O príncipe gato e a Armada da Noite
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Sobre este e-book
Novas criaturas e enigmáticas magias envolvem o felino em uma trama ainda mais sinistra. Será a coragem e o empenho do grupo páreo para o poder maligno do Fauno Negro?
A Armada da Noite marca o fim da trilogia O Príncipe Gato, revelando antigos mistérios dos personagens e pondo-os à prova em desafios de tirar o fôlego. Não deixe de conferir o desfecho dessa empolgante aventura idealizada por Bento de Luca.
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O príncipe gato e a Armada da Noite - Bento de Luca
Um buraco na boina
Lino
Posso dizer que já não sou mais o mesmo. Uma densa e inquestionável descrença havia penetrado meu corpo. Pode parecer besteira, mas sentia minhas enormes orelhas pesarem como rochas, o que me deixava ainda mais desmotivado a sair do lugar. Há dias minha postura era a de um perdedor: os ombros voltados para a frente, a cabeça baixa e os olhos sem brilho. Sentia-me como um morto-vivo. Um errante desiludido e fadado à desgraça.
Por dezenas de vezes vasculhei os destroços sobre o Campo Madrepérola. A guerra havia deixado buracos em minha alma que não poderiam cicatrizar. As feridas estavam abertas, disponíveis para quem quisesse ver e enfiar as unhas. Era questão de tempo até que eu enlouquecesse com o silêncio e implorasse para desvanecer desta vida ingrata, resumindo-me a partículas de poeira. Mas minha hora ainda não havia chegado...
Muitos papéis encardidos, que continham meus vários projetos, espalhavam-se pelo solo da toca, a maioria deles rasgados e amassados, por um ímpeto de fúria que tive alguns dias atrás. Fome eu ainda sentia, mas não era tão forte quanto a vontade de ficar jogado em um canto escuro. Acredite, eu não era assim nos tempos de outrora... Muito pelo contrário, costumava levar alegria e diversão aos entes deste reino. Todos diziam: Vejam, o mágico Lino chegou. Quais serão os novos truques desta vez?
, O que será que ele vai tirar de dentro de sua boina?
. Pois é, os truques deste velho coelho rapino não foram suficientes para evitar tantas mortes na guerra. A magia fora questionada, meus objetivos cancelados.
Minha toca fica na região nordeste de Marshmallow, onde o frio é um pouco mais intenso, a neve se acumula nos pinheiros e as estátuas de gelo são expostas no festival Rapinos Entre Dentes. Não tenho muita certeza sobre a origem do nome. Talvez seja porque os coelhos são dentuços e competem entre si, ou então porque ficam com muito frio e rangendo os dentes. Em todo caso, não fará muita diferença, pois tudo se perdeu... Essa situação me entristece ainda mais; eu gostava das estátuas e da sensação que o festival trazia a todos os rapinos, entretanto não há mais nada que possa ser feito.
Meus pelos estavam cheios de nós. O desleixo havia superado a linha do bom senso. Até mesmo folhas secas poderiam ser encontradas na minha pelagem não mais branca. O ar rarefeito começava a dar tontura, sem contar o cheiro nauseabundo e constante. Tinha consciência de que, se não mexesse meu traseiro pomposo do chão, morreria em poucas horas. Sim, a verdade não era tão ruim. É, acho que estava pronto para morrer.
Fechei os olhos e aguardei... Aquela era minha despedida... Só que não!
– AAAhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!! – um grito irrompeu do lado de fora da toca. Era agudo e afeminado.
Será que alguma coelha estava em apuros? – foi imediatamente o que me ocorreu. Como uma força que brota das entranhas da terra, senti-me motivado a desgrudar minha lamentação do solo e sair da toca. Se fosse realmente uma coelha, então ainda poderia haver esperança para a raça dos rapinos. Levantei-me com certa dificuldade, as pernas bambas, a fraqueza declarada.
– LINNOOO! LINNOOOOO! – a voz estridente aumentou.
Fiquei encafifado. Eu poderia jurar que conhecia aquele timbre, só não estava conseguindo me lembrar... Decerto não era uma coelha, o que minou toda a minha esperança. No entanto, resolvi abrir a porta superior da toca para conferir quem de fato estava me procurando na superfície. Assim que botei o tampo da cabeça para fora, pude vislumbrar de quem se tratava. Devo dizer que fazia muito tempo que não o encontrava. Para falar a verdade, vi-o apenas uma vez.
– Lino! É você? O coelho forasteiro? – ele indagou com uma feição enrugada; vinha avançando de um jeito bem atrapalhado.
– Isso, Lino é meu nome. Quanto a forasteiro
, já não sei, pois nunca saí desta região de Marshmallow, muito menos deste covil velho! – respondi simplesmente. – O que o traz para estas bandas? Desculpe, mas minha memória não anda muito boa... Como se chama?
– Pelos cascos dos meus antepassados, ainda bem que o encontrei. Sou o Estanislau. Foi você que salvou minha vida! Como pode não se lembrar?
– Ah, sim... Disso eu recordo. Mas convenhamos, já faz um longo tempo desde aquele episódio – falei, esboçando um sorriso na tentativa de disfarçar meu desânimo crônico. – Fico admirado em ver que está aparentemente bem, sobrevivendo sem o corpo.
[Breve silêncio.]
– Ei, Estanislau, estou falando com você! – insisti, ao reparar que o sujeito havia se distraído com algum pássaro que rebolava na ponta de um alto pinheiro.
– Ah, desculpe... Estou muito bem, tirando as partes ruins... Estou desesperado, para ser honesto. Preciso muito de sua ajuda, forasteiro. Viajei muito até chegar aqui...
– Então veio em má hora. O velho Lino não está mais apto a ajudar ninguém. Meu tempo acabou – retruquei, já nem um pouco preocupado em demonstrar minha derrota.
– Ah, por favor, não diga uma coisa dessas! – rebateu, relinchando com força.
Aliás, para você que não conhece o Estanislau, devo dizer que ele era um pônei selvagem, ou melhor, só a cabeça de um pônei selvagem, pois seu corpo consistia em um pedaço de pau com duas rodinhas na ponta, para que pudesse locomover-se com agilidade.
– Bom, não vamos ficar aqui fora, o perigo ainda está à espreita. Pode entrar em minha toca! – lancei o convite, e em segundos já estávamos lá dentro um olhando para a cara do outro, em silêncio.
Fiquei mexendo no meu suspensório preto e nos botões que o prendiam à minha bermuda marrom cocô
. Por alguns instantes pensei que a visita havia cochilado de olhos abertos, e logo pude confirmar minhas suspeitas. Aproveitei a deixa para recolher alguns papéis que jaziam pelo solo. Parei especialmente em um deles, no qual vários desenhos representavam um truque ilusionista que demonstrava uma pedra se transformando em um par de meias pretas. Reconheço que não era minha melhor mágica, mas com ela já havia conseguido tirar vários sorrisos e deixar muitos impressionados. Mas aquilo tudo não tinha mais importância. De que serviriam meus truques nos tempos atuais?
Após cerca de meia dúzia de roncos, Estanislau despertou assustado e anunciou:
– Meu amigo Lian está em perigo. Preciso ajudá-lo! Preciso ajudá-lo!
– Respire fundo, pônei. Quem é esse tal de Lian? – inquiri inclinando a cabeça e erguendo a sobrancelha direita, ao mesmo tempo em que cruzava os braços na altura do peito peludo.
– Não tenho tempo para respirar, forasteiro. Lian é um fauno, meu companheiro de jornadas. Não posso deixá-lo. Não tenho mais ninguém... – Estanislau começou a chorar como um coelhinho bebê. Embora o som de seu lamento fosse de doer as orelhas, senti pena do coitado. E vou além, pois eu também compartilhava um pouco daquele sofrimento, já que eu estava em uma situação semelhante: solitário e desiludido.
– Estamos seguros aqui em minha toca. Conte com calma o que está acontecendo – acrescentei na tentativa de tranquilizá-lo. Em seguida, acendi a lareira com um sistema muito simples de faíscas que desenvolvi há uns vinte invernos. Logo o calor penetrou o ambiente, trazendo um pouco mais de conforto à aflição que sentíamos.
– Lian está em grandes apuros. Todos os Feiticeiros de Marshmallow, aqueles chacais humanoides sem coração, invadiram o corpo de meu amigo fauno. Não sei como eles fizeram isso... Talvez você possa me explicar, já que é um grande mágico – Estanislau contou com a voz tremida, demonstrando ao mesmo tempo enorme expectativa para ouvir minha opinião.
– Para falar a verdade, não tenho conhecimento sobre a magia oculta dos Feiticeiros. Não se engane, companheiro, tudo o que sempre fiz não passou de truques, de meras ilusões – revelei, enquanto fitava as chamas crepitarem na lareira. – Sinto muito, mas, se os Feiticeiros se apossaram do corpo do fauno, não há nada que possamos fazer!
– Mentira! Não seja modesto! – o pônei gritou, e a força de seu grito fez com que um pouco de terra se desprendesse do teto e caísse entre nós. – Como pode dizer uma coisa dessas? Eu sou uma ilusão então?
– Sei o que está pensando, Estanislau – apressei-me em dizer, mantendo um tom ameno. – Quando o ajudei naquele outono, vivenciamos um momento único, em que a minha mágica transpôs a barreira do impossível. Apenas por isso consegui lhe dar o corpo de pau e rodinhas. Era isso ou a morte, você sabe muito bem... E outra, só conseguimos essa proeza porque a sua vontade de viver foi tão desmedida que gerou uma espécie de condutor mágico, como costumo dizer. Foi um momento raro, que dificilmente veremos se repetir.
– Isso prova que você é capaz de fazer magia, forasteiro. Agradeço pela nova chance que me deu. Sem a sua ajuda os pôneis selvagens já estariam extintos há muito tempo. Mas ainda resta este aqui! – ele agradeceu, e de repente iniciou uma nova onda de choro. – Mas podemos repetir aquele momento mágico novamente. Prometo que será a última vez que lhe peço algo. Eu imploro...
Fiquei desconcertado. Não sabia muito bem como agir.
– Para onde foi o fauno? – resolvi indagar, na tentativa de que o pônei parasse com aquele pranto insuportável.
– Não sei ao certo – respondeu em meio aos soluços. – Assim que os Feiticeiros invadiram o corpo de Lian, e que ele dobrou de tamanho, ficando muito assustador e irreconhecível, o que lamento constatar, um buraco negro formou-se no Campo Madrepérola, onde a guerra foi declarada, e logo ele desapareceu. Mas tenho uma leve ideia de seu paradeiro. Ouvi recentemente uma conversa entre o Príncipe Gato e um roedor chamado Eleanor, que deve ter uma carne saborosíssima, a respeito de Buracos de Minhoca, e sobre viajar para o mundo dos humanos para tentar encontrar um tal de Hugo, um gato novo que pintou aqui nas redondezas, que parece ter surtado e desaparecido de Marshmallow.
– Entendo – exclamei pensativo. – Mas o que o fauno tem a ver com isso tudo? Acha que ele também foi para a dimensão dos humanos?
– Sim, e apostaria minha coleção de sapatos nessa afirmação! – Estanislau anunciou, dilatando as narinas várias vezes seguidas.
– Coleção de sapatos? – investiguei, sem deixar de cravar os olhos nas rodinhas do pônei. – Interessante! Excêntrico... Bom, sendo assim, por que não segue para o outro mundo com o Príncipe Gato e o tal roedor?
– Eu bem que tentei, forasteiro, mas eles me impediram! Disseram que seria uma viagem arriscada demais, e que eu não estava em boas condições para enfrentar o que estava por vir. Achei aquilo um absurdo completo, fiquei muito chateado. Aquele Príncipe Gato se acha o tal – Estanislau desabafou. – Mas, sabe, eu não deixaria barato, não... Resolvi que seguiria os dois de qualquer jeito, ficaria próximo, de uma forma que eles não percebessem... Mas acontece que acabei me distraindo com um cafezal que cruzou meu caminho, e, por conta desse meu vício, os perdi de vista, assim como a entrada do Buraco de Minhoca.
– Entendo! – ponderei, enquanto mexia os bigodes. – E então, o que espera de mim? Por que acha que eu poderia ajudá-lo?
– Preciso que me envie para o mundo dos humanos. Sei que é capaz! – o pônei falou, não se aguentando de tanta ansiedade.
– Já te disse que não será possível, companheiro – retruquei decidido.
– Por favor, Lino. Faça sua mágica. Talvez essa seja a minha última jornada. Não posso deixar o Lian para trás!
Demorei um pouco para digerir aquele pedido. Era fácil sentir as emoções de Estanislau, elas já haviam contaminado meu corpo. Há poucos minutos, tudo o que eu queria era desaparecer para sempre, desistir desta vida. Mas ver o último representante dos pôneis selvagens determinado a ajudar um amigo, que nem era de sua raça, me tocou de uma forma arrebatadora. Talvez eu pudesse ajudar. No entanto, não tinha mais confiança em minha própria magia.
Sem dizer uma palavra, levantei-me do assoalho sujo e dirigi-me até uma estante torta que ficava perto de onde eu repousava. Lá estava minha velha boina azul.
– Acho que vale a pena... O mágico Lino poderá fazer uma última apresentação! – falei em voz baixa. Em seguida, tirei a poeira que havia se acumulado na boina. – Vou precisar que se concentre, e que mentalize seu amigo fauno.
O pônei assentiu. Logo me adiantei, enfiei minha pata dentro da boina e puxei um frasco de vidro que continha um pó violeta. Sem pestanejar, arranquei a rolha que o tampava, joguei a boina no solo e virei uma parte do pó violeta sobre ela.
– Funcionou? – Estanislau indagou afobado, os olhos muito arregalados.
– Falta concentração, companheiro. Vamos lá! Preciso dizer ainda algumas palavras – expliquei, agora me ajoelhando. – Macuco Batuto, Melantra Macilenta.
E então algumas fagulhas brotaram e iluminaram a toca, mas rapidamente desapareceram.
– Eu disse... Minha mágica está quebrada – exclamei bufando.
– Não pode ser! – Estanislau se desesperou, deslizou até a boina, agarrou-a com os dentes avantajados e começou a girar em círculos.
– O que está fazendo? Pare com isso! – gritei incrédulo, iniciando uma tentativa de brecá-lo.
Corri atrás daquele pônei por quase dois minutos, quando, de repente, uma fumaça intensa tomou nossos corpos, arrastando-nos para dentro da boina. Tudo escureceu.
Novo SéculoNo alto do Cristo
Eleanor
Aaaahhhhhh, o Rio de Janeiro! Continuava lindo como sempre, posso afirmar com a absoluta certeza. O calor, ao mesmo tempo implacável e renovador, energizava-nos com intensidade. A paisagem paradisíaca presenteava os olhos e acalmava o espírito. Como eu adorava aquelas terras! Fazia muito tempo que não passava para uma visitinha; minha tarefa de vigília do mausoléu do fauno, lá no Cemitério do Araçá, havia me tomado boa parte da vida. Não que eu reclame, foi uma honra ser digno da confiança de meu mestre Adir em uma tarefa tão importante. Falando em meu sábio amo, foi em sua companhia que conheci estas praias algumas décadas atrás. Obviamente, o cenário mudou um pouco. Os prédios eram mais baixos naquela época, os carros mais charmosos e coloridos e as pessoas, no geral, andavam mais vestidas. Contudo, o encanto da Cidade Maravilhosa permanecia intacto. Lembro-me da magia de um Rio de Vinicius de Moraes e Chico Buarque; como é bom ter lembranças para degustar!
– Si la musique est la pâture de l’amour, jouez encore. Donnez-m’en jusqu’à l’excès; en sorte que ma faim gavée languisse et meure.¹
– O que é que foi, Eleanor? – o Príncipe Gato perguntou, coçando a pança. – Está falando sozinho? Parece que não bate bem das ideias!
O felino mostrava-se um pouco abobalhado enquanto olhava para todos os lados. Eu estava convicto de que o falastrão não deveria ter ouvido nem metade do que eu dissera. Não que ouvir por inteiro fizesse alguma diferença, convenhamos. Meu nobre amigo tentava processar todas as informações do ambiente. Demonstrava estar alerta, mas ao mesmo tempo parecia curtir o clima praiano.
– Deixe para lá – contentei-me em dizer.
– Olha, Eleanor! Veja! Aquelas mulheres ali! Estão quase sem roupa! Hihihi... Tenho certeza de que o Hugo se sentiria no paraíso aqui. É bem diferente da cidade cinzenta, onde todos os humanos caminham bem cobertos.
– Isso se chama biquíni, monsieur². E os homens usam sungas. É a forma que os humanos encontraram para não morrerem de calor na praia.
– Agora eu entendo por que o Hugo vivia depressivo... Uma boa dose desta tal de praia iria lhe fazer bem!
O Príncipe tinha razão, um pouco de descanso no litoral levanta o ânimo de qualquer criatura. Mas isso não vinha ao caso no momento. Enquanto meu amigo se distraía com homens e mulheres jogando vôlei na areia e tomando água de coco, eu pensava no motivo de termos caído no Rio de Janeiro, e não em São Paulo. Teria sido uma falha do Buraco de Minhoca? Talvez tivesse ocorrido alguma convergência inesperada no espaço-tempo, alterando nossa trajetória. Admito que não compreendo bem os mistérios das viagens dimensionais, mas...
– Veja, Eleanor! Que cachorro estúpido! Ele corre atrás de uma bolinha perdida e leva para o seu dono, mas aí o humano torna a jogar a bola para longe e o cachorro sai correndo. Que besta! Eu já teria atirado ácido naquele sujeito ingrato! – o gato interrompeu meus pensamentos, fazendo inclusive uma caprichada simulação de como atacaria o homem.
Às vezes a inocência do felino me divertia; às vezes me tirava do sério. Desta vez estava de bom humor – acho que era a maresia da praia e o som das ondas que estavam me fazendo bem.
– Se permanecermos tempo demais debaixo desse sol, ficaremos cor de cobre igual àqueles humanos ali? – o gato perguntou, apontando para um grupo bem bronzeado.
– Não tema, é apenas a pele que muda de tom, seus pelos continuarão iguais.
– Ufa, acho que não combinaria comigo. Será que a Kyra iria gostar? – o gato deixou escapar o comentário, mas logo se arrependeu. – Ah, esquece, deixa para lá! Não diga nada, roedor.
Procurei não demonstrar, mas estava rindo por dentro. Naquele momento deixávamos a Praia de Copacabana, passando pelo Pão de Açúcar, com seus bondinhos engenhosos.
– Se eu voltasse para Marshmallow com essa cor de cobre, certamente seria motivo de piada para Mapache, aquele guaxinim traiçoeiro.
– Vamos nos preocupar com isso depois, meu caro. Nesta ocasião temos uma importante missão: encontrar nosso amigo Hugo. Ou será que o clima desta cidade o fez perder o rumo? – ponderei, a feição muito séria, apesar do meu focinho cheio de meleca.
– Você está certo como sempre, Elê!
Elê? Eu tinha entendido bem? O gato estava me apelidando? Curioso. Enfim... Fingi não ter estranhado.
– Mas, se não estamos na cidade cinzenta – ele continuou –, ouso dizer que nos demos mal.
– Talvez não... Se o nosso Buraco de Minhoca convergiu para este lugar, então não seria impossível pensar que com o Hugo tenha ocorrido o mesmo.
– Hummm... Espero que esteja certo. Temos de achar logo aquele humano doido! Aliás, gato doido que outrora viveu na pele de um humano maluco! – corrigiu com perspicácia. – Não entendo a atitude dele! Depois de enfrentarmos todos os perigos, e conseguirmos o milagre de devolver sua vida, é assim que retribui?
– Receio que não seja uma questão tão simples, Príncipe.
– Não estou querendo demais. Um obrigado já estava de bom tamanho! Ou um valeu, mano
como eles costumam dizer por aqui.
– O Hugo deve estar muito confuso. Tente entender, a vida toda ele foi um humano, e, então, de repente, abre os olhos e se vê como um gato falante! Ponha-se no lugar dele, Príncipe. Abra pata do seu orgulho ferido. Você já foi melhor que isso.
– Ruim seria se ele tivesse acordado como guaxinim. Aí sim eu compreenderia! – o Príncipe objetou, ainda sem se esforçar para entender. – Mas não, o danado conseguiu renascer no corpo de um jovem felino. E digo mais, um felino estiloso! Você viu o brinco de argola que ele usa na orelha direita?
– Abra sua mente, gato. Além do choque da percepção física, temos o choque de consciência. De certa forma, o Hugo é o mesmo, bem como sua forma de pensar; entretanto, os instintos, descargas hormonais, o inconsciente e as conexões neurais são totalmente distintos. É a alma, a essência primordial de um ser, no corpo de outra espécie. Não consigo calcular como seria... Ou melhor, como está sendo para o Hugo.
– Blah, o que sei é que eu esperava um pouco mais de gratidão. Sim, errei no começo, tenho noção disso, mas, poxa vida, lutei para corrigir meus erros!
– Sei que sim, gato. Relaxe e dê tempo ao tempo... Veremos o que o futuro nos reserva em suas misteriosas tramas.
– Eleanor e suas frases de impacto – o Príncipe resmungou, porém em tom de brincadeira.
Foram horas e mais horas caminhando incansavelmente. Tínhamos de fingir ser animais comuns para passar despercebidos. Devido a meu menor tamanho, era mais fácil, já o Príncipe despertava maior atenção das pessoas. Achavam que era um gato abandonado. Ele insistia em usar a capa roxa que ganhara de Chasmalin, mesmo sob aquele sol de rachar o crânio, e isso fazia com que os humanos pensassem que alguém havia vestido uma roupinha para gatos nele. Obviamente isso não o deixava nada feliz.
– Humanos bestas! Sou o Príncipe Gato de Marshmallow, poderia subjugá-los em segundos se assim quisesse! Gatinho bonitinho?! Coitadinho, machucou o rabo e a cabeça?!
Ah, vão plantar alcachofra! Humpf!!
Eu não prestava muita atenção às reclamações de meu amigo felino. Algo mais interessante e importante me chamava a atenção. Diante de nós, o Cristo Redentor nos recebia de braços estendidos. Ah, que majestosa obra! Certamente impunha respeito! Um monumento novo, e que mostrava a engenhosidade humana para criar grandes peças de arte. Para o desgosto do gato, dirigi nossa trajetória para o alto do Corcovado. Ele queria fugir de lá, pois o acúmulo de pessoas, principalmente de turistas, era muito grande, mas meu instinto de roedor dizia que precisávamos ir até o local.
Quando chegamos ao platô, procurei por pistas, indícios; algo estava me cheirando estranho...
– Não sou eu! – o Príncipe logo protestou. – Kyra me deu um banho há poucos dias. Antes até poderia ser, mas essa fama chegou ao fim!
– Não, gato! Estou querendo dizer que sinto uma energia diferente emanando daqui, algo que não pertence a este lugar. É uma presença.
– O Fauno Negro?! – ele perguntou em estado de alerta, fazendo menção de sacar sua pistola.
– Acho que não. Não me parece uma energia sombria. É poderosa, porém não é má, embora esteja atormentada...
– Você não está se referindo a...?
– Veja, ali! – apontei para o alto. – Pelos chinelos de Adir Wosky!
Realmente, os turistas não haviam se tocado – talvez suas visões não fossem muito apuradas –, mas no alto do Cristo, em um de seus braços, havia uma figura curiosa. Não era possível distinguir lá de baixo, mas algo ou alguém estava de fato lá apoiado, sentado, como se aquilo fosse uma atitude muito simples e corriqueira.
– Mas que porcaria...
– Vamos, temos que subir! – exclamei apenas, puxando o gato pela capa.
– Ei, sou um gato, até gosto de alturas... Mas não tão grandes! Além do mais, já devo ter gastado umas seis das minhas sete vidas. Não posso me arriscar por mixaria.
– Não seja vacilão, seu gato molenga! Temos de subir!
– Ei, Eleanor, você não era assim. Está perdendo as estribeiras? Vou te mostrar quem é o molenga aqui! – o Príncipe gritou, dirigindo-se ao monumento.
Nada como um pouco de psicologia para obter o que queremos! – pensei. Demos um jeito de escalar a pedra-base, onde o Cristo Redentor se sustentava. Não poderíamos subir escalando pelo lado de fora, isso seria realmente suicídio. Então analisei o entorno e localizei uma passagem secreta: uma porta na lateral do monumento. Estava destrancada. Avançamos para dentro e fechamos para que ninguém percebesse nossa invasão. O interior era bem curioso. Lembrava a estrutura de um prédio em construção. Subimos por diversos lances de escadas estreitas de metal. Depois de muito suor derramado, chegamos a uma área mais