O itinerário de Benjamim de Tudela
De J. Guinsburg
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O itinerário de Benjamim de Tudela - J. Guinsburg
Entre as crônicas dos viajantes que desenharam no mundo medieval o mapa mundi das terras conhecidas e ignotas
que suas andanças lhes permitiram palmilhar, o Itinerário de Benjamin de Tudela tem um lugar marcante na literatura hebraica e no contexto judaico ao qual pertence, assim como em diferentes trabalhos científicos sobre a história e a geografia do Medievo. O seu interesse, que nutriu a imaginação de gerações de leitores judeus e deitou frutos inclusive com uma obra clássica nas letras ídiches, Aventuras de Benjamin III*, de Mêndele Mokher Sforim, editada em 1878, transpôs desde logo os muros dos guetos, difundindo-se em sucessivas edições hebraicas e traduções latinas, percurso que o constituiu em objeto de estudo, quer dos principais expoentes da Ciência do Judaísmo, como Leopold Zunz (1794-1886), Moritz Steinschneider (1816-1907) e A. Asher (1800-1853), quer da pesquisa acadêmica sobre o universo medieval encetada desde os humanistas do Renascimento. Uma das razões, sem dúvida, é que Benjamin, embora um homem vinculado às suas raízes religiosas e etnoculturais, descreve com muito realismo tudo o que viu e visitou e, não menos, tudo o que lhe relataram sobre países e povos com os quais não teve contato pessoal. O motivo talvez seja porque o seu olhar é marcado por uma objetividade que se traduz em dados numéricos para a demografia judaica da época e em registro de ocupações no plano da economia, além de outras informações que são atribuídas à sua percepção e avaliação, sobretudo de mercador.
Tais fatos e os quadros descritos por nosso itinerante ainda se propõem com vivacidade a um leitor de hoje, pelo menos foi o que aconteceu ao tradutor e, por isso, ele empreendeu a versão que ora apresenta ao público de língua portuguesa. Transposta para o nosso vernáculo a partir da tradução inglesa de Marcus N. Adler, a presente publicação do Itinerário de Benjamin de Tudela inclui a Introdução, o Objeto da Viagem, a Bibliografia, a maioria das Notas da referida edição, livremente redigidas e acrescidas de outras que se julgou necessárias, bem como a Introdução da importante edição anterior dessa mesma obra, também em inglês, do antiquário e bibliófilo alemão A. Asher.
J. GUINSBURG
*Título da tradução brasileira, realizada por Paula Beiguelman e editada em 1944, da novela Massoes Beniúmen Haschlischi, de Scholem I. Abramovitch (1836-1917), cognominado Mêndele Mokher Sforim (Mêndele, o Vendedor de Livros).
Islã na Idade Média
O Itinerário de Benjamin de Tudela lança um jato de luz sobre um dos mais interessantes estágios do desenvolvimento das nações. A história do mundo civilizado desde a queda do Império Romano até o presente dia pode ser resumida como a luta entre a Cruz e o Crescente. Esse embate caracteriza-se por um persistente fluxo e refluxo. Maomé em 622 a.D. transformou, como que por um passe de mágica, um aglomerado de tribos beduínas em um povo guerreiro. Um império árabe foi formado, o qual se estendeu do Ebro ao Indo. Seu avanço ulterior veio a ser detido no ano de 732, justo cem anos após a morte de Maomé, por Carlos Martel, na batalha de sete dias, de Tours.
O progresso da cultura dos árabes foi tão rápido quanto o de suas armas. Grandes cidades como Cairo e Bagdá foram construídas. O comércio e as manufaturas floresceram. Os judeus, que gozavam de proteção sob o governo benigno dos califas, transmitiram aos árabes o estudo e a ciência dos gregos. Escolas e universidades surgiram em todas as partes do Império. A idade das trevas da Cristandade mostrou ser a idade de ouro da literatura para o judeu e o árabe.
Por volta do século XI, entretanto, os árabes perderam muito de seu espírito marcial. O Islã poderia ter perdido sua ascendência no Oriente não tivessem os guerreiros turcos seljúcidas, vindos das terras montanhosas da Ásia Central, se apossado dos países que, nos tempos antigos, constituíam o império persa sob Dario. Os seljúcidas logo se converteram ao Islã, e sustentaram a força em declínio dos árabes.
Foram os maus tratos dispensados pelos seljúcidas aos peregrinos cristãos à Palestina que levantaram a Europa cristã e a levaram à Primeira Cruzada. O sistema feudal adotado pelos seljúcidas causou intermináveis dissensões entre os pequenos soberanos, denominados atabegues
, dos quais todos eram nominalmente vassalos do califa de Bagdá. Assim, aconteceu que o islamismo, dividido contra si mesmo, ofereceu apenas uma pobre resistência ao avanço dos cristãos. Os cruzados tiveram pouca dificuldade em abrir caminho para a Palestina. Eles capturaram Jerusalém, e estabeleceram lá o Reino Latino.
Por volta de meados do século XII o poder maometano encolhera. Não só os francos detinham a Palestina e todos os postos importantes na costa síria, como, pela captura da Armênia Menor, Antioquia e Edessa, introduziram uma cunha na Síria e estenderam suas conquistas até mesmo para além do Eufrates.
Por fim veio uma pausa no declínio do Islã, Zengi, um poderoso atabegue seljúcida, em 1144 capturou Edessa, o posto avançado da Cristandade; e a Segunda Cruzada, conduzida pelo imperador Conrado da Alemanha e pelo rei Luís VII da França, falhou na tentativa de recapturar a fortaleza. Noradine, o previdente filho e sucessor de Zengi, e, mais tarde, Saladino, um curdo educado em sua corte, descobriram como restaurar o decaído poderio do Islã e expulsar os francos da Ásia. Um necessário passo preliminar era pôr um fim nas dissensões dos governantes atabegues. Noradine fez isso sozinho, efetivamente, anexando seus domínios. Seu próximo passo foi ganhar a posse do Egito, e isolar desse modo o Reino Latino. Gênova, Pisa e Veneza, as três repúblicas italianas que dispunham entre elas o comando do mar, eram demasiado egoístas e demasiado preocupadas com seus interesses comerciais para interferir nos desígnios dos sarracenos. O rei latino Amalrico durante alguns anos procurou fixar um pé no Egito. Em novembro de 1168, levou um exército cristão até o Nilo e esteve a ponto de tomar Fostat, a velha metrópole árabe não fortificada do Egito. Os habitantes, entretanto, preferiram pôr fogo na cidade a deixá-la cair nas mãos dos cristãos. Até o dia de hoje muitos traços desse incêndio podem ser vistos nas vizinhanças do Cairo. O exército de Noradine, em que Saladino tinha um comando subordinado, chegando a tempo à cena da luta, forçou os francos à retirada, e os sarracenos foram aclamados como libertadores.
O governante nominal do Egito nessa época era Al-Adid, o califa fatimita que fez de Saladino o seu vizir, pouco suspeitando que esse modesto oficial logo haveria de suplantá-lo. Tão eficientemente administrou Saladino o país que em poucos meses este recobrou sua prosperidade, a despeito dos cinco anos de guerra devastadora que precedera.
Nessa conjuntura o viajante rabi Benjamin chegou ao Egito. Cerca de três anos antes deixara sua cidade natal – Tudela, junto ao Ebro, no norte da Espanha. Depois de passar pelas prósperas cidades que se situam no Golfo de Lyon, visitou Roma e o sul da Itália. De Otranto cruzou para Corfu, atravessou a Grécia, e então chegou a Constantinopla, da qual dá um interessante relato. Muito reveladoras, por exemplo, são as palavras: Eles assoldam em todas as nações guerreiros chamados de bárbaros para lutar com o sultão dos seljúcidas; pois os nativos não são dados à guerra, mas são como as mulheres que não têm força para lutar
. Depois de visitar as ilhas do Egeu, bem como Rodes e Chipre, passou para Antioquia, e seguiu a bem conhecida rota meridional que margeia o Mediterrâneo, visitando as importantes cidades ao longo da costa, das quais todas estavam então em mãos dos francos.
Em vista das tensas relações entre cristãos e sarracenos, e das lutas e incursões dos cavaleiros latinos, podemos entender por que Benjamin teve de seguir um caminho tortuoso que lhe permitisse visitar todos os lugares de nota na Palestina. De Damasco, que era a capital do império de Noradine, ele prosseguiu viagem com segurança até alcançar Bagdá, a cidade do Califa, de quem tem muito a contar.
É improvável que haja ido longe no interior da Pérsia, que na época se achava em estado caótico e onde os judeus eram muito oprimidos. De Basra, na desembocadura do Tigre, ele provavelmente visitou a ilha de Kisch no Golfo Pérsico, que na Idade Média era um grande empório de comércio e de lá se dirigiu para o Egito, via Aden e Assuan. Benjamin fornece um vívido escorço do Egito de seu tempo. A paz e a abundância parecem prevalecer no país. Esse feliz estado de coisas deveu-se inteiramente às sábias medidas adotadas por Saladino que, no entanto, se mantinha tão calculadamente em segundo plano que nem sequer o seu nome é mencionado no Itinerário. A deposição do califa fatimita na sexta-feira, 10 de setembro de 1171, e sua morte subsequente, causou pouca agitação. Saladino continuou a governar o Egito como lugar-tenente de Noradine. No devido tempo, tornou-se senhor de Barca e Trípoli; então conquistou a Arábia Feliz e o Sudão e, após a morte de Noradine não teve dificuldade em anexar os domínios de seu antigo chefe. As nações cristãs encararam esse poder rapidamente crescente com natural alarme.
Por volta dessa época chegaram à Europa notícias de que um poderoso rei cristão denominado Prestes João, que reinava sobre um povo vindo da Ásia Central, havia invadido a Ásia Ocidental e infligido uma derrota esmagadora a um exército muçulmano. O papa Alexandre III concebeu a esperança de que se podia encontrar um aliado útil nesse rei-sacerdote, que apoiaria e sustentaria o domínio cristão na Ásia. Consequentemente, despachou seu médico, Filipe, em missão junto a esse misterioso potentado para conseguir sua ajuda contra os maometanos. O enviado nunca retornou.
Benjamin é um dos poucos autores da Idade Média que nos dá um relato sobre esses súditos do Prestes João. Eles não eram quaisquer outros senão os infiéis, os filhos de Ghuz [oguzes], ou kofar-al-Turak, as selvagens hordas de mongóis de nariz achatado vindas das Estepes da Tartária, que, na linguagem singular de Benjamin, adoram o vento e vivem no agreste, que não comem pão e não bebem vinho, mas se alimentam de carne crua. Eles não têm nariz – em lugar deste têm dois pequenos orifícios através dos quais respiram
.
Esses não eram homens provavelmente dispostos a ajudar os cristãos. Ao contrário, como é tão fartamente descrito no Itinerário de Benjamin, eles quebraram o poder do sultão Sinjar, o poderoso xá da Pérsia que, fosse ele poupado pelos homens de Ghuz, teria se constituído em séria ameaça para Saladino.
Levou alguns anos para Saladino consolidar seu império. Em 1187 sentiu-se em condição de travar com os francos um embate decisivo. Na batalha de Tiberíades, Guy, o rei latino, foi derrotado e feito prisioneiro. Os cavaleiros templários e hospitalários, de cujos feitos em Jerusalém Benjamin nos dá pormenores, ou partilharam a sorte do rei ou foram mortos em ação. Jerusalém caiu pouco depois. O papa Alexandre III agitou a consciência da Europa e induziu a flor da cavalaria a embarcar na Terceira Cruzada em 1189. Mas a bravura do imperador Frederico Barbarossa, a galhardia de Ricardo I, da Inglaterra, a astúcia de Filipe Augusto, da França não foram de nenhuma serventia. A Quarta e Quinta Cruzadas foram igualmente malsucedidas e a maré de sucesso do Islã subiu alto.
Após a morte de Saladino seu império ruiu em pedaços e sob Gêngis Khan ocorreu a invasão de hordas de mongóis e tártaros, de quem os oguzes foram meramente precursores. Eles assolaram a China e a Rússia, a Pérsia e partes da Ásia Ocidental. O gasto Califado de Bagdá foi varrido, mas o próprio Islã recebeu nova vida. O rápido declínio do poder mongol no fim do século XIII