Monte Verità
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Sobre este e-book
Na contundente narrativa, um funcionário do hotel suíço Monte Verità é motivo de espanto para os hóspedes. Trata-se de um curioso garçom poliglota, que domina o italiano, o alemão, o francês, o espanhol, o grego, o japonês, o mandarim e, óbvio, sua língua materna, o português. Formado em economia (condição irrelevante para aqueles a quem serve), este negro, fugitivo de guerra, cria, em seu quarto no hotel, a sua história de vingança e redenção – e também a história de vingança e redenção do mundo, se assim compreenderem suas "intervenções". Tais intervenções revelam-se socos de lucidez no peito do comodismo egoísta.
Anunciadas uma a cada domingo, em todas as mídias possíveis, com drásticas imposições para a humanidade, seis mensagens bombásticas são um convite para o homem olhar o nosso planeta, repensar seu papel nele e sua relação com ele. Trata-se de um despertar para o futuro, de uma nova saída da mítica e alegórica caverna de Platão.
Ao criticar o etnocentrismo, o racismo, o especismo, a violência e a depredação ambiental, a invasão filosófica que toma conta do orbe terrestre e gera discussão e debate entre os indivíduos de todas as culturas, lança também um novo e aguçado olhar sobre o nosso mundo. Assim, passo a passo, mensagem a mensagem, Gustavo Bernardo leva seu garçom incomum a atualizar – e estender – os imperativos do filósofo alemão Immanuel Kant para a realidade de hoje. Um alento para uma humanidade autodestrutiva – mas apenas um paliativo, se o homem não modificar a si mesmo na raiz do seu ser.
Original e surpreendente, Monte Verità faz pensar sem sentir e, daí sim, sentir que é preciso pensar.
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Monte Verità - Gustavo Bernardo
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VERITÀ
No Monte Verità, o homem olha a estátua. O homem é negro e baixo. A estátua é abstrata (um vazio dentro de um círculo) e foi esculpida muito tempo atrás por um escultor chamado Hans Arp.
Monte Verità é o nome de um hotel localizado na parte italiana da Suíça, em Ascona. Nos jardins do Monte Verità, o homem negro se encosta na estátua abstrata. Pousada no seu braço, uma exuberante arara-verde come biscoitos na palma da sua mão. Faz bastante frio e talvez neve, o que não combina com o homem, menos ainda com a arara, mas combina com a estátua. Combina também com o longo e belo lago Maggiore que se entrevê abaixo, por entre a neve e a neblina.
A arara deve ter emigrado da África, não se sabe fugindo de quê. O homem também emigrou da África, mais especificamente de Moçambique, fugindo das sucessivas guerras no seu país. Embora formado em Economia, ele trabalha no hotel como garçom. É o que lhe permitiram. Nos sucessivos congressos que se realizam no estabelecimento, diverte-se falando com os hóspedes na língua de cada um deles: italiano, alemão, francês, espanhol, grego, japonês, mandarim, enfim, português.
Em geral, os estrangeiros primeiro se espantam, quando o garçom se dirige a eles na sua língua, e depois se divertem, como se ouvissem aquela arara falar. Um dos que mais se espantaram foi o professor brasileiro que estudava um linguista tcheco. Ele e os demais agora têm uma boa história para contar em casa.
O garçom, com a arara no braço, descansa do trabalho em almoço concorrido que reuniu pesquisadores de pelo menos três continentes. Os pesquisadores participam do VI Congresso Internacional do Pós-Utópico. O garçom acha engraçado o título do congresso, mas não dirá sua opinião para os ilustres congressistas.
O garçom prefere não almoçar, não está com fome. No lugar disso, alimenta a arara com biscoitos alemães. Encostado na estátua esculpida por Hans Arp, olha o lago e lembra alguns dos pensamentos do escultor surrealista, como, por exemplo: O homem já fala do silêncio como uma lenda.
Ou: Não somos senão uma sociedade composta pelo ruído excessivo da falta de sentido.
Ou ainda: O progresso nos derrotou.
Ele poderia impressionar os congressistas comentando em quatro ou cinco idiomas esses trechos de Arp no jantar enquanto serve o tiramisu de sobremesa. Decerto, eles os citariam depois, nas suas conferências. No entanto, o escultor, que também era poeta, não concordaria com essa apropriação. Por isso, o homem da arara pensa: É melhor me conter e não me exibir com o pensamento alheio.
Enquanto alimenta a arara e olha o lago, o pequeno garçom também pensa no que escrever à noite. Os ilustres congressistas não sabem que ele, além de falar em vários idiomas, ainda escreve – preferencialmente na sua língua materna, às vezes também em inglês.
Será que um dia eles se dignarão a dissecar o que ele escreverá nessa noite? Bem, essa é uma pergunta interessante.
POUCO ANTES
É domingo e tudo parece normal.
Em alguns lugares do mundo faz sol, em outros chove. Aqui e ali uma tempestade de neve acima da média, acolá secas mais extensas do que o usual. Em alguns lugares do mundo há paz e se trabalha, em outros tantos se fazem guerras nas quais homens ora matam, ora morrem.
Nos quintais, as crianças acariciam seus cães de estimação, enquanto milhões de animais são preparados para o abate de modo a aproveitar o máximo da carne, da pele, das penas, dos órgãos internos ou dos ossos. Japoneses, em jardins geométricos, cuidam amorosamente de minúsculos bonsais, enquanto seus compatriotas, nos mares, caçam baleias cantoras.
Pesquisadores estudam os efeitos da poluição enquanto centros de pesquisa produzem motores mais potentes e velozes. Médicos curam novas doenças e aumentam a expectativa de vida nos centros desenvolvidos. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se novas armas químicas e controla-se a mutação de novos vírus, para garantir a hegemonia desses mesmos centros.
Pessoas se olham e se amam, outras se olham e se odeiam. Outras tantas não se amam, não se odeiam, nem sequer se olham. É domingo e tudo parece normal.
No mundo ocidental, mulheres ocupam os postos mais altos nos governos e nas corporações, mas se multiplicam as notícias de violências contra elas. No mundo muçulmano, mulheres são punidas e mortas por pensarem ou desobedecerem, mas aparecem escritoras contando o que acontece.
A ciência avança a passos muito largos, propiciando descobertas e invenções. Ao mesmo tempo, a ciência se torna cada vez menos compreensível para a maioria das pessoas. Dessa maneira estranha, mais conhecimento gera mais