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Todas as garotas desaparecidas
Todas as garotas desaparecidas
Todas as garotas desaparecidas
E-book356 páginas6 horas

Todas as garotas desaparecidas

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Sobre este e-book

Suspense psicológico impactante da autora revelação no gênero. Faz dez anos que Nicolette Farrell deixou Cooley Ridge, sua cidadezinha natal, depois que sua melhor amiga, Corinne, desapareceu sem deixar rastros. De volta, Nic logo se vê imersa em um drama chocante que faz o caso de Corinne ser reaberto e remexe em antigas feridas. Logo ao chegar, Nic descobre que seu antigo namorado está envolvido com Annaleise Carter, a jovem vizinha que foi o álibi do grupo de suspeitos para a noite do sumiço de Corinne. Então, poucos dias após a volta de Nic, Annaleise desaparece. Agora ela precisa desvendar o desaparecimento de sua vizinha e, no processo, vai descobrir verdades chocantes sobre seus amigos, sua família e o que realmente aconteceu com Corinne naquela noite. Todas as garotas desaparecidas é contado de trás para frente. Quando você pensa que está seguindo por um caminho conhecido, Megan Miranda vira tudo de cabeça para baixo e nos faz questionar até onde estaríamos dispostos a ir para proteger aqueles que amamos.
IdiomaPortuguês
EditoraVerus
Data de lançamento8 de set. de 2017
ISBN9788576866435
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    Todas as garotas desaparecidas - Megan Miranda

    PARTE 1

    VOLTANDO PARA CASA

    O homem […] não consegue aprender a esquecer, mas se vê preso ao que passou: por mais longe ou rápido que corra, a corrente corre junto.

    — F RIEDRICH N IETZSCHE

    Começou com um telefonema, enganosamente simples e fácil de ignorar. O zumbido no criado-mudo de Everett, o brilho da tela — claro demais no quarto que ele mantinha tão escuro, com as cortinas blackout abaixadas até o peitoril da janela, pintada como uma segunda linha de defesa contra o brilho intenso do sol e da cidade. Ver o nome, pressionar o mudo, virar o celular com a tela para baixo, ao lado do relógio.

    E então eu estava deitada na cama, imaginando por que meu irmão me ligaria tão cedo em um domingo. Repassando as possibilidades: meu pai, o bebê, Laura.

    Tateei pela escuridão, as mãos raspando os cantos pontudos do mobiliário para encontrar o interruptor da luz do banheiro. Meus pés descalços palmilharam o chão frio enquanto eu me sentava na tampa da privada com o telefone recostado à orelha, sentindo a pele das pernas arrepiar.

    A mensagem de Daniel ecoou no silêncio: O dinheiro está quase acabando. Precisamos vender a casa. Mas o pai não quer assinar a papelada. Pausa. Ele está mal, Nic.

    Sem pedir minha ajuda, porque seria direto demais. Diferente demais do nosso estilo.

    Pressionei apagar, voltei para debaixo dos lençóis antes que Everett acordasse, toquei-o a meu lado para garantir.

    Porém, mais tarde naquele dia, já em casa, dei uma olhada na correspondência do dia anterior e encontrei uma carta — Nic Farrell, em letra familiar com tinta azul; o endereço preenchido por outra pessoa, com uma caneta diferente, mais escura.

    Meu pai não telefonava mais. Telefones o deixavam ainda mais desorientado, distante demais de quem ele estava tentando localizar. Mesmo que lembrasse para quem estava discando, desaparecíamos de sua mente assim que atendíamos, nada além de vozes desincorporadas no éter.

    Desdobrei a carta — uma página de agenda pautada com a margem irregular, a letra estendendo-se além das linhas, um pouco tombada à esquerda, como se corresse para anotar os pensamentos antes de eles escaparem por entre os dedos.

    Sem saudação.

    Preciso falar com você. Aquela garota. Eu vi aquela garota.

    Sem despedida.

    Retornei a ligação de Daniel, a carta ainda tremendo na mão.

    — Acabei de receber sua mensagem — disse. — Estou indo para casa. Me conte o que está acontecendo.

    DIA 1

    Dei uma última olhada no apartamento antes de carregar o carro: malas esperando ao lado da porta, chaves num envelope sobre o balcão da cozinha, caixa aberta, cheia até a metade com coisas de última hora que embalei na noite anterior. Conseguia ver todos os cantos do apartamento estando na minicozinha — exposta e vazia —, mas ainda assim tive a sensação persistente de que estava me esquecendo de algo.

    Eu havia organizado tudo às pressas, terminando as últimas semanas do ano letivo enquanto lidava com as ligações de Daniel e procurava alguém para sublocar meu apartamento durante o verão — sem tempo para uma pausa, para considerar o fato de que eu estava realmente fazendo aquilo. Voltando. Indo até . Daniel não sabia da carta. Sabia apenas que eu estava indo para ajudar, que eu tinha dois meses antes de precisar voltar para minha vida aqui.

    Agora o apartamento estava praticamente vazio. Uma grande caixa, despojada de qualquer sentimento, aguardando o aluno de pós-graduação de aparência mais ou menos responsável que ficaria aqui em agosto. As louças iam ficar, pois eram um saco para embalar. O futon também ia ficar, porque ele pediu e acrescentou cinquenta dólares no valor final.

    O restante — as coisas que não caberiam no meu carro, pelo menos — estava em um depósito a poucos quarteirões daqui. Minha vida inteira em um cubo retangular, lotado de móveis pintados e roupas de inverno.

    O som de alguém batendo à porta ecoou nas paredes vazias e me fez dar um pulo. O novo inquilino só chegaria em algumas horas, e eu já estaria na estrada. Era muito cedo para qualquer outra pessoa.

    Atravessei a sala estreita e abri a porta da frente.

    — Surpresa — disse Everett. — Eu tinha a esperança de te pegar antes de você sair. — Ele estava vestido para o trabalho, asseado e elegante, e se abaixou para me beijar, escondendo um braço atrás das costas. Cheirava a café e pasta de dente, amaciante e couro, profissionalismo e eficiência. Puxou um copo de isopor fumegante de trás das costas. — Trouxe para você. Para tomar na estrada.

    Inspirei profundamente.

    — É por isso que eu te amo. — Eu me recostei no balcão e tomei um grande gole.

    Ele deu uma olhada no relógio e se encolheu.

    — Eu odeio fazer isso, mas preciso correr. Reunião cedo do outro lado da cidade.

    Ambos avançamos de leve para um último beijo. Puxei seu cotovelo enquanto ele se afastava.

    — Obrigada — falei.

    Ele encostou a testa na minha.

    — Vai passar rápido. Você vai ver.

    Eu o observei partir, os passos estalados e cadenciados, os cabelos escuros tocando o colarinho, até ele chegar ao elevador no fim do corredor. Ele se virou quando as portas se abriram. Eu me recostei no batente e ele sorriu.

    — Dirija com cuidado, Nicolette.

    Deixei a porta fechar sozinha, e a realidade do dia de repente fez meus membros pesarem, a ponta dos dedos formigando. Os números vermelhos no relógio do micro-ondas avançaram, e eu me encolhi.

    São nove horas de viagem da Filadélfia a Cooley Ridge, sem contar o trânsito, a parada para o almoço, para abastecer e ir ao banheiro. E, como eu estava saindo vinte minutos depois de dizer que sairia, já pude imaginar Daniel sentado na varanda, batendo o pé, enquanto eu estacionava na entrada de terra.

    Enviei uma mensagem para ele enquanto segurava, com uma mala, a porta da frente aberta:

    Foram duas viagens para arrastar a bagagem e as caixas restantes até o carro, estacionado do outro lado do quarteirão, atrás do prédio. Ouvi o início do congestionamento do horário de pico ao longe, um zumbido constante na rodovia, uma buzina ocasional. Uma harmonia familiar.

    Liguei o carro e esperei o ar-condicionado funcionar. Tudo bem, tudo bem, pensei. Deixei o telefone no porta-copos e vi a resposta do Daniel:

    Como se eu pudesse chegar três horas depois do que tinha falado. Este era um dos feitos mais impressionantes do Daniel: ele tinha aperfeiçoado a arte da mensagem passivo-agressiva. Vinha praticando há anos.

    _______

    Quando eu era mais nova, acreditava que podia ver o futuro. Provavelmente por culpa do meu pai, que preenchia minha infância com chavões de suas palestras de filosofia, me fazendo acreditar em coisas impossíveis. Eu fechava os olhos e desejava que ele aparecesse, em pequenos e belos vislumbres. Via Daniel de beca e capelo. Através das lentes da minha câmera, minha mãe sorria ao lado dele enquanto eu fazia sinal para se aproximarem. Põe o braço na cintura dela. Finjam que se gostam! Perfeito. Eu via a mim e a Tyler, anos mais tarde, jogando as malas na carroceria de sua caminhonete cheia de lama, partindo para a faculdade. Partindo para sempre.

    Na época, era impossível entender que a partida não seria um evento em uma caminhonete, mas um processo de dez anos de ruptura. Quilômetros e anos, preenchendo a distância lentamente. Sem falar que Tyler nunca saiu de Cooley Ridge. Daniel nunca se formou. E, de qualquer forma, nossa mãe não teria vivido para presenciar isso.

    Se minha vida fosse uma escada, Cooley Ridge seria o primeiro degrau, uma cidade despretensiosa localizada nas encostas das montanhas Fumegantes, a perfeita definição de cidadezinha americana, mas sem a parte do charme. Todos os outros lugares — qualquer lugar — eram um degrau mais alto que eu alcançaria com o tempo. Faculdade a mais de trezentos quilômetros a leste, pós-graduação em um estado do norte, um estágio em uma cidade onde finquei raízes e me recusava a deixar. Um apartamento em meu nome e uma placa de identificação em minha mesa, e Cooley Ridge permanecia como o lugar de onde eu continuava me afastando.

    Mas eis uma coisa que aprendi sobre ir embora: é impossível voltar de verdade. Não sei mais o que fazer com Cooley Ridge, e Cooley Ridge não sabe mais o que fazer comigo. A distância apenas aumenta com o passar dos anos.

    Na maioria das vezes, se eu tentasse me concentrar nela de novo — Me fale da sua casa, me conte como foi a sua adolescência, me fale da sua família, dizia Everett —, tudo o que eu via era uma caricatura na minha mente: uma cidade em miniatura, montada sobre aparadores nos feriados, tudo assentado no tempo. Então, eu lhe dava respostas superficiais, simples e nada específicas: Minha mãe morreu quando eu tinha dezesseis anos, é uma cidade pequena à beira da floresta, tenho um irmão mais velho.

    Mesmo para mim, mesmo quando eu respondia, parecia que não era nada. Uma polaroide desbotando pelas beiradas, as cores perdidas; a silhueta de uma cidade fantasma, cheia de fantasmas.

    Mas um telefonema de Daniel — Temos que vender a casa —, e senti o chão ceder sob os meus pés.

    — Estou indo para casa — falei, e os limites ondularam, as cores queimaram: minha mãe apertou a bochecha em minha testa, Corinne balançou suavemente nossa cabine no topo da roda-gigante, para frente e para trás, Tyler se equilibrou na árvore caída sobre o rio que se estendia entre nós.

    Aquela garota, meu pai escreveu, e a risada dela fez meu coração sacudir.

    _______

    Preciso falar com você. Aquela garota. Eu vi aquela garota.

    Uma hora depois, um segundo depois, provavelmente, ele já teria esquecido, deixando de lado o envelope selado até alguém o encontrar abandonado na cômoda ou embaixo do travesseiro e descobrir meu endereço no prontuário dele. Mas deve ter havido um gatilho. Uma lembrança. Uma ideia perdida nas sinapses cerebrais; o disparo de um pensamento sem nenhum outro lugar para ir.

    A página rasgada, a letra inclinada, meu nome no envelope…

    E agora algo agudo e louco tinha sido liberado na minha cabeça. O nome dela, ricocheteando como um eco.

    Corinne Prescott.

    A carta do meu pai ficou dobrada dentro da minha bolsa nas últimas semanas, martelando minha mente. Sempre que eu estendia a mão para pegar a carteira ou as chaves do carro, sentia o raspar de uma borda, a batida em um canto, e lá estava ela de novo: os cabelos longos da cor de bronze caindo sobre os ombros, o cheiro de chiclete de hortelã, os sussurros em meu ouvido.

    Aquela garota. Ela sempre foi aquela garota. Que outra garota poderia ser?

    A última vez que voltei para casa fazia pouco mais de um ano — quando Daniel me ligou e disse que devíamos internar meu pai, e eu não consegui justificar o custo de um voo de última hora. Choveu quase a viagem toda, na ida e na volta.

    Hoje, ao contrário, estava um dia perfeito para dirigir. Sem chuva, nublado, mas não escuro, claro, porém não brilhante. Percorri os três estados sem parar, cidades e entroncamentos apenas um vulto pelos quais eu passava, motivo por que eu amava viver no norte. Adorava o ritmo, como era possível preencher o dia com uma lista de afazeres, controlar as horas e dobrá-las segundo a sua vontade. E a impaciência do funcionário dentro da loja de conveniência na esquina do meu apartamento, a maneira como ele nunca tirava os olhos de suas palavras cruzadas — ele nunca me olhou de verdade. Eu adorava o anonimato disso tudo. De uma calçada cheia de estranhos e de infinitas possibilidades.

    Dirigir através desses estados era assim também. Mas o início da viagem sempre é muito mais rápido que o fim. Mais ao sul, as saídas ficam mais esparsas, a paisagem é a mesma, cheia de coisas que você tem certeza de que já viu pelo menos umas mil vezes.

    Eu estava em algum lugar na Virgínia quando meu telefone tocou no porta-copo. Procurei o dispositivo hands-free na bolsa, mantendo uma das mãos firme no volante, mas acabei desistindo e apertei o viva-voz para atender a chamada.

    — Alô?

    — Oi, está me ouvindo? — A voz de Everett estalou, e eu não sabia ao certo se era por causa do viva-voz ou da linha.

    — Estou. Tudo bem?

    Ele disse algo indecifrável, a voz cortando muito.

    — Desculpe, sua voz cortou. Como? — praticamente gritei.

    — Estou saindo para comer alguma coisa rápida — ele disse em meio à estática. — Só queria saber como você está. Os pneus estão aguentando bem dessa vez? — Ouvi o sorriso em sua voz.

    — Melhor que o sinal de celular — respondi.

    Ele riu.

    — Provavelmente vou estar em reunião o dia todo, mas me ligue quando chegar.

    Pensei em parar para almoçar, mas não havia nada exceto asfalto e descampados a perder de vista, por quilômetros, quilômetros e mais quilômetros.

    _______

    Conheci Everett um ano atrás, na noite seguinte após ter enviado meu pai para a clínica. Voltei para casa dirigindo, tensa e desconfortável. Um pneu furou depois de cinco horas e tive de trocá-lo debaixo de uma garoa incessante.

    Quando cheguei ao meu apartamento, estava à beira das lágrimas. Com minha bolsa pendurada no ombro, minha mão tremia demais para acertar a chave na porta. Por fim, apoiei a cabeça na sólida porta de madeira para me recompor. Para piorar as coisas, o cara do 4A saiu do elevador naquele instante, e senti que ele estava me encarando, possivelmente esperando o colapso iminente.

    Apartamento 4A. Isto era tudo que eu sabia dele: ouvia música muito alto, tinha convidados demais e horários nada tradicionais. Havia um homem ao lado dele, educado como o outro não era. Delicado, enquanto o outro era rude. Sóbrio, enquanto o outro estava bêbado.

    O cara do 4A às vezes sorria para mim quando passávamos no corredor à noite, e uma vez segurou o elevador para eu entrar, mas ali era uma cidade. As pessoas iam e vinham. Os rostos eram apenas vultos.

    — Oi, 4C — ele falou mole, cambaleando.

    — Nicolette — eu disse.

    — Nicolette — ele repetiu. — Trevor. — O homem ao lado dele parecia estar com vergonha alheia. — Este aqui é o Everett. Parece que você precisa de uma bebida. Vamos, se enturme com os vizinhos.

    Pensei que se enturmar com vizinhos significaria aprender meu nome um ano antes, quando me mudei, mas eu queria aquela bebida. Queria sentir a distância entre e aqui; precisava dessa distância das nove horas de carro até em casa.

    Trevor abriu a porta enquanto eu caminhava na direção deles. O homem ao lado estendeu a mão e disse: Everett, como se a apresentação de Trevor não valesse.

    Quando fui embora, eu tinha contado a Everett sobre a mudança do meu pai, e ele disse que tinha sido a coisa certa a fazer. Contei sobre o apartamento, a chuva e tudo o que eu queria fazer no verão, embora eu estivesse fora. Quando parei de falar, me senti mais leve, mais à vontade, o que poderia ter sido culpa da vodca, mas eu gostava de pensar que tinha sido culpa de Everett. Trevor já tinha desmaiado no sofá, ao nosso lado.

    — Ah, eu tenho que ir — falei.

    — Deixa eu te levar — disse Everett. Minha cabeça ficou leve enquanto caminhávamos em silêncio. Então pousei a mão na maçaneta da porta e ele ainda estava ali. Quais eram as regras da vida adulta para essa situação?

    — Quer entrar?

    Ele não respondeu, mas me seguiu. Parou na minicozinha, que dava para o resto do meu loft, um cômodo com janelas altas e cortinas simples penduradas nos canos expostos, separando o meu quarto. Mesmo assim, eu conseguia ver minha cama através delas — desfeita, convidativa — e sabia que ele também via.

    — Uau — disse ele. Era a mobília, com certeza. Peças que eu tinha garimpado em brechós e mercados de pulgas, lixado e pintado de cores extravagantes para combinar. — Sinto que sou a Alice no País das Maravilhas.

    Tirei os sapatos e me recostei no balcão da cozinha.

    — Aposto dez dólares que você nunca leu.

    Ele sorriu e abriu minha geladeira, puxando uma garrafa de água.

    — Me beba — ele disse, e eu ri.

    Então puxou um cartão de visita, pôs em cima do balcão, inclinou-se para a frente e roçou os lábios nos meus antes de se afastar.

    — Me liga — disse por fim.

    E eu liguei.

    _______

    A viagem pela Virgínia tinha se tornado infinita, com suas casas de fazenda brancas nas colinas e os fardos de feno pontilhando a grama ao redor. O que veio a seguir foram as montanhas — guardrails e placas com avisos para acender os faróis de milha — e a estática quando as estações de rádio iam e voltavam. Quanto mais eu dirigia, mais lenta parecia estar. Relatividade, pensei.

    O ritmo era diferente na volta para casa. As pessoas não mudaram muito nem tão rápido ao longo desses dez anos. Cooley Ridge, mantendo você como a pessoa que sempre foi. Quando saí da rodovia, desci a rampa e cheguei à avenida principal da cidade, poderia apostar que ainda encontraria Charlie Higgins ou alguém como ele recostado na lateral dilapidada da farmácia. Poderia apostar que ainda encontraria Christy Pote dando em cima do meu irmão, e ele fingindo não notar, mesmo depois que seguiram com a vida e se casaram com outras pessoas.

    Talvez fosse por causa da umidade e da maneira como tínhamos que lutar para abrir nossos caminhos, como xarope grudado no fundo de um frasco, doce e viscoso. Talvez fosse por viver tão perto das montanhas; mil anos de desenvolvimento, a movimentação lenta das placas sob a terra, as árvores que estavam aqui desde que eu tinha nascido e que permaneceriam aqui mesmo depois que eu morresse.

    Talvez fosse pelo fato de ser impossível olhar qualquer coisa além disso aqui, quando estamos imersos. Apenas as montanhas, a floresta e a gente. É isso.

    Dez anos e cento e sessenta quilômetros depois, atravesso a fronteira do estado — Bem-vindo à Carolina do Norte! —, as árvores ficam mais grossas, o ar mais pesado, e estou de volta.

    As bordas borradas começam a ganhar foco, e minha mente volta no tempo. Nossos fantasmas ganham consistência: Corinne correndo no acostamento da estrada à minha frente, erguendo o polegar, as pernas brilhantes de suor, a saia voando quando um carro passa muito perto. Bailey pendurada no meu ombro, com o hálito quente de vodca. Ou talvez fosse o meu.

    Meus dedos se desprendem do volante. Queria estender a mão e tocá-las. Ver Corinne se virando e dizendo: Para com essa merda, Bailey, notando meus olhos e sorrindo. Mas elas desapareceram rápido demais, como todo o resto, e o que sobrou foi aquela pontada aguda de saudade.

    Dez anos, trinta quilômetros, e posso ver a minha casa. A porta da frente. O caminho coberto de mato e as ervas daninhas se erguendo entre o cascalho da entrada da garagem. Ouço a porta de tela se entreabrir e a voz de Tyler: Nic? Parece um pouco mais profunda que minha lembrança, um pouco mais próxima.

    Quase em casa agora.

    Na saída, à esquerda do semáforo, o asfalto cinza rachado.

    Uma placa recém-cravada no chão, bem na esquina, o fundo manchado com lama seca — parque de diversões de volta à cidade — e algo se agita em meu peito.

    Lá está a farmácia com o grupo de adolescentes vadiando ao lado do estacionamento, como Charlie Higgins costumava fazer. Tem a fileira de lojas, letras pintadas nas vitrines diferentes das que eu via quando criança, com exceção do Kelly’s Pub, que era a coisa mais próxima de um ponto de referência que tínhamos. Tem a escola primária e, do outro lado da rua, a delegacia, com o prontuário do caso Corinne enfiado em algum arquivo, juntando poeira. Imaginei todas as provas encaixotadas e jogadas em um canto, porque não havia outro lugar para colocá-las. Deixadas de lado, esquecidas no tempo.

    Os cabos elétricos se estendiam sobre nós na beira da estrada, a igreja aonde quase todo mundo ia, fosse protestante ou não. E, ao lado dela, o cemitério. Corinne mandava a gente prender o fôlego quando passávamos por lá. Mãos para o céu nos trilhos da ferrovia, um beijo quando os sinos da igreja davam doze badaladas, e nenhuma respiração perto dos mortos. Ela nos obrigou a fazer isso, mesmo depois que minha mãe morreu. Como se a morte fosse uma superstição, algo que podíamos superar jogando sal sobre os ombros, cruzando os dedos atrás das costas.

    Peguei meu celular no semáforo e liguei para Everett. Caí na caixa postal, como sabia que aconteceria.

    — Cheguei — eu disse. — Estou aqui.

    _______

    A casa era tudo o que eu imaginara durante as últimas nove horas. O caminho da garagem até a varanda da frente agora dominado pelo jardim, o carro de Daniel estacionado bem junto à cobertura para deixar espaço para o meu, o mato arranhando meus tornozelos no trajeto de uma alpondra a outra, minhas pernas avançando pelas lembranças. O tapume era cor de marfim, mais escuro em alguns pontos, branqueado pelo sol em outros. Tive de estreitar os olhos para encará-lo. Parei a meio caminho entre meu carro e a casa, formando uma lista na cabeça: Pegar emprestada uma lavadora de alta pressão, encontrar um garoto para cortar a grama, arrumar alguns vasos de flores coloridas para a varanda…

    Eu ainda estava de olhos apertados, minha mão os protegendo do sol, quando Daniel deu a volta na casa.

    — Pensei ter ouvido seu carro — disse ele. O cabelo estava mais longo do que eu me lembrava, na altura do queixo, do mesmo comprimento que o meu antes de eu ir embora daqui para sempre. Ele costumava mantê-lo bem curto, porque, na única vez em que deixou crescer, as pessoas disseram que ele estava parecido comigo.

    Comprido assim parecia mais claro, mais para loiro, ao passo que o meu ficara mais escuro com o passar dos anos. Ele ainda era pálido como eu, e os ombros nus já estavam ficando vermelhos. Mas tinha emagrecido, as linhas firmes do rosto mais pronunciadas. Agora mal podíamos passar por irmãos.

    Seu peito estava coberto de lama, e as mãos, cobertas de terra. Ele limpou a palma na lateral da calça, caminhando na minha direção.

    — E antes das três e meia — falei, o que era ridículo. De nós dois, ele sempre foi o responsável. Foi quem abandonou a escola para ajudar com a nossa mãe. Foi quem disse que precisávamos conseguir ajuda para o nosso pai. Agora, era quem estava de olho no dinheiro. Minha chegada relativamente no horário não o impressionaria.

    Ele riu e passou as costas das mãos na calça jeans.

    — É bom ver você também, Nic.

    — Desculpe — eu disse, me jogando para um abraço, o que era um exagero. Eu sempre fazia isso. Tentava compensar indo até o outro extremo. Ele ficou rígido com meu abraço, e eu sabia que estava sujando minha roupa toda. — Como está o trabalho, a Laura, você?

    — Corrido. Tão irritável quanto grávida. Feliz por você estar aqui.

    Eu sorri, depois voltei para o carro para pegar a minha bolsa. Não me dava bem com suas gentilezas. Nunca sabia o que fazer com elas, o que ele queria dizer com elas. Como meu pai costumava dizer, ele era uma pessoa difícil de decifrar. Sua expressão era naturalmente de desaprovação, então eu sempre me sentia na defensiva, como se precisasse provar alguma coisa.

    — Ah — falei, abrindo a porta de trás do carro e fuçando nas caixas. — Tenho uma coisa para ela. Para vocês dois e para a bebê. — Onde é que estava? Era uma daquelas sacolas com um chocalho na frente, com glitter que mudava cada vez que a sacola se movia. — Está aqui, em algum lugar... — resmunguei. E o papel de embrulho tinha fraldinhas com alfinetes, o que eu realmente não entendi, mas achei que a Laura adoraria.

    — Nic — disse ele, os dedos longos dobrados sobre a porta aberta do carro —, isso pode esperar. O chá de bebê é na próxima semana. Quer dizer, se você não estiver ocupada. Se quiser ir. — Ele pigarreou e tirou os dedos da porta. — Ela gostaria que você fosse.

    — Tudo bem — eu disse, me levantando. — Claro. Com certeza. — Fechei a porta e comecei a caminhar em direção à casa, e Daniel me acompanhou a passos largos. — Está muito ruim? — perguntei.

    Eu não via a casa desde o verão passado, quando levamos nosso pai para Grand Pines. Naquela época, havia uma chance de que fosse uma mudança temporária. Foi o que dissemos para ele. "Só por enquanto, pai. Só até você se sentir melhor. Só um pouquinho." Agora, estava claro que ele não melhoraria, que não seria só por um tempo. Sua mente estava uma bagunça. Suas finanças, ainda mais, um desastre que desafiava toda lógica. Mas ao menos ele tinha a casa. Nós tínhamos a casa.

    — Consegui ontem que religassem a água, a luz, o telefone, mas tem algo errado com o ar-condicionado.

    Senti meus cabelos longos colando na nuca, o vestido de verão colando na pele, o suor brotando nas pernas nuas, e não fazia nem cinco minutos que eu estava ali. Os joelhos cederam quando pisei na madeira lascada da varanda.

    — Onde foi parar aquela brisa? — perguntei.

    — Foi assim o mês inteiro — ele respondeu. — Eu trouxe alguns ventiladores. Não tem nada estrutural para fazer além do ar-condicionado. Precisa de pintura, lâmpadas, uma boa limpeza, e, obviamente, precisamos decidir o que fazer com tudo que está aí dentro. Se nós mesmos conseguíssemos vender, economizaríamos um bom dinheiro — acrescentou, olhando fixo na minha direção. Foi quando eu entrei. Além de lidar com a papelada do meu pai, Daniel queria que eu vendesse a casa. Ele tinha um emprego, um bebê a caminho, uma vida inteira aqui.

    Eu tinha dois meses de folga. Um apartamento que estava sublocando pelo dinheiro extra. Uma aliança na mão e um noivo que trabalhava sessenta horas por semana. E agora um nome — Corinne Prescott — saltando na minha cabeça como um fantasma.

    Ele abriu a porta de tela, e o rangido familiar bateu direto no meu estômago. Sempre batia. Bem-vinda de volta, Nic.

    _______

    Daniel ajudou a descarregar o meu carro, levou a bagagem até o corredor do segundo andar e empilhou meus pertences na mesa da cozinha. Passou o braço no balcão, e partículas de poeira flutuaram no ar, suspensas em um raio de luz que atravessava a janela. Tossiu com o braço no rosto.

    — Desculpe — disse ele. — Ainda não tinha entrado aqui. Mas já comprei os materiais. — Apontou para uma caixa de papelão no balcão.

    — É por isso que estou aqui — falei.

    Eu pensei que, se planejasse viver aqui durante esse período, deveria começar pelo meu quarto e assim ter um lugar para dormir. Passei a mala pelo topo da escada e carreguei a caixa de produtos de limpeza equilibrada no quadril, até meu antigo quarto. As tábuas do assoalho rangeram no corredor, a um passo da minha porta, como sempre. A luz das janelas atravessava as cortinas, e tudo no quarto parecia pela metade sob aquela luz silenciosa. Acionei o interruptor, mas não aconteceu nada, então deixei a caixa no chão e abri as cortinas, observando Daniel voltar da garagem com um circulador de ar embaixo do braço.

    O edredom amarelo coberto de margaridas pálidas ainda estava amarrotado aos pés da minha cama, como se eu nunca tivesse ido embora. As marcas nos lençóis — um quadril, um joelho, a lateral de um rosto — ainda estavam lá, como se alguém tivesse acabado de acordar. Ouvi Daniel na porta da frente e puxei o edredom rapidamente, alisando as marcas.

    Abri as duas janelas, aquela com a tranca que funcionava e aquela com a tranca que havia quebrado em algum momento do fundamental dois, e que nunca conseguimos arrumar. A tela havia desaparecido, o que não era uma grande perda; tinha se rasgado e entortado por anos de mau uso. Da minha parte, empurrando a base para fora, rastejando no telhado inclinado e caindo no monte de palha, o que doía apenas se eu errasse a distância, noite após noite. O tipo de coisa que fazia todo o sentido quando eu tinha dezessete anos, mas agora parecia ridículo. Como não conseguia subir de volta, eu me esgueirava pela porta dos fundos e subia as escadas na ponta dos pés, evitando o rangido do corredor. Provavelmente eu poderia ter me esgueirado para fora desse mesmo jeito, evitado saltar, evitando quebrar a tela.

    Quando me virei, no quarto banhado de luz, percebi todas as coisas que Daniel já havia feito: algumas fotografias já não estavam nas paredes, a tinta amarelada desbotada onde ficavam penduradas; as velhas caixas de sapatos que se erguiam no armário até o alto, cuidadosamente empilhadas no canto da parede ao fundo, e o tapete rústico que tinha sido da minha mãe quando ela era criança, puxado para baixo das pernas da cama.

    Ouvi o rangido da tábua do assoalho, e Daniel estava na minha porta, com o

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