“O erro que tem causado muitos em Espanha, como ponderam os melhores políticos, é estar a corte em Madrid. […pois] havia de ter a corte onde as ondas lhe batessem nos muros”. Padre António Vieira (1695), Sermões Esta declaração de...
more“O erro que tem causado muitos em Espanha, como ponderam os melhores políticos, é estar a corte em Madrid. […pois] havia de ter a corte onde as ondas lhe batessem nos muros”.
Padre António Vieira (1695), Sermões
Esta declaração de Vieira é uma quase alegoria do tema de fundo deste texto, a utopia de uma imagem de capital para Lisboa, perseguida ao longo da 1ª modernidade, final ou potencialmente inscrita no conjunto de planos gizados na Casa do Risco das Obras Públicas entre 1756 e 1758, de que o Plano da Baixa de 1758 é o expoente máximo . Utopia que tinha de ter como pano de fundo projetos políticos de ambição hegemónica, entre os quais o iberismo que transpira dessa mesma asserção de Vieira. À data da catástrofe, o Terramoto de 1755, que catalisou esse bem-sucedido surto de planeamento, já tinham expirado todas as oportunidades que enquadraram esses projetos. Porém, o desejo da projeção mundial da capitalidade de Lisboa através da sua paisagem urbana ribeirinha, adiado no tempo longo da União Ibérica, concretizava-se então já sob a tónica do Iluminismo e de um projeto exclusivamente nacional.
A inédita projeção além-mar das nações lideradas pelas monarquias ibéricas entre a segunda metade do século XV e a primeira do seguinte, é um facto largamente estudado e debatido. Debate que tem servido para aprofundar a multiplicidade de razões desse fenómeno, do épico ao trágico, da dura realidade à utopia. Na própria formulação prínceps de Thomas More tem uma clara inspiração desses processos ibéricos, a começar pela personagem central do livro, o narrador e navegador português Rafael Hitlodeu que, como muitos outros, poderia também ter estado ao serviço da coroa espanhola. Eram tempos em que nas cortes ibéricas se usavam simultaneamente o português e o (então) castelhano, em que a par da rivalidade e da desconfiança se conjugava a complementaridade, se projetava a fusão através de uma endogâmica política de casamentos régios. O iberismo desse processo de projeção euro-ibérica no mundo, acabou escamoteado com o processo da Restauração portuguesa após a única experiência de fusão (1580-1640). Claro que para isso contribuíram fatores diversos, como a emergência expansionista além-mar de outras potências europeias e os sucessivos desequilíbrios e equilíbrios entre as monarquias-estados europeus, onde a Espanha foi quase sempre um ator principal e Portugal um peão de relevância variável.
Os processos expansionistas ibéricos acabaram por catalisar a aglutinação e consolidação dos respetivos reinos, bem como a caraterização da construção dos respetivos estados, e com isso a determinação do seu centro, das suas capitais, no caso português apenas a confirmação de Lisboa. Não é certo projetar o que não pôde acontecer, mas não será errado dizer-se que sem a expansão ultramarina Portugal independente não teria sido facilmente viável e Lisboa jamais teria atingido a pujança que, para sempre, a marcou. Contudo foi a utopia iberista o principal fator de atraso da sua reforma para uma imagem de capital com projeção mundial. Tudo isso fez com que quando ocorreu, na segunda metade do século XVIII tenha surgido anacrónica, quer no tempo (por atraso), quer nas soluções (por vanguardismo).