deles, como vários relatos de
de baixa condição, estes seres que podem ser tanto
Heródoto e Tucídides, por exemplo, testemunham).
benfeitores quanto malfeitores, podem tanto salvar
Não respeitar estes valores, equivalia a colocar-se
quanto destruir cidades: os heróis. Mas, é preciso
fora da civilização, era colocar-se ao nível da bar-
não esquecê-lo: apesar da linhagem divina que
bárie. Em síntese, são eles: dar funeral aos mortos,
tanto gostam de ostentar e da reiterada compara-
acolher os suplicantes (inclua-se aquele que se
ção de suas façanhas com os feitos próprios a uma
rende no campo de batalha, cuja vida deve, então,
divindade, estes seres têm bastante de humano, a
ser poupada), saber dar e receber hospitalidade e
começar pelo fato decisivo, do próprio ponto de vista
cumprir os juramentos (ou seja, cumprir com a pala-
homérico, de serem mortais. Além disso, a dimensão
vra dada). São deveres cuja origem é religiosa e que
heroica de seu agir representa, antes de tudo, a
dizem respeito diretamente às relações humanas,
exacerbação de uma ambiguidade que é própria à
deveres estes unificados por um mesmo princípio:
condição humana e que Sófocles, em sua Antígona,
o respeito pelo outro, e isso inclusive na situação
consagra por meio do adjetivo deinós, usado para
limite da guerra, cuja regulação parece ter sido
qualificar o homem como um ser admirável, extra-
justamente a preocupação inicial em nome da qual
ordinário, poderoso, engenhoso, mas também como
tais valores foram concebidos (ROMILLY, 2002, p.
um ser terrível, temível, perigoso, mau, funesto;
42). Este outro lado das virtudes guerreiras aponta
enfim, trata-se, em linhas gerais, da descrição do
para o respeito do humano, ou seja, daquilo sem
homem como um ser capaz de grandes feitos, quer
o qual os inimigos não podem mais se perceberem
para o bem, quer para o mal (2003, v. 332-375, p.
como homens, mas apenas como bestas. O humano
52-53). Nesse sentido, o herói e o seu destino dizem
para o qual estes valores apontam, e que é o foco
respeito àquilo que o homem traz consigo em potên-
deste artigo, não é, portanto, aquele no sentido
cia, àquilo que pode lançá-lo para além do comum,
amplo e complexo do termo – que precisaria incluir,
do ordinário. No herói homérico, nada é medíocre,
ou pretender incluir, por exemplo, o conjunto dos
nem mesmo a sua dor, que frequentemente o obriga
limites e possibilidades dos seres humanos – mas o
a lembrar que toda a sua honra, coragem e glória
humano restrito a um certo minimum, àquilo sem o
40
1. A expressão é usada por Junito
de Souza Brandão para definir o
herói (1993, p. 68, 71), mas é
também bastante adequada para
qualificar a própria condição
humana, se entendermos o
herói como exacerbação das
possibilidades e limites humanos.
Dizer que o homem é deinós,
como faz Sófocles, equivale a dizer
que ele – tanto quanto aquele
que representa a sua idealização
poético-religiosa, o herói – é uma
complexio oppositorum.
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qual não se pode mais falar de humanidade para qua-
vaga como mendigo pela Grécia, acompanhado por
lificar e definir aqueles que integram uma relação.
Antígona, até chegar a um bosque em Colono, ime-
De Homero a Tucídides, multiplicam-se as
diações de Atenas, onde suplica asilo ao rei Teseu,
passagens e situações em que esses valores são evo-
que o acolhe e o protege da tentativa de Creonte
cados: para o primeiro, enquanto leis divinas; para
de repatriá-lo para Tebas: eis o tema de Édipo em
o segundo, após todo o processo de transformação
Colono, de Sófocles.
sofrido pela e com a polis democrática, quase como
Ainda que estes quatro valores comuniquem-
um, dir-se-ía hoje, direito das gentes. Presentes nos
-se entre si pelo fato, já assinalado, de terem como
mitos, principal matéria-prima dos tragediógrafos,
princípio comum o respeito pelo outro, há entre
esses valores também serão abundantemente temati-
dois deles uma relação tão íntima que, para bem
zados pelas tragédias e, por meio delas, apresentada
compreender um, é preciso levar em consideração
a transição de seu fundamento religioso para um
o outro: acolher aquele que suplica e saber dar e
fundamento cada vez mais jurídico-político.
receber hospitalidade. A propósito, talvez não seja
O ciclo de tragédias dedicadas às desventuras
por acaso que o ciclo das tragédias envolvendo
da família de Édipo é exemplar quanto à recorrente
diretamente Édipo tenha como origem a quebra da
abordagem – logo, também quanto à importância
lei da hospitalidade e termine justamente com a
– daqueles valores, pois cada um deles cumpre,
súplica por asilo. Legítimo e jovem herdeiro do trono
no conjunto das peças, algum papel decisivo nas
de Tebas, Laio seria alvo de um usurpador do trono
tramas. Vale recapitular: na origem da tragédia fa-
e, por isso, teria, segundo uma das versões do mito,
miliar está o desrespeito à lei da hospitalidade (na
procurado refúgio no reino de Pélops. Se Laio, aquele
juventude, Laio, futuro pai de Édipo, é hóspede do
príncipe que ganhou asilo, trai a confiança de seu
rei Pélops e, apaixonado, rapta seu filho, Crisipo,
anfitrião, Édipo – aquele que aprendeu e se purificou
atraindo sobre si uma maldição lançada por seu anfi-
de seus erros por meio de terrível sofrimento, aquele
trião); o descumprimento da palavra dada será – em
mendigo, aquele suplicante que teve a sua súplica
Sete contra Tebas, de Ésquilo, e em As Fenícias, de
por asilo atendida – honrará seu anfitrião, trazendo
Eurípides – a causa imediata da morte de Etéocles e
não desgraças, mas bênçãos ao solo que o acolheu:
Polinices, ambos filhos de Édipo e que se entrematam
assim, o equilíbrio rompido por Laio é restabelecido
no campo de batalha (eles haviam acordado cada
por Édipo em Colono.
qual permanecer no trono de Tebas por um ano, mas
O deus protetor dos suplicantes é, bem sig-
após o primeiro ano, Etéocles recusou-se a ceder o
nificativamente, o mesmo da hospitalidade, Zeus,
cetro, o que fez com que Polinices, furioso, procu-
em cuja balança de ouro, narra a Ilíada, pesa o
rasse apoio na rival Argos e comandasse um terrível
destino dos mortais e vela para que os pratos sem-
ataque contra a sua cidade natal para conquistar o
pre recobrem o seu equilíbrio, ou seja, vela para
trono); o esforço de Antígona para sepultar Polinices
que a injustiça não prevaleça e, assim, o mundo
e a lei proibitória ditada por Creonte estão no centro
se mantenha equilibrado. A própria Ilíada é a nar-
do enredo da tragédia Antígona, de Sófocles (e o
rativa de um mundo em busca de seu reequilíbrio.
mesmo conflito aparece ao final de As Fenícias, de
E o desequilíbrio que está na origem do episódio
Eurípedes, que também escreveu uma As Suplicantes,
mais marcante da mitologia grega, a Guerra de
que tem como tema a súplica das mulheres de Argos
Tróia, é o desrespeito à lei da hospitalidade: Páris
pedindo a intervenção do mítico rei de Atenas,
é hóspede de Menelau, de quem rapta a esposa,
Teseu, para que este intervenha junto aos tebanos,
Helena. Diferentemente daquilo que pode imaginar
obrigando-os a conceder que elas prestem as devi-
um desavisado leitor contemporâneo, Menelau não
das honras fúnebres aos guerreiros argivos mortos
é apenas mais um marido traído que quer matar ou
na grande batalha contra Tebas); expulso de Tebas
quebrar a cara do amante; ele encarna, sobretudo,
por seus filhos, após a terrível descoberta de que
um valor sagrado que foi violado e que, por isso, é
matara o pai e casara-se com a própria mãe, Édipo
capaz de mobilizar tantos aliados e fazer o conflito
41
tomar as proporções que tomou. Por sinal, será a
a acolher uns aos outros, especialmente aqueles
Zeus, o garantidor da justiça e aquele que vela pela
que, dilacerados pelo destino, suplicam. Enquanto
lei da hospitalidade, que Menelau dirigirá, no Canto
fala, Aquiles ergue Príamo e faz com que ele se
III, sua prece antes de atacar Páris (Alexandre), uma
sente: fala e gesto convergem. Aceitar a súplica
prece que evidencia o princípio que está em jogo:
significa acolher o outro, recebê-lo, tratá-lo com
hospitalidade. Aquiles entregará o corpo de Heitor,
Dá-me, Zeus pai, que consiga castigo infligir a Ale-
mas antes tratará de Príamo como a um hóspede:
xandre, causa de minha desonra! Que sob meus golpes
providenciará uma ceia e preparará para ele um leito.
sucumba, para de exemplo servir aos vindouros, que
Depois, perguntará quanto dias serão precisos para
horror manifestem de retribuir com vilezas a lhana e
os funerais de Heitor e prometerá que os combates
amistosa hospedagem.
serão suspensos durante aquele tempo (o que, como
(198?, v. 351-354, p. 84)
indica o mito, será cumprido). Assim, o último
canto da Ilíada reúne e condensa poeticamente a
Pois bem, hospitalidade e súplica, e as ou-
experiência daqueles quatro valores (sepultar os
tras leis comuns dos helenos, comparecem, sendo
mortos, acolher o suplicante, saber dar e respeitar
respeitadas ou violadas, ao longo de toda a Ilíada
a hospitalidade e cumprir a palavra dada). Contudo,
e emprestam força dramática à cena que finaliza a
a súplica e a hospitalidade entre Príamo e Aquiles
epopeia. O poema homérico termina com uma impro-
é que dão o tom e o sentimento final do poema: é
vável súplica atendida, seguida de uma inesperada
por meio delas que Homero consegue fazer com que
– para nós, leitores do século XXI – hospitalidade
o seu ouvinte, hoje leitor, estabeleça, ao final, uma
oferecida. Ao ferir mortalmente Heitor, e vingar a
profunda relação de simpatia (literalmente, fique
morte de seu querido amigo Pátroclo, o colérico
com pathos, compaixão) pelos dois personagens
Aquiles anuncia ao moribundo guerreiro troiano
e por seus destinos. A bem da verdade, a simpatia
que seu corpo não será sepultado, e sim servirá
é pela humanidade que os dois compartilham, re-
de alimento para cães e aves. Heitor, agonizante,
velada em toda a sua extensão pela súplica e pela
suplica para que seu corpo seja entregue aos seus
hospitalidade, que abrem no coração da guerra
e possa receber as honras fúnebres, mas Aquiles,
esse terno instante, essa sagrada possibilidade, de
irredutível, não cede e, depois de arrastar o corpo
reconhecimento e reconciliação.
do herói diante das muralhas de Tróia, leva-o para o
acampamento grego. No meio da noite, Príamo, pai
O humano na Odisseia
de Heitor, chega às escondidas à tenda de Aquiles,
que espantado vê o ancião, na condição de supli-
Na Odisseia, súplica e hospitalidade continuam
cante, agarrar-se aos seus joelhos e beijar sua mão,
desempenhando importante papel na trama e nos
pedindo pelo corpo do filho e, para sensibilizar o
valores que a poesia homérica põe em movimento e
herói, comparando a sua condição de pai e de ancião
consagra. A narrativa central é em torno do esforço
com a de Pélias, pai de Aquiles e com igual idade
de Ulisses para, após a Guerra de Tróia, voltar para
avançada. A súplica feita por Príamo aplaca a ira
casa, mas ela é permeada por flashes que permitem
de Aquiles e leva-o, condoído, a uma dura reflexão
ao ouvinte/leitor saber o que está acontecendo
sobre a condição humana: “Viver sempre em tristeza
em Ítaca, o reino do herói, onde ele é por muitos
é lote humano: existir sem cuidados é dos deuses”
julgado morto e sua esposa, Penélope, cobiçada por
(195?, v. 525-526). O sofrimento aparece como
inúmeros pretendentes. Enquanto, em Ítaca, a lei da
aquilo que, de um lado, separa homens e deuses
hospitalidade é desrespeitada pelos pretendentes —
e, de outro, como aquilo que reúne os homens em
que abusam da condição de hóspedes, dilapidando
uma mesma comunidade: a comunidade daqueles
as riquezas de Ulisses e coagindo a sua família
que sofrem, e que, por isso, por compartilharem a
—, o próprio herói, entre suas muitas aventuras e
mesma condição miserável, devem estar dispostos
desventuras, ora é vítima da falta de hospitalidade
42
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2. Atenção: em muitas outras
edições, a passagem citada
corresponde ao verso 270 do Canto
IX da Odisseia.
3. “Le suppliant se confond avec
l’étranger dans la mesure où
ils implorent tous les deux une
protection dont ils se trouvent
exclus, le premier par quelque
injustice dont il est la victime
ou par suite d’un délit dont il est
l’auteur, et le second parce qu’il
est le nouveau venu, l’homme en
quête d’un foyer qui l’accueille”
(BEAUJON, 1960, p. 57). A
identificação entre suplicante
e estrangeiro ainda é reforçada
pela palavra grega hikétis, usada
para designar o suplicante e que
significa, no sentido próprio,
“recém-chegado”. Hikétides é o
título original de As suplicantes
de Ésquilo. Em suma, suplicante
e estrangeiro compartilham uma
mesma condição: a daquele
que precisa ser acolhido, a
daquele que, recém-chegado,
clama por hospitalidade. Nesse
sentido, portanto, é bastante
compreensível que a mesma
divindade os proteja (e que ora
ela seja designada como Zeus
Xénios ora como Zeus Hikésios,
ou ainda como Zeus Aphíktor,
variação poética, usada por
Ésquilo, que igualmente preserva
aquela polissemia) e que súplica e
hospitalidade sejam indissociáveis
no mundo grego antigo.
(quando é forçado a permanecer numa ilha pela
ligioso da súplica. Dos três elementos que compõem
ninfa Calipso ou quando, após suplicar hospitalidade
o rito da súplica – suplicante, suplicado e divindade
ao cíclope Polifemo, é tornado prisioneiro e tem
garantidora dos direitos do suplicante, Zeus Xénios
vários companheiros devorados pelo monstro), ora
(literalmente, aquele que protege os estrangeiros )
é acolhido como suplicante e tratado como hóspede
– o suplicado desempenha um importante papel
(quando suplica proteção a um rio para fugir da
intermediário entre aquele que suplica e a divindade
fúria de Poseídon; quando, náufrago, suplica ajuda
que o protege. O suplicante – que pode ser tanto um
à jovem Nausícaa ou quando, também suplicante, é
ser humano que sofre algum tipo de injustiça quan-
acolhido por Alcínoo, que o recebe em seu palácio e
to alguém perseguido por ter praticado um delito
lhe concede todos os meios para voltar à sua Ítaca).
ou simplesmente alguém abatido pelos reveses do
As duas narrativas paralelamente exploram o tema
destino – é aquele que, em suma, se encontra numa
da súplica e da hospitalidade e quando finalmente
desfavorável relação de desequilíbrio com o mundo
se encontram, com a chegada de Ulisses em Ítaca,
à sua volta e para quem só resta, como última al-
o poema concentra a sua força dramática na figura
ternativa, suplicar. Para de algum modo reequilibrar
de um mendigo, humilde suplicante, e o modo como
essa relação, ele suplica a alguém que goze de poder
ele é acolhido pela família e amigos de Ulisses e
suficiente para tanto. Assim, há uma desigualdade
o modo como ele é repudiado pelos demais. Uma
que está na base da súplica: de um lado, desigual-
última vez, e de modo definitivo, as leis da súplica
dade entre os poderes de um ser humano e aquilo
e da hospitalidade são postas à prova. Disfarçado
que o ameaça e, de outro, desigualdade entre ele e
de mendigo, Ulisses pode agora conhecer melhor o
aquele a quem suplica (sem contar a desigualdade
coração e o caráter de cada um daqueles que estão
entre a divindade e o suplicante e o suplicado). Como
em sua casa. Sua vingança contra os pretendentes
elemento intermediário, ao suplicado cabe um duplo
se reveste de um significado maior: ele passa a ser
papel decisivo: acolher ou recusar o suplicante e,
um instrumento da vontade dos deuses, o flagelo
ao fazer uma coisa ou outra, julgar o seu destino,
enviado para punir aqueles que não respeitam as leis
ou seja, ele é que está, momentaneamente, com a
divinas da súplica e da hospitalidade. No momento
balança na mão, ele é o intérprete da justiça dis-
fatal, o pretendente que se abraçar aos joelhos de
pensada por Zeus, ele representa, nesse instante, a
Ulisses – o gesto típico da súplica – não encon-
própria divindade, a ponto inclusive de poder descul-
trará acolhida, será abatido pela implacável mão
par, “perdoar” – privilégios estes que, obviamente,
do herói, pois ele próprio foi incapaz de acolher,
implicam uma descomunal responsabilidade, pois se
de distribuir dons hospedais e de respeitar os seus
pesar errado, se não dispensar a devida justiça, o
anfitriões. Ulisses tornará efetivo, como já fizera ao
suplicado prestará contas àquela divindade em nome
cegar Polifemo, um dos epítetos de Zeus: aquele que
da qual agiu (ou deixou de agir).
“vinga os suplicantes, e a bons e honrados hóspedes
2
protege” (1992, v. 205-206, p. 181) .
3
Portanto, o suplicado é a potência terrena
que empresta (ou não) efetividade à lei divina e,
Desse modo, uma das principais transforma-
ao mesmo tempo, aquele a quem cabe interpretá-
ções sofridas por Ulisses ao longo de sua jornada está
-la e aplicá-la ao caso concreto. E, de fato, a tarefa
diretamente relacionada à súplica e à hospitalidade,
não é simples, pois, ainda que a regra seja acolher
bem como aos valores inerentes a estes deveres
o suplicante, a Odisseia, este inigualável elogio da
religiosos: um dos maiores heróis da Guerra de Tróia
hospitalidade e da atenção devida ao suplicante, não
vive a condição de suplicante, depois passa para a
deixa de indicar os abusos que podem ser cometidos
de suplicado e, por fim, torna-se vingador de Zeus,
em nome da hospitalidade e da súplica: os preten-
para, assim, reconquistar a sua condição de herói,
dentes usam a lei da hospitalidade, banqueteando-
seu palácio e sua família. É preciso se deter um
-se e exigindo dispendioso tratamento, para assim
pouco mais em cada um desses papéis e na relação
forçar Penélope a decidir com quem se casar (2001,
entre eles para melhor compreender o fenômeno re-
Canto II, v. 122-128, 203-207, p. 45, 47); Iro é
43
apresentado como um mendigo que tira proveito de
terra se nutrem, tanto plebeu como nobre, que viesse
sua condição (é um mendigo profissional) e que é
a eles ter, por acaso.
insensível à miséria alheia e à lei da hospitalidade,
pois insulta e pretende expulsar violentamente do
Por esses atos iníquos domou-os o triste Destino.
(2001, Canto XXII v. 411-416, p. 377)
palácio o outro mendigo, Ulisses disfarçado (2001,
Canto XVIII, v. 01-31, p. 305-306); e, por fim,
Se piedade e discernimento são qualidades
diante da morte iminente, após todas as ofensas
exigidas de um suplicado, assim é porque a súplica, e
e violências praticadas contra os seus anfitriões e
aquele que a encarna, obriga o suplicado a adentrar
contra o disfarçado suplicante, até mesmo um dos
e a se mover no delicado campo dos valores. Apesar
pretendentes, Liodes, serve-se do expediente da
de toda a sua fragilidade, indigência e privação, o
súplica para tentar se salvar (2001, Canto XXII,
suplicante detém uma curiosa força, uma força, aliás,
v. 310-329, p. 374-375). Por isso, além de algum
que ainda hoje é experimentada cotidianamente a
tipo de poder, o requisito fundamental para que
cada vez que, por exemplo, alguém se depara com
o suplicado cumpra bem o seu papel é a sua sa-
um pedinte no semáforo, atirado nas calçadas da
bedoria, a sua prudência, que dele faz um homem
cidade ou deitado em um ponto de ônibus e sente
piedoso, em duplo sentido: religioso e humano. Ele
certo desconforto, mal-estar, incômodo com aquela
tem amor e respeito às coisas religiosas e compai-
situação, e mesmo quando desvia o olhar, o incômo-
xão da miséria e sofrimentos humanos. Respeito
do não desaparece. Com bastante freqüência, este
aos deuses e respeito aos homens confundem-se
incômodo transforma-se em irritação e, em certos
na ação do suplicado que bem executa a sua fun-
casos, em raiva contra aquele que o despertou ou,
ção. Assim procede Ulisses, aquele que Homero
atitude muito comum, leva o incomodado a justi-
insistentemente chama de o astuto, o prudente:
ficar para si, e para os que estão à sua volta, que
não poupa a vida do pretendente que lhe suplica
aquele que pede o faz não na verdadeira condição
porque, ímpio, ele faz apenas um uso oportunista
de mendigo, suplicante, mas como um vagabundo,
da lei divina, pois se manteve cúmplice dos crimes
um oportunista da boa fé alheia. O fato é que,
praticados pelos demais, mas poupa a vida de um
mesmo quando a súplica não é acolhida, aquele
aedo, Fêmio, que igualmente lhe suplica, porque
que se sente suplicado é forçado a (re)agir diante
ali ele estava trazido à força pelos pretendentes,
daquilo que a súplica e o suplicante representam:
e também a vida de um arauto, Medonte, porque
quer seja por meio de uma raiva que, antes de tudo,
sempre se mostrara solícito a seu filho, Telêmaco,
denuncia o quanto o suplicado se sente engajado,
que acolhe a sua súplica (2001, Canto XXII, v.
contra a sua vontade, em uma questão que dele
330-379, p. 375-376). E quando Euricléia, a velha
exige reconhecer ou ignorar, naquele instante e em
ama, começa a gritar de alegria ao ver todos os
relação a um indivíduo concreto, um valor tido (ou
pretendentes mortos, Ulisses profere uma admoes-
sentido) como fundamental; quer seja por meio de
tação baseada naquela dupla piedade exigida de
uma justificação que, ao tentar negar a condição de
um suplicado (e também de qualquer ser humano)
legítimo suplicante àquele que suplica, reconhece,
e sintetiza em um valor o conjunto dos valores
implicitamente, como insuportável a atitude de
violados pelos crimes perpetrados por aqueles que
ignorar aquilo que um suplicante representa, o valor
agora jazem no chão de seu palácio – o desprezo
que ele e seu gesto evocam. Mas o que é, afinal, um
pelo humano:
suplicante e que força é esta que ele possui? Vale
a pena retomar a inspirada reflexão de Beaujon:
Goza calada, velhinha; a essa grata expansão não
te entregues, pois é impiedade mostrar alegria ante um
corpo sem vida.
o suplicante é o homem que propõe ao olhar alguma
verdade terrível e secreta, algum problema do qual não
Estes tombaram por obra dos deuses e próprios
podemos nos esquivar de sua solução simplesmente
delitos; não respeitavam nenhum dos mortais que da
evitando vê-lo: o sofrimento está ali, ele se denuncia,
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desígnio
8 jan.2012
4. Tradução livre de: “le suppliant
est l’homme qui propose au
regard quelque vérité terrible et
secrète, quelque problème dont
on ne peut esquiver la solution
en évitant simplement de le voir;
la soufrance est là, elle s’avoue;
elle se dépouille; il faut, bon gré
mal gré, jeter les yeux sur elle,
il faut répondre au défi qu’elle
lance aux gens heureux. Comme
le suppliant est l’homme auquel
manque le pouvoir de conclure,
il doit trouver moyen de la
provoquer, cette conclusion. En
d’autres termes, il faut que le
suppliant, qui, au premier regard,
ne pèse pas grand-chose, prenne
la gravité d’un symbole; une
réponse efficace s’impose dès lors,
si seulement l’esprit fait acte de
préseance à la réalité humaine
qui lui est proposée. Répondre
au suppliant, c’est reconnaître le
poids qui est le sien dans le monde
des valeurs; c’est entrevoir ce que
signifie un homme et jusq’où porte
un symbole” (BEAUJON, 1960,
p. 59).
se desnuda; é preciso, quer se queira ou não, voltar os
mortes tidas como assassinatos, mas são, antes,
olhos para ele, é preciso responder ao desafio que ele
sacrifícios feitos em nome de Zeus, o protetor dos
lança às pessoas felizes. Como o suplicante é o homem ao
suplicantes e dos hóspedes. É precisamente em nome
qual falta o poder de realizar, ele deve encontrar algum
do respeito ao humano, valor consagrado pela lei
meio de provocar esta realização. Em outras palavras,
divina, que os pretendentes são tratados inumana-
é preciso que o suplicante, que, à primeira vista, conta
mente. Para re-equilibrar a ordem em seu mundo, o
muito pouco, tome a gravidade de um símbolo; com
solerte herói de Tróia, em plena conformidade com
isso, uma resposta eficaz se impõe tão logo o espírito
a condição atual de senhor em seus domínios, agora
se defronte com a realidade humana que lhe é proposta.
julga, executa e imola, ou seja, é juiz, verdugo e
Responder ao suplicante é reconhecer o peso que ele
sacerdote em sua casa (oikos). O heroísmo aqui não
possui no mundo dos valores; é entrever o que significa
está mais a serviço da polis, da guerra, como ocorre
4
um homem e até onde vai um símbolo .
na Ilíada, mas a serviço do oikos, das relações cotidianas, da justiça necessária para a vida em família
É porque desprezaram o humano que os
e comunitária. E nem é exclusividade de um aristói:
pretendentes não conseguiram entrever quem era
um porqueiro e um vaqueiro – para não falar da ama,
aquele suplicante e muito menos que ele pudesse
que presta valioso auxílio, ainda que não combata
ser um instrumento da punição divina. O disfarce
– são os leais companheiros de façanha de Ulisses
de Ulisses facilmente os engana porque eles já se
e seu filho Telêmaco; estes, por certo, na condição
haviam tornado incapazes de reconhecer o huma-
de protagonistas, mas que não podem prescindir do
no: o crime que eles praticam os torna cegos para
auxílio daqueles homens do povo. O Ulisses que, no
identificarem o seu próprio algoz. Diferentemente
Canto II da Ilíada, xingava, espancava e desprezava
do que ocorreu entre Aquiles e Príamo, entre Ulisses
os homens comuns, faz deles seus companheiros de
e os pretendentes não há mais reconhecimento
combate na Odisseia. O combate é outro e Ulisses,
possível: aquele não pode mais ser reconhecido
depois de sua jornada, também não é mais o mesmo:
por estes e estes não são mais reconhecidos como
suplicante que precisou ser, conheceu, junto com os
homens por aquele, pois perderam a sua humanidade
limites, o valor do humano.
ao deixarem de reconhecer a humanidade alheia.
Não por acaso, a cena da punição dos pretendentes,
Arremate
no Canto XXII, é reiteradamente apresentada por
Homero como uma verdadeira caçada: enquanto
Enquanto último recurso do qual um ser hu-
os pretendentes “corriam quais bois da manada,
mano pode lançar mão, a súplica é o que se pode
quando os inquietos moscardos os seguem”, Ulisses
chamar de uma experiência-limite e, por essa condi-
e seus companheiros, “como corvos de garras com-
ção, o valor que ela evoca é um valor fundamental,
pridas e bicos recurvos, dos altos montes provindos,
aquilo sem o qual a humanidade daquele que suplica
sobre aves inermes se abatem” (2001, v. 299-303,
e a humanidade do suplicado encontram-se, ambas,
p. 374); uma vez mortos e uns sobre os outros jo-
irremediavelmente ameaçadas. Solidariedade, com-
gados, os pretendentes são descritos “como peixes,
paixão, filantropia, humanismo, responsabilidade ou
que às praias ameiras recurvas os pescadores do
direitos humanos (dignidade da pessoa humana) são,
mar espumoso tirar têm por hábito em redes feitas
grosso modo, alguns dos diferentes nomes para esse
de malha” (2001, v. 384-386, p. 376); terminada
valor que a súplica evoca e do qual o suplicante é
a chacina, Ulisses encontra-se próximo aos corpos
poderoso símbolo. No entanto, não se pode esquecer
abatidos, “no jeito de forte leão que se afasta, de-
que, no contexto da Grécia Antiga, a súplica e o
pois de comer uma rês da manada ensanguentado
suplicante têm sobretudo um papel instrumental,
está todo na frente” (2001, v. 402-404, p. 377).
ou seja, são ocasião para a hospitalidade, esta sim
Assim, o sangue que cobre Ulisses não é
a prática (e, ao mesmo tempo, o valor) que protege
percebido como humano e, portanto, nem aquelas
aquilo que o suplicante simboliza. A hospitalidade
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é a prática que aproxima os homens, que os reúne
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
e, assim, os torna mais capazes de enfrentar as
adversidades e os sofrimentos que a sua condição
lhes impõe. Se o respeito pelo outro é o elemento
que unifica aqueles quatro valores caros aos Gregos,
a hospitalidade é, dos quatro, aquele que, se plenamente observado, realiza os demais. Dito de outro
modo, a observação estrita da lei da hospitalidade
já contempla aquilo que é recomendado pelas outras
três leis comuns dos gregos: sepultar os mortos,
acolher os suplicantes e cumprir a palavra dada. A
hospitalidade é, nesse sentido, a melhor expressão
do respeito pelo outro e, ao mesmo tempo, é a
prática e o valor que apontam para aquilo que no
homem não pode ser ignorado sem que isso não
custe a própria supressão do humano. Aquiles, o
herói colérico, ao dizer sim a Príamo diz sim, antes
de tudo, à sua própria humanidade, reconcilia-se
com o seu destino: mortal entre mortais, sabe que a
única imortalidade será a da memória sobre os seus
feitos, inclusive este – o de não negar o humano.
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Recebido em abril de 2011.
Aprovado em junho de 2011.
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