Assassinato na Biblioteca
De Helena Gomes
5/5
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Sobre este e-book
Alternando-se entre o crime ocorrido há 38 anos, quando Lara ia encontrar o irmão mais velho, estudante de filosofia da USP envolvido com o movimento estudantil, para entregar-lhe dinheiro para fugir, e os assassinatos que se sucedem à morte da bibliotecária, a trama surpreende o leitor com conexões inesperadas entre os fatos e os personagens a cada capítulo.
Com reviravoltas a todo momento, Assassinato na biblioteca é um romance eletrizante que leva o jovem a refletir sobre a história recente do país, mostrando como a tortura e a repressão modificaram as vidas de milhares de pessoas. A autora aborda ainda questões que povoam o universo adolescente, como as dificuldades de relacionamento nas novas estruturas familiares, enquanto envolve o leitor numa atmosfera de suspense que tem um pé na realidade e outro na fantasia, demonstrando grande habilidade narrativa para se comunicar com os jovens. Não pode faltar em nenhuma biblioteca!
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Avaliações de Assassinato na Biblioteca
2 avaliações1 avaliação
- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Sensacional, muito bom, li quando era adolescente essa foi uma releitura.
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Assassinato na Biblioteca - Helena Gomes
Para Clarice Herzog
SUMÁRIO
Para pular o Sumário, clique aqui.
PARTE I
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
PARTE II
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Epílogo
Créditos
A Autora
PARTE I
"Porque o tempo é uma invenção da morte:
Não o conhece a vida – a verdadeira –
Em que basta um momento de poesia
Para nos dar a eternidade inteira"
MARIO QUINTANA
CAPÍTULO 1
Quinta-feira, 3 de setembro de 1970
Irmão
Tempos difíceis. E perigosos. Tempos de AI-5. Lara não sabia o que a sigla significava, mas a temia pelo que não se falava sobre ela. O silêncio das pessoas dizia tudo o que precisava ser dito. O AI-5 era uma forma que o governo militar havia encontrado para perseguir as pessoas consideradas inimigas do país. E nesta lista negra entrava qualquer um: professores, sindicalistas, estudantes, escritores, cantores, enfim, todo mundo que não concordasse com as decisões do governo militar.
Lara foi a pé para a escola, como sempre fazia. Desta vez, no entanto, o medo a acompanhava como uma sombra invisível. Havia uma sensação gelada, que ganhava força com a ameaça trazida pelo desconhecido, pelo que podia acontecer. Não temia por ela e sim por Luke, o irmão seis anos mais velho. Não sabia se ele estava na lista de perseguições iniciada pelo AI-5.
Era um dia bonito. Lara saiu da Rua Pedro Américo e virou à direita para pegar a Avenida Ana Costa e passar em frente à estação de trem Sorocabana. Naquele momento, nenhum trem de passageiros ou de carga atravessava a avenida, para a alegria dos motoristas mais apressados. Quando o trem passava, todo o trânsito naquela área ficava parado. Lara gostava do som estridente e barulhento do sinalizador que soava antes de a cancela baixar e interditar a avenida, para que os vagões pudessem seguir em paz pelos trilhos. Santos era mesmo uma cidade deliciosa para se viver.
Naquela manhã, a garota não prestou atenção em nada, nem no bonde 42 que parava para pegar passageiros no ponto logo adiante. Em breve, Santos perderia todos os seus bondes para dar lugar aos ônibus que já circulavam em número cada vez maior. Sinal dos novos tempos, acreditavam alguns. É a modernidade, reforçavam outros. Lara, com seus 14 anos, gostava dos bondes, mas não podia deixar de admirar as novidades em um mundo que parecia mais e mais veloz. No ano anterior, um americano, Neil Armstrong, havia pisado na Lua pela primeira vez. A avó de Lara não cansava de repetir que as imagens que a TV tinha exibido para mostrar o astronauta caminhando sobre a superfície lunar não passavam de mentira. Tudo truque!
, retrucava ela, com raiva dos Estados Unidos. Não era esse o país que havia incentivado o golpe militar no Brasil? Como Luke explicara uma vez, em voz baixa e apenas à irmã Lara e à avó, os agentes da CIA tinham ensinado métodos de tortura aos policiais e militares brasileiros, os mesmos métodos hoje aplicados sem piedade aos prisioneiros do regime.
Lara pensou em Caetano Veloso e Gilberto Gil. Luke contara que os dois haviam sido presos, um ano antes, numa boate do Rio de Janeiro, quando faziam um espetáculo. Após dois meses de prisão, tinham partido para o exílio, na Inglaterra. E se isso também acontecesse ao Luke? Lara tinha medo de que ele também acabasse preso, que fosse torturado e tivesse que ir embora do país. O que seria dela e da avó? As duas já morriam de saudades desde que ele trocara Santos e fora morar em São Paulo para estudar filosofia na USP. Já imaginou se o rapaz fosse obrigado a viver no exterior?
A garota respirou fundo e apertou os cadernos que carregava contra o peito. Espremido entre duas páginas, estava o dinheiro que entregaria ao irmão. Era tudo o que a avó conseguira arrumar. Luke não dera detalhes sobre o que estava acontecendo com ele. Ligara na véspera, pedindo para a irmã levar o dinheiro e encontrá-lo na biblioteca da escola onde ela estudava. O rapaz estava em perigo. Há tempos, Lara desconfiava de que o irmão estava fazendo mais do que participar de passeatas contra o governo, o que, aliás, agora era proibido. A avó queria levar pessoalmente o dinheiro, mas ele argumentara que a irmã não despertaria nenhuma suspeita. Afinal, ela estava apenas indo para a escola, dentro da sua rotina de sempre.
Lara continuou seguindo pela Avenida Ana Costa. Algumas casas ainda ostentavam na fachada, com orgulho, a bandeira nacional. O Brasil conquistara havia pouco o tricampeonato na Copa do Mundo, no México. O Colégio Santa Maria ficava numa das travessas da avenida, a poucas quadras da praia. Ocupava um quarteirão inteiro, com seus muros baixos de pedra branca. O prédio principal, em estilo neoclássico, fora erguido no final do século 19 e lembrava um L
gigante, deitado para a direita. Na base da letra, ficavam a secretaria, a diretoria, a classe do pré, outras salas menores e o início da escadaria que levava para as salas de aula do primário e ginásio, no primeiro andar, e do clássico, do científico e do técnico em contabilidade, no segundo andar. Já no lado direito do prédio (a haste do L
), no térreo, se espalhava a ampla biblioteca, aberta às terças e quintas ao público em geral. Acima dela, no primeiro andar, mais salas de aula e o laboratório. No segundo andar, ainda desocupado, estava prevista a construção de um anfiteatro em breve.
Pintado de branco num reforço à sua aparência solene e tradicional, o prédio principal se destacava na paisagem do Gonzaga, um bairro de poucos edifícios e muitas casas residenciais. Em frente à ponta direita da biblioteca, havia a capela em homenagem à Nossa Senhora, santa que batizava o colégio, e, na lateral direita, a quadra para a prática de esportes. Ao fundo, mal se enxergava a minúscula casa do zelador. Já à esquerda do prédio principal, mais próximo ao muro, formava-se um tipo de corredor com a horta das crianças e, mais para dentro, a área de brincadeiras com balanços, escorregadores e gangorras, que continuava com o pátio atrás do prédio principal. Além dessa estrutura, o colégio contava com jardins bem cuidados em vários pontos do terreno, em especial na área livre entre a capela e o prédio principal e em frente à biblioteca, diante do imponente portão de entrada e saída.
Ao dobrar a esquina da rua do colégio, Lara apertou o passo, com o coração batendo mais forte. Alcançou o portão da escola, se esqueceu de cumprimentar Gilmar (o zelador que também trabalhava como porteiro), acenou para duas amigas que fofocavam aos cochichos, na porta do prédio principal, à esquerda, lançou um olhar distraído para a capela, à direita, e atravessou a alameda central do jardim, que terminava na biblioteca. Ao entrar no local, esbarrou sem querer numa jovem loira de minissaia, muito bonita, de cabelos longos e franja que encobria os olhos muito maquiados.
– Desculpe! – disse Lara, mas a jovem, apressada, saiu sem lhe dar atenção.
Atrás do balcão de atendimento, Conceição, a bibliotecária quarentona e simpática, se mostrou profundamente irritada ao ver a aluna que se aproximava apenas para lhe dar bom-dia.
– Faltam cinco minutos para a aula começar – disse a mulher, num tom de censura.
– Eu só vim pegar um livro... – tentou Lara, surpresa com aquela postura um tanto rude de uma pessoa sempre tão doce.
– Venha mais tarde.
– Mas...
– Eu disse para você vir mais tarde!
A autoridade sempre falaria mais alto. No entanto, naquele momento em que só pensava no irmão, a garota se fez de surda, acelerou o passo e escapou rumo aos corredores formados por estantes abarrotadas de livros, certa de que a bibliotecária iria atrás dela apenas para puxá-la de volta pelas orelhas. Conceição, porém, não se mexeu no seu posto junto ao balcão.
Estranho... a biblioteca estava vazia. Naquela hora da manhã era comum ouvir o burburinho dos alunos apressados que vinham devolver livros ou procurar outros para ajudá-los nos quilos de lição de casa que os professores costumavam passar.
Lara pegou o primeiro corredor, contornando-o a seguir para entrar no segundo. Depois, rapidamente, vistoriou o terceiro. Luke prometeu que estaria lá, no décimo corredor, da esquerda para a direita... E se fosse no décimo corredor da direita para a esquerda? Isto mudava tudo! Eram 30 corredores no total, alinhados em paralelo, para a direita, logo após o balcão de atendimento e um grupo de mesinhas que os alunos utilizavam para estudar e fazer anotações dos livros.
A garota disparou para a outra ponta da biblioteca. Ouviu algumas vozes... pertenciam a adultos e não às crianças e aos adolescentes de sempre. Sim, quinta-feira era dia de atendimento ao público em geral. Só que...
Desesperada, Lara alcançou o corredor certo, onde o irmão a esperava. A cena que encontrou foi a pior que poderia imaginar. Luke estava cercado por três homens truculentos e armados. Um deles se aproximou do rapaz, que não reagia, e o esmurrou com violência. Luke foi arremessado para trás, batendo contra os livros e as grossas prateleiras de madeira antes de cair de bruços no chão. Lara ia gritar, mas não conseguiu.Tinha parado de correr. Seu corpo tremia... de medo, de raiva, agitado por assistir àquela injustiça. O segundo homem se aproximou ainda mais do rapaz para enchê-lo de pontapés. Rosto, barriga, peito, braços, nada escapava aos chutes ferozes. O terceiro homem reforçou o ataque, enquanto o primeiro, muito satisfeito, apenas observava a situação.
Lara era uma adolescente magra e delicada. Mesmo assim, voou para cima dos dois homens que agrediam Luke. Tinha que segurá-los e tirar o irmão dali! Com força, agarrou um deles pelo braço, puxando-o para trás.
– Não se meta nisso! – brigou o sujeito, empurrando-a para longe.
Não, eles não iam levar o Luke! Lara retornou, com toda a revolta que conseguiu reunir, e se pendurou nas costas do sujeito para lhe cravar os dentes com força na orelha. O homem urrou, afastando-se automaticamente do rapaz que chutava sem piedade. Foi o segundo homem quem o ajudou a arrancar a menina de cima dele e jogá-la de volta ao chão. Lara caiu de qualquer jeito e, um pouco tonta, conseguiu se levantar. Ia retomar o ataque quando um som ensurdecedor invadiu o local.
Aturdida, a garota abaixou a cabeça para espiar o próprio corpo. O sangue encharcava a blusa branca do uniforme escolar. Um tiro atingira seu peito, na altura do coração, queimando e rasgando roupa, pele e carne. A dor terrível veio a seguir.
Lara ergueu o olhar para encontrar seu assassino. Ele ainda apontava a arma para a garota. Era o mesmo homem que esmurrara Luke e se afastara para acompanhar a surra, o mais jovem dos três. Não devia ter mais do que 20 anos. Os dois companheiros, preocupados, também o fitavam.
– Lara... – murmurou Luke, ainda estendido no chão e machucado demais para se mover. Ele a via somente naquele momento doloroso. Havia lágrimas em seus olhos, a culpa por ter colocado a irmã em perigo e, principalmente, o pânico pelo que aconteceria com ela.
O corpo da garota deslizou para baixo, para a frieza do piso da biblioteca. Os três homens não se importaram. Agiram rapidamente e, em segundos, Luke era carregado para longe. Sozinha, Lara sentiu o frio que antecipava o desconhecido. Não teve medo. Quando a escuridão surgiu, ameaçadora, encontrou a garota corajosa de olhos abertos, pronta para encarar seu novo futuro.
CAPÍTULO 2
Segunda-feira, 3 de setembro de 2007
Primeira Vítima
Igor odiava aquela cidade. Santos era uma chatice! Também odiava segundas-feiras, principalmente quando a segunda-feira o obrigava a ir para a nova escola que odiava mais do que tudo na vida. Colégio Santa Maria: ultrapassado, arrogante e intransigente. Mas o padrasto insistira para que estudasse lá, porque era uma escola tradicional, de qualidade, porque ele estudara lá etc. e tal. E a mãe de Igor, que fazia todas as vontades do novo marido, concordara com tudo, ressaltando ainda que uma escola mais exigente faria bem ao filho que repetira a 8ª. série no colégio em que estudara antes. Antes... Sim, uma palavra que definia bem os 15 anos de existência de Igor. Existiu um antes
, quando a vida valia a pena. A vida que tivera em Bauru, interior de São Paulo, o colégio superlegal e os colegas e amigos que deixara para trás, tudo acontecera antes. Antes que o pai adoecesse, antes da morte dele, antes do segundo casamento da mãe, antes de levar bomba na 8ª. série, antes de ver os amigos irem, sem ele, para o ensino médio. Antes da mudança para Santos.
Igor odiava mesmo aquela cidade. Estava lá desde janeiro, quando o padrasto, um médico santista que morava em Bauru, recebera um convite para integrar a equipe de oncologia do Hospital Guilherme Álvaro, em Santos. Fora sua oportunidade de retornar para casa. Na prática, aquele convite era mais um motivo para o adolescente de 15 anos odiar Santos. Sentia-se perdido, sem identidade e totalmente sozinho naquela cidade litorânea que, apesar de atraente, não conseguia conquistá-lo.
Uma nova volta no quarteirão adiaria mais um pouco sua entrada na aula. Apesar do olhar feroz de Gilmar, o velho zelador e também porteiro, Igor desviou a bicicleta do portão do colégio e pedalou para longe dali. Resistiu com força à vontade de escapar para a praia e passar a manhã inteira lá, sentado na areia, acompanhando as ondas que chegavam e partiam, distraídas e desligadas do mundo. Fizera isto quase todos os dias no primeiro semestre letivo, o que lhe rendera faltas em todas as disciplinas e um castigo homérico quando a mãe descobriu tudo: ficar sem usar o computador por um mês. Um mês! Aquilo, com certeza, fora uma tortura terrível para um garoto que levava para todo lado o laptop, que pertencera ao pai, escondido na inevitável mochila pendurada nas costas. Santos podia ser charmosa, mas tinha os mesmos problemas de cidade grande, ou seja, assaltos e roubos, ainda mais em um bairro comercial e movimentado como o Gonzaga.
O Colégio Santa Maria, voltado para alunos do maternal até o ensino médio, ocupava a quadra inteira com seu muro alto, pintado de um branco encardido pela poluição e cheio de grades no alto. Volta e meia alguém pichava o muro. O velho zelador, que morava numa casinha ridícula nos fundos da escola, demorava séculos para tirar a pichação e retocar a pintura. O padrasto de Igor torcia o nariz, dizendo que na época em que as freiras administravam o colégio aquilo jamais ocorria. Bons tempos, lembrava ele. O Santa Maria agora era dirigido por uma pedagoga, Eunice, que não era religiosa. E até agora Igor só vira uma freira: Irmã Mariana, sua professora de língua portuguesa.
Igor achou que a nova volta na quadra foi rápida demais. Não teve jeito. Sob a vigilância cerrada do zelador – que, a pedido da mãe do garoto, tomava conta
dele para evitar novas escapadas da aula –, entrou no colégio. Largou a bike no bicicletário, colado ao muro à esquerda, espiou a algazarra que os mais novos faziam no incrementado playground ao fundo, logo depois da horta, ajeitou a mochila nas costas, ignorou a entrada para a aula no prédio principal e, ao alcançar o jardim, atravessou a alameda central rumo à biblioteca. Tinha que devolver um livro.
Na porta da biblioteca, esbarrou no último