Garotas de vidro
4.5/5
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Sobre este e-book
Lia tem de lidar com o pai, que é um renomado escritor, sua madrasta e a mãe, uma cardiologista que vive ocupada, salvando a vida dos outros. Contudo, seu maior tormento é a voz dentro de si mesma, que não a deixa se esquecer de manter o controle, continuar forte e perder mais, sempre perder mais, e pesar menos. Bem menos.
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Garotas de vidro - Laurie Halse Anderson
WINTERGIRLS © 2009 by Laurie Halse Anderson
Copyright © 2012 Editora Novo Conceito
Todos os direitos reservados.
Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da imaginação do autor. Qualquer semelhança com nomes, datas e acontecimentos reais é mera coincidência.
Versão Digital — 2012
Edição: Edgar Costa Silva
Preparação de Texto: Tamires Zeoti Cianci
Revisão de Texto: Alline Salles, Lívia Fernandes
Projeto Gráfico: Lucas Busatto, Vanúcia Santos
Capa: Alexandre Denomai, Lucas Busatto
Diagramação ePUB: Brendon Wiermann
Revisão ePUB: Ludson Aiello
Este livro segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Anderson, Laurie Halse
Garotas de Vidro / Laurie Halse Anderson ; tradução Ana Paula Corradini. -- Ribeirão Preto, SP : Novo Conceito Editora, 2012.
Título original: Wintergirls.
ISBN 978-85-8163-092-2
1. Ficção - Literatura norte-americana
I. Título.
12-03085 CDD-813
Índices para catálogo sistemático:
1. Ficção : Literatura norte-americana 813
Rua Dr. Hugo Fortes, 1.885 — Parque Industrial Lagoinha
14095-260 — Ribeirão Preto — SP
www.editoranovoconceito.com.br
Para Scot — Por acender a lareira que me aquece quando a nevasca se enfurece lá fora.
*
(Perséfone) se encheu de curiosidade e esticou ambas as mãos para segurar aquela coisa bonita de brincar. E a terra, repleta de estradas que levam a toda direção, se abriu sob ela... Ela gritou com uma voz estridente... Mas nenhum dos mortais, ou dos humanos mortais, a escutou...
Hino Homérico a Deméter
O Rei deu ordens para deixá-la dormir tranquilamente até que chegasse o momento de acordá-la.
A Bela Adormecida no Bosque,
de Charles Perrault, 1696
*
[001.00]
Então ela me conta tudo, as palavras cuspidas com as migalhas do muffin de frutas vermelhas, as vírgulas mergulhadas em seu café.
Ela diz quatro frases. Não, cinco.
Eu não posso me permitir ouvir isso, mas é tarde demais. Os fatos chegam de mansinho para me apunhalar. Quando ela chega à pior parte
... corpo encontrado em um quarto de motel, sozinho…
... as paredes ficam mais altas e minhas portas se trancam todas. Eu faço que sim com a cabeça, como se estivesse ouvindo, como se a gente estivesse se comunicando, e ela nunca vai perceber a diferença.
Não é legal quando uma garota morre.
[002.00]
— A gente não queria que você soubesse na escola, nem pelas notícias. — Jennifer entulha o último pedaço de muffin na boca. — Tem certeza de que você está bem?
Abro a máquina de lavar louça e me abaixo para entrar na nuvem de vapor que sai flutuando de lá de dentro. Eu queria mais era me enfiar ali entre uma tigela e um prato. Minha madrasta Jennifer então poderia trancar a porta, virar o botão para a opção escaldar
e ligar a máquina.
O vapor congela ao tocar meu rosto.
— Está tudo bem — minto.
Ela pega a caixa de cookies de aveia com uvas-passas que está sobre a mesa.
— Você deve estar se sentindo péssima. — Ela rasga a tampa de papelão. — Pior que péssima. Você pode pegar um Tupperware limpo para mim?
Eu tiro o recipiente de plástico e a tampa de dentro do armário e passo os dois para ela, sobre a ilha da cozinha.
— Cadê o meu pai?
— Ele tinha uma reunião sobre prazos.
— Como você ficou sabendo?
Ela esmigalha os cantinhos dos cookies antes de colocá-los no Tupperware para dar a impressão de que foram feitos em casa, e não comprados.
— Sua mãe ligou aqui ontem à noite e deu a notícia. Ela quer que você vá ver a Dra. Parker o mais rápido possível, em vez de esperar até a próxima consulta.
— O que você acha? — pergunto.
— É uma boa ideia — ela diz. — Vou ver se ela consegue fazer um encaixe para você hoje à tarde.
— Não precisa. — Puxo a gaveta de cima da máquina de lavar louça. Os copos vibram emitindo gritinhos minúsculos. Bastava eu tocar um deles para todos espatifarem. — Não tem por quê.
Ela dá uma pausa na esfarelação.
— A Cassie era sua melhor amiga.
— Não mais. Vou ver a Dra. Parker na semana que vem, como o combinado.
— Bom, a decisão é sua. Mas me promete que vai ligar para a sua mãe e conversar sobre isso?
— Prometo.
Jennifer olha para o relógio do micro-ondas e grita:
— Emma, quatro minutos!
Minha meia-irmã Emma não responde. Ela está na sala, hipnotizada pela televisão e uma tigela cheia de cereal azul.
Jennifer prova um cookie.
— Odeio falar mal de quem já morreu, mas fiquei feliz quando você parou de sair com ela.
Empurro a prateleira de cima e puxo a de baixo.
— Por quê?
— A Cassie era perturbada. Era bem capaz de ter levado você para o fundo do poço com ela.
Tento pegar uma faca para carne no meio de um ninho de colheres. O cabo está morno. Quando a tiro de lá, a lâmina corta o ar, dividindo a cozinha em fatias. Ali está Jennifer, colocando cookies comprados no mercado em um recipiente de plástico para a aula de sua filha. Ali está a cadeira vazia do meu pai, que finge não ter escolha com essas reuniões logo cedo. Ali está a sombra da minha mãe, que prefere ligar porque uma conversa frente a frente demora demais e geralmente acaba em gritos.
E aqui está uma garota com uma faca na mão. Há gordura sobre o fogão, sangue no ar e palavras cheias de raiva amontoadas pelos cantos. Somos todos treinados para não ver nada disso. Nada mesmo.
... corpo encontrado em um quarto de motel, sozinho…
***
Alguém acabou de arrancar minhas pálpebras.
— Ainda bem que você é mais forte que ela — Jennifer toma o resto do café na caneca e limpa as migalhas dos cantos da boca.
A faca desliza para o porta-facas com um sussurro.
— É. — Pego um prato limpo, esfregado até ficar livre de sangue e cartilagem. Pesa uns cinco quilos.
Ela fecha a caixa de cookies.
— Tenho um compromisso mais tarde. Você pode levar a Emma para o futebol? O treino começa às cinco.
— Em qual campo?
— No Richland Park, depois do shopping. Olha aqui. — Ela me passa a caneca pesada, seu batom, uma lua crescente de sangue na borda. Eu a deixo sobre o balcão e então tiro prato por prato, meus braços tremendo.
Emma chega se arrastando para pegar a mochila, os cadarços dos tênis desamarrados. Ela deveria estar dormindo, mas a mulher do meu pai a leva para a escola mais cedo quatro vezes por semana para as aulas de violino e de conversação em francês. O terceiro ano não é cedo demais para se expandir os horizontes, sabe.
Jennifer se levanta. O tecido da saia dela está tão justo sobre as coxas que os bolsos se veem obrigados a abrir. Ela tenta alisar a saia amassada.
— Não deixe a Emma te convencer a comprar salgadinho antes do treino. Se ela estiver com fome, pode comer uma salada de frutas.
— Devo ficar lá esperando e a trago para casa?
Ela faz que não com a cabeça.
— Ela volta de carona com os Grants. — Jennifer tira o casaco do encosto da cadeira, começa a vesti-lo primeiro pelos braços e então o abotoa. — Por que você não come um muffin? Eu comprei laranja ontem, ou você também pode comer torrada ou waffles congelados.
Porque eu não posso me permitir querer um Porque eu não preciso de um muffin (410), não quero uma laranja (75), nem torrada (87), nem waffles (180), me dão enjoo.
Aponto para a tigela vazia sobre o balcão, ao lado da montanha de frascos de comprimidos e da caixa de Blueberryqualquercoisa.
— Vou comer cereal.
Os olhos dela se atiram para o armário onde colou o papel com minha dieta. Veio com a minha papelada da alta, quando me mudei para essa casa, faz uns seis meses. Eu o tirei de lá três meses depois, no meu aniversário de 18 anos.
— Mas é pouco demais para ser uma porção completa — ela diz com todo o cuidado.
Eu poderia comer a caixa inteira Provavelmente nem vou encher a tigela. — Estou com dor de estômago.
Ela abre a boca de novo. Hesita. Um suspiro azedo de hálito matinal cheio de café sopra pela cozinha parada e chega até mim.
Não fala. Não fala.
— Confiança, Lia.
Ela falou.
— Esse é o problema. Ainda mais agora. A gente não quer que...
Se eu não estivesse tão cansada, enfiaria a confiança e o problema no triturador de lixo e o deixaria ligado o dia inteiro.
Tiro uma tigela maior da máquina de lavar louça e a coloco sobre o balcão.
— Eu. Estou. Bem. Tá?
Ela pisca duas vezes e termina de abotoar o casaco.
— Tá. Eu entendo. Amarre seu tênis, Emma, e vá para o carro.
Emma boceja.
— Espera aí. — Me abaixo para amarrar os tênis dela. Com nó duplo. Olho para cima. — Não posso continuar fazendo isso, você sabe, né? Você já está grande demais.
Ela sorri e beija minha testa.
— Pode sim, bobinha.
Quando me levanto, Jennifer dá dois passos meio sem jeito na minha direção. Ela é uma mariposa redonda e pálida, salpicada de base para o rosto, armada para o dia com sua pasta de bancária, sua bolsa e uma chave para ligar a distância aquele carro gigante alugado. Ela passa agitada, nervosa.
Eu espero.
A esse ponto a gente deveria se abraçar ou beijar, ou pelo menos fingir.
Ela aperta o cinto.
— Olha, tente ficar ocupada hoje. Tá? Tente não pensar demais nas coisas.
— Tá.
— Fale tchau para a sua irmã, Emma — exige Jennifer.
— Tchau, Lia. — Emma acena e me dá um sorrisinho cheio de Blueberryqualquercoisa. — O cereal é uma delícia. Você pode comer o resto da caixa, se quiser.
[003.00]
Eu coloco cereal demais (150) na tigela e jogo o leite semidesnatado (125). O café da manhã é a refeição mais importante do dia. O café da manhã vai fazer de mim uma cam-pe-ããã.
… Quando eu era uma garota de verdade, com um pai, uma mãe e uma casa, e sem lâminas brilhantes, o café da manhã era granola com morangos frescos, que eu sempre comia lendo um livro apoiado na fruteira. Na casa da Cassie, a gente comia waffles com uma calda fina que vinha das árvores de bordo de verdade, e não aquela calda de xarope de milho falsa, e lia os quadrinhos do jornal...
Não. Não posso. Não vou mais pensar nisso. Não vou olhar.
Não vou poluir meu corpo com Blueberryqualquercoisa, nem muffins, nem cacos de torrada que fazem barulho quando passo manteiga sobre eles. O lixo e os erros de ontem já passaram por mim. Sou brilhante e cor-de-rosa por dentro, limpa. O vazio é bom. O vazio é forte.
Mas tenho que dirigir.
***
… Eu dirigi no ano passado, com as janelas abertas, a música no talo, primeiro sábado de outubro, correndo para ir fazer os exames finais. Fui dirigindo para a Cassie passar a última camada de esmalte nas unhas. Nós éramos irmãs secretas com um plano para dominar o mundo, com potencial borbulhando ao nosso redor como champanhe. A Cassie riu. Eu ri. Era perfeito.
Se eu tomei café da manhã? É claro que não. Será que jantei na noite anterior, ou almocei, ou comi alguma coisa?
O carro à nossa frente brecou quando o sinal ficou amarelo, e então vermelho. Meu chinelo ficou suspenso sobre o pedal. Ficou tudo turvo à minha volta. Um arrepio escuro se enrolou ao redor da minha espinha e vendou meus olhos como um lenço de seda. O carro à nossa frente desapareceu. O volante e o painel sumiram. Não tinha mais Cassie, nem semáforo. Como é que eu ia parar aquela coisa?
A Cassie gritou em câmera lenta:
::Marshmallow/air/explosão/bag::
Quando acordei, o paramédico e um policial estavam com cara feia. O motorista do carro em que bati berrava ao celular.
Eu estava com a pressão sanguínea de uma cobra gelada. Meu coração estava cansado. Meus pulmões queriam tirar uma soneca. Eles colocaram uma agulha em mim, me inflaram como se eu fosse um balão de festa junina, e me mandaram para um hospital com enfermeiras de olhos de aço que anotaram cada número terrível. À caneta. Fui descoberta.
Minha mãe e meu pai chegaram correndo, lado a lado para variar, felizes por eu não estar morta. Uma enfermeira passou a ficha médica para a minha mãe. Ela leu tudo e explicou o desastre para o meu pai, e então eles brigaram; uma discussão que mais parecia uma avalanche que se espalhou por entre os lençóis esterilizados em direção ao corredor. Eu estava estressada/sobrecarregada/maníaca/não — deprimida/não — precisando de atenção/não — precisando de disciplina/precisando de descanso/precisando/a culpa é sua/a culpa é sua/culpa/culpa. Eles deixaram a marca de sua guerra nesse fiapo de garota.
Telefonemas foram feitos. Meus pais me forçaram a ir marchando para o inferno na terra a clínica New Seasons...
A Cassie escapou, como sempre. Nem um arranhão. O seguro cobria mais que o prejuízo, então ela acabou com o carro consertado e uns alto-falantes novos. Nossas mães tiveram uma conversinha, mas, para falar a verdade, toda garota passa por isso e o que é que se pode fazer? Cassie remarcou a prova e foi fazer as unhas em um salão, o Azul Encantado, enquanto eles me trancaram e pingaram água com açúcar nas minhas veias vazias...
Lição aprendida. Para dirigir, é preciso ter combustível.
Não o cereal Blueberryqualquercoisa da Emma. Eu tremo e jogo a maior parte daquela coisa nojenta no triturador de lixo, e então coloco a tigela no chão. Os gatos de Emma, Kora e Pluto, passam nas pontas de suas almofadas pela cozinha e enfiam a cabeça na tigela. Eu desenho uma carinha mostrando a língua em um post-it, escrevo NHAM, EMMA! OBRIGADA!
e o colo na caixa de cereal.
Como dez uvas-passas (16) e cinco amêndoas (35) e uma pera meio verde (121) (=172). Os pedaços se arrastam garganta abaixo. Engulo minhas vitaminas e as sementes malucas que impedem meu cérebro de explodir: uma roxa e comprida, outra branca e gorda, duas vermelhas como papoulas. Mando todo mundo lá pra baixo com água quente.
É melhor que elas funcionem rápido. A voz de uma garota morta está me esperando no meu celular.
[004.00]
A subida pelas escadas demora mais que o normal.
Durmo no fim do corredor, em um espaço minúsculo que ainda está decorado como quarto de hóspedes. Paredes brancas. Cortinas amarelas. O sofá-cama nunca é dobrado de volta, a escrivaninha é de segunda mão. A Jennifer vive se oferecendo para comprar móveis novos, e pintar o quarto ou colocar papel de parede. Digo que ainda não decidi o que quero fazer. Eu provavelmente deveria tirar tudo de dentro das caixas empoeiradas daquela pilha primeiro.
Meu celular está esperando em cima de uma pilha de roupas sujas, exatamente onde aterrissou depois que o joguei contra a parede na manhã de domingo, porque não parava de tocar e estava me deixando maluca, e eu estava cansada demais para desligá-lo.
... A última vez que ela me ligou foi há seis meses, depois que saí do hospital pela segunda vez. Eu estava ligando para ela umas quatro ou cinco vezes por dia, mas ela não atendia, nem me ligava de volta até que, finalmente, ligou.
Ela me pediu para escutar e disse que aquilo não ia demorar.
Eu era a raiz do mal, Cassie disse. Uma influência negativa, uma sombra tóxica. Enquanto eu estava internada, os pais dela tinham-na arrastado para um médico que fez uma lavagem cerebral nela e a fez engolir comprimidos e palavras vazias. Ela precisava tocar a vida em frente, redefinir seus limites, ela disse. Por minha causa, ela matava aula e repetiu de ano em francês, eu era responsável por tudo que era ruim e perigoso.
Errado. Errado. Errado.
Por minha causa, ela não fugiu da escola no primeiro ano do ensino médio. Por minha causa, ela não engoliu um vidro inteiro de remédio para dormir quando o namorado a traiu. Eu a ouvi por horas quando os pais dela berravam e tentavam enfiar a garota em uma carapaça de manequim que não servia para ela. Entendi o que provocava os terremotos dela, pelo menos a maioria. Eu sabia como machucava ser filha de pessoas que não conseguem te enxergar, nem se você estiver na frente deles, pisando nos seus pés.
Mas lembrar de tudo aquilo era complicado demais para a Cassie. Era mais fácil para ela me deixar de lado pela última vez. Ela transformou meu verão em um deserto vazio. Quando as aulas começaram, ela nem me olhou na cara nos corredores da escola, suas novas amigas penduradas no pescoço como colares de Mardi Gras. Ela me apagou de sua existência.
Mas alguma coisa aconteceu. Naquele tempo morto entre a noite de sábado e a manhã de domingo, ela me ligou. É claro que não atendi. Ela estava brincando de telefonar bêbada ou passando trote. Eu não ia deixar que tirasse uma com a minha cara, e me deixar ser sua amiga de novo só para virar as costas e acabar comigo mais uma vez.
... corpo encontrado em um quarto de motel, sozinho…
Não atendi. Nem ouvi as mensagens dela ontem. Eu estava com tanta raiva que nem conseguia olhar para o telefone.
Ela ainda está me esperando.
Eu me sento sobre a montanha de calças de pijama e moletons sujos e desenterro o celular. Abro o telefone. Cassie me ligou trinta e três vezes, começando às 11:30 da noite de sábado.
ACESSANDO A CAIXA POSTAL
Lia? Sou eu. Me liga.
Cassie.
Segunda mensagem: Cadê você? Me liga.
Cassie.
Terceira: Não estou brincando, Overbrook. Preciso muito falar com você.
Cassie, dois dias atrás, sábado.
Me liga.
Por favor, por favor, me liga.
Olha, desculpa por ter sido uma vaca. Por favor.
Eu sei que você está recebendo essas mensagens.
Você pode ficar brava comigo depois, tá? Preciso mesmo falar com você.
Você tinha razão, não foi culpa sua.
Não tenho mais ninguém com quem falar.
Ai, meu Deus.
Entre 1:20 e 2:55, ela ligou e desligou 15 vezes.
Depois: Por favoooor, Lia-Lia.
A voz dela estava ficando pastosa.
Eu estou tão triste. Não consigo sair disso.
Me liga. Eu estou péssima.
Desligou mais duas vezes.
3:20, voz bem pastosa. Não sei o que fazer.
3:27. Eu estou com saudade de você. Saudade de você.
Enterro o celular na pilha e visto um moletom bem grosso antes de ir para o meu carro. O inverno chega cedo a New Hampshire.
[005.00]
Saio na hora certa e fico presa no trânsito. Os carros ao meu redor são dirigidos por umas vacas gordas e bois que não param de mugir. Seguimos em frente, 10 km/h. Eu consigo até correr mais rápido que isso. Eles ruminam e mugem em seus celulares até que o rebanho engata a marcha e segue em frente de novo.
Vinte e quatro quilômetros por hora. Não consigo correr tão rápido assim.
Em algum ponto entre a esquina da Martins e a Rota 28, eu começo a chorar. Ligo o rádio, canto o mais alto que consigo, desligo o rádio de novo. Bato no volante com meus pulsos até eles ficarem machucados e, a cada quilômetro, choro mais ainda. A chuva bate no meu rosto.
***
...corpo encontrado em um quarto de motel, sozinho…
Mas o que ela estava fazendo lá? O que estava pensando?
Será que doeu?
Não faz sentido perguntar o porquê, apesar de ser isso que todo mundo vai fazer. Eu sei por quê. A pergunta mais difícil é por que não?
. Não acredito que ela tenha ficado sem respostas antes de mim.
Eu preciso correr, voar, bater minhas asas tão rápido que não consigo ouvir mais nada além das batidas do meu coração. Chuva, chuva, chuva, me afogando.
Será que foi fácil?
Eu não pego nenhum atalho, eu não me esqueço de virar na delicatessen na esquina, eu não me perco, nem de propósito. Chego à escola no piloto automático; tarde de acordo com os padrões deles, cedo de acordo com os meus. Os últimos ônibus acabaram de parar à porta da frente.
Saio do carro e tranco a porta.
Aquele vento de novembro que não perdoa me leva em direção ao prédio. Flocos de neve pontudos caem em espiral das nuvens que mais parecem cobertura de