As utopias são historicamente marcadas pela simbiose entre uma problemática social e uma solução técnica. Desde da edificação de cidades à invenção de utensílios que permitiam ultrapassar questões de ordem mecânica, a natureza das utopias...
moreAs utopias são historicamente marcadas pela simbiose entre uma problemática social e uma solução técnica. Desde da edificação de cidades à invenção de utensílios que permitiam ultrapassar questões de ordem mecânica, a natureza das utopias teve não só uma origem de fundo numa falha identificada como biológica, como a solução apresentada recorre à técnica para perspectivar uma solução. Neste processo de problema/solução é indesmentível que o próprio humano se foi reconfigurando através do crescente uso da técnica que se expandiu à quase total dimensão da experiência.
Digo quase, porque ainda nos consideramos essencialmente biológicos. Apesar de a técnica ser hoje parte fundamental no funcionamento da nossa civilização, é de comum acordo que o limite no qual se funda o biológico ainda não parece ter sido ultrapassado. Mesmo perante as possibilidades que a medicina, principalmente, nos trouxe com as vacinas, os antibióticos ou os pacemakers, invenções tecnológicas que não causam estranheza pela forma como irradiam problemas que na pré-modernidade eram do quotidiano. Hoje em dia, a possibilidade de alguém falecer vítima de uma constipação é reduzida, mas essa conquista possível através da técnica, parece ter-se tornado tão vulgar que todos tomam-na como garantida.
Se a técnica era vista fundamentalmente como forma de curar o corpo humano sem “mexer” nele, actualmente à luz dos avanços científicos, nomeadamente nos campos da biotecnologia e da robótica, começa a ser possível teorizar sobre o melhoramento efectivo do corpo humano e das suas capacidades. A ideia de um pós-humanismo afigurou-se como projecção assente na possibilidade de com a ajuda da tecnologia, os humanos aumentarem exponencialmente a sua inteligência, ultrapassarem doenças e debilidades do seu corpo orgânico e enfim, vencer a morte.
Neste trabalho irei referir-me em concreto à utopia tecnológica contemporânea chamada Singularidade. Em resumo, a Singularidade remete para a fundamental ligação histórica entre tecnologia e biologia que permitiu o progresso da civilização humana. Autores como Ray Kurzweil e Oswald Spengler encontram neste paralelo a pista para que a tecnologia criada pelo humano, mais cedo ou mais tarde irá ultrapassar a capacidade humana por um desejo inconsciente de imortalidade. Nesta altura, a biologia humana tornar-se-á obsoleta e não teremos outra opção senão permitir que a tecnologia, historicamente exterior, invada definitivamente o corpo humano. A esta definitiva fusão da tecnologia com o corpo humano é chamada pós-humanismo ou Singularidade. Nas previsões da Singularidade, o primeiro passo para a evolução tecnológica será alcançar a capacidade computacional do cérebro humano. Existem várias opções neste campo de investigação: computação com nanotubos (tubos normalmente de carbono com um nanómetro de diâmetro), computação molecular, computação com ADN, computação com electrões (spintronics), computação com luz e computação quântica. Esta última convém referir, tem obstáculo apenas na incapacidade em encontrar forma de manter estável a temperatura ambiente do computador, obstáculo que está prestes a ser vencido conforme relata em notícia o jornal Público . Todas estas tecnologias serão infinitamente superiores à capacidade do cérebro humano que, segundo Hans Moravec, cientista de robótica do Carnegie Mellon University, terá, no caso dos quânticos, a capacidade de executar 100 triliões de instruções por segundo contra por exemplo a retina do olho humano que captura e processa cerca de 10 milhões de imagens por segundo.
Para Ray Kurzweil, autor do The Singularity is Near, a evolução tecnológica levou à computação que é um produto dos nossos cérebros e quando a computação atingir o nível do cérebro humano, através de tecnologias de computação e da compreensão/emulação do cérebro, a tecnologia suplantará o humano. Este processo levará à criação de métodos tecnológicos de melhoramento da espécie, através de biotecnologia e nanotecnologia. Kurzweil prevê que o humano fundir-se-á com a sua tecnologia melhorando-se a si próprio. Eventualmente, a tecnologia tornará a biologia obsoleta e o homem passará a ser mais máquina do que biológico. Aqui dar-se-á o início de uma era pós-biológica. Para chegar a este ponto a partir da actualidade (o livro data de 2004), Kurzweil aponta estratégias para o desenvolvimento de três áreas concretas e fala numa revolução “GNR”, genética, nanotecnologia e robótica, que trará um novo patamar evolutivo como relata Lipovetsky, “…segundo a corrente transhumanista, a união da genética, da robótica e das nano tecnologias permitirá transformar a própria definição do ser humano, o que constituirá uma mutação sem precedentes e verá o homem enriquecido nas suas capacidades fisiológicas e intelectuais: o cyborg verá a luz do dia e o techno sapiens terá substituído o homo sapiens. Ao mesmo tempo que exemplifica o poder da razão, a espiral da alta tecnologia não pára de segregar uma enorme quantidade de mitos e utopias….” .
Nesta perspectiva, de uma era pós-biológica, várias questões urgem resposta. Tentarei no âmbito do seminário aqui responder às seguintes formulações: afinal, quais as implicações de uma pós-humanidade? Da mesma forma que Leroi-Gourhan afirmou que para sobreviver o humano colocou a memória fora do corpo humano e depositou-a na cultura através do utensílio, será que podemos afirmar que a Singularidade poderá implicar o retorno do utensílio, da técnica ao interior do ser humano? Não será essa fusão entre tecnologia e biologia um novo pharmakon, uma nova divisão do logos e da praxis, que fará o humano “esquecer-se” de ser humano? Por que razão surgem estes discursos que encaram a tecnologia como o El Dourado da civilização?
Para tentar responder as estas questões, o caminho que me pareceu mais promissor, e articulando com as matérias do seminário, foi elaborar uma arqueologia da técnica tentando posteriormente perceber de que forma esta regressou ao interior do corpo humano num trajecto que nos leva desde do ponto de vista antropológico de Leroi-Gourhan até aos conceitos de dispositivo e biopolítica em Michel Foucault e Giorgio Agamben.
Veremos depois, à luz desta arqueologia, que implicações terá uma era pós-biológica sabendo que o próprio Foucault lembra-nos que o “humanismo foi construído como um rosto na areia”… e um dia virá uma onda.