A Minha Turma é Demais
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Sobre este e-book
Durante a fuga, se esconde num abrigo de órfãos e acaba socorrido pelos internos.
Mas a continuidade daquele socorro dependeria do quanto Léo estivesse disposto a ajudá-los a impedir que o terrível Sapo Gordo derrubasse o prédio do orfanato.
Cenário: Léo, seis crianças e um cachorro contra o homem mais rico da cidade.
E ainda tinha a questão com a turma do Piranha. Não dava pra vencer na força.
Léo só tinha um trunfo naquela missão quase impossível: A inteligência.
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A Minha Turma é Demais - Arnaldo Devianna
Capítulo 1
Léo passou voando pelo portãozinho lateral dos professores, cruzou a rua, tapou o rosto, flexionou os joelhos e se escondeu entre os outros alunos que aguardavam o ônibus na calçada oposta. Como lutaria sozinho contra três? Seria suicídio na certa.
Conferiu o entorno. A rota de fuga mais curta para casa passava bem no meio da praça, em frente à escola. Para ter alguma chance, só se ficasse invisível. Abaixou-se um pouco.
O ar cheirava a diesel queimado. Mordeu a ponta do dedo, massageou a testa. Preferiu avançar pela mesma calçada, mas a dor no local do murro que tomara há pouco no pátio do recreio, ainda embaralhava as suas pernas. Não conseguiria fugir por muito tempo. Além do quê, a garganta ardia horrores. Também, nunca correra tão rápido na vida.
Elevou-se, avistou adiante o Bacalhau, o Sardinha e o Piranha. Os três perseguidores saíam também pelo portãozinho lateral. O intestino borbulhou.
Ônibus e carros desmanchavam a muralha de alunos atrás da qual se escondia. Os punhos tremiam fora de controle. Droga!
Os moleques caminhavam rápido, em ziguezague, na sua direção.
Abaixou-se de novo. O mundo a desmoronar e ninguém para pedir ajuda naquela cidade idiota onde morava há pouco tempo. A respiração tinha intervalos mais curtos. Se continuasse ali, em breve seria visto. Se saísse, pior. De estalo, entrou num casario antigo com jeito de escritório e grudou as costas úmidas de suor na parede interna, ao lado da entrada.
Nenhum sinal de vida naquela sala enorme.
*
Precisava sair dali tão logo a barra limpasse e antes que o dono desse conta da invasão. Ao mínimo descuido, cairia nas garras do inimigo. Três contra um. Sem chance de vitória.
Com cuidado, espiou pela janela. Ainda tinha muita gente na praça. Avistou os moleques perto do coreto. Piranha coçava a nuca, Bacalhau mascava chiclete e o narigudo Sardinha apoiava as mãos sobre o busto de bronze do Tiradentes. A droga: cada um vigiava numa direção.
Voltou a grudar as costas na parede. Pelo jeito, não iriam desistir tão cedo. Se desconfiassem do esconderijo? Bastaria atravessar a rua… Pensou em fechar a porta e a janela próximas, mas o que faria se elas rangessem ou se o movimento chamasse a atenção dos delinquentes ou do morador? Melhor não arriscar. Melhor não fazer nada. Mordeu os lábios.
A fôlego começou voltar ao normal. Aquele casario velho, com jeito de escritório do lado de fora, por dentro não lembrava nada o local onde a mãe trabalhava. A sala gigante cheirava a óleo de peroba. Num canto, havia diversas caixas de papelão. Cada caixa tinha uma etiqueta com um nome: Lívia, Bia, Edgar, Táta, Júlia, Big, Rafa. Os moradores estariam de mudança? Chegando ou saindo?
Um cachorrinho marrom, tamanho médio, e gordo dormia próximo às caixas. Devia ser surdo, pois nem se incomodou com o invasor. Ainda bem.
À frente, três sofás velhos. Ao fundo, um televisor antigo se equilibrava solitário numa estante metálica, cheia de manchas de ferrugem. No canto, um violão. Nas paredes, diversas fotos de crianças.
O ruído fora de ritmo – bem provável de alguém lavando panelas na pia da cozinha – fez Léo olhar na direção do corredor, no fundo da sala. Ali deviam morar muitas pessoas.
Nisso, por descuido, a mochila caiu e estrondou no piso de tábuas.
Travou os movimentos.
– Ed, é você? – Uma voz feminina, cavernosa, ecoou.
*
Droga! Os músculos do pescoço repuxaram. Pronto, em segundos, seria posto porta afora a vassouradas, como se fosse um ladrãozinho de frutas. Na rua, levaria socos e pontapés dos moleques. Flexionou os joelhos, deslizou as costas na parede até colar o traseiro no piso de tábuas. Os sofás o esconderiam caso a proprietária surgisse na sala.
Uma rajada de vento bateu a porta e a janela que quis fechar.
Grunhiu.
– Edgar? Táta? Big? Meninas? – A mesma voz esticou os fonemas finais das palavras. Barulho de passos. A sombra no teto do corredor indicava a movimentação de alguém.
Não, não venha. Por favor. Daqui a pouco irei embora. Juro!
Cruzou os dedos e se encolheu mais. O lugar onde recebera a pancada ardeu. Pressionou as mãos entrelaçadas contra os lábios para segurar o gemido.
Daí, a sombra desapareceu do teto do corredor. E uma nova ventania trouxe o cheiro bom de macarronada ao molho. Aroma inconfundível. Ruído das panelas. A mulher não lavava a louça, preparava o jantar.
Fechou os olhos, abraçou os joelhos, a deliciar-se com o cheiro delicioso. A porta por onde entrou se abriu. Barulho de passos. Alguém começou a brincar com as cordas do violão, tal num filme de terror.
Abriu os olhos. Diversos adolescentes surgiram com expressões nada amigáveis.
– Qual é? Qual foi, carinha? – O garoto maior abriu os braços.
Léo prendeu o fôlego. O plano de sair sem ser percebido acabava de afundar no brejo. Com certeza, depois de lhe arrebentarem o nariz, seria expulso. A gangue do Piranha completaria o serviço macabro. Então, quebraria a promessa feita para a mãe de evitar a todo custo confusões na nova cidade. E como nada é tão ruim que não possa piorar, receberia o castigo dos castigos: voltaria para a capital, para a casa da avó maluca, da qual não gostava nadica de nada. Saio pela porta lateral e tento fugir pelos fundos? E se o muro for alto? E se o cachorro acordar?
De novo, deslizou as costas na parede até se levantar por completo, enquanto gesticulava a súplica de calma.
Seis contra um. Sem contar o cachorrinho marrom – o bicho acordara mal-humorado, rosnava e mostrava os dentes – e o garoto estranho seguia a bater nas cordas do violão de um jeito sinistro.
Cacilda!
*
Resolveu explicar o caso e pedir ajuda aos adolescentes. Não podia ser expulso. Se brigasse nos primeiros dias naquela cidade, a mãe lançaria a bomba atômica dos castigos: a casa da avó. Tome comida ruim, água de feijão cozido no lugar de Toddy, colheradas diárias de óleo de fígado de bacalhau… Puxa! Prendeu o fôlego. Se é que eles estariam dispostos a ouvi-lo!
Por sua vez, o grupo cerrou os punhos e fechou a cara.
– Fica de boa, carinha! Ou será pior! – O garoto maior, com uniforme da escola, apontou o dedo.
– Aqueles três imbecis não viram você entrar aqui. Deu sorte! – A menina loira falou baixinho. Depois de espiar a praça através da greta na janela, foi a primeira a relaxar o semblante de confronto.
– Como sacaram a minha fuga? – Soltou as palavras entaladas na garganta, bem devagar.
– Brô, eu vi quando tomou um baita murro do Piranha, depois fez a besteira de se esconder no corredor de cima do prédio da escola, pertinho do trio problema, decerto para ouvir a conversa, e foi descoberto. Daí, fugiu pelo portãozinho secundário. – O garoto maior cruzou os braços.
– Em seguida, invadiu a nossa casa! Enlouqueceu? Foi? – O menino de cabelos encaracolados falava e girava o dedo indicador em volta da orelha.
Léo mediu os oponentes.
– Explico! Não vi quem me golpeou. Escutava a conversa dos moleques para descobrir quem tinha me batido e por quê. Aí, o toque da droga do celular entregou meu esconderijo. Como X9 que não corre, morre. Fugi. No fim, sem opção, me escondi aqui. Estou frito de qualquer jeito, né?
– Se o Piranha te viu, sim! Se não, a porcaria é a mesma. A escola está cheia de dedo duro. Informação é moeda de troca para evitar agressões e descolar favores daquela gangue. – O garoto maior falou de novo.
– Brô, você tá numa tremenda enrascada. – O gorducho fez cara feia.
– O que pretendem fazer comigo?
Os adolescentes se entreolharam.
– Depende! – A menina loira o mediu de cima a baixo.
Léo coçou o canto da testa.
– Depende do motivo de ser perseguido pela gangue mais perigosa da escola. – O maior falou com voz firme.
Desgrudou as costas da parede:
– Já disse! Não sei! O Piranha ia falar o motivo, a droga do telefone tocou… Então fugi.
– Inacreditável! O carinha não tem noção no que se meteu. – O gorducho massageou o rosto redondo.
Os adolescentes se entreolharam mais uma vez.
*
Respirou fundo. Diante da enrascada com o Piranha, ganhar a simpatia deles poderia ser de grande ajuda. Para alcançar isso, decidiu mudar o foco da conversa.
– Vocês moram aqui?
– Sim e não. – A menina baixinha e morena cochichou.
– Moram ou não moram?
– Bom! Até a grande zebra, moramos! Depois, iremos para debaixo do viaduto. – A garota loira de olhos azuis parecia querer chorar.
– Grande zebra?
– Culpa do maior hiper mega ultra problema de todos! – A menina loira entrelaçou os dedos sobre o peito.
– Caramba! – Léo coçou o queixo. – E qual seria o maior…
– Precisamos nos mudar até o dia 21 e não temos para onde ir! – A garota baixinha apontou as caixas de papelão no canto da sala.
– Isso é daqui a sete dias! – Léo mordeu a ponta do dedão.
– Xiiiii! Fale baixo! Se a Mama descobrir você aqui, o expulsa. Aí, a gangue do Piranha te pega. – A menina morena, olhos de jabuticaba, assoprou a bronca.
– Seu Romário, o Sapo Gordo, comprou este casario e vai derrubá-lo para construir um hotel de luxo! – O menino gordo acrescentou.
– E seus pais?
– Se liga! Somos órfãos. Aqui funciona o abrigo da Mama Terê! – O garoto maior, com jeito de líder, apontou o piso. Tinha cabelos curtos, pequenas cicatrizes nos braços, rosto fino e orelhas de abano.
O menino de cabelos loiros encaracolados cruzou os braços, mudou as feições e encarou os demais.
– Abrigo? – Léo reparou de novo a sala. Agora, as fotos de crianças esparramadas pelas paredes e os três sofás faziam sentido.
O garoto do violão correu pela sala e sumiu por uma porta lateral.
– Passou dos cinco anos, adoção é loteria. Se você tiver quatorze, esqueça… E para piorar, ficaremos sem casa. – O garoto maior baixou a cabeça e deu um murro na própria coxa.
A menina loira agarrou os cabelos e completou:
– A situação é desesperadora!
– Então, podemos dar as mãos! – Léo grunhiu.
O menino loiro cruzou os braços e elevou o tom:
– Ei! Esperem! Qual o problema de vocês? Contar a nossa tragédia para esse invasor? Melhor colocar ele para correr e ponto!
– Que gritaria é essa aí na sala? – A mesma voz de mulher de minutos atrás ecoou no fundo da sala.
Todos se abaixaram.
Léo sentou nos calcanhares enquanto vigiava o movimento da sombra no teto do corredor. Deduziu que a dona da voz espiava a sala.
*
Meneou o pescoço. Não podia ser expulso antes de a barra limpar lá fora e, muito menos, sem conseguir a simpatia daqueles adolescentes.
Barulho de passos. Só faltava a dona da casa o descobrir…
– Não é nada não, Mama! – A menina loira providenciou a desculpa.
A sombra ameaçadora no teto desapareceu. Então, tentou atrair para si, de uma vez por todas, a simpatia deles:
– Na minha última cidade, uma aluna colocou fogo na biblioteca da escola sem querer. Pediu minha ajuda. Não foi fácil, não mesmo, mas consegui reconstruir o prédio com uma super ideia. Se não fosse por mim, a coitada teria sido expulsa e obrigada a pagar uma montanha de dinheiro.
Os adolescentes se olharam de um jeito estranho.
– Tá de brincadeira, né? – O gorducho cochichou.
– Como? Qual foi a ideia? – A menina loira abanou o queixo.
O garoto de cabelos encaracolados cruzou os braços de novo, mas o semblante parecia de curiosidade.
– Fizemos uma gincana e um concurso de rainha da pipoca. E ainda consegui unir os alunos com o lema juntos, podemos mais
.
– Rainha da pipoca? – O garoto loiro coçou a têmpora.
– Gincana? – A menina mais baixa levantou as sobrancelhas.
– Enfrentei o diretor casca grossa e a professora maluca de matemática. Fui perseguido pela polícia, pelo monitor da escola, fiquei preso numa masmorra e caí dentro da caixa d’água. Quase morri afogado. Maior confusão! Daria para escrever um livro, fazer um filme, uma peça de teatro ou a série de TV, do tipo Todo mundo odeia o Léo. Sacaram?
– Véio! Véio! – O gorducho dançava.
– Diretor casca grossa? – O menino maior retrucou. – Espere até conhecer a nossa diretora, a Dona Marilene, o ser humano mais desumano da humanidade.
Risos.
– Você deve ser inteligente pra caramba! – O gorducho esfregou as mãos.
– Legal demais! – A menina baixinha sapateou.
– Arrebentou a boca do balão! – Os olhos azuis da garota loira brilharam.
Sorriu. Pelo jeito, a manobra para ganhar a simpatia deu certo. Assim, evitaria a expulsão.
A turma cochichou entre si.
De repente, o menino de cabelos encaracolados saiu da roda e vociferou:
– Que tal uma troca, forasteiro?
– Tro-tro-ca? – Gaguejou.
– Isso! Pescamos os três peixões covardes e você nos ajuda a salvar o casario, tal fez com a biblioteca da sua outra escola! – A loirinha o olhou com jeito de desafio.
– Sem a gente, o Piranha vai te devorar inteiro! – O gorducho cruzou os braços.
Léo mordeu o punho. Foi burrice contar como resolveu o caso da biblioteca incendiada para órfãos prestes a ficar sem teto. Pressionou as bochechas com os dedos. Três meninos e três meninas. Com ele, sete. Ou seja, sete contra três. Não conhecia mais ninguém naquela cidade para socorrê-lo. Do lado de fora, o Piranha, o Sardinha e o Bacalhau o aguardavam. O confronto poderia acontecer naquele dia ou nos próximos. Já o problema daqueles órfãos, monstruoso. E se nunca tivesse ideias para trocar pela proteção oferecida? Aí, seriam nove contra um. Desastre à vista! Envolver-se noutra aventura perigosa deixaria a mãe histérica e detonaria a bomba atômica dos castigos. Aceitava a proposta ou não? Por fim, encarou o garoto maior como se dissesse: posso pensar?
A loira se levantou, espiou a praça pela greta na janela, depois gesticulou joia.
Todos se levantaram.
Capítulo 2
Léo andava a passos largos. Ante o acontecido, chegar em casa rápido e inteiro seria muito bom. Atrasos viravam broncas. Se aparecesse de olho roxo, voltaria direto para a capital. Argh! Lembrou-se dos terríveis sucos de couve, da comida intragável, do café ralo ou amargo demais. Correu as mãos pelo rosto.
A mãe ficara traumatizada ao vê-lo em apuros no caso da biblioteca na escola anterior e ainda tinha de lidar com a questão delicada e misteriosa do marido. Trabalhava em Portugal e parara de mandar notícias há um bom tempo. Ser adulto não